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quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Qorpo Santo (Um Parto)

Comédia em 3 atos.

PERSONAGENS

Cario
Florberta
Melquíades
Guindaste
Galante
Ruibarbo
Uma mulher
Uma criada
Uma voz


ATO PRIMEIRO

CENA I


Cário — (assentado a uma mesa, provando algumas leves comidinhas) O sábio o beija, o néscio arqueja! Por que será que isto se dá!? Eu sei: Aquele viveu em Deus, com Deus, por Deus e para Deus; este, no diabo, com o diabo, pelo diabo e para o diabo! Eu me explico. Um é observador e cumpridor da Lei que por aquele lhe foi dada, e por Nosso Senhor Jesus Cristo — acrescentada. O outro, é cruel perseguidor de seus sectários... Ou daqueles que fiéis a observam, respeitam, veneram. Eis porque, repito — quando Deus fala, o sábio se ri e se cala; o néscio teme e se abala. Ou, aquele se enche de prazer; este de medo vê-se tremer! Passando, porém da religião a estas cousas que agora como, não sei o que me parecem estas comidinhas. Dão-se fatos a seu respeito; uns que me encantam, outros que me admiram; alguns que me enojam, muitos que aborrecem, diversos ou vários que me repugnam, milhares que me indignam; inúmeros para os quais não há explicação nem qualificação exata, possível... Quantas cousas me falaram hoje, ora pelo sono, ora pela forma, ora pelo gosto, ora pela espécie, ora pela cor, e também pelo sabor! Vejo que (pegando em uma estrelinha de massa) ninguém deve comer estrelas, mas estrelas de carne ou de fogo! Como, porém estas são de massa, é de crer que mal me não façam (Come uma. Pegando em outra, tira uma dentada, e a deixa quase pelo meio; olhando para ela:) Parece-me uma coroa! Não comerei. Guardarei (Põe no prato.) Pelo gosto (provando outra), cheiro e sabor, dir-se-á que — envenenada está.
Poremos também a um lado. Acho esta bebida (bebendo um cálix de vinho), com quanto espírito, assaz fraca, ou como amolecida. É cousa que também não me agrada. Não beberei mais deste liquido: veremos algum mais forte, e por isso mesmo para mim — melhor. Quê! (pegando em outro pedacinho de massa) Isto é imagem de um turíbulo! Não comerei. Esta, de uma naveta, (pegando outra) também não quero! Provarei esta fatia. (Corta dois ou três pedacinhos, e come.) Que tal? É sempre igual.

(Levantando-se um pouco.) Eis a barretinha de um soldado, que ofendido ou maltratado em seus brios ou dignidade, na Vila Nova do velho Triunfo, por um seu capitão, em princípios da infausta, nefanda, prejudicial e mais que indigna revolução de 1835, teve a precisa coragem para salvar sua honra e dignidade; para dar um imitável exemplo a seus camaradas; para meter um dedo do pé no pinguelo da espingarda, encostar a boca desta no peito em frente ao coração, e disparar assim estrondoso tiro, que o transportou instantaneamente à presença do Eterno. Feliz soldado, era de um batalhão cujo título ou número não me lembro; suponho que paraense, e em o qual havia um capitão com o nome — Chaguinhas, de péssima fama — que julgo muito pouco tempo durou, bem como a maior parte desse corpo de infantaria, destruída quase toda — poucos dias depois pelos generais Neto e Canabarro. Estes corações (pegando em um coração) enchem-me de benções; não os quero; estou deles assaz farto. A estes gozos preferiria a companhia, que traz alegria... (Olhando com atenção para um sinal em uma mesa.) Este sinal é feito por um pingo de espermacete; isto, porém não é o que admiro: uma cabeça perfeita, um nariz afilado, com uma cara completa, queixo, barbas, um boné igual ao de um oficial francês ou alemão que há tempos vi, e até com um penacho — é o que realmente para mim não direi mais que admirável, mas algum tanto espantoso... Enfim, paremos com isto: são horas de dormir; vamos deitar-nos. (Levanta-se, dá alguns passos e encosta-se a um sofá, cama, ou cadeira de balanço.)

CENA II

Cário — (levantando-se.) Estou satisfazendo o desejo, ou cumprindo o projeto que fiz de ir viajar à Europa, e de lá, cheio de ciência, voltar a derramar sobre Os meus comprovincianos, compatriotas, e mais habitantes do Império Brasileiro. Está se servindo Deus de mim para punição de uns e prêmio de outros. Não me convém, não devo escrever sobre os mortos, ou fazer nênias. Convém-me mais passear, que estar em casa; passeando, me entretenho; me divirto; e fortifico; em casa me enfraqueço, e sempre apeteço... Fora, não necessito trabalhar, mas apenas conversar: em casa não posso deixar de o fazer sem cessar... Ao homem convém caminhar, falar, pular, dançar, palrar e o exercício de mais de um milhão de verbos acabados em ar, ar, ar, ar, etc. etc. etc. etc. Como é difícil, e tantas vezes impossível, a conciliação de interesses opostos! Sente-se uma necessidade; é-se instado por um desejo; procura-se satisfazê-lo; encontra-se uma dificuldade...
Alguém geme, alguém chora, que nos dói, que nos estorva. Mas por que lamentar? Se necessário, vençamos; ou sigamos os impulsos de nossa inteligência; os conselhos de nosso coração; ou os conselhos daquela, e os impulsos deste.
Façamos algum sacrifício, visto que ninguém (é de conjecturar) há que viva sem os fazer. É preciso fortalecermo-nos; é preciso não fraquecermo-nos. Se eu atendesse, direi neste momento, aos desejos que tive (depois de haver passeado e meditado algum tempo zangado), teria escangalhado, talvez destruído ou inutilizado um baluarte, cujas forças já me não convém conservar. Se, porém lhe presto muito atenção, se me penalizo de seu sofrer, do que se me representa à imaginação, terei de viver qual preso em cadeia. Enquanto, pois não tenho emprego, mais que o de compositor, preciso me é buscar por toda a parte, onde houver melhor, ou mais me agradar — aquilo que me falta e de que mais careço. (Olhando para o ar.) O baluarte sibila! Não prestar-te-ei pois mais atenção, enquanto de longe me falar teu coração! Assim triunfou (triunfarei eu também de ti) um de meus amigos — de igual impertinência — só útil n'aparência! (Pega o chapéu e sai.).

CENA III

Florberta — Que força tem o destino! Umas vezes cruel e destruidor como o raio ou a tempestade; em outras vezes tão benigno como o amor ou a saudade!

(Canta:)

Às vezes é tão cruel
O bárbaro, feroz destino,
Como horrosa tempestade,
Ou o raio destruidor

Em outras mais que fiel,
Tão amigo, tão benino,
Nos enche de flicidade,
De gratidão, e de amor.

Os malvados (atravessando o cenário depois que profere cada um período) estão sempre condenados. Quem estará por ai se assoando, que tanto me está enjoando! A Ciência, o ouro e a água são cousas que quanto mais abundam, menos param ou mais velozes necessitam correr. Quando sinto-me menos forte, ou temos destruição, ou é morte. Quando o Estado carece para sustentar-se ou progressar — de uma parte de nossos serviços é justo que lhes prestamos, bem como que este, uma parte de seus benefícios a nós quando d'Ele carecemos. É com esta reciprocidade de atenções, de benefícios, de amparo — que os Estados e os súditos seus — conservam e prosperam. Se eu tivesse disposição de escrever sobre relações naturais, diria que ainda hoje o chá que tomei levou-me à presença de alguém, de quem ouvi a mais tremenda descompostura!... Servir-me-á, se pudermos continuar a escrever comédias, para uma bela cena de algum dos Atos; mesmo para começo, parece excelente. Não foi nada menos que o seguinte: Bati por duas vezes em uma porta, ouvi mandar a pessoa a quem buscava abrir a porta; como se demorava o criado, empurrei-a, e entrei; a pessoa era muito minha conhecida, e de baixa esfera.
Quereis saber o que ouvi dela? Eis: A Sra. é muito atrevida! Teve a audácia de entrar em minha casa sem que eu fosse abrir-lhe a porta! Pensa que esta casa é casa de prostitutos? Está muito enganada! Retire-se; e se está louca, vá para a Caridade! Quereis saber o que lhe respondi? Eu vô-lo digo. Eis: "Não se incomode, Sr. Bem sabe que não é a primeira vez que eu venho à sua casa. Foi-me necessário á vir hoje; desculpe portanto: se a minha presença não lhe agrada, eu me retiro. E retirei-me, sem mais cumprimentos. Fui, entretanto, opostamente, recebida por pessoas da mesma casa, que para tal não tinha dever com o maior afeto possível; notando em seus semblantes o maior desprazer pela grosseria estúpida daquele que devia-me prestar atenção. Há de entretanto servir para algum fim útil.

CENA IV

Casto — (entrando) Que mania de mil diabos! Querem por força que eu viva amigado — sem que isso possa ser! Sim! Irra, irra! (Sacudindo os braços.) O diabo que satisfaça semelhante gente! Hei de mandar à olaria fazer de propósito uma mulher para com ela me ligar sem o preenchimento das formalidades religiosas... E, pobre, — não me serve! Há de ser rica, formosa, e asseada; senão, nem assim combino, me combino... Ou... Concubino! Tri, tri, tri...

(Faz duas ou três piroletas,tocando castanholas, e sai aos pulinhos...

Cário — (depois que entra) Como se transtornam as cousas deste mundo! Quando  pensaria eu que indo à casa de um médico fazer uma ligeira visita, havia de transtornar uma comédia!? Quanto é preciso ao homem que se dedica a composições intelectuais, ter regime certo ou invariável! Uma visita transtornou uma comédia; qualquer ação obsta à conclusão do mais importante trabalho. Quão bem foi começada esta comédia, e quão mal acabada vai! Já nem posso chamar a isto mais comédia... Enfim, vereis se posso concertar minhas idéias, e prosseguir então.

(Sai.)

ATO SEGUNDO

Quarto de estudantes

CENA I
Melquíades, Guindaste, Galante e Ruibarbo.

Melquíades — (deitado) Fiu! fiu! (Assoviando.) Não está: tão cedo já sairia a passeio!? Quem sabe! Talvez; pode muito bem ser. (Torna a chamar:) — Maria! Joana! Teresa! Antônia! Joaquina! Michatas! (Pausa.) Que diabo! Não aparece nenhuma das criadas. Ainda estarão dormindo. Que judias! São (abrindo o relógio) nove horas do dia, cinco da tarde, duas da noite, seis da madrugada, e ainda dormem!

— É muito, muitíssimo grande, (figurando com as mãos o tamanho) grandíssimo dormir! — Manuel! Antônio! Mercúrio! Ninguém fala; está tudo em silêncio... Em silêncio profundo!... Profundíssimo! Pois — Résquiés d'impace nas catacumbas do cemitério do Corpo-santo na cidade do Porto, Portugal dos portugueses — para vocês todos! Que os levem 30.000 diabos e demônios para os mais fundos infernos lá do outro mundo: pois cá nos deste ainda vocês me poderiam incomodar!

Guindaste — (calçando as meias) Há três dias que ando incomodado; ora do estômago, ora dos intestinos, ora das barrigas... Ah! São duas, é plural — das pernas e da cabeça; e ainda esta noite passei uma noite horrível. Não sei que é isto! Até as águas-da-colônia que sempre me serviram de remédio para estes males, desgraçadamente hoje parece que hão produzido os efeitos contrários!...

Galante — Que diabo terei eu nestas cabeças (Tirando o barrete com que havia dormido.) Parece que tem espinhos! Ora picam-me as pernas, ora as coxas e até na cintura me importunam, ou me ferem. Safa! (Tirando a calça.) O que havia de ser? (Pegando em um carrapicho e mostrando.) Um carrapicho!... Malditas lavadeiras, que parece de propósito para o mais lanoso entretimento dos néscios fregueses — porem na roupa estes espinhos! (Atirando-o.) Lá vai, lavadeira de roupa, vê se o engoles pelo nariz.

Ruibarbo — (andando) Como as lavadeiras não te hão de fazer dessas, se tu não lhes pagas a lavagem e o engomado da roupa — como elas desejam!

Galante — Essa é boa! Essa é bem boa! Essa ainda é melhor!... Ainda ontem paguei seis mil e tantos réis, e dizes que eu não pago!?

Ruibarbo — Mas não é assim que elas querem!...

Galante — Pois de outro modo, não sei. Não o entendo. Eu sou inglês, e inglês de muito boas raças! Portanto não vivo... Vivo de mistérios.

Ruibarbo — Pois és um tolo. Estuda a lavadeira, faz- lhe elogios, mostra-te a ela afeiçoado, e verás como ela te trata, te lava, te goma admiravelmente!

Melquíades — (para Galante) Que hei de eu estudar hoje?

Galante — Estuda disciplina.

Melquíades — Assim eu sou tolo!

Ruibarbo — Pois ainda pensas em estudos, depois de velho, com a prática dos homens, e mesmo das mulheres!?

Melquíades — Que queres? Nasci mais para estudar que para vadiar!

Galante — És um pateta! Com as disciplinas escangalhavas tudo. Triunfavas dos amigos e dos inimigos! Sem elas, não sei como te haverás; quer com uns, quer com outros! Enfim tu lá sabes.

Melquíades — Estou me resolvendo um dia a atirar com os livros ás ventas dos mestres. Com os temas às dos lentes! E finalmente, com as botas às dos criados!
(Pega nestas, atira nos companheiros e sai.)

Guindaste — É bem atrevido este meu sogro!

Galante — (para Guindaste) Pois tu és casado!? Ainda agora é que sei! Pois o Melquíades já tinha filhas moças!? Ainda mais esta — estudante casado e com filhos!

Guindaste — Se o não sou, ainda hei de ser. Se as não tem, ainda há de ter. E por isso se ainda o não sou, em breve hei de ser, e posso, portanto desde já il~o tratando de sogro.

Galante — És o primeiro calculista do Mundo!

Ruibarbo — Vocês querem passar o dia de hoje em conversa!? Não querem estudar, pensar, meditar sobre o que há de extraordinário da Revolução Francesa, livro mais que todos apreciável pela grande exemplar lição que transmite à humanidade!

Melquíades — (chegando à porta do dormitório com boa porção de livras em baixo do braço esquerdo, muito apressado.) Vamos para as aulas! São horas! Se se demoram, perdem a lição de hoje! Andem! Andem! Saiam! Venham!

(Guindaste e Galante pegam em vários livros, dão duas voltas e saem.)

Guindaste — (arrumando a cama) Vão indo que eu já vou!

Galante — Não te demores, que eu preciso de ti!

Ruibarbo — Sim; sim. Vão indo; eu lá irei logo! (Saem.) Estes meus colegas são o diabo em figura de homens, ou de rapazes! Tudo desarrumam! É preciso uma... não: paciência de Jó, ou de algum outro Santo para aturá-los! Enfim, (depois de todo o quarto arrumado) é preciso aturá-los! É melhor que andar com eles aos tombos, puxões ou cabeçadas.
(Pega em um livro.) São horas, vou às minhas lições de Retórica! E logo continuarei a escrever a minha encantadora comédia — a Ilustríssima Senhora Dona Anália de Campos Leão Carolina dos Santos Beltrão Josefina Maria Leitão História das Dores Patão, ou Bulhão, etc. etc. Dizem os médicos, e confirmam os lógicos: As cousas que têm de trabalhar, apertadas, não poderão fazer tão bom serviço como — desembaraçadas; e eu o creio pia e firmemente. Exemplifiquemos com os próprios homens e seus órgãos. Suponha-se que estão a trabalhar em uma sala vinte pessoas, e que na mesma não o podem fazer livre ou desembaraçadamente mais que dez ou doze. Pergunto: seu serviço, obra, ou trabalho, sairá tão perfeito, como se trabalhassem aqueles que — bem — só o podiam fazer? É de crer que não. Outro: Temos órgãos — da vista, do ouvido, do olfato, que por certo oprimidos, ninguém dirá que — bem funcionam. Assim, pois devem ser os do nosso estômago, intestinos, etc. Apertados, não poderão funcionar, transformar ou digerir os alimentos ou cousas de que nos alimentamos, com aquela facilidade com que o fazem ou devem fazer não opressos ou desembaraçados. Se aperto os meus dedos, não posso escrever, nem com a mão cousa alguma fazer! Se, porém esta está desembaraçada, com ela faço o que quero, ou o que posso. Logo — não convém a opressão; se se quer trabalho abundante e perfeito!

CENA II

Melquíades — (entrando, atrás Guindaste, e após este, Galante. O primeiro com muito desembaraço, e atirando com os livros com estouvamento, quer de gesto, quer de palavras) Ó Ruibarbo, não foste hoje à lição!? És o diabo em figura de estudante! Pois sabe que eu fui, vim e estou aqui! Pus por terra todos os troianos! Foi o lado que hoje perdeu nas sabatinas o mais vergonhosamente que é possível. Nem a batalha que inutilizou Napoleão I; nem as melhores vencidas por Alexandre o Grande; nem finalmente a em que César destruiu Pompeu — se podem comparar à que hoje venci dos nossos amigos Paraguaios!

Ruibarbo — Pois eu declaro-vos que não fui à aula! E se quiserem saber o porquê, dir-vos-ei: — Primeiro, porque não quis. Segundo, porque estou ocupado com algumas lições de Medicina. Terceiro, porque vocês são pouco cuidadosos de nosso quarto, e eu não posso tolerar porcaria, desarrumação, etc. Quarto, porque...

Melquíades — (com muita desenvoltura, assentando-se em outro lugar, ou mudando de assunto) Já sei, já sei. Tu és um estudante privilegiado. Tens até um breve do Papa. Quando te apertam fora da Igreja, entras para a Igreja, e quando te aborreces muito desta, safas-te com a maior sem-cerimônia! (Batendo-lhe no ombro.) És muito feliz, felicíssimo mesmo. (Os outros: cada qual acomoda seus livros e senta-se).

Melquíades — (pegando em um papel, em que Ruibarbo havia escrito) Oh! Este Ruibarbo, quanto mais estuda, menos aprende! Pois ele ainda suprime letras quando escreve!

Ruibarbo — Doutor! Você não vê que quando assim procedo faço um grande bem ao Estado!?

Melquíades — Geral bem!?

Galante — São cousas do Ruibarbo! Tudo quanto ele faz diferente de outros homens, sempre protesta ser por fazer bem, ou por conveniência do Estado. Não é mau modo de se fazer o que se quer! É uma capa maior que a de Satanás! É uma espécie de Céu que ele tem, com que costuma abrir a terra!

Ruibarbo — Eu me explico: Quando escrevo, penso, e procuro conhecer o que é necessário, e o que não é; e assim como, quando me é necessário gastar cinco, por exemplo, não gasto seis, nem duas vezes cinco; assim também quando preciso escrever palavras em que usam letras dobradas, mas em que uma delas é inútil, suprimo uma e digo: diminua-se com esta letra um inimigo do Império do Brasil! Além disso, pergunto: que mulher veste dois vestidos, um por cima do outro!? Que homem, duas calças!? Quem põe dois chapéus para cobrir uma só cabeça!? Quem usará ou que militar trará à cinta duas espadas! Eis por que também muitas vezes eu deixo de escrever certas inutilidades! Bem sei que a razão é — assim se escreve no Grego; no Latim, e em outras línguas de que tais palavras se derivam; mas vocês que querem, se eu penso ser assim mais fácil e cômodo a todos!? Finalmente, fixemos a nossa Língua; e não nos importemos com as origens!

Melquíades — Enquanto passares bem assim, continua; mas logo que te deres mal, é melhor seguir a opinião geral. (Ouve-se tocar a sineta, que convida a jantar; aos saltos; pondo as mãos na cabeça; e outras extravagâncias.) São horas! São horas!
(Puxa Ruibarbo.) Vamos! (Este se deixa estar assentado. Puxa outro; convida; salta; pula; pega em um rebenque.) Ah! Vocês até para comer têm preguiça!? (Dá uma pancada com o chicote sobre urna mesa, os outros saltam ligeiramente à porta; e saem todos.).

Ruibarbo (atrás.) O Melquíades hoje está limpo, lavado, engomado, escovado, e penteado!

Galante — Ele triunfou dos Paraguaios! É preciso obedecê-lo!

Guindaste — Eu o faço para tal fim, com muito prazer!

ATO TERCEIRO

CENA I


Uma Mulher — (muito atenta, ouvindo alguns gemidos) Quem gemera? Quem estará doente? Será minha avó, ou meu avô!? Sabe-o Deus; eu apenas desconfio, e nada posso afirmar! Entretanto, convém indagar. (Aproxima-se de uma porta, escuta, e volta.) Ah! Quem há de ser? (Arrastando.) É a cabritinha de minha avó, tia, e irmã, que acaba de parir três cabritos. Ei-los (Atira-os ao cenário.)

Melquíades — (entrando.) Oh! Que espetáculo é este! Cabritos em meu quarto de dormir! Oh! Mulher, donde veio isto!?

A Mulher — Ora, de onde havia de vir! Boa pergunta! O Sr. não sabe que seus avós têm o luxo de criar cabras!? E que criando-as por força hão de parir!?

Melquíades — Que têm parido, e hão de parir, sei eu muito bem! Mas o que me espanta é que a parição, parto, ou como quiserem chamar, tivesse lugar em meu quarto de dormir! É isto o que assaz me admira!

A Mulher — Não foi aqui; mas eu ouvi gemer, e cuidei que era sua avó ou seu avô; fui ver; encontrei-os; trouxe-os; e aqui estão!

Melquíades — Pois bem; agora vá preparar um para a ceia.

A Mulher — (cheia de nojo) Eu, fazer? Deus me livre! Isto tem um cheiro... Seria preciso, para se poder comer, pôr de molho três dias em alho, cebola, vinagre e cuentro.

Melquíades — Pois então, (muito zangado) tire-me daqui estas porcarias, que já me estão causando nojo! Anda! Anda! Tira isto daqui!

Uma Criada — (puxando a cabra pelos chifres) Vem, vem, vem cá, cabritinha, cabritinha!

Melquíades — Isto está demorando muito! (Dá um pontapé na cabra, que a atira; os cabritos esforçam-se por correr, ele pega em um, e esfrega na cara da criada.) Que tal, Sra. D. Nojenta! Cheira ou fede?

Criada — Nunca gostei destas graças! (Larga a cabra e sai.)

CENA II

(Entram Ruibarbo,Galante e Guindaste)

Ruibarbo — Isto é admirável! Gatos ensopados pelo soalho derramados!

Galante — Ensopados! (Reparando com muita atenção.) Só se o foram na barriga da mãe! Oh! E não me enganei; ei-la (Apontando para a cabra.)

Guindaste — Vocês são os mais extravagantes estudantes que eu tenho conhecido. Se fôssemos de Medicina, que bom estava para desenojar, mas somos de Direito, não nos pode aproveitar! O que é mais interessante é a lembrança de que estavam ensopados, achando-se em pé, e em estado de perfeição.

Ruibarbo — Não admira! Bem perfeitos são os animais, e as aves cheias, entretanto não estão vivas.

Guindaste — Mas não se diz que crê que foram ensopadas.

Ruibarbo — Sim, Sr... Mas quem não poderia dizer que estivessem assados?

Galante — Ainda vocês ignoram uma cousa: Sabem o que é? É que o nosso amigo Melquíades deu esta lição à criada, que tão pacificamente e bem sempre nos serve — esfregou-lhe com um destes cabritos: cara, boca, nariz, olhos, e não sei que mais — saiu daqui tão enjoada, que não corria; qual águia; voava; ou ia qual avestruz avoada!

Melquíades — Sabem o que mais?... Eu não quero estar vendo aqui estas imundícies! (Chamando.) Rigoleto! Rigoleto!

Uma Voz — Não está! Peguem vocês cada uma no seu, e os ponham longe daqui!

Guindaste — (para os outros) É mesmo, isto é muito enjoativo! Nem eu posso abrir um livro com eles diante de mim. Pega no teu, Galante! Ruibarbo, leva o outro!
(Pega cada um no seu e os põe fora de cena).

Ruibarbo — (para os outros) Não há remédio, senão aturá-los.

Melquíades — E eu que o diga! Mas, que faremos nós aqui metidos? Não era melhor que fôssemos passear, ver as moças, e também algumas velhas? Hem? Hem? Falem, que estou desesperado! Come-me hoje este corpo; sinto nele tal coisa... Certo prurido... E não sei que mais — que não posso estar parado um momento!

Ruibarbo — Cruzes! Contigo, Melquíades.

Melquíades — Comigo — não quero cruzes! Mas, se for algum cruzeiro, ainda poderei aceitar. Quanto a cruzes, bastam estas (apontando para os livros) que aqui vedes.

Galante — Pois eu quero tudo: cruzes, cruzeiros, cruzados, cruzinhas, cruzadas, e tudo o mais que me oferecem, e que eu posso gozar sem perder!

Guindaste — Sem perder, não, Galante. Sem padecer ou sofrer, sim! Por força que gozando…

Galante — Não sabes o que dizes: há homens que quanto mais gozam, mais ganham! Portanto, avancei uma proposição as mais das vezes verdadeira, inda que algumas vezes falível.

Melquíades — Sabem o que convém — e me entretém? Passear, conversar, ver as moças. (Pegando o chapéu.) Os que me quiserem acompanhar, sigam-me! Vamos, vamos todos! (Puxa um, puxa outro; nenhum quer sair; ele pega na bengala e sai.).

Guindaste (para Galante:) Este Melquíades mudou completamente! Passou de estudante ao mais extravagante do seu século. Cruzes! Abrenúncio! Está atrevido como o diabo!

Ruibarbo — Isto é porque ele fez anos hoje! Amanhã…

Guindaste — Então diga-me isso! Eu logo vi.

Melquíades — (entrando, passados alguns minutos) Já sabem, rapazes — que passeei, andei, virei, mexi, e revolvi. E que nada resolvi sobre o que buscava e o que vi! Pois é verdade, e tão certo como o Carneiro de Cão estar com os olhos abertos. (Aponta para Galante.) E apenas duas cousas aprendi, ou dois pensamentos colhi! Primeiro, que há dois modos de viver em sociedade; um de que só se freqüenta mulheres de certa classe, a casas de jogo, etc.; outro em que olha–se com grande indiferença para tudo isto, e até muitas vezes com repugnância e só se freqüenta casas de família, ou gente de classe mais alta, ou mais distinta! Há também esta diferença, e é que os que querem ser verdadeiros constitucionais, e não têm família, isto é — não são casados, ou sendo não vivem com suas mulheres, são forçados a freqüentar aquelas; e os que nenhum caso fazem da Constituição, e os que mais e melhor gozam! Já vêem, portanto que não perdi o tempo.

Guindaste — (para Galante e Ruibarbo:) Sempre o nosso Pai dá provas de que ainda é estudante! Sempre nos traz alguma cousa... Descobertas de cousas que ignorávamos colhidas de suas experiências filosóficas! E com isso faz também de Lente, pois leciona-nos.

Melquíades — A outra verdade, ou o outro fato, é que muitas vezes isto provém de comermos dos hotéis, ou de mandarmos fazer as comidas em nossas próprias casas! Aquelas nos conduzem às primeiras; ordinariamente estas as mais das vezes às segundas! Contudo, há nesta regra numerosas exceções, e é também conforme são os hotéis. Notai bem que muitas vezes se observa uma verdadeira confusão. O que, porém é indubitável, é que as comidas e as bebidas nos conduzem a este ou àquele trabalho, a esta ou àquela casa, a este ou àquele indivíduo, a este ou àquele negócio! Podem até conduzir-nos a um crime! Como o podem fazer, e muitas vezes o fazem, a um ato de virtude, a uma ação heróica, a uma ação vil ou indigna.
(Continuando.) Sinto às vezes certo estreitamento no canal que conduz ao estômago. Tenho querido atribuir à falta de certo ato... Mas ao mesmo tempo lembra-me que as crianças, os velhos, as velhas, os doentes, os que viajam pelas campanhas, os que estão em guerra — não praticam tais atos, entretanto sei de muitos que padecem igual incômodo. Consequentemente devemos crer que a razão principal não é essa. Talvez provenha das qualidades dos próprios líquidos e das carnes de que nos alimentamos, e até das casas em que moramos, e mesmo das pessoas que nos servem, ou a quem mais praticamos. Meninos! Quero contar-vos mais uma verdade médica por mim descoberta hoje; e é — que é sempre um mal que incomoda, sair por cima o que deve sair por baixo! Se soubésseis quanto me...
Que desagradável efeito me produz algumas vezes o cuspir! Se ao menos eqüivaler ao que escrevo, ou ser substituído pelos pensamentos! Mas quê! Tenho experimentado, e sempre acho desagrado. — Outra descoberta: Certa pessoa até certo tempo — não podia passar, quando comia ou bebia alguma cousa, sem procurar uma pessoa, que se parecesse com o objeto ou cousa, de que se servia; entretanto em um dia — o que havia de pensar, de que se havia de convencer: — que devia proceder de modo diametralmente oposto, isto é, que quando tomasse chá, por exemplo, não devia para isso como antes procurar pessoas que tivessem essa cor: e assim a outros preceitos! Acho, porém bonito que pratiquemos, ou procedamos — se isso nos não causar algum desgosto — conforme esta nos aconselham; ainda que só espiritualmente, o que se faz de milhares de modos.
Meninos! Vou descansar! (Deita-se; e enrola-se no cobertor. Para os companheiros
de quarto:) Se alguém me procurar, dizei-lhe que durmo!

Ruibarbo — Galante, que te parece o nosso Pai Melquíades!? É um homem divino! É o maior sábio do Universo! Valente como os mais valentes, ativo como o sol, amável como a mais amável Princesa, interessante como o firmamento, bom como o melhor dos Pais.

Galante — Tu não te enganas, mas esqueceste acrescentar — extravagante e desenvolto, às vezes, como uma provocadora cobrinha!

Guindaste — E para prova de tudo isto, vejam o que ele fez hoje: saltou; pulou; dançou; fez o diabo, como estudante! Depois aconselhou, ensinou, pregou, fez-se santo, como Filósofo! Ultimamente, relampagou, iluminou como rei! E agora, como acabam de ver, atirou-se naquela cama, como um cansado estudante; ou qualquer outro ente de vida pouco séria, e bruscamente no cobertor se enrolou.

Melquíades — (levantando-se rapidamente e atirando o cobertor à cara dos companheiros e discípulos) Nem todos os momentos podem ser agradáveis: deitei–me; procurou alguém por ventura por mim?... Estava em um tão agradável sonho... Quando de repente senti um movimento em meu cérebro que assaz me contristou. Levantem-se, rapazes! Vocês são a Quinta-essência dos preguiçosos!

Todos — (levantando-se) Que é isto, Melquíades!? Estás desassisado?

Melquíades — Ó diabo, pois vocês que faziam assentados!? (Gritando.) Vamos! São horas de escola! Caminhem, saiam! Saiam! (Os outros levantam-se, e ele os faz sair rapidamente caindo livros de uns; outros de chinelos; enfim, é uma desordem completa entre os quatro; como se um incêndio, ou alguma cobra venenosa se visse no quarto.)

(E assim parece dever terminar este Ato — com as seguintes palavras de Melquíades) Se eu não espanto estes madraços — nem para o chá ganhariam hoje!

Porto Alegre, Junho 16 de 1866.

FIM

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará
www.nead.unama.br

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Gil Vicente (Auto da Feira)


A obra seguinte é chamada Auto da Feira. Foi representada ao mui excelente Príncipe El Rei Dom João, o terceiro em Portugal deste nome, na sua nobre e sempre leal cidade de Lisboa, às matinas do Natal, na era do Senhor de 1527.

Figuras:

Mercúrio, Tempo, Serafim, Diabo, Roma, Amâncio Vaz, Diniz Lourenço, Branca Anes, Marta Dias, Justina, Leonarda, Teodora, Moneca, Giralda, Juliana, Tesaura, Merenciana, Doroteia, Gilberto, Nabor, Dionísio, Vicente, Mateus.

Entra primeiramente Mercúrio, e posto em seu assento, diz:

MERCÚRIO

Pera que me conheçais, e entendais meus partidos, todos quantos aqui estais afinai bem os sentidos, mais que nunca, muito mais. Eu sou estrela do céu, e depois vos direi qual, e quem me cá descendeu e a quê, e todo o al que me a mi aconteceu.

E porque a astronomia anda agora mui maneira, mal sabida e lisonjeira, eu, à honra deste dia, vos direi a verdadeira. Muitos presumem saber as operações dos céus, e que morte hão-de morrer, e o que há-de acontecer aos anjos e a Deus,e ao mundo e ao diabo. E que o sabem têm por fé; e eles todos em cabo terão um cão polo rabo, e não sabem cujo é. E cada um sabe o que monta nas estrelas que olhou; e ao moço que mandou, não lhe sabe tomar conta d' um vintém que lh' entregou.

Porém, quero-vos pregar, sem mentiras nem cautelas, o que per curso d' estrelas se poderá adivinhar, pois no céu nasci com elas. E se Francisco de Melo, que sabe ciência avondo, diz que o céu é redondo, e o sol sobre amarelo; diz verdade, não lh' o escondo.

Que se o céu fora quadrado, não fora redondo, senhor. E se o sol fora azulado, d' azul fora a sua cor e não fora assi dourado. E porque está governado per seus cursos naturais, neste mundo onde morais nenhum homem aleijado, se for manco e corcovado, não corre por isso mais.

E assi os corpos celestes vos trazem tão compassados, que todos quantos nascestes, se nascestes e crescestes, primeiro fostes gerados. E que fazem os poderes dos sinos resplandecentes? Que fazem que todalas gentes ou são homens ou mulheres, ou crianças inocentes.

E porque Saturno a nenhum influi vida contina, a morte de cada um é aquela de que se fina, e não d' outro mal nenhum. Outrossim o terremoto, que às vezes causa perigo, faz fazer ao morto voto de não bulir mais consigo, cantá de seu próprio moto.

E a claridade encendida dos raios piramidais causa sempre nesta vida que quando a vista é perdida, os olhos são por demais.

E que mais quereis saber desses temporais e disso, senão que, se quer chover, está o céu pera isso, e a terra pera a receber? a lüa tem este jeito: vê que clérigos e frades já não têm ao Céu respeito, mingua-lhes as santidades, e cresce-lhes o proveito.

Et quantum ad stella Mars, speculum belli, et Venus, Regina musicae, secundum Joanes Monteregio:

Mars, planeta dos soldados, faz nas guerras conteúdas, em que os reis são ocupados, que morrem de homens barbados mais que mulheres barbudas. E quando Vénus declina, e retrogada em seu cargo, não se paga o desembargo no dia que s' ele assina mas antes por tempo largo.

Et quantum ad Taurus et Aries, Cancer Capricornius positus in firmamento coeli:

E quanto ao Touro e Carneiro, são tão maus d' haver agora que quando os põe no madeiro, chama o povo ao carniceiro Senhor, c' os barretes fora. Depois do povo agravado, que já mais fazer não pode, invoca o signo do Bode, Capricórnio chamado, porque Libra não lhe acode.

E se este não hás tomado, nem Touro, Carneiro assi, vai-te ao sino do Pescado, chamado Piscis em latim, e serás remedeado: e se Piscis não tem ensejo, porque pode não no haver, vai-te ao signo do Cranguejo, Signum Cancer, Ribatejo, que está ali a quem no quer.

Sequuntur mirabilia Jupiter Rex regum, Dominus dominantium.

Júpiter, rei das estrelas, deus das pedras preciosas, mui mais precioso qu' elas pintor de todalas rosas, rosa mais fermosa delas; é tão alto seu reinado , influência e senhoria, que faz percurso ordenado que tanto vale um cruzado de noite como de dia.

E faz que üa nau veleira mui forte, muito segura, que inda que o mar não queira, e seja de cedro a madeira, não preste sem pregadura.

Et quantum ad duodecim domus Zodiacus, sequitur declaratio operationem suam.

Ao Zodíaco acharão doze moradas palhaças, onde os sinos estão no Inverno e no Verão, dando a Deus infindas graças. Escutai bem, não durmais, sabereis por conjeituras que os corpos celestiais não são menos nem são mais que suas mesmas granduras.

E os que se desvelaram, se das estrelas souberam, foi que a estrela que olharam, está onde a puseram, e faz o que lhe mandaram. E cuidam que Ursa Maior, Ursa Menor e o Dragão, e Lepus, que têm paixão, porque um corregedor manda enforcar um ladrão.

Não, porque as constelações não alcançam mais poderes, que fazer que os ladrões sejam filhos de mulheres, e os mesmos pais varões. E aqui quero acabar. E pois vos disse atéqui o que se pode alcançar, quero-vos dizer de mi, e o que venho buscar.

Eu são Mercúrio, senhor de muitas sabedorias, e das moedas reitor, e deus das mercadorias: nestas tenho meu vigor. Todos tratos e contratos, valias, preços, avenças, carestias e baratos, ministro suas pertenças, até às compras dos sapatos.

E porquanto nunca vi na corte de Portugal feira em dia de Natal, ordeno üa feira aqui pera todos em geral. Faço mercador-mor ao Tempo, que aqui vem; e assi o hei por bem. E não falte comprador. Porque o tempo tudo tem.

Entra o Tempo, e arma üa tenda com muitas cousas e diz:

TEMPO

Em nome daquele que rege nas praças d'Anvers e Medina as feiras que têm, começa-se a feira chamada das Graças, à honra da Virgem parida em Belém. Quem quiser feirar, venha trocar, qu' eu não hei-de vender; todas virtudes qu' houverem mister nesta minha tenda as podem achar, a troco de cousas que hão-de trazer.

Todos remédios, especialmente contra fortunas ou adversidades aqui se vendem na tenda presente; conselhos maduros de sãs qualidades aqui se acharão. A mercadorias d' amor a rezão justiça e verdade, a paz desejada, porque a Cristandade é toda gastada só em serviço da opinião.

Aqui achareis o temor de Deus, que é já perdido em todos Estados; aqui achareis as chaves dos Céus, muito bem guarnecidas em cordões dourados. E mais achareis soma de contas, todas de contar quão poucos e poucos haveis de lograr as feiras mundanas; e mais contareis as contas sem conto qu' estão por contar. E porque as virtudes, Senhor Deus, que digo, se foram perdendo de dias em dias, com a vontade que deste ó Messias memoria o teu Anjo que ande comigo, Senhor, porque temo ser esta feira de maus compradores, porque agora os mais sabedores fazem as compras na feira do Demo, e os mesmos Diabos são seus corretores.

Entra um Serafim enviado por Deus a petição do Tempo, e diz:

SERAFIM 
À feira, a feira igrejas, mosteiros, pastores das almas, Papas adormidos; comprai aqui panos, mudai os vestidos, buscai as samarras dos outros primeiros, os antecessores. Feirai o carão que trazeis dourado; ó presidentes do crucificado, lembrai-vos da vida dos santos pastores do tempo passado.

Ó Príncipes altos, império facundo, guardai-vos da ira do Senhor dos Céus; comprai grande soma do temor de Deus na feira da Virgem, Senhora do Mundo, exemplo da paz, pastora dos anjos, luz das estrelas. À feira da Virgem, donas e donzelas, porque este mercador sabei que aqui traz as cousas mais belas.

Entra um Diabo com üa tendinha adiante de si, como bofalinheiro, e diz:

DIABO Eu bem me posso gavar, e cada vez que quiser, que na feira onde eu entrar sempre tenho que vender, e acho quem me comprar. E mais, vendo muito bem, porque sei bem o que entendo; e de tudo quanto vendo não pago siza a ninguém por tratos que ande fazendo.

Quero-me fazer à vela nesta santa feira nova. Verei os que vêm a ela, e mais verei quem m' estorva de ser eu o maior dela. TEMPO És tu também mercador, que a tal feira t' ofereces? DIABO Eu não sei se me conheces. TEMPO Falando com salvanor, tu Diabo me pareces.

DIABO Falando com salvos rabos inda que me tens por vil, acharás homens cem mil honrados, que são Diabos, (que eu não tenho nem ceitil) e bem honrados te digo, e homens de muita renda, que têm dívida comigo. Pois não me tolhas a venda, que não hei nada contigo.

Tempo ao Serafim

TEMPO Senhor, em toda maneira acudi a este ladrão, que há-de danar a feira.

DIABO Ladrão? Pois haj' eu perdão se vos meter em canseira. Olhai cá, Anjo de bem, eu, como cousa perdida, nunca me tolhe ninguém que não ganhe minha vida, como quem vida não tem.

Vendo dessa marmelada, e às vezes grãos torrados, isto não releva nada; e em todolos mercados entra a minha quintalada. SERAFIM Muito bem sabemos nós que vendes tu cousas vis. DIABO I há de homens ruins mais mil vezes que não bôs, como vós mui bem sentis.

E estes hão-de comprar disto que trago a vender, que são artes de enganar, e cousas pera esquecer o que deviam lembrar. Que o sages mercador há-de levar ao mercado o que lhe compram melhor; porque a ruim comprador levar-lhe ruim borcado.

E mais as boas pessoas são todas pobres a eito; e eu por este respeito nunca trato em cousas boas, porque não trazem proveito. Toda a glória de viver das gentes é ter dinheiro, e quem muito quiser ter cumpre-lhe de ser primeiro o mais ruim que puder.

E pois são desta maneira os contratos dos mortais, não me lanceis vós da feira onde eu hei-de vender mais que todos à derradeira. SERAFIM Venderás muito perigo, que tens nas trevas escuras. DIABO Eu vendo perfumaduras, que, pondo-as no embigo, se salvam as criaturas.

Às vezes vendo virotes, e trago d' Andaluzia naipes com que os sacerdotes arreneguem cada dia, e joguem até os pelotes. SERAFIM Não venderás tu aqui isso, que esta feira é dos céus: vai lá vender ao abisso, logo, da parte de Deus! DIABO Senhor, apelo eu disso.

S' eu fosse tão mau rapaz que fizesse força a alguém, era isso muito bem; mas cada um veja o que faz, porque eu não forço ninguém. Se me vem comprar qualquer clérigo, ou leigo, ou frade falsas manhas de viver, muito por sua vontade; senhor, que lh' hei-de fazer?

E se o que quer bispar há mister hipocrisia e com ela quer caçar, tendo eu tanta em perfia, porque lh' a hei-de negar? E se üa doce freira vem à feira por comprar um inguento, com que voe do convento, senhor, inda que eu não queira, lh' hei-de dar aviamento.

MERCÚRIO Alto, Tempo, aparelhar, porque Roma vem à feira. DIABO Quero-me eu concertar, porque lhe sei a maneira de seu vender e comprar.

Entra Roma, cantando.

ROMA «Sobre mi armavam guerra; «ver quero eu quem a mi leva.

«Três amigos que eu havia, «sobre mi armam porfia; «ver quero eu quem a mi leva».

Fala:

Vejamos se nesta feira, que Mercúrio aqui faz, acharei a vender paz, que me livre da canseira em que a fortuna me traz. Se os meus me desbaratam, o meu socorro onde está Se os Cristãos mesmos me matam, a vida quem m' a dará, que todos me desacatam?

Pois s' eu aqui não achar a paz firme e de verdade na santa feira a comprar, cant' a mi dá-me a vontade que mourisco hei-de falar. DIABO Senhora, se vos prouver, eu vos darei bom recado. ROMA Não pareces tu azado pera trazer a vender o que eu trago no cuidado.

Não julgueis vós pola cor, porque em al vai o engano; cá dizem que sob mau pano está o bom bebedor; nem vós digais mal do ano.

Eu venho à feira direita comprar paz, verdade e fé. DIABO A verdade pera quê? Cousa que não aproveita, e aborrece, pera que é? Não trazeis bons fundamentos pera o que haveis mister; e a segundo são os tempos, assim hão-de ser os tentos, pera saberdes viver.

E pois agora à verdade chamam Maria Peçonha, e parvoíce à vergonha, e aviso à ruindade, peitai a quem vo-la ponha, a ruindade digo eu: e aconselho-vos mui bem, porque quem bondade tem nunca o mundo será seu, e mil canseiras lhe vem.

Vender-vos-ei nesta feira mentiras vinta três mil, todas de nova maneira, cada üa tão subtil, que não vivais em canseira: mentiras pera senhores, mentiras pera senhoras, mentiras pera os amores, mentiras, que a todas as horas vos nasçam delas favores.

E como formos avindos nos preços disto que digo, vender-vos-ei como amigo muitos enganos infindos, que aqui trago comigo. ROMA Tudo isso tu vendias, e tudo isso feirei tanto, que inda venderei, e outras sujas mercancias, que por meu mal te comprei.

Porque a troco do amor de Deus, te comprei mentira, e a troco do temor que tinha da sua ira, me deste o seu desamor; e a troco da fama minha e santas prosperidades, me deste mil torpidades; e quantas virtudes tinha te troquei polas maldades.

E pois já sei o teu jeito, quero ir ver que vai cá. DIABO As cousas que vendem lá são de bem pouco proveito a quem quer que as comprará.

Vai-se Roma ao Tempo e Mercúrio e diz Roma:

ROMA Tão honrados mercadores não podem leixar de ter cousas de grandes primores; e quant' eu houver mister deveis vós de ter, senhores. SERAFIM Sinal é de boa feira virem a ela as donas tais, e pois vós sois a primeira, queremos ver que feirais segundo vossa maneira.

Cá, se vós a paz quereis senhora, sereis servida, e logo a levareis a troco de santa vida; mas não sei se a trazeis. Porque, senhora eu me fundo que quem tem guerra com Deus, não pode ter paz c ' o mundo ; porque tudo vem dos céus, daquele poder profundo.

ROMA A troco das estações não fareis algum partido, e a troco dos perdões, que é tesouro concedido pera quaisquer remissões? Oh, vendei-me a paz dos céus, pois tenho o poder na terra. SERAFIM Senhora, a quem Deus dá guerra, grande guerra faz a Deus, que é certo que Deus não erra.

Vede vós que lhe fazeis, vede como o estimais, vede bem se o temeis ; atentai com quem lidais, que temo que caireis. ROMA Assi que a paz não se dá a troco de jubileus? MERCÚRIO Ó Roma, sempre vi lá que matas pecados cá, e leixas viver os teus.

Tu não te corras de mi; mas com teu poder facundo assolves a todo o mundo, e não te lembras de ti, nem vês que te vás ao fundo. ROMA Ó Mercúrio, valei-me ora, que vejo maus aparelhos. MERCÚRIO Dá-lhe, Tempo, a essa senhora o cofre de meus conselhos: e podes-te ir muit' embora.

Um espelho aí acharás, que foi da Virgem Sagrada, co' ele te toucarás porque vives mal toucada, e não sentes como estás: e acharás a maneira como emendes a vida: e não digas mal da feira; porque tu serás perdida, se não mudas a carreira.

Não culpes aos reis do mundo, que tudo te vem de cima, pelo que fazes cá em fundo: que, ofendendo a causa prima, se resulta o mal segundo. E também o digo a vós e a qualquer meu amigo, quem não quer guerra consigo: tenha sempre paz com Deus, e não temerá perigo.

DIABO Prepósito Frei Sueiro, diz lá o exemplo velho: dá-me tu a mi dinheiro, e dá ao demo o conselho.

Depois de ida Roma, entram dous lavradores, um per nome Amâncio Vaz e outro Diniz Lourenço, e diz Amâncio Vaz:

AMÂNCIO VAZ Compadre, vás tu à feira? DINIZ LOURENÇO À feira, compadre. AMÂNCIO VAZ Assi, ora vamos eu e ti ó longo desta ribeira. DINIZ LOURENÇO Bofá, vamos. AMÂNCIO VAZ Folgo bem de te vir aqui achar. DINIZ LOURENÇO Vás tu lá buscar alguém, ou esperas de comprar?

AMÂNCIO VAZ Isso te quero contar, e iremos patorneando, e er também aguardando polas moças do lugar. Compadre, enha mulher é muito destemperada, e agora, se Deus quiser, faço conta de a vender, e dá-la-ei por quase nada.

Qu'eu quando casei com ela diziam-me, «Hétega é». E eu cuidei pola abofé que mais cedo morresse ela, e ela anda inda em pé. E porque era hétega assim foi o que m' a mim danou: avonda qu'ela engordou e fez-me hétego a mim.

DINIZ LOURENÇO Tens boa mulher de teu: não sei que tu hás, amigo. AMÂNCIO VAZ S'ela casara contigo renegaras tu com' eu e dixeras o que eu digo. DINIZ LOURENÇO Pois, compadre, cant'à minha, é tão mole e desatada, que nunca dá peneirada que não derrame a farinha.

E não põe cousa a guardar, que a tope quanda a cata; e por mais que homem se mata, de birra não quer falar. Trás d' üa pulga andará três dias, e oito, e dez, sem lhe lembrar o que fez, nem tão pouco o que fará.

Pera que t'hei-de falar? Quando ontem cheguei do mato pôs üa enguia a assar, e crua a leixou levar, por não dizer sape a um gato. Quant'a mansa, mansa é ela; dei-m'ê logo conta disso. AMÂNCIO VAZ Juro-t'eu que mais vale isso cinquenta vezes qu'ela.

A minha te digo eu que se a visses assanhada, parece demoninhada, ante São Bertolameu. DINIZ LOURENÇO Já sequer terá esp'rito: mas renega da mulher que ó tempo do mister não é cabra nem cabrito.

AMÂNCIO VAZ A minha tinh'eu em guarda pera bem da minha prol, cuidando que era ourinol, e tornou-se-me bombarda. Folga tu que ess'outra tenhas, porque a minha é tal perigo, que por nada que lhe digo logo me salta nas grenhas.

Então tanto punho seco me chimpa nestes focinhos; eu chamo polos vizinhos, e ela nego dar-me em xeco. DINIZ LOURENÇO Isso é de coraçuda; não cures de a vender, que s'alguém te mal fizer, já sequer tens quem te acuda.

Mas a minha é tão cortês, que se viesse ora à mão que m'espancasse um rascão, não diria, «Mal fazês». Mas antes s' assentaria a olhar como eu bradava. Todavia a mulher brava é, compadre, a qu'eu queria.

AMÂNCIO VAZ Pardeus! Tanto me farás que feire a minha contigo. DINIZ LOURENÇO Se queres feirar comigo, vejamos que me darás. AMÂNCIO VAZ Mas antes m' hás-de tornar pois te dou mulher tão forte, que te castigue de sorte que não ouses de falar, nem no mato nem na corte.

Outro bem terás com ela: quando vieres da arada, comerás sardinha assada, porqu ' ela jenta a panela. Então geme, pardeus, si, diz que lhe dói a moleira. DINIZ LOURENÇO Eu faria per maneira que esperasse ela por mi. AMÂNCIO VAZ Que lh'havias de fazer?

DINIZ LOURENÇO Amâncio Vaz, eu o sei bem. AMÂNCIO VAZ Diniz Lourenço, ei-las cá vêm! Vamo-nos nós esconder, vejamos que vêm catar, qu'elas ambas vêm à feira. Mete-te nessa silveira, qu'eu daqui hei-d' espreitar.

Vêm Branca Anes a brava, e Marta Dias a mansa, e vem dizendo a brava:

BRANCA ANES Pois casei má hora, e nela, e com tal marido, prima, comprarei cá üa gamela, para o ter debaixo dela, e um grão penedo em cima. Porque vai-se-me às figueiras, e come verde e maduro ; e quantas uvas penduro jeita nas gorgomileiras: parece negro monturo.

Vai-se-m'às ameixieiras antes que sejam maduras, ele quebra as cerejeiras, ele vindima as parreiras, e não sei que faz das uvas. Ele não vai à lavrada, ele todo o dia come, ele toda a noite dorme, ele não faz nunca nada, e sempre me diz que há fome.

Jesu! Jesu! Posso-te dizer e jurar e tresjurar, e provar e reprovar, e andar e revolver, qu' é melhor pera beber, que não pera maridar. O demo que o fez marido, que assim seco como é beberá a torre da Sé! Então arma um arruído assi debaixo do pé.

MARTA DIAS Pois bom homem parece ele. DINIZ LOURENÇO Aquela é a minha frouxa. MARTA DIAS Deu-t'ele a fraldinha roxa? BRANCA ANES Melhor lh'esfole eu a pele. Que homem há i da puxa. Ó diabo que o eu dou, que o leve em fatiota, e o ladrão que m'o gabou; e o frade que me casou inda o veja na picota.

E rogo à Virgem da Estrela, e a santa Gerjalem, e ós choros de Madanela e à asninha de Belém, que o veja ir à vela pera donde nunca vem. DINIZ LOURENÇO Compadre, no mais sofrer: sai de lá desse silvado. AMÂNCIO VAZ Pera eu ser arrepelado. Não havi'eu mais mister.

DINIZ LOURENÇO E não n'hás tu de vender? AMÂNCIO VAZ Tu dizes que a qués feirar. DINIZ LOURENÇO Não qu'ela se me tomar leixar-m'á quando quiser. Mas demo-las à má estreia; e voto que nos tornemos, e er depois tornaremos com as cachopas d'aldeia: entonces concertaremos.

AMÂNCIO VAZ Isso me parece a rni muito melhor que eu ir lá. Oh, que couces que me dá, quando me colhe sob si! DINIZ LOURENÇO Cant' àquela si dará. DIABO Mulheres, vós que quereis? Nesta feira que buscais? MARTA DIAS Queremo-la ver, no mais. Pera ver em que tratais, e as cousas que vendeis.

Tendes vós aqui anéis? DIABO Quejandos? De que feição? MARTA DIAS D'uns que fazem de latão. DIABO Pera as mãos, ou pera os pés? MARTA DIAS Não -- Jesu, nome de Jesu, Deus e homem verdadeiro!

Foge o Diabo e Marta Dias diz:

MARTA DIAS Nunca eu vi bofalinheiro tão prestes tomar o mu. Branc'Anes mana, crê tu que, como Jesu é Jesu, era este o Diabo inteiro.

BRANCA ANES Não é ele pau de boa lenha, nem lenha de bom madeiro. MARTA DIAS Bofá, nunc'ele cá venha. BRANCA ANES Viagem de Jão Moleiro, que foi pola cal d'azenha. MARTA DIAS Pasmada estou eu de Deus fazer o Demo marchante! Mana, daqui por diante não caminhemos nós sós.

BRANCA ANES S'eu soubera quem ele era, fizera-lhe bom partido: que me levara o marido, e quanto tenho lhe dera, e o toucado e o vestido. Inda que mais não levara desta feira, em extremo. Me alegrara e descansara, se o vira levar o Demo, e que nunca mais tornara.

Porque, inda que era Diabo, fizera serviço a Deus, e a mi mercê em cabo; e viera-me dos céus, como vem a frol ao nabo.

Vão-se ao Tempo e diz Marta Dias:

MARTA DIAS Dizei, senhores de bem, nesta tenda, que vendeis? SERAFIM Esta tenda tudo tem; vede vós o que quereis, que tudo se fará bem. Consciência quereis comprar, de que vistais vossa alma?

MARTA DIAS Tendes sombreiros de palma muito bons pera segar, e tapados pera a calma? SERAFIM Consciência digo eu, que vos leve ao Paraíso. BRANCA ANES Não sabemos nós qu'é isso: dai-o ó decho por seu, que já não é tempo disso.

MARTA DIAS Tendes vós aqui burel, do pardo de lã meirinha? BRANCA ANES Eu queria üa pucarinha pequenina pera mel. SERAFIM Esta feira é chamada das virtudes em seus tratos. MARTA DIAS Das virtudes! E há aqui patos? BRANCA ANES Quereis feirar a cevada quatro pares de sapatos? SERAFIM Oh, piedoso Deus eterno! Não comprareis pera os céus um pouco d'amor de Deus que vos livre do Inferno? BRANCA ANES Isso é falar per pincéus.

SERAFIM Esta feira não se fez para as cousas que quereis. BRANCA ANES Pois cant' a essas que vendeis, daqui afirmo outra vez que nunca as vendereis. Porque neste sigro em fundo todos somos negligentes: foi ar que deu polas gentes, foi ar que deu polo mundo, de que as almas são doentes.

E se hão-de correger quando for todo danado: muito cedo se há-de ver; que já ele não pode ser mais torto nem aleijado. Vamo-nos, Marta, à carreira, que as moças do lugar virão cá fazer a feira, que estes não sabem ganhar, nem têm cousa que homem queira.

MARTA DIAS Eu não vejo aqui cantar, nem gaita, nem tamboril, e outros folgares mil, que nas feiras soem d'estar: e mais feira de Natal, e mais de Nossa Senhora, e estar todo Portugal. BRANCA ALVES S'eu soubera que era tal, não estivera eu cá agora.

Vêm à feira nove moças dos montes, e três mancebos, todas com cestos nas cabeças, cobertos, cantando. E, como chegam, se assentam por ordem a vender; e diz-lhe o Serafim:

SERAFIM Pois vindes vender à feira, sabei que é feira dos céus; por tal, vendei de maneira que não ofendais a Deus, roubando a gente estrangeira. TESAURA Responde-lhe, Leonarda, tu Justina, ou Juliana. JULIANA Mas responda-lhe Giralda, Tesaura, ou Merenciana.

MERENCIANA Responde-lhe, Teodora, porque creio que a ti creia. TESAURA Responda-lhe Doroteia. pois que mora, junto c'o Juiz d'aldeia. DOROTEIA Moneca responderá que falou já com senhor. MONECA Responde-lhe tu, Nabor, contigo s'entenderá.

Ou Denísio, ou Gilberto, qualquer de vós outros três e não vos embaraceis ou torveis, porque é certo que bem vos entendereis. GILBERTO Estas cachopas não vêm à feira nego a folgar, e trazem de merendar nestes cestos que i têm.

Mas pois quanto ao que entendo, sois, samica, anjo de Deus; quando partistes dos céus, que ficava Ele fazendo? SERAFIM Ficava vendo o seu gado. GILBERTO Santa Maria! Gado há lá? Oh, Jesu! como o terá o Senhor gordo e guardado!

E há lá boas ladeiras, como na serra d'Estrela? SERAFIM Si. GILBERTO E a Virgem que faz ela? SERAFIM A Virgem olha as cordeiras, e as cordeiras a ela. GILBERTO E os Santos de saúde todos, a Deus louvores? SERAFIM Si. GILBERTO E que léguas haverá daqui à porta do Paraíso, onde São Pedro está?

NABOR Lá vêm ó redor das vinhas compradores a comprar samica ovos e galinhas. DOROTEIA Não lhe hei-de vender as minhas, que as trago pera dar.

Vêm dous compradores, um per nome Vicente e outro Mateus, e diz Mateus a Justina:

MATEUS Vós rosa do amarelo, mana, tendes i queijadas. JUSTINA Tenho vosso avô marmelo! Conhecei-lo? MATEUS Aqui estão emborilhadas. JUSTINA Estade má ora quedo, pela vossa negra vida. MATEUS Menina, não hajais medo: vós sois mais engrandecida que Branca de Figueiredo.

Se trazeis ovos, meus olhos, não m'os vendais a ninguém. JUSTINA Andar em burra e ter bem: ouvide ora o rasca-piolhos (azeite no micho!) em que vem! VICENTE Minha vida, Leonarda, traz caça pera vender? LEONARDA Vossa vida negra e parda não lhe abastará comer da vaca com da mostarda?

VICENTE E a mesa de meu senhor irá sem ave de pena? LEONARDA Quem? E vós sois comprador? Pois nem grande nem pequena não matou o caçador. VICENTE Matais-me vós logo bem com dous olhinhos qu'eu digo. LEONARDA Mais vos mata a vós o trigo, porque não vale a vintém, e traz mau micho consigo.

VICENTE Vós fazeis de mi rascão. LEONARDA Pação vos fizestes vós; porém bem nos vimos nós guardar bois no Alqueidão. MATEUS Que vindes vender à feira, Teodora, alma minha? minha alma, minha canseira? Trazei algüa galinha? TEODORA São vossa alma galinheira.

Que má ora cá viestes pera quem vos pôs no paço! MATEUS Senhora, eu vos faço, que vos agastais tão prestes? Dizei-me vós, Teodora, trazeis vós tal cousa e tal deste jeito, muito embora? Mas lá dessoutro metal não falam à lavradora.

VICENTE Senhora Moneca, trazeis algum cabrito recente? MONECA Não bofé, Senhor Vicente: quisera ora trazer três, de que vós foreis contente. VICENTE Juro à Santa Cruz de palha qu' hei-de ver o que aqui está. MONECA Não revolvais aramá, que não trago nemigalha.

VICENTE Não me façais descortês, nem queirais ser tão garrida. MONECA Pola vossa negra vida! Olhade como é cortês ! Oh, que lhe saia má saída. MATEUS Giralda, eu achar-vos-ei dous pares de passarinhos? GIRALDA Irei por eles aos ninhos, entonces os venderei. Comereis vós estorninhos? MATEUS Respondeis como mulher muito de sua vontade. GIRALDA Pois digo-vo-la verdade: pássaros hei-de vender? Olhai aquela piedade!

VICENTE Senhora minha Juliana peço-vos que me faleis discreta palenciana, e dizei-me que vendeis. JULIANA Vendo favas de Viana. VICENTE Tendes alguns laparinhos? JULIANA Sim, de porca. VICENTE Nem coelhos? JULIANA Quereis comprar dous francelhos, pera caçardes ratinhos? JULIANA Quero, polos Evangelhos!

MATEUS Vós, Tesaura, minha estrela, não viríeis cá em vão. TESAURA Pois si, vossa estrela vos er'ela: como aquilo é de rascão! MATEUS Mas como isso é de donzela! Porém vá já como vai, e casemo-nos, senhora. TESAURA Pois casai co'ele, casai, Casar, ma ora, meu ai, casar, má hora.

MATEUS Porém trazeis algum pato? TESAURA E quanto dareis por ele? Hui, e ele revolve o fato: olho mau se meta nele. MATEUS Não trazeis vós o qu'eu cato. VICENTE Merenciana deve ter neste cesto algum cabrito. Não m'haveis de revolver MERENCIANA senão, pardeus, que dê grito tamanho, que haveis de ver.

VICENTE Eu hei-de ver que trazeis. MERENCIANA se vós no cesto bulis. . . VICENTE Senhora, que me fareis? MERENCIANA Um aqui-d'el-rei, ouvis? Não sejais vós descortês. VICENTE Não quero senão amores, pois vosso, senhora, sou. MERENCIANA Amores de vosso avô, o da ilha dos Açores. Andar aramá vós só.

MATEUS Vamo-nos daqui, Vicente. VICENTE Bofá vamos. MATEUS Nunca vi tal feira. VICENTE Vamos comprar à Ribeira, que anda lá cousa mais quente.

Vão-se os compradores, e diz o Serafim às moças:

SERAFIM Vós outras quereis comprar das virtudes? Senhor, não. SERAFIM Saibamos por que rezão. DOROTEIA Porque no nosso lugar não dão por virtudes pão. Nem casar não vejo eu por virtudes a ninguém. Quem tiver muito de seu, e tão bons olhos com'eu sem isso casará bem.

SERAFIM Pois porque viestes ora cansar à feira de pé?

TEODORA Porque nos dizem que é feira de Nossa Senhora: e vedes aqui porquê. E as graças que dizeis que tendes aqui na praça, se vós outros as vendeis, a Virgem as dá de graça aos bons, como sabeis.

E porque a graça e alegria, a madre da consolação deu ao mundo neste dia, nós vimos com devação a cantar-lhe úa folia. E pois que já descansámos assi em boa maneira, moças, assi como estamos, demos fim a esta feira, primeiro que nos partamos.

Alevantam-se todas, e ordenadas em folia cantaram a cantiga seguinte, com que se despediram.

Cantiga.

I CORO «Blanca estais colorada, «Virgem sagrada. «Em Belém vila do amor «da rosa nasceu a flor: «Virgem sagrada.»

II CORO «Em Belém vila do amor «nasceu a rosa do rosal: «Virgem sagrada.»

I CORO «Da rosa nasceu a flor: «pera nosso Salvador: «Virgem sagrada.»

II CORO «Nasceu a rosa do rosal, «Deus e homem natural: «Virgem sagrada.»

Gratias agamus Domino Deo nostro

Fonte: 
http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/gil-vicente/auto-da-feira.php