O ENIGMA
Ao Dr. Clovis Bevilacqua
Cansado de querer decifrar o Mistério,
Cujo limiar tocou, mas sem poder entrar,
Como os sons, como os sons longínquos d’um saltério
Que se fanassem com a Luz crepuscular...
Ei-lo de volta enfim ao seu eremitério,
– Batel que se perdeu um dia pelo mar –
Ei-lo sem o fulgor daquele sonho etéreo,
Que já teve na voz, que já teve no olhar...
Todavia, ele é um deus. Mas, inquieto de tudo,
Que é seu, que ele inventou, do seu esforço mudo,
E da sua altivez estoica de leão,
Anseia para ver no meio da peleja,
Dessa refrega, desse ardor que relampeja,
Se ainda pode iludir a cruel Decepção!...
Dezembro – 1903
SALOMÃO
Ao Adolpho Werneck
Tudo o meu coração tem do rei Salomão,
A glória, e o furor, o orgulho, e a crueldade;
Não ambiciona dez, nem cem, nem um milhão,
Mas a terra, e o mar, o céu, e a infinidade...
Em tudo se parece, em tudo é seu irmão,
O mesmo luxo até, a mesma vaidade,
O mesmo fausto ideal, como asas de pavão,
E esse requinte, enfim, essa ferocidade...
Quando soará, porém, a hora maravilhosa,
Em que do alto de uma torre cor de rosa,
Novo rei Salomão, ele, um dia, verá,
Entre poeira e sol, ao longe, a caravana,
Onde em meio d’um régio esplendor, que se ufana,
Fulge o diadema da rainha de Sabá?
Fevereiro – 1906
NO TRONCO D’UMA ÁRVORE
Ao Mario de Barros
Foi num começo esplêndido d’outono,
Quando cheguei. A mata era um gorjeio,
Era um sussurro, languidez e sono,
E um corpo nu, e um perfumado seio.
E que gesto mais lindo de abandono,
Que abraços loucos, e que doido anseio,
Quando me vi perdido aqui no meio
Desta folhagem alta como um trono!
Hoje, anda em guerra o sol como um deus Marte,
É que eu me vou, é que eu me vou embora...
E que fel tão amargo de deixar-te,
Ó Natureza, ó rústica sonora,
Virgem de pés descalços e sem arte,
Que eu como um fauno deflorei agora!
Sítio dos Pinhais, 11 de dezembro de 1909
VENCIDOS
Nós ficaremos, como os menestréis da rua,
Uns infames reais, mendigos por incúria,
Agoureiros da Treva, adivinhos da Lua,
Desferindo ao luar cantigas de penúria?
Nossa cantiga irá conduzir-nos à tua
Maldição, ó Roland?… E, mortos pela injúria,
Mortos, bem mortos, e, mudos, a fronte nua,
Dormiremos ouvindo uma estranha lamúria?
Seja. Os grandes um dia hão de cair de bruço...
Hão de os grandes rolar dos palácios infectos!
E glória à fome dos vermes concupiscentes!
Embora, nós também, nós, num rouco soluço,
Corda a corda, o violão dos nervos inquietos
Partamos! inquietando as estrelas dormentes!
OVÍDIO
O exílio foi cruel e aspérrimo, de fome.
Foi o tédio brutal, a miséria. Curtiste
Toda espécie de fel, o horror que não tem nome,
E ninguém acabou mais feio nem mais triste.
Homem algum jamais sentiu, como sentiste,
Ovídio, ó coração que a cólera consome,
Quão perigoso enfim é ter esse renome,
A glória, que é a ilusão mais louca que inda existe.
Mas, que importa afinal! A mocidade toda,
Quando entravas no Circo, ó Mestre, quase doida,
Recitava de cor a tua arte de amor...
E o orgulho de beijar, que nem o exílio doma,
O corpo mais gentil do lupanar de Roma,
Júlia, e basta, Nasão, filha do Imperador!...
1905
VEIO
Di-lo tanto fulgor maravilhoso, di-lo
Este clarim de sol rubro do meu anseio,
Este verde de mar, como um sono tranquilo,
Este límpido céu azul, como um gorjeio,
Alto, bem alto, assim, para que eu possa ouvi-lo,
Que ela, vencendo o mar, transpondo o serro, veio,
Todo cheirando, em flor, o perfumado seio,
Bela, sonora, ideal, como a Vênus de Milo...
Fosse vaidade ou amor, desespero ou ciúme,
Que a trouxessem aqui, como um leve perfume,
Ou fossem, ai de mim! raivas e temporais,
Veio, mas com a graça e a própria luz do dia...
Ó prazer que me faz soluçar de alegria,
E respirar, e crer nos deuses imortais!
DESDE QUE COMECEI...
Desde que comecei a te olhar, de tal modo,
Com tal encanto, com tal êxtase sorri,
Que tudo que eu amei, mas doido, como um doido,
Este Símbolo até por quem me debati,
Versos, orgulhos vãos, lá no alto, com denodo,
Pompas imperiais, (mal os teus olhos vi,)
Como flores, assim, das minhas mãos, eu todo
Enlevado, deixei cair ao pé de Ti!
Mas que esperar enfim? Mais lindo do que um sonho
Tudo que é teu reluz, magnífico, risonho,
Com palmas, com florões, com Torres de Marfim...
És um manto real, o fausto d’um Castelo,
A Ilusão, o Fulgor misterioso e belo...
És tudo, meu amor! E hás de olhar para mim?...
1904
NÃO É SÓ TE QUERER...
Não é só, não é só te querer, porém tudo
Que é teu, ó girassol girando sobre mim,
Com sorrisos onde há seduções de veludo,
Atrações de luar e vozes d’um jardim...
Sonho que me faz mal, tortura onde me iludo,
Cruel inquietação, ânsia que não tem fim,
Ó delírio de ver palácios com escudo,
Reinos antigos com torreões de marfim!
Gestos lindos e vãos do que já foi, querida,
Graça do que findou, essência e flor da vida,
Origens afinal secretas do teu eu...
Quem me dera beijar tudo isso que me alegra,
No meio da nudez desse infinito Céu,
Desse Ródano Azul, dessa Floresta Negra!
Novembro – 1903
POSTO QUE JÁ...
Posto que já esse frescor, e esse
Brilho com que uma vez me seduziste,
Não fuljam tanto, a primavera existe,
E inda canta, e inda sonha, e inda floresce...
Tua beleza é um mármor que resiste
À dureza dos anos, e parece
Até que quanto mais ela envelhece,
Mais se enobrece, embora um pouco triste...
Nada perdeste, a palidez que tinhas,
Esse aspecto, e essa graça quase fátua,
E aquele gesto teu que é o de rainhas...
Bela do mesmo modo ainda tu és,
Ó estátua de Milo, antiga estátua,
Que tanto orgulho tens calcado aos pés!
Junho – 1904
DONZELAS
Donzelas que passais com esse gesto ameno,
E a doce palidez enfim d’uma cecém,
Em vão esse ar é grave, e esse aspecto é sereno,
Não me olheis, não me olheis, que não vos quero bem.
Sulamitas gracis e de rosto moreno,
E claras como a luz, e cheias de desdém,
Tendes perfume, sei, mas não tendes veneno,
Sois muito lindas, sois, não vos quero porém...
Lírios do campo com figura de mulher,
A minha decadência é um fruto caprichoso
Desta época sem luz que não sabe o que quer,
Não sabe nada; mas, ó candidez ideal,
Eu não posso querer senão o Monstruoso,
E o bem Maravilhoso, e o bem Fenomenal!
Janeiro – 1904
Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011
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