Narizinho estava no seu quarto conversando com a boneca.
— Senhora condessa, acho que é tempo de mudar de vida. Precisa casar, se não acaba ficando tia. Amanhã vem cá um distinto cavalheiro pedir a mão de Vossa Excelência.
Emília andava bem de saúde, gorda e corada. Tia Nastácia havia enchido de macela nova a perninha que fora saqueada no passeio ao reino das Abelhas e Narizinho havia consertado uma das suas sobrancelhas de retrós, que estava desfiando. Além disso, pintara-lhe nas faces duas rodelas de carmim, bem redondinhas.
Emília não se mostrava disposta a casar. Dizia sempre que não tinha gênio para aturar marido, além de que não via lá pelo sítio ninguém que a merecesse.
— Como não? — protestou a menina. E Rabicó? Não acha que é um bom partido?
A boneca ficou indignada e declarou que jamais se casaria com um poltrão como aquele. O fiasco feito na viagem à terra das Abelhas não era coisa que merecesse perdão.
A menina riu-se e explicou:
— Você está enganada, Emília. Ele é porco e poltrão só por enquanto. Estive sabendo que Rabicó é príncipe dos legítimos, que uma fada má virou em porco e porco ficará até que ache um anel mágico escondido na barriga de certa minhoca. Por isso é que Rabicó vive fossando a terra atrás de minhocas.
Emília ficou pensativa. Ser princesa era o seu sonho dourado e se para ser princesa fosse preciso casar-se com o fogão ou a lata de lixo, ela o faria sem vacilar um momento.
— Mas você tem certeza, Narizinho?
— Tenho certeza absoluta! Quem me revelou toda essa historia foi justamente o pai de Rabicó, o senhor Visconde de Sabugosa, um fidalgo muito distinto que vem fazer o pedido de casamento.
— Visconde? — repetiu Emília, desconfiada. — Então o pai desse príncipe é Visconde só? Eu quero casar com príncipe filho de rei.
— Você é uma bobinha que não sabe nada. O Visconde finge de Visconde, mas na realidade é rei e muito bom rei de um reino lá atrás do morro. Quando ele vier, repare na cabeça dele e veja que tem um sinal de coroa em redor da testa. Para esconder esse sinal ele usa cartola, que não tira nunca, nem na igreja. Desse modo, como ninguém vê o sinal da coroa, ninguém desconfia.
Emília pensou, pensou, pensou e disse:
— Pois bem, aceito! Mas desde já vou dizendo que não saio daqui. Caso-me, mas não vou morar com Rabicó enquanto ele não virar príncipe novamente.
— Muito bem! — concluiu Narizinho. — Nesse caso, vá preparar-se para receber o Visconde, que não deve tardar. Ele já está a caminho. Vista aquele vestido de pintas vermelhas e ponha mais ruge na cara, ouviu?
Enquanto a boneca se vestia, a menina correu ao pomar em procura de Pedrinho, que estava ocupado em chupar laranjas-lima.
— Depressa, Pedrinho! Arranje-me um bom Visconde de sabugo, bem respeitável, de cartola na cabeça e um sinal de coroa na testa, e venha com ele pedir Emília em casamento. Enganei-a que Rabicó é filho desse Visconde, o qual é um grande rei de um reino lá atrás do morro. Os dois, pai e filho, foram encantados por uma fada, só devendo se desencantarem no dia em que Rabicó descobrir uma certa minhoca com um certo anel mágico na barriga.
— E a boba acreditou?
— Acreditou piamente e declarou que nesse caso aceitará Rabicó como esposo, embora não vá morar com ele enquanto não virar príncipe novamente.
Pedrinho fez como Lúcia pediu. Arranjou um bom sabugo, ainda com umas palhinhas no pescoço que fingiam muito bem de barba, botou-lhe braços e pernas, fez cara com nariz, boca, olhos e tudo – e não esqueceu de marcar-lhe a testa com um sinal de coroa de rei.
Depois enterrou-lhe na cabeça uma cartolinha e lá foi com ele à casa da boneca.
— Toc, toc, toc, bateu.
— Quem é? — indagou de dentro a voz da menina.
— É o ilustre senhor Visconde de Sabugosa que vem fazer uma visita à senhora condessa de Três Estrelinhas e pedi-la em casamento para o seu ilustre filho, o senhor marquês de Rabicó.
— Esperem um minutinho que já abro — respondeu a menina.
E voltando-se para a boneca:
— Vê, Emília? Além de príncipe ele ainda é marquês. De modo que se você casar-se com ele começa já a ser marquesa e um dia virará princesa. Não pode haver futuro mais bonito para uma coitadinha que nasceu na roça e nem em escola esteve. Você vai ser a Gata Borralheira das bonecas!...
Emília deu três pulinhos de alegria e foi correndo botar mais um pouco de pó de arroz. Enquanto isso o Visconde entrou.
Narizinho fez-lhe uma respeitosa reverência e respondeu, sem dar a entender que estava falando com um rei disfarçado:
— Muito prazer, senhor Visconde! Puxe uma cadeira e sente-se no chão. Creia que fico muito satisfeita de saber que seu filho é marquês. E como vai a senhora Viscondessa?
— Sou viúvo — respondeu o Visconde, suspirando profundamente.
— Meus pêsames! E a senhora sua mãe, dona Palha de Milho?
O Visconde suspirou de novo.
— Coitada! Faleceu num horrível desastre...
— Como? Conte-nos isso — exclamou Narizinho, fingindo grande aflição.
— Pois é. Foi comida pela vaca mocha — explicou o Visconde, enxugando nas palhinhas de milho do pescoço duas lágrimas, uma de cada olho.
— A pobre! — murmurou a menina muito triste. — Eu sinto bastante, Visconde, mas o mundo é isto mesmo. Um come o outro. A vaca mocha come as donas Palhas e a gente come as vacas. A vida é um come-come danado! Estou aqui apostando que também os seus filhos foram comidos pela senhoras galinhas...
O Visconde arregalou os olhos como se não soubesse que tinha mais filhos além do marquês.
— Sim — explicou Narizinho. — Os grãos de milho que Vossa Excelência já teve pregados pelo corpo, creio que podem ser chamados seus filhos.
— Ah, sim, é verdade! Foram comidos pelo galo índio há duas semanas.
Nisto Emília apareceu à porta, no seu vestidinho de chita com pintas vermelhas.
— Senhor Visconde — disse a menina — tenho o prazer de lhe apresentar a sua futura nora, a senhora condessa de Três Estrelinhas. Veja como é galante!...
O Visconde levantou-se para saudar a boneca e por “distração” tirou a cartola, deixando que Emília visse o sinal de coroa em sua testa.
— Tenho a mais subida honra de receber no seio de minha família esta nobre condessa — disse ele. — Pelo que vejo é a mais linda criatura destes arredores! Acho-a ainda mais bonita que a franguinha pedrês de tia Nastácia...
Emília fez uma cortesia para agradecer a amabilidade, embora torcesse o nariz àquela comparação com a franguinha pedrês.
— E não é só isso — interveio Narizinho. — Bonita e prestimosa como não há outra! Sabe fazer tudo. Cozinha na perfeição, lava roupa e lê nos livros que nem uma professora. Emília é o que se chama uma danada.
— Muito bem! Muito bem! — ia exclamando o Visconde.
— Também toca lindas músicas na vitrola, mia como gato, arrebenta pipocas e tem muito jeito para modista. Esse vestidinho de pintas, por exemplo, foi todo feito por ela.
Emília, que ainda não sabia mentir, interrompeu-a, dizendo:
— Não fui eu, foi tia Nastácia quem o fez. A menina deu-lhe um beliscão sem que o Visconde percebesse.
— Não repare, Visconde. Emília é muito modesta. Faz as coisas mas não quer que se diga. Esse vestido ela o fez sozinha, sozinha. Ela mesma escolheu a fazenda, ela mesma cortou e coseu. E olhe como ficou bem assentado nas costas. Levante-se, Emília, e vire-se de costas para o Visconde ver.
Emília levantou-se da cadeira e deu umas voltas pela sala.
— Não está dos mais elegantes mas serve – continuou Narizinho. — Emília nasceu aqui na roça e nunca foi à cidade, nem aprendeu costura. Para uma criatura nessas condições não acha que está bem feitinho?
O Visconde olhou, olhou e disse:
— Eu, a falar a verdade, não entendo de modas. Mas acho muito bom. Só que a saia me parece um tanto curta...
— Eu também acho e já o disse a ela; mas Emília como tem perna grossa, anda com mania de mostrá-la. Só usou saia comprida durante o tempo da perna seca — e contou ao Visconde o caso do ouro-macela. Depois, mudando de assunto, pediu informações a respeito do gênio de Rabicó.
— Ele tem muito bom gênio — disse o Visconde. — Não é briguento, nem provocador. Possui belas qualidades. Quanto ao mais, gosta muito de dormir ao sol e fossar a terra para descobrir minhocas.
Nesse ponto a menina piscou para a boneca, querendo referir-se à história de certo anel que ele andava procurando dentro de certa minhoca, e Emília convenceu-se de que Rabicó era mesmo um príncipe encantado.
— O único defeito que tem — continuou o Visconde — é comer tudo quanto encontra. Rabicó não respeita coisa nenhuma!
Emília fez carinha de nojo e foi cuspir à janela. Depois, metendo-se na conversa, disse:
— Pois se se casar comigo só há de comer coisas gostosas e cheirosas. Não consinto que meu marido ande comendo o que encontra.
— Apoiadíssimo, Emília! — exclamou a menina. — Também penso desse modo e acho que você faz muito bem de exigir isso dele. Mas agora só resta saber se você aceitou ou não aceita o senhor marquês de Rabicó como esposo. Vamos lá. Resolva...
Emília ficou meio aflitinha de ter de decidir por si mesma uma questão de tal gravidade como essa de escolher um esposo e olhou Narizinho interrogativamente, como quem pede auxílio. Mas a menina não quis intervir, porque não desejava ficar com a responsabilidade.
— Não devo dar opinião, Emília. Você tem que decidir por si mesma. Casamento não é brincadeira.
A boneca pensou, pensou, pensou e afinal, tentada pela idéia de começar marquesa e um dia virar princesa, resolveu-se.
— Pois quero!
Narizinho bateu palmas.
— Bravos! Está tudo resolvido. Senhor Visconde, abrace a sua nora, a futura marquesa de Rabicó...
O Visconde ergueu-se bastante comovido. Abraçou a boneca e deu-lhe um beijo na face.
Emília, muito vermelhinha, foi correndo para o quarto.
––––––––
Continua... O Noivado de Emília
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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