domingo, 6 de novembro de 2011

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Sítio do Picapau Amarelo IV – As formigas ruivas

IV
As formigas ruivas

Só depois de comer o peixe frito é que Narizinho se lembrou da pobre boneca, encharcada pelo banho no rio.

— A coitada!... É bem capaz de apanhar pneumonia...

E foi correndo cuidar dela. Despiu-a e pô-la num lugar de bastante sol. Dum lado estendeu suas roupinhas molhadas e do outro, a pobre Emília nua em pêlo. E já ia retirar-se quando a boneca fez cara de choro.

— Eu aqui não fico sozinha!...

— Por que, sua enjoada? Tem medo que o leitão venha espiar esses cambitos magros?

— Espiar não é nada, mas ele é capaz de me comer. Tia Nastácia diz que Rabicó devora tudo o que encontra.

— Nesse caso, penduro você na árvore.

— Isso também não! — protestou Emília. — Alguma vespa pode me ferrar.

— Boba! Não sabe que vespa não ferra pano?

— Mas se eu cair com o vento?

— Grande coisa! Boneca de pano quando cai não se machuca. Eu é que não posso ficar neste sol tirano à espera de que a excelentíssima senhora condessa de Três Estrelinhas seque! Quem mandou molhar-se?

— Mal agradecida! Se não fosse a minha molhadela você não comia a traíra.

— Está pensando que era uma grande coisa a tal traíra? Só espinho...

— É, mas você comeu-a com espinho e tudo. e até lambeu os beiços.

— Lábios, aliás. Beiço é de boi. Comi porque quis, sabe? Não tenho que dar satisfações a ninguém, ahn! — e Narizinho pôs-lhe a língua.

Emburraram ambas. Narizinho, porém, ficou, porque lá no íntimo estava com receio de deixar a boneca sozinha.

Fazia um sol quente e parado. Nas árvores, um ou outro tico-tico só; e no chão, só formiguinhas ruivas.

Para matar o tempo a menina pôs-se a observar o corre-corre delas, esquecendo a briga com a boneca.

— Já reparou, Emília, como as formigas conversam? Que pena a gente não entender o que dizem...

— A gente é modo de dizer — replicou Emília — porque eu entendo muito bem o que dizem.

— Sério, Emília?

— Sério, sim, Narizinho. Entendo muito bem e, se você ficar aqui comigo, contarei todas as historinhas que elas conversam. Repare. Vem vindo aquela de lá e esta de cá. Assim que se encontrarem, vão parar e conversar.

Dito e feito. As formiguinhas encontraram-se, pararam e começaram a trocar sinais de entendimento.

— Fiquei na mesma! — disse a menina.

— Pois eu entendi tudo, — declarou a boneca. -A que veio de lá disse: “Encontrou o cadáver do grilinho verde”? A que veio de cá respondeu: “Não”! A de lá: “Pois volte e procure perto daquela pedra onde mora o besouro manco.” Esta formiga que dá ordens deve ser alguma dona-de-casa lá do formigueiro. E repare seus modos de mandona; está sempre a entrar e sair do buraquinho, como quem dirige um serviço. A outra com certeza é uma simples carregadeira.

Havia de ser isso mesmo, porque logo depois chegou uma terceira, muito apressada, que cochichou com a mandona e lá se foi mais apressada ainda.

— Que é que disse esta? — perguntou Narizinho.

— Disse que haviam descoberto uma bela minhoca perto da porteira, mas que precisavam de ajutório para conduzi-la.

— Emília, você esta me bobeando! — exclamou a menina desconfiada. — Vou ver, e se não for verdade você me paga. Espere aí...

E disparou em direção da porteira. Procura que procura, logo achou em certo ponto uma pobre minhoca corcoveando com várias formiguinhas ferradas no seu lombo.

Teve vontade de libertar a prisioneira, mas a curiosidade de ver o que aconteceria foi maior — e deixou a triste minhoca entregue ao seu trágico destino.

Novas formiguinhas foram chegando, que de um bote — zás!... ferravam a minhoca sem dó. Não demorou muito e já eram mais de vinte. A minhoca bem que espinoteou; por fim, exausta, foi moleando o corpo até que morreu bem morrida. As formiguinhas então principiaram a arrastá-la para o formigueiro.

Que custo! A minhoca era das mais gordas, pesando umas sete arrobas — arrobinhas de formiga, e além disso ia enganchando pelo caminho em quanto pedregulho ou capim havia; mas as carregadeiras sabiam dar volta a todos os embaraços.

Depois de meia hora de trabalheira deram com a minhoca na boca do formigueiro. Aí, nova atrapalhação. Por mais que experimentassem, não houve jeito de recolhê-la inteira. Nisto apareceu a formiga mandona. Examinou o caso e deu ordem para que a picassem em vários roletes.

Aquilo foi zás-trás! Em três tempos fez-se o serviço e os roletes de carne foram levados para dentro.

— Sim, senhora! — exclamou a menina depois de terminada a festa. — É o que se pode chamar um trabalho limpo! O demo queira ser minhoca neste pomar...

— Bem feito! — disse Emília. — Quem a mandou ser abelhuda?

Se estivesse com as outras lá dentro da terra, que é o lugar das minhocas, nada lhe aconteceria. Macaco que muito mexe quer chumbo, como diz tia Nastácia.

Isso, foi de dia. De noite a história das formigas continuou.

Narizinho e Emília dormiam juntas na mesma cama. A rede armada entre pés de cadeira fora abandonada desde que a boneca aprendeu a falar. Dormiam juntas para conversar até que o sono viesse.

— Mas, Emília, como é que você entende a linguagem das formigas? — perguntou Narizinho logo que se deitou.

A boneca refletiu um bocado e respondeu:

— Entendo porque sou de pano.

Narizinho deu uma gargalhada.

— Isso não é resposta duma senhora inteligente. O meu vestido também é de pano e não entende coisa nenhuma.

A boneca pensou outra vez.

— Então é porque sou de macela — disse.

Nova risada de Narizinho.

— Isso Também não é resposta. Este travesseiro é de macela e entende as formigas tanto quanto eu.

— Então... então... engasgou Emília, com o dedinho na testa. Então não sei.

Era a primeira vez que Emília se embaraçava numa resposta. Primeira e última. Nunca mais houve pergunta que a atrapalhasse.

— Pois se não sabe, durma — disse a menina, virando-se para a parede.

Dormiram ambas.

Altas horas, estavam no mais gostoso do sono quando bateram — toc, toc, toc...

— Quem é? — perguntou Narizinho sentando-se na cama.

— Sou eu, Rabicó! — grunhiu o leitão entreabrindo a porta com o focinho. — Está aqui uma senhora ruiva que quer entrar.

— Pois que entre! — ordenou a menina. Rabicó escancarou a porta para dar passagem a uma formiga ruiva, de saiote vermelho e avental de renda. Trazia na cabeça uma salva de prata, coberta com guardanapo de papel.

— Que é que deseja? — indagou a menina cheia de curiosidade.

— Quero entregar à senhora Condessa este presente mandado pela rainha das formigas.

— Condessa? — repetiu Narizinho franzindo a testa. – Que condessa, minha senhora?

— Condessa de Três Estrelinhas — explicou a formiga.

— Hum! — fez a menina, lembrando-se de que ela mesma havia “condessado” a boneca.

Voltou-se para Emília e deu-lhe uma cotovelada.

— Acorde, pedra! É com Vossa Excelência o negócio.

Emília sentou-se na cama. Espreguiçou-se, tonta de sono. E julgando que ainda estivessem a conversar sobre a linguagem das formigas, disse, num bocejo:

— Então é... é porque sou...

— Não se trata mais disso, idiota! Está aí à procura duma tal condessa a criada duma tal rainha. Vamos! Acorde duma vez!

Só então Emília acordou de verdade. Viu a formiga com a salva e espichou os braços para receber o presente. Eram croquetes, lindos croquetes tostadinhos.

A boneca sorriu de gosto e orgulho. A rainha só se lembrara dela!

— Diga a Sua Majestade que a condessa de Três Estrelinhas muito agradece o presente. Diga que os croquetes estão lindos e que ela é uma grande cozinheira.

Narizinho disparou a rir gostosamente.

— Que idéia, condessa! Uma rainha lá pode ser cozinheira?

Caindo em si, Emília viu que tinha cometido uma coisa muito grave entre as pessoas de alta sociedade, chamada “gafe”. E procurou corrigir-se.

— Isto é... diga que a cozinheira dela é muito boa, entendeu? E diga também que os croquetes estão muito gostosos, isto é... devem estar muito gostosos. Pode ir.

A criada fez um cumprimento de cabeça antes de retirar-se, mas foi detida por um gesto da menina.

— Não vá ainda — disse ela. E voltando-se para a Emília: — Presente, senhora condessa, paga-se com presente. Mande à tal rainha uma perna daquele pernilongo que queimei com a vela antes de deitar.

— É verdade! — exclamou a boneca. — Não me custa nada e ela vai ficar contentíssima.

E pôs-se de gatinhas a procurar o pernilongo assado. Achou-o, tirou-lhe uma perninha, enfeitou-a com um laço de fita e, depois de embrulhá-la em papel de seda, colocou-a na salva, com um cartão que dizia assim:

“À Sua Majestade a Rainha da Cintura Fina, a humilde criada Condessa de Três Estrelinhas oferece este humilde presente.”

— Leve este presente à rainha, sim? E você, para distrair-se pelo caminho vá comendo este mocotó de pernilongo – concluiu Emília, dando à criada um cambito de inseto.

A mensageira agradeceu, retirando-se muito satisfeita da vida, com a salva na cabeça e o mocotó no ferrão.

Emília fechou a porta e veio examinar os croquetes. Cheirou-os.

— Hum! Estão de fazer vir água à boca. Quer provar um, Narizinho?

A menina torceu o nariz desdenhosamente.

— Deus me livre! Juro que é croquete de minhoca.

Percebendo que ela falava assim por despeito, a boneca disse, para moê-la:

— Quem desdenha quer comprar...

— Só? Engraçadinha!... replicou a menina com um grande ar de pouco caso. E vendo a boneca morder um dos croquetes, com os maiores exageros do mundo, como se aquilo fosse um manjar do céu, fez muxoxo de nojo.

— Está boa mesmo para casar com Rabicó! Comer croquete de minhoca!

— Que seja de minhoca, que tem isso? — retrucou Emília. Tanto faz carne de minhoca como de porco, vaca ou frango — tudo é carne. E muito me admira que uma senhora que comeu ontem no jantar tripa de porco, mostre essa cara de nojo por causa dum simples croquete de minhoca.

— Alto lá, senhora condessa Minhoqueira! Porco é porco e minhoca é minhoca.

— É “por isso mesmo” que eu como minhoca e não como porco! — replicou a boneca vitoriosa. — Não sou porcalhona.

A discussão foi por aí além. Enquanto isso o senhor Rabicó farejou os croquetes, chegou-se de mansinho e, vendo-as distraídas com a disputa, comeu-os todos de uma engolida só. Terminada a discussão, quando a boneca, espichou o braço a fim de pegar um segundo croquete...

— Que é dos croquetes? — gritou ela.

Nem sinal! Emília esperneou de ódio, ao passo que Narizinho batia palmas de contentamento.

— Bem feito! Estava muito ganjenta, não é? Pois tome!

— Quero os meus croquetes! Quero os meus croquetes! — berrava Emília, batendo o pé num grande desespero.

— Se quer os seus croquetes, peça contas a quem os tirou.

— Quem foi?

— Quem mais se não Rabicó? Vai ver que está aqui pelo quarto, escondido debaixo da cama.

Emília deu busca e logo descobriu o ladrão num canto, ressonando de papo cheio.

— Espere que te curo! — gritou ela, passando a mão na vassoura. E pá! pá! pá!... desceu a lenha no lombo do gatuno, enquanto Narizinho se rebolava na cama de tanto rir, pensando consigo: “Se antes de casar é assim, imagine-se depois!”

Isso porque ela andava alimentando o projeto de casar Emília com Rabicó.
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Continua... Pedrinho

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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