sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Irmão de Pinóquio – VI – Miragens


Enquanto lá na floresta Pedrinho pensava no melhor meio de vingar-se da boneca, Narizinho resolvia dar um passeio pelo pomar. Costumava fazer isso nas tardes agradáveis, sempre em companhia da sua companheira. Naquele dia, porém, Emília fez luxo.

— Não posso hoje — disse mostrando o cavalinho. – Estou ensinando o ABC a este analfabeto, que anda com vontade de ler a história do Pégaso, do Bucéfalo, do cavalo de Tróia e outras “cavalências” célebres.

Narizinho não gostava de passear só, por isso correu os olhos pela sala em procura de algum outro companheiro. Só viu o triste irmão de Pinóquio, que Pedrinho havia jogado para cima do armário.

— Coitado! — exclamou. — Porque é feio como o Diogo e morto como um defunto, ninguém faz conta dele. Vou levá-lo comigo.

Talvez que os ares do ribeirão lhe façam bem.

Pescou-o de cima do armário com o cabo da vassoura e lá se foi com ele ao pomar, rumo do ribeirão, onde havia aquele velho pé de ingá de enormes raízes de fora. Sentou-se na “sua raiz” (havia outra de Pedrinho e outra do Visconde), recostou a cabeça no tronco e cerrou os olhos, porque o mundo ficava três vezes mais bonito quando cerrava os olhos. De todos os lugares que ela conhecia era aquele o mais gostado. Fora ali que vira pela primeira vez o príncipe das Águas Claras, e era ali que costumava pensar na vida, resolver seus problemazinhos e sonhar castelos.

O sol ia descambando no horizonte (“horizonte” era o nome do morro atrás do qual o sol costumava esconder-se) e seus últimos raios vinham brincar de acende-e-apaga brilhinhos na correnteza. Volta e meia um lambari prateava o ar com um pulo.

De repente Narizinho ouviu um bocejo — ahhh! Olhou... Era Faz-de-conta que se espreguiçava, como quem sai de um longo sono.

Achando aquilo a coisa mais natural do mundo, a menina apenas disse:

— Ora graças! eu tinha certeza de que os ares do ribeirão fariam você mudar.

— Eu sou sempre o mesmo — respondeu o boneco. — Não mudei. Não mudo nunca. Quem muda são vocês, criaturas humanas. Você mudou, Narizinho.

— Como isso? — exclamou a menina franzindo a testa. – Estou no que sempre fui...

— Parece. Tanto mudou que está entendendo a minha linguagem e vai ver coisa que sempre existiu neste sítio e no entanto você nunca viu. Olhe lá!

A menina olhou para onde ele apontava e realmente viu um bando de lindas criaturas, envoltas em véus de finíssima tule, dançando por entre as árvores do pomar. No meio delas estava um ente estranho, de orelhas bicudas como as de Mefistófeles, dois chifrinhos na testa e cauda de bode. Soprava músicas numa flauta de Pã, isto é, numa flauta feita de canudos incões, tal qual a casa de barro que umas vespas chamadas “Nhá Inacinhas” haviam feito na parede do fundo da casa de dona Benta.

— Oh! — exclamou a menina recordando-se. — Ainda ontem vi num dos livros de vovó uma gravura com uma cena igualzinha a esta. São as ninfas do bosque e o homem é um fauno.

Apesar de ter falado baixo, as dançarinas ouviram aquelas palavras e, não se sabe por que, fugiram numa corrida louca em todas as direções. O fauno até deixou cair a sua flauta.

— É minha agora! — gritou Narizinho correndo a apanhá-la.

— Ganhei uma flauta de Pã!...

Mas, ai! Agarrou a flauta com tanta força que a moeu, porque era de barro e estava cheia de vespas, que voaram numa grande aflição atrás das ninfas. Só ficou uma, presa entre o polegar e o fura bolos da menina.

— Que vespa esquisita! — exclamou ela, examinando atentamente a prisioneira. — Parece uma velhinha coroca.

— Hein? — murmurou Faz-de-conta chegando e olhando. – Estou reconhecendo esta vespa. Quando o tronco de pau de que fiz parte era árvore viva, cheia de flores cada mês de setembro, muitas vezes a vi lá em nossos galhos. Desconfio que é uma fadazinha disfarçada em vespa.

— Se é fada — disse a menina duvidando — por que não fugiu com as outras e deixou que eu a pegasse?

— Porque queria conversar com você — respondeu a vespa.

A menina arregalou os olhos tomada de grande alegria.

— É fada mesmo, Faz-de-conta! E das que falam, porque há umas que só fazem tlim, tlim, tlim, como aquela fada Sininho que gostava de Peter Pan. Que pena Pedrinho e Emília não estarem aqui. Vão ficar danados de eu ter visto fadas antes deles.

A vespa-fada contou-lhe sua vida desde que nasceu e disse que já de muitos anos andava a correr mundo atrás de um alfinete mágico sem o qual não poderia ser, bem, bem, bem, fada das que podem tudo e viram uma coisa noutra. Esse alfinete era uma varinha de condão das mais poderosas, que andava perdida entre os mortais. Ao ouvir aquilo o coração da menina pulou dentro do peito. Lembrou-se logo do alfinete que tia Nastácia havia dado à boneca e imaginou que talvez fosse o tal alfinete mágico. Para certificar-se indagou...

— Não era um alfinete de pombinha carijó?

— Isso mesmo! Como sabe? — exclamou a fada, admiradíssima.

Narizinho viu que havia feito asneira dizendo aquilo, pois a vespa poderia tomar o alfinete da boneca, impedindo-a de vir a ser uma famosa fada de pano — coisa que nunca existiu. Quis remendar a imprudência e disse:

— Sonhei. Sonhei a noite passada com um alfinete assim, isto é, mais ou menos assim. Não era de pombinha, não, agora me lembro. Era de galo ou bicho parecido. Como a senhora sabe, os sonhos são sempre atrapalhados.

— Mais atrapalhadas são as mentiras de nariz arrebitado! — disse a vespa, fugindo da mão da menina e indo pousar num galho de árvore. — Estou vendo que você sabe onde está o alfinete e não quer me contar.

Faz-de-conta chegou-se ao ouvido da menina e cochichou:

— Não caia nessa! Não conte! Você lá sabe se ela merece? Com fadas é preciso muita cautela, porque se algumas são anjos de bondade, outras são más como bruxas.

— Estou ouvindo tudo! — disse a vespa lá do galho. — E para castigo vou dar uma ferroada bem venenosa na ponta do nariz dessa menina má. Esperem aí!...

E começou a inchar, a inchar, até ficar do tamanho duma enorme aranha caranguejeira. E arreganhou os terríveis ferrões e lançou-se contra a menina.

— Acuda, Faz-de-conta! — berrou Narizinho fechando os olhos.

Ela sabia que o melhor meio de escapar dos grandes perigos era fechar os olhos, bem fechados, como a gente faz nos sonhos quando sonha que está caindo num precipício.

De um pulo Faz-de-conta colocou-se entre a vespa e a menina, pronto para sacrificar a vida em sua defesa. O boneco era feio, mas tinha a alma heróica. E como estivesse desarmado, puxou do prego que prendia sua cabeça ao corpo, como quem puxa duma espada e investiu contra a vespa. Ao fazer isso, porém, sua cabeça caiu por terra, rolou morro abaixo e foi mergulhar — tchibum! — no ribeirão.

A vespa assustou-se ao ver tão estranha criatura avançar para ela de prego em punho e sem cabeça. Assustou-se e — zunn! – desapareceu no ar...

— Pronto? — perguntou a menina sempre de olhos fechados.

Ninguém respondeu.

— Ela ainda está aí? — perguntou de novo.

Ninguém respondeu.

Narizinho foi então entreabrindo os olhos, com muito medo, e afinal abriu-os de todo. Mas deu um grito de horror, ao ver o boneco na sua frente, de prego na mão e sem cabeça.

— Que é isso, Faz-de-conta? Que fim levou sua cabeça?

O boneco está claro que nada respondeu. Só tinha boca e ouvidos na cabeça e como a cabeça rolara morro abaixo não podia ouvi-la nem responder.

— E agora? — disse consigo a menina. — Este lugar me parece muito perigoso, e sem auxílio de Faz-de-conta podem me acontecer grandes desgraças. Se ao menos houvesse aqui por perto alguma casinha...

Olhou em redor e viu não muito longe uma fumaça. “Deve ser casa”, pensou, e correu para lá. Era casa, sim, a mais linda casa que ela viu em toda a sua vida, com trepadeiras na frente e duas janelas de venezianas verdinhas.

A menina bateu — toc, toc, toc...

— Entre quem é! — gritou de lá dentro uma voz.

Narizinho abriu e entrou e deu um grito de alegria.

— Capinha! Que felicidade encontrar-te aqui!

— E a minha felicidade de receber tua visita ainda é maior, Narizinho! Há quanto tempo te espero!...

Abraçaram-se e beijaram-se e ficaram de mãos presas e os olhos postos uma na outra. Era ali a casa da Menina da Capinha Vermelha, cuja avó havia sido devorada pelo lobo. Capinha já tinha estado no sítio de dona Benta no dia da recepção dos príncipes encantados e ficara gostando muito de Narizinho e Emília, tendo-as convidado para virem passar uns dias com ela.

— Mas por que não me avisaste da tua visita, Narizinho ?

— É que cheguei aqui por acaso. Vi-me só na floresta, depois que meu guia perdeu a cabeça, e não sei o que seria de mim se não fosse a fumacinha de tua casa, que vi de longe. E vim correndo, mas sem saber quem morava aqui.

Narizinho contou então tudo o que lhe havia acontecido e a terrível desgraça que sucedera a Faz-de-conta.

— Que coincidência! — exclamou Capinha. — Não faz minutos eu estava tomando banho no ribeirão e um objeto, feito castanha de caju veio rolando pela água abaixo até esbarrar em mim. Peguei-o, olhei e vi que era uma cabeça, com boca, nariz e tudo. Quem sabe se não é a cabeça de Faz-de-conta? Está guardada no bolso do meu avental.

Foi lá dentro e trouxe a cabeça.

— É essa mesma! — exclamou Narizinho satisfeitíssima daquele inesperado e feliz desenlace. — Vou consertar o meu João, já, já.

Foi um instante. Em meio minuto a cabeça do boneco estava outra vez no lugar e ele em condições de falar e contar tudo o que acontecera enquanto a menina estivera de olhos fechados. Quando Faz-de-conta concluiu a narrativa, Capinha suspirou e disse:

— Quem me dera ter um companheiro leal e valente como este! Vivo tão sozinha nestas solidões...

Narizinho prometeu que viria visitá-la sempre que pudesse.

— E não deixe de trazer a Emília. Gostei muito dela.

Narizinho contou-lhe, então, em grande segredo para que alguma vespa escondida por ali não pudesse ouvir, que a boneca estava na posse do alfinete de pombinha, que era uma vara de condão e poderia, portanto, de um momento para outro, virar uma poderosa fada — e uma fada que nunca existiu no mundo: a Fada de Pano.

— Pois ela que se transforme e apareça por aqui para brincarmos de virar.

Nisto surgiu João Faz-de-conta, que tinha saído para o terreiro a fim de refrescar a cabeça. Vinha muito alegre, dizendo:

— Adivinhem quem passou por aqui! Peter Pan. Conversou comigo meio minuto e lá se foi, voando, para a Terra do Nunca, onde mora. Disse que qualquer dia aparece no sítio de dona Benta para brincar com Pedrinho.

— Que pena não ter portado um minuto para tomar café conosco! — exclamou Capinha. — Ele sempre me visita e gosto muito dele.

Narizinho, que já conhecia Peter Pan, fez várias perguntas a respeito desse extraordinário “menino que jamais quis ser gente grande” e de sua inseparável companheira, a fada Sininho. E ainda estava a ouvir histórias dele, quando Faz-de-conta deu um berro de desespero, apontando para a estranha figura que acabava de pular a cerca do quintal com uma enorme faca de matar mulher na mão.

— Feche os olhos, Narizinho! — gritou ele. — Barba Azul vem vindo!...

A menina, para salvar-se fechou os olhos com quanta força teve...
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Continua… VII – O Alfinete

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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