terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Irmão de Pinóquio – III – O concurso

Achado o pau vivente, só restava fazer com ele um boneco para que surgisse no mundo o irmão do Pinóquio. Pedrinho, entretanto, por mais que o sacudisse e espetasse com o canivete, não conseguia que o pedaço de pau desse o menor sinal de vida.

— É esquisito isto! — exclamava. — O tronco gemeu de cortar o coração, mas este pedaço nem pia. É esquisitíssimo...

Emília, sempre com a pulga atrás da orelha de medo que seu estratagema fosse descoberto, disse logo, muito espevitadinha:

— Dona Benta falou outro dia que as grandes dores são mudas. Esse pau bem que sente, mas como a dor de se ver separado do tronco pai dele é muito grande, está assim mudo como peixe. De repente a dor diminui e ele começa a gemer que ninguém o pode aturar.

O Visconde tossiu e olhou para ela com o rabo dos olhos, admirado dos progressos “psicológicos” que Emília estava revelando.

Apesar da mudez do pau, Pedrinho resolveu fazer o boneco, na esperança de que de repente vivesse. Mas, fazê-lo como? Cada qual queria que o irmão de Pinóquio fosse de um jeito, e tanto disputaram que Pedrinho resolveu abrir um concurso. O desenho vencedor seria adotado para modelo.

— Concurso de desenho, gentarada! — gritou ele batendo palmas. — Pára tudo! Vovó, largue essa costura e pegue no lápis. Tia Nastácia, você também pare com esse fogão! Toca a desenhar!

Começou o concurso. Durante meia hora ninguém naquela casa cuidou de outra coisa senão de desenhar. Prontos que foram os seis desenhos, Pedrinho os pregou na parede para serem julgados. Que exposição mais engraçada! O desenho de tia Nastácia não tinha forma de gente; parecia um coisa-ruim de carvão, tão feio que todos se riram. O de Narizinho era bastante jeitoso, mas tinha o defeito de ser parecido demais com o Pinóquio.

— Foi de propósito — explicou a menina. – Fiz um irmão gêmeo.

O de dona Benta parecia um judas no sábado de aleluia. O de Pedrinho saiu o retrato de um menino opilado que às vezes aparecia no sítio, acompanhando sua avó, Nhá Veva Papuda. O do Visconde saiu tão científico que não se entendia. Era cheio de triângulos copiados da Geometria e tinha no nariz um X de Álgebra. O de Emília era um embrulho. Emília quis botar no boneco tanta coisa que o virou numa trapalhada. Fez cacunda de Polichinelo, boca de sapo, rabo de jacaré, orelhas de morcego, pés de bode e nariz ainda mais comprido que o de Pinóquio. Tinha também um olho arregalado nas costas, “para que ninguém o pudesse agarrar de surpresa” — explicou ela cheia de orgulho dessa lembrança que ninguém havia tido.

Por três vezes Pedrinho botou em votação os desenhos, sem o menor resultado. Cada qual achava o seu o mais bonito e votava em si próprio.

— Com votação não vai — disse ele. — O melhor é tirar a sorte.

Todos concordaram. Pedrinho escreveu o nome de cada concorrente num pedaço de papel, enrolou-os e botou-os no seu chapéu, pedindo a dona Benta, como mais velha, que tirasse um.

Emília, porém, protestou, erguendo a mão esquerda no ar e escondendo a direita no bolsinho da saia.

— Quem vai tirar a sorte sou eu! Dona Benta não sabe!

— Não é você, não! É vovó !— determinou Pedrinho.

— Sou eu! Sou eu! — insistiu a boneca.

— Já disse que é vovó. Não teime!

— Sou eu! Sou eu! — continuou a boneca, batendo o pé e sempre de mão no bolso.

Narizinho desconfiou da insistência daquela mão no bolso.

— Deixe ver a mão, Emília.

— Não deixo! — respondeu a boneca, corando até à raiz dos cabelos.

Narizinho agarrou-a e, tirando-lhe a mão do bolso à força, viu que havia nela um papelzinho do mesmo tamanho e enrolado do mesmo jeito dos que estavam no chapéu.

Foi um escândalo. Todos a criticaram, achando muito feio aquele procedimento; depois caíram na gargalhada, ao lerem o que estava no papelzinho. Emília, em vez de escrever o seu nome, havia escrito, na sua letrinha torta de boneca de pano — O MEU. Por isso insistia tanto em tirar a sorte. Já estava com o nome do vencedor na mão .. .

— Che, que fiasco! — exclamou tia Nastácia pendurando o beiço. — Nunca vi ação mais feia. Eu, se fosse Dona Benta, não deixava que essa cavorteiragem fosse passando assim sem mais nem menos. Dava umas palmadinhas nela, ah, isso dava mesmo! Onde se viu querer empulhar a gente dessa maneira? Credo!

Emília, cada vez mais furiosa, botou-lhe um palmo de língua

— ahn!

— Tia Nastácia tem razão, Emília — observou dona Benta. – O ato que você praticou é dos mais feios e só perdôo porque você é uma bobinha que não distingue o bem do mal. Fosse algum dos meus netos e eu o castigaria.

Era a primeira repreensão que Emília levava de dona Benta.

Sua vontade foi de também lhe botar um palmo de língua ainda mais comprido. Mas compreendeu que não devia fazer semelhante coisa e limitou-se a sair da sala, resmungando e batendo o pezinho com toda a força.

— Como está ficando! — comentou a negra. — Parece uma cascavelzinha. Credo!

Terminado o incidente, prosseguiram na tirada da sorte. Dona Benta meteu a mão no chapéu e pescou um dos papéis. Abriu-o e leu — “TIA NASTÁCIA”.

Foi um desapontamento geral. Ninguém esperou que a Sorte fosse tão burra de escolher justamente a autora do desenho mais feio. Mas a Sorte é a Sorte; o que ela decide está decidido e ninguém pode reclamar. Em vista disso a negra ficou encarregada de dar forma humana ao pedaço de pau vivente, pondo assim no mundo o irmão de Pinóquio.
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Continua… IV – A zanga de Emília

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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