sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Sérgio Porto (A Casa)


“A casa”

Seriam ao todo umas trinta fotografias. Já nem me lembrava mais delas, e talvez que ficassem para sempre ali, perdidas entre papéis inúteis que sabe lá Deus por que guardamos. Encontrá-las foi, sem dúvida, pior e, se algum dia imaginasse que havia de passar pelo momento que passei, não teria batido fotografia nenhuma. Na hora, porém, achara uma boa idéia tirar os retratos, única maneira — pensei — de conservar na lembrança os cantos queridos daquela casa onde nasci e vivi os primeiros vinte e quatro felizes anos de minha vida.

Como se precisássemos de máquina fotográfica para guardar na memória as coisas que nos são caras! Foi nas vésperas de sair, antes de retirarem os móveis, que me entregara à tarefa de fotografar tudo aquilo, tal como era até então. Gastei alguns filmes, que, mais tarde revelados, ficaram esquecidos, durante anos, na gaveta cheia de papéis, cartas, recibos e outras inutilidades.

Esta era a escada,que rangia no quinto degrau, e que era preciso pular para não acordar Mamãe. Precaução, aliás, de pouca valia, porque ela não dormia mesmo, enquanto o último dos filhos a chegar não pulasse o quinto degrau e não se recolhesse, convencido que chegava sem fazer barulho.

A idéia de fotografar este canto do jardim deveu-se — é claro — ao banco de madeira, cúmplice de tantos colóquios amorosos, geralmente inocentes, que eram inocentes as meninas daquele tempo. Ao fundo, quase encostado ao muro do vizinho, a acácia que floria todos os anos e que a moça pedante que estudava botânica um dia chamou de “linda árvore leguminosa ornamental”. As flores, quando vinham, eram tantas, que não havia motivo de ciúmes, quando alguns galhos amarelos pendiam para o outro lado do muro. Mesmo assim, ao ler pela primeira vez o soneto de Raulde Leoni, lembrei-me da acácia e lamentei o fato de ela também ser ingrata e ir florir na vizinhança.

Isto aqui era a sala de jantar. A mesa grande, antiga, ficava bem ao centro, rodeada por seis cadeiras, havendo ainda mais duas sobressalentes, ao lado de cada janela, para o caso de aparecerem visitas. Quando vinham os primos recorria-se à cozinha, suas cadeiras toscas, seus bancos... tantos eram os primos!

Nas paredes,além dos pratos chineses — orgulho do velho — a indefectível Ceia do Senhor, em reprodução pequena e discreta, e um quadro de autor desconhecido. Tão desconhecido que sua obra desde o dia da mudança está enrolada num lençol velho, guardada num armário, túmulo do pintor desconhecido. Além das três fotografias — da escada, do jardim e da sala de jantar — existem ainda uma de cada quarto, duas da cozinha, outra do escritório de Papai. O resto é tudo do quintal. São quinze ao todo e, embora pareçam muitas, não chegam a cumprir sua missão, que, afinal, era retratar os lugares gratos à recordação. O quintal era grande, muito grande, e maior que ele os momentos vividos ali pelo menino que hoje olha estas fotos emocionado. Cada recanto lembrava um brinquedo, um episódio. Ah Poeta, perdoe o plágio, mas resistir quem há de?Gemia em cada canto uma tristeza, chorava em cada canto uma saudade. Agora, se ainda morasse na casa, talvez que tudo estivesse modificado na aparência,não maisque na aparência, porque, na lembrança do menino, ficou o quintal daquele tempo.

Rasgo as fotografias. De que vale sofrer por um passado que demoliram com a casa?Pedra por pedra, tijolo por tijolo, telha por telha, tudo se desmanchou. A saudade é inquebrantável, mas as fotografias eu também posso desmanchar. Vou atirando os pedacinhos pela janela, como se lá na rua houvesse uma parada, mas onde apenas há o desfile da minha saudade. E os papeizinhos vão saindo a voejar pela janela deste apartamento de quinto andar, num prédio construído onde um dia foi a casa.

Olha, Manuel Bandeira: a casa demoliram, mas o menino ainda existe.
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Sobre o Livro “A Casa Demolida” (Prefácio)

A casa demolida é o único volume que reúne crônicas de Sérgio Porto. Com o próprio nome, e não com o do primo, ele lançou apenas dois outros livros: uma Pequena história do jazz, dos Cadernos de Cultura editados por Simeão Leal,e as novelas de As cariocas. Estas, por sinal,sete histórias que, resumidas, dariam excelentes crônicas. Ou melhor, são histórias que podem ser lidas como crônicas, só que mais longas, Sérgio já convencido de que poderia ir mais longe como escritor,quem sabe animado por incentivos, elogios e até exageros, como o de Jorge Amado que, no prefácio das novelas, considera-o “jovem mestre de seu ofício”.

Sérgio dividiu a coletânea em cinco partes. A primeira é a que contém as nostálgicas voltas ao passado, ao seu mundo particular, à Copacabana cujas velhas casas iam sendo derrubadas para que modernos edifícios fizessem o bairro crescer para cima. Estão lá a casa,a varanda,o pomar, a rua, as pessoas queridas que habitaram ou passaram por sua infância. É um cronista, vá lá, sério, o que se entrega a essas lembranças, ainda que volta e meia com lances de humor. Sério e de um lirismo que Stanislaw jamais se permitiria. Um cronista da cidade,também. Só quem viveu em casa com quintal e varanda, em rua tranqüila, enfeitada de verde, os almoços de domingo reunindo à mesa uma família que só então se encontrava, pode entender o tom dessas crônicas. O Rio da infância de Sérgio começava a desaparecer. E era com os olhos de antigamente que ele a tudo assistia: “...a casa demoliram, mas o menino ainda existe”.

Na segunda parte, personagens reais como Dolores Duran, o palhaço Benjamim de Oliveira, a cozinheira Almira, Heleno de Freitas, identificado apenas como “o ídolo”, desfilam ao lado de outros que podem ou não ter existido, Pedro Cavalinho, Aurora, Marlene, a moça no banho, a filha do embaixador,os cantores bêbados,o sósia de JK,Frederico, “seu”Torquato.

Das três últimas partes da coletânea constam crônicas, histórias, anedotas, ou o que sejam, em que se acham — entre graças, aí sim, mais próximas às do primo — tocantes referências às mulheres: a que passou, a que se foi, a que se desejou, a que se perdeu. O Sérgio Porto das crônicas sobre fins de caso, amores idos, separações, é, numa palavra, insuperável. A crônica que fecha o livro é pequena obra-prima que bem poderia ter servido de modelo ao Chico Buarque dos versos de “Trocando em miúdos”. Nenhum dos textos sobre mulheres parece ter algo a ver com a fossa da viagem a Buenos Aires. Até porque,ao contrário do que podem sugerir as crônicas sobre a casa, a rua, o bairro, ou sobre as pessoas que conheceu, ou sobre as outras que inventou, ou sobre as mulheres que amou, Sérgio Porto não é um escritor autobiográfico, um memorialista.

É,antes, um cronista que se vale de experiências — vividas ou imaginadas — para nos falar mais como testemunha do que como personagem. Mesmo quando assume o próprio nome (“Chamaste-me ‘meu Sérgio’ e depois partiste. Não fui nem teu Sérgio nem teu porto”), ele nos faz entrar em sua pele em vez de simplesmente o lermos a distância. É como se também nós, e não somente Sérgio, estivéssemos passando pelas mesmas emoções. Não tivesse ele,afinal, pertencido a uma brilhante geração de cronistas — Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Carlinhos de Oliveira — que sabia exatamente a diferença entre escrever na primeira pessoa e divagar sobre o próprio umbigo.

Claro, Sérgio Porto sabia que, se cometesse esse pecado, o do umbigo, estaria correndo o risco de ver o implacável primo Stanislaw incluí-lo entre os mais fortes candidatos a cocoroca do ano.

Fonte:
http://www.livrariacultura.com.br

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