ESTÂNCIAS
I
Ah! finda o inverno! adeus, noites, breve esquecidas,
Junto ao fogo, com as mãos estreitamente unidas!
Abracemo-nos muito! adeus! um beijo ainda!
Prediz-me o coração que é o nosso amor que finda,
Há de em breve sorrir a primavera. Em breve,
Branca, aos beijos do sol, há de fundir-se a neve.
E, na festa nupcial das almas e das flores
Quando tudo acordar para os novos amores,
Meu amor! haverá dois lugares vazios...
Tu tão longe de mim! e ambos, mudos e frios,
Procurando esquecer os beijos que trocamos,
E maldizendo o tempo em que nos adoramos...
II
Mas, às vezes, sozinha, hás de tremer, o vulto
De um fantasma entrevendo, em tua alcova oculto.
E pelo corpo todo, a ofegar de desejo,
Pálida, sentirás a carícia de um beijo.
Sentirás o calor da minha boca ansiosa,
Na água que te banhar a carne cor-de-rosa,
No linho do lençol que te roçar o peito.
E hás de crer que sou eu que procuro o teu leito,
E hás de crer que sou eu que procuro a tua alma!
E abrirás a janela... E, pela noite calma,
Ouvirás minha voz no barulho dos ramos,
E bendirás o tempo em que nos adoramos...
III
E eu, errante, através das paixões, hei de, um dia,
Volver o olhar atrás, para a estrada sombria.
Talvez uma saudade, um dia, inesperada,
Me punja o coração, como uma punhalada.
E agitarei no vácuo as mãos, e um beijo ardente
Há de subir-me à boca: e o beijo e as mãos somente
Hão de o vácuo encontrar, sem te encontrar, querida!
E, como tu, também me acharei só na vida,
Só! sem o teu amor e a tua formosura:
E chorarei então a minha desventura,
Ouvindo a tua voz no barulho dos ramos,
E bendizendo o tempo em que nos adoramos...
IV
Renascei, revivei, árvores sussurantes!
Todas as asas vão partir, loucas e errantes,
A ruflar, a ruflar... O amor é um passarinho:
Deixemo-lo partir: - desertemos o ninho...
A primavera vem. Vai-se o inverno. Que importa
Que a primavera encontre esta ventura morta?
Que importa que o esplendor do universal noivado
Venha este noivo achar da noiva separado?
Esqueçamos o amor que julgamos eterno...
- Dia que iluminaste os meus dias de inverno!
Esqueçamos o ardor dos beijos que trocamos,
Maldigamos o tempo em que nos adoramos...
PECADOR
Este é o altivo pecador sereno,
Que os soluços afoga na garganta,
E, calmamente, o copo de veneno
Aos lábios frios sem tremer levanta.
Tonto, no escuro pantanal terreno
Rolou. E, ao cabo de torpeza tanta,
Nem assim, miserável e pequeno,
Com tão grandes remorsos se quebranta.
Fecha a vergonha e as lágrimas consigo...
E, o coração mordendo impenitente,
E, o coração rasgando castigado,
Aceita a enormidade do castigo,
Com a mesma face com que antigamente
Aceitava a delícia do pecado.
REI DESTRONADO
O teu lugar vazio!... E esteve cheio,
Cheio de mocidade e de ternura!
Como brilhava a tua formosura!
Que luz divina te dourava o seio!
Quando a camisa tépida despias,
- Sob o reflexo do cabelo louro,
De pé, na alcova, ardias e fulgias
Como um ídolo de ouro.
Que fundo o fogo do primeiro beijo,
Que eu te arrancava ao lábio recendente!
Morria o meu desejo... outro desejo
Nascia mais ardente.
Domada a febre, lânguida, em meus braços
Dormias, sobre os linhos revolvidos,
Inda cheios dos últimos gemidos,
Inda quentes dos últimos abraços...
Tudo quanto eu pedira e ambicionara,
Tudo meus dedos e meus olhos calmos
Gozavam satisfeitos nos seis palmos
De tua carne saborosa e clara:
Reino perdido! glória dissipada
Tão loucamente! A alcova está deserta,
Mas inda com o teu cheiro perfumada,
Do teu fulgor coberta...
SÓ
Este, que um deus cruel arremessou à vida,
Marcando-o com o sinal da sua maldição,
- Este desabrochou como a erva má, nascida
Apenas para aos pés ser calcada no chão.
De motejo em motejo arrasta a alma ferida...
Sem constância no amor, dentro do coração
Sente, crespa, crescer a selva retorcida
Dos pensamentos maus, filhos da solidão.
Longos dias sem sol! noites de eterno luto!
Alma cega, perdida à toa no caminho!
Roto casco de nau, desprezado no mar!
E, árvore, acabará sem nunca dar um fruto;
E, homem, há de morrer como viveu: sozinho!
Sem ar! sem luz! sem Deus! sem fé! sem pão! sem lar!
A UM VIOLINISTA
Quando do teu violino, as asas entreabrindo
Mansamente no espaço , iam-se as notas quérulas,
Anjos de olhos azuis, às duas mãos partindo
Os seus cofres de pérolas,
- Minhas crenças de amor, esquecidas em calma
No fundo da memória, ouvindo-as recebiam
Novo alento, e outra vez do oceano de minh’alma,
Arquipélago verde, à tona apareciam.
E eu via rutilar o meu amor perdido,
Belo, de nova luz e novo encanto cheio,
E um corpo, que supunha há muito consumido,
Agitar-se de novo e oferecer-me o seio.
Tudo ressuscitava ao teu influxo, artista!
E minh’alma revia, alucinada e louca,
Olhos, cujo fulgor me entontecia a vista,
Lábios, cujo sabor me entontecia a boca.
Oh milagre! E, feliz, ajoelhava-me, em pranto,
Como quem, por acaso, um dia, entrando as portas
De um cemitério, vai achar vivas a um canto
As suas ilusões que acreditava mortas,
E ficava a pensar... como se não partir
Essa fraca madeira ao teu toque violento,
Quando com tanta febre a paixão se estorcia
Dentro do pequenino e frágil instrumento!
Porque, nesse instrumento, unidos num só peito,
Todos os corações da terra palpitavam;
E havia dentro dele, em lágrimas desfeito,
O amor universal de todos os que amavam.
Rio largo de sons, tapetado de flores,
A harmonia do céu jorrava ampla e sonora;
E, boiando e cantando, alegrias e dores
Iam corrente em fora...
A Primavera rindo esfolhava as capelas,
E entornava no chão as ânforas cheirosas:
E a canção acordava as rosas e as estrelas,
E enchia de desejo as estrelas e as rosas.
E a água verde do mar, e a água fresca dos rios,
E as ilhas de esmeralda, e o céu resplandecente,
E a cordilheira, e o vale, e os matagais sombrios,
Crespos, e a rocha bruta exposta ao sol ardente:
- Tudo, ouvindo essa voz, tudo cantava e amava!
O amor, caudal de fogo atropelada e acesa,
Entrava pelo sangue e pela seiva entrava,
E ia de corpo em corpo enchendo a Natureza!
E ei-lo triste, no chão, inanimado e frio,
O teu pobre violino, o teu amor primeiro:
E inda nas cordas há, como um leve arrepio,
A última vibração do arpejo derradeiro...
Como, ígneas e imortais, num redemoinho insano,
Longe, a torvelinhar em céus inacessíveis,
Pairam constelações virgens do olhar humano,
Nebulosas sem fim de mundos invisíveis:
- Assim no teu violino, artista! adormecido
À espera do teu arco, em grupos vaporosos,
Dorme, como num céu que não alcança o ouvido,
Um mundo interior de sons misteriosos...
Suspendam-me ao ar livre esse doce instrumento!
Deixem-no ao sol, em glória, em delirante festa!
E ele se embeberá dos perfumes que o vento
Traz dos frescos desvãos do vale e da floresta.
Os pássaros virão tecer nele os seus ninhos!
As rosas se abrirão em suas cordas rotas!
E ele derramará sobre os verdes caminhos
Da antiga melodia as esquecidas notas!
Hão de as aves cantar, hão de cantar as flores...
Os astros sorrirão de amor na imensa esfera...
E a terra acordará para os novos amores
De nova primavera!
II
Porque, como Terpandro acrescentou à lira,
Para a tornar mais doce, uma corda mais pura,
Que é a corda onde a paixão desprezada suspira,
E, em lágrimas, a arder, suspira a desventura;
Também desse instrumento às quatro cordas de ouro
O Desespero, o Amor, a Cólera, a Piedade,
- Tu, nobre alma, chorando acrescentaste o choro
Eterno e a eterna dor da corda da Saudade.
É saudade o que sinto, e me enche de ais a boca,
E me arrebata o sonho, e os nervos me fustiga,
Quando te ouço tocar: saudade ansiosa e louca
Do primitivo amor e da beleza antiga...
Para trás! para trás! Basta um simples arpejo,
Basta uma nota só... Todo o espaço estremece:
E, dando aos pés do amado o derradeiro beijo
Quase morta de dor, Madalena aparece...
Ao luar de Verona, a amorosa cabeça
De Julieta desmaia entre os braços do amante:
Não tarda que a alvorada em fogo resplandeça,
E na devesa em flor a cotovia cante...
Viúva triste, que à paz do claustro pede alívio,
Para a sua viuvez, para o seu luto imenso,
Branca, sob o livor do escapulário níveo,
Heloísa ergue as mãos, numa nuvem de incenso...
E na suave espiral das melodias puras,
Vão fugindo, fugindo os vultos infelizes,
Mostrando ao meu amor as suas amarguras,
Mostrando ao meu olhar as suas cicatrizes.
Canta! o rio de sons que do seio de brota
E, entre os parcéis da dor, corre, cascateando,
E vai, de vaga em vaga, e vai, de nota em nota,
Ao sabor da corrente os sonhos arrastando;
Que pelo vale espalha a cabeleira inquieta,
Refrescando os rosais, e, em leve burburinho,
Um gracejo segreda a cada borboleta,
E segreda um queixume a cada passarinho;
Que a todo o desconforto e a todo o sofrimento
Abre maternalmente o regaço das águas,
- É o rio perfumado e azul do Esquecimento,
Onde se vão banhar todas as minhas mágoas...
EM UMA TARDE DE OUTONO
Outono. Em frente ao mar. Escancaro as janelas
Sobre o jardim calado, e as águas miro, absorto.
Outono... Rodopiando, as folhas amarelas
Rolam, caem. Viuvez, velhice, desconforto...
Por que, belo navio, ao clarão das estrelas,
Visitaste este mar inabitado e morto,
Se logo, ao vir do vento, abriste ao vento as velas,
Se logo, ao ir da luz, abandonaste o porto?
A água cantou. Rodeava, aos beijos, os teus flancos
A espuma, desmanchada em riso e flocos brancos...
- Mas chegaste com a noite, e fugiste com o sol!
E eu olho o céu deserto, e vejo o oceano triste,
E contemplo o lugar por onde te sumiste,
Banhado no clarão nascente do arrebol..
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Fonte:
BILAC, Olavo. Antologia : Poesias. São Paulo : Martin Claret, 2002. Alma Inquieta. (Coleção a obra-prima de cada autor). Digitalizado por Anamaria Grunfeld Villaça Koch – São Paulo/SP
BILAC, Olavo. Antologia : Poesias. São Paulo : Martin Claret, 2002. Alma Inquieta. (Coleção a obra-prima de cada autor). Digitalizado por Anamaria Grunfeld Villaça Koch – São Paulo/SP
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