domingo, 3 de maio de 2009

José Eduardo Calcinoni (Pode ser que seja (música))

Mais um dia/uma palavra
Um sol/um só
Ao meio dia/a noite inteira
Um laço/um nó
Uma palavra/uma só boca
Uma lição que sabe decor

E assim será
quem sabe seja?
Um pessoa
ou todos nós

Uma descida/uma bebida
Meia vida/melhor
No deserto/no mar
Palavra simples/código-mor
Numa estrofe/da poesia
Na caída/do sol

Na encruzilhada/na restinga
Há muitas milhas/há muitos nós
Numa rima/na melodia
Na multidão/a sós
Num precipício/numa planície
Na carne viva/no pó

E assim será
quem sabe seja?
Um pessoa
ou todos nós

Aurelio Buarque de Holanda (O Chapéu de meu Pai)

Pintura de René Magritte
A Arnon de Melo.

A lívida luz dos círios é agora mais triste, à claridade da manhã nascente que vai aos poucos invadindo a sala. Da cadeira onde me acho sentado, na saleta de espera, vejo as mãos de meu Pai cruzadas sobre o peito. O ventre, timpanoso, sobreleva as bordas do caixão. Vem de lá dentro um choro abafado. Alguns dormem, exaustos: ligeira trégua ao sofrimento. Ardem os olhos, da noite sem sono e do muito que chorei. Tenho a cabeça reclinada no encosto da poltrona, numa postura de aparente sossego, e chego por momentos a enganar-me, a pensar que estou sereno. Na janela que daqui avisto, a cortina preta drapeja manso, agitada pelo brando vento do amanhecer. Do porta-chapéus, a um canto da parede, pende um chapéu, como coisa abandonada. É o chapéu de meu Pai. É um pedaço daquele que se encontra ali perto estendido, morto, as largas mãos cruzadas sobre o peito, e o rosto, em vida tão vermelho, agora de uma brancura macilenta. É alguma coisa dele, que a morte não destruiu.

Meus olhos se cravam no chapéu. Está no cabide tal como meu Pai o usava - quebrado para a frente - o chapéu marrom, comum, de abas debruadas, o chapéu de meu Pai. Por menos que deseje pensar nisto, meu Pai começa a emergir, vivo, bulindo, desse chapéu, que era seu. Vendo de lado o chapéu, estou a ver o dono de perfil, o nariz breve e saliente, o rosto sangüíneo, um tanto cavado nos últimos tempos, a costeleta curta, uma parte do bigode, ruivo e ralo, de que ele nunca abriu mão.

O chapéu acompanha meu Pai nos seus movimentos, sombreando-lhe um tanto a face. Está no seu verdadeiro lugar, a cabeça de meu Pai. Sim, está. Lá vem o velho chegando para casa, nos fins de tarde, cansado, já doente. Lá vem. É ele: o chapéu marrom, comum, desabado na frente, aquele jeito de andar, meio curvado, lento, da velhice. Chega. Empurra um lado da veneziana, puxa o ferrolho, entra. Põe o chapéu no cabide, ali mesmo onde o vejo agora, bem junto do espelho do móvel. Algumas vezes, olha-se ao espelho, cofia rápido o bigode, e vai entrando. Na sala de jantar, senta-se e com minha Mãe começa a falar das eternas coisas do dia-a-dia. Mamãe conta dos incidentes domésticos: falta de água; o leite que talhou, aborrecimentos com a empregada, "uma grandessíssima respondona". Meu Pai se queixa dos negócios, que vão de mal a pior - "uma crise pavorosa, o comércio um paradeiro medonho, e o governo é impostos, e mais impostos um fim de mundo". Mamãe é mais calma: - "Ora homem! Vamos vivendo. Os meninos trabalham, vão ajudando. Já estamos velhos. Paciência." Ele dirá que trabalhou a vida toda, e era para ter uma velhice descansada.

O chapéu fica sozinho, até o dia seguinte, pois geralmente meu Pai não sai de casa à noite de uns tempos para cá. A gente olha o porta-chapéu e adquire a certeza de que o dono da casa não saiu. Não é só porque vê o chapéu: é porque vê a pessoa. Se nos descuidarmos, diremos, apontando o chapéu: - "Olhe Seu Manuel ali."

Pela manhã - assim, de dia - o chapéu é posto com o maior cuidado. Meu Pai se mira demoradamente ao espelho. Está bem barbeado. Faz a barba em casa, à navalha - nada de gilete. O rosto passa. Algum tanto chupado, uns pés-de-galinha perto dos olhos (procura estirar a pele com os dedos), o par de rugas muito fundas descendo-lhe das abas do nariz ao canto dos lábios... Mas passa. O diabo é a falta dos dentes. Breve mandará fazer uma chapa dupla. Tolice: não irá andar rindo com as folhas. Demais, a expressão da fisionomia é relativamente boa. Corado, os cabelos em ondas, louros, raros fios brancos, apesar dos seus bons sessenta anos, e os olhos azuis, dum azul claro, herdados do avô português. Não é careca: só isto! E os óculos de aros de ouro são vistosos. - "Manuel!" Responde meio aborrecido: - "Que é?" Estava dando um jeito melhor ao quebrar do chapéu. - "Sim, eu trago, não se incomode, não." Ótimo assim.

Vai saindo. Agora o chapéu anda na mão, um pouco acima da cabeça: - "Bom dia, D, Hortênsia." A vizinha desmancha-se num sorriso. (Mamãe não gosta nada desses sorrisos da vizinha.) De onde em onde o chapéu sai por alguns segundos da cabeça de meu Pai, muito relacionado nesta rua. Por vezes o cumprimento é menos solene – apenas um toque de dedos na aba. E rua fora lá vai o chapéu, integrado em meu Pai - órgão do seu corpo, complemento essencial da sua cabeça, do seu todo.

Chegando à casa comercial, se não encontrar tudo em ordem, é possível que o chapéu venha a perder, por momentos, o ar composto, a dignidade habitual. Talvez meu Pai, zangado, tirando-o, bata com ele no balcão, como quem dá murros. Mas a raiva passará depressa, e meu Pai começará a compor o chapéu, a ajeitá-lo, a reimprimir-lhe a feição própria. Desamassa-o, sulca-o no centro da copa com as pontas dos dedos da mão espalmada, e, com o polegar e o indicador, concava-o lateralmente. Pronto.

Mais tarde, à hora do almoço, como está fechado o comércio, há pouca gente pela rua e meu Pai tem fome, botará o chapéu à vontade e caminhará menos lento que de costume. Entrará em casa suado; nos dias quentes, enxugando o rosto com o lenço: - "Diabo! isto é um calor insuportável. Não há quem agüente..." Tomará seu banho antes de almoçar, e falará como sempre, da crise pavorosa.

O pãozeiro deixa na porta a mochila, suspensa de um ferrolho. Vão surgindo os primeiros transeuntes - a gente humilde, que principia a trabalhar cedinho, quando os galos ainda cantam, para ganhar a vida e garantir a tranqüilidade dos mais felizes. Alguém chora lá dentro, choro convulso: é minha irmã.

Pendente do gancho, ali, abandonadamente inútil, o chapéu me recorda um despojo de guerreiro vencido. Serve-me de ponto de referência para a reconstituição, sem ordem cronológica, de um passado inteiro. O pranto me devolve à realidade do momento, e agora o chapéu me oferece de meu Pai uma imaginação muito próxima - do velho tirando-o quando entrava na casa de saúde, para nunca mais o usar. Estava pálido, então. O chapéu, acompanhando-o inseparável. O doente torcia-se a gemer; dilaceravam-no dores agudas: e de repente o chapéu saía do lugar e ia para a cabeça de meu Pai, que andava, a passeio ou a negócio, tirando-o para cumprimentar alguém, ao passar diante de uma igreja, ou cortejo fúnebre, ou por outro motivo. E, ao trazer do hospital o chapéu – há coisa de cinco ou seis horas, parecia-me trazer comigo um pouco (digo mal), uma parte essencial de meu Pai, que ficara no leito de morte, até ser conduzido num carro para casa, onde se acha, ali na sala, no caixão, com o rosto lívido, o ventre inchado, as mãos em cruz sobre o peito.

As velas ardem. Estão já no fim. A cera escorre em gotas pelo fuste e acumula-se ao pé dos castiçais. À cabeceira do morto, o crucifixo - um Cristo de metal por cuja presença consoladora Seu Sampaio da casa mortuária cobra caro, acrescentando não se tratar de aluguel, que "santo não se vende nem se aluga".

Cristo é filho de Deus, explicava meu Pai, ao falar-me do mistério da Santíssima Trindade, que eu não havia jeito de compreender bem. Meu Pai acreditava em Deus, na religião. Só não ia lá muito com os padres, tanto que, sabendo que morreria, não pediu confessor. E, católico, não participava do horror de alguns aos protestantes - os "freis-bodes", como dizia minha avó - e gostava de, uma vez ou outra, ir às suas sessões de espiritismo. Contudo, esse ecletismo religioso não excluía uma crença poderosa, entranhada, que não o desamparou nem nos derradeiros momentos: a crença em Deus. Ao fazer um plano, ao sacar sobre o futuro, invariavelmente Deus entrava em cena, como força de que dependesse a concretização daquele desejo: - "Este ano as coisas estiveram muito ruins. Uma crise pavorosa. Mas o ano vindouro, se os negócios melhorarem, com os poderes de Deus, eu..." Se estava de chapéu, tirava-o na certa, erguia-o por um instante, muito respeitoso, ao dizer - "com os poderes de Deus". "Eu tenho fé em Deus", "Deus há de me ajudar", "Deus é pai" - estas frases não lhe saíam da boca sem lhe sair da cabeça o chapéu.

Volto-me para um retrato dele rapaz. Já muito desbotado, quase não deixa divisar os traços fisionômicos de meu Pai nessa época. Devia ser por volta dos começos da República. Morava ele, então, em Tatuamunha, sua terrinha natal. Falava dos pastoris do seu tempo - bom tempo! -, da graça de algumas pastoras, do encanto das jornadas que cantavam, e das paixões que acendiam nele e noutros jovens do seu grupo. Imagino o entusiasmo de meu Pai, moço, ardente, romântico, até meio chegado à poesia, pela beleza de uma daquelas matutas. As pastoras - cordão azul e cordão encarnado - surgiam alegres, agitando os pandeiros:

Belas companheiras,
vamos a Belém
ver quem é nascido
para o nosso bem.

Vinham outros números. O Pastor sempre a arrastar o seu cajado. Chegava o Fúria:

Olha, pastora, eu venho falar-te.
Queres ser minha? Eu posso levar-te.

As jornadas sucediam-se. Começavam a dividir-se os grupos; apareciam os exaltados. Meu Pai seria pelo cordão azul. Discussões. A Contramestra, maravilhosa. Sabia requebrar-se com tanta graça, cantava tão bem, e dirigia a meu Pai um olhar tão temperado, tão intencional, que ele sentia bulir-lhe no sangue a sensualidade lusitana, o coração pular-lhe no peito. - "Bravo da Contramestra!" - "A Mestra em cena!" Digladiavam-se os partidos. Haveria presentes, muitos presentes. Um arrebatado chamava a Mestra com todo o cordão. Novas jornadas. A Diana:

Sou a Diana, não tenho partido,
o meu partido é os dois cordão.
Eu bato palmas, ofereço flores;
digam, meus senhores, vossa opi-nião-ão-ão...

Havia uma curiosa espécie de torcedores: os que pediam a presença da Diana por um dos lados: - "A Diana em cena pelo lado azul!" - "A Diana em cena pelo lado encarnado!" Tinha a Diana, assim, boa renda de sua neutralidade: recebia vivas e presentes dos partidários das duas cores. Ia correndo o tempo, e talvez os torcedores bebessem um pouco. Sempre a subir-lhes o entusiasmo, a certa hora se viam apaixonados que jogavam chapéus para o ar, depois ao tablado: - "Pise aí a Mestra!" Repetiam-se os aplausos: - "Bonito!" - "Bravo do cordão azul!". A contramestra vinha oferecer um cravo a meu Pai:

Seu Manuel,
me faça um favor:
Por sua bondade
receba esta flor.

Eu não venho dar,
venho oferecer;
Seu Manuel,
queira receber.

Todo pachola, meu Pai subia ao palco, punha a flor na botoeira e uma pelegau estalante no peito da Contramestra. Embaixo, os correligionários deliravam em aplausos.

Meu Pai descia, feliz da vida. Naturalmente, lá pela madrugada, à pressão de um entusiasmo mais forte, o seu chapéu voaria, iria ter ao tablado, para que o pisasse a Contramestra.

Como seria o seu chapéu desse tempo? Preto, grave, solene, de abas viradas para cima. Usaria ele chapéu de palha? Não importa. Para mim, o chapéu de meu pai ali suspenso do cabide é o chapéu que meu Pai sempre usou. É o chapéu de meu Pai. Lá vai pelo ar o chapéu, cai no palco, onde as pastoras cantam uma jornada linda. Candeias de querosene, atadas a postes raquíticos de madeira, iluminam o tablado, e o largo todo, em frente à igreja de S. Gonçalo. (Como eram plangentes as vozes, na igreja, pelas novenas: "S. Gonçalo de Amarante, / glorioso padroeiro.."! Vozes femininas, quentes de fé, que pediam felicidade ao santo seu patrono: boa sorte para os maridos nas pescas; boa produção dos roçados, que as formigas invadiam; bom casamento para as meninas; a cura da maleita dos meninos; tranqüilidade e tortura para os lares humildes, tantos deles perdidos dentro do coqueiral que ensombrava quase por inteiro o povoado.) Também se vêem, acesos de pé dos tabuleiros de bolos, brandões de carrapato - sementes de mamona enfiadas em talos compridos. A multidão comprime-se. Vai animada a festa.

O leilão tem muitos licitantes. Grita a pregoeiro, alto e pausado, depois de pedir que "batizem" o objeto:

- Mil-réis me dão por uma melancia que deram ao milagroso S. Gonçalo...

Alguém oferece mais:

- Mil e quinhentos.

- Mil e quinhentos me dão...

- Dois mil-réis.

Todos desejam possuir a melancia do santo. Em pouco ela está valendo cinco mil-réis. Rompem as pilhérias:

- Seis mil-réis para o Silva não ver.

O leiloeiro:

- Seis mil-réis...

- Seis e quinhentos para o Chico não cheirar...

Até que, já não havendo quem dê mais, o leiloeiro faz a afronta, num português castigado:

- Afronta faço que mais não acho; se mais achara, mais tomara. Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três: já entreguei, está entregue.

A chegança, por outro lado, está dando a nota. No de um mastro da embarcação, o gajeiro procura ver, cumprindo ordem, se avista "terras de Espanha e areias de Portugal", Canta: na sua voz, fanhosamente arrastada, como na de todo o pessoal da Catarineta, há uma tinta de melancolia.

Indiferente ao leilão, alheio à chegança, meu Pai vibra com o pastoril. Limpará o chapéu, empoeirado, amarrotado, enquanto as pastorinhas maravilham a assistência com as suas jornadas e os partidários suam de exaltação.

Pipocam foguetes nos ares. O chapéu de meu Pai sobe e desce, anda para um e outro lado, defendendo-o das tabocas.

Passaram-se alguns anos. Meu Pai faz serenata - o luar é claro que parece dia – perto da casa onde Mamãe veraneia, com os seus, fugindo à vida monótona do engenho. O namoro está pegado. Dias antes ele passou pela porta da amada com uma acácia na lapela (significa - "sonhei contigo"), e a moça deu-lhe um sorriso que o deixou tonto. Um tio de Mamãe; apaixonado por ela, faz concorrência a meu Pai. Este põe na voz toda a atávica saudade lusitana, e canta, pensando na amada, com o chapéu abandonadamente derreado para a nuca:

Ó palidez imácula, bendita,
a palidez serena do teu rosto,
que me tem sido tanta vez maldita
e tem sido na vida o meu desgosto!

A voz é grave até o tem sido, para subir muita na tanta vez, ainda mais no maldita, bem prolongado, e em seguida baixar, depois de uma volta bonita, em que meu Pai dá tudo que tem o coração, tirando, talvez, o sono à namorada.

Qual foi o seu primeiro cuidado ao saltar em Maceió, pouco antes de noivar? Comprar o Dicionário das Folhas, Flores, Frutos e Raízes, para poder dizer ao seu amor, a quem nunca falara, aquilo que os olhos e as mãos não bastavam a exprimir. Imagino o acanhamento do matuto ao entrar na livraria, de chapéu na mão, amassando-lhe a aba, meio sem jeito para pedir o livro, como se estivesse expondo a estranhos a pureza do sentimento.

Um dia - o pedido já foi feito - aparecerá no engenho, o Boa Esperança, muito ancho, no seu cavalo castanho, em visita à noiva. Apeia, tira o chapéu, cumprimenta a noiva e a futura sogra, respeitoso. Conversam algum tempo na sala de visitas, grande, paredes cheias de retratos, enquanto Maria Araquã, ex-escrava, acende o belga. Depois, passarão à sala de jantar. Senta-se à mesa comprida, patriarcal, à direita de minha avó, logo junto da cabeceira (que D. Luísa faz questão de ocupar), tendo a amada em frente. Os futuros cunhados, para ele é como se não existissem. Muito cheio de si, os louros cabelos ondeados com uma liberdade ao lado esquerdo, o bigode pedindo-lhe sempre o afago das mãos. Capricha no pegar do talher; come pouco, e, como D. Luísa insiste - "O senhor não está gostando..." -, afirma que tudo é ótimo, mas recusa, com um sorriso civilizado. Após o jantar, minha avó manda retirar a toalha da mesa e meu Pai começa a leitura de um romance de Escrich, de que ele e a futura sogra gostam muito. Volta e meia os seus olhos procuram os olhos da noiva, que a timidez mantém sempre descidos. Lê bem: a voz pausada, com as inflexões características da fala de cada um dos personagens, moldadas segundo as circunstâncias em que as palavras são ditas. O diálogo sai animado, vivo: dá gosto ouvir.

No outro dia, pela manhã, despede-se de todos, no alpendre, e sai no seu cavalo, galopando, para voltar-se na curva da estrada e acenar com o chapéu feito lenço:

Como vem altivo, petulante, o chapéu de meu Pai, no dia do casamento! O cavaleiro todo de escuro, as boas botinas Bostock, a camisa branca, de punhos, peito e colarinho duros, o chapéu preto de copa alta e abas viradas... Seria assim mesmo? Com que elegância o tira ao entrar, para os primeiros cumprimentos! Daí a pouco, emocionado, dá para sentir calor, um calor fora do comum, e o chapéu serve-lhe de leque.

O Sol aparece. É mais intenso o movimento na rua. Transeuntes entreparam à porta, olhando o caixão. A empregada entra e, surpreendida e triste, põe-se a chorar. Lá para dentro cuidam do café. Os rumores vão enchendo a casa. Minha Mãe soluça alto. Chama por mim. Ao levantar-me, olho para o corpo hirto, rígido, lívido, macerado, as mãos cruzadas sobre o ventre intumescido. Meu Pai veste um fraque antigo, muito antigo - de quando? nem sei. O enterro será às dez horas. As negras cortinas tremulam ao vento, que, agora mais forte, invade a casa, faz dançar, indecisa, a luz agonizante dos círios. Caminhando ao encontro de Mamãe, vejo no porta-chapéus, bem junto do espelho, o chapéu de meu Pai, que, ao sopro do vento, oscila, oscila - abandonado, triste, esquecido -, como se estivesse acenando, chamando por alguém.

Fonte:
HOLANDA, Aurélio Buarque de. Dois mundos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1942.

Aurelio Buarque de Holanda (1910 – 1989)

Quarto ocupante da cadeira 30, eleito em 4 de maio de 1961, na sucessão de Antônio Austregésilo e recebido pelo Acadêmico Rodrigo Octavio Filho em 18 de dezembro de 1961. Recebeu os Acadêmicos Bernardo Elis, Marques Rebelo e Cyro dos Anjos.

Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, ensaísta, filólogo e lexicógrafo, nasceu em Passo de Camaragibe, AL, em 3 de maio de 1910, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 28 de fevereiro de 1989.

Filho de Manuel Hermelindo Ferreira, comerciante, e de Maria Buarque Cavalcanti Ferreira. Passou parte da infância em Porto das Pedras, AL.

Em 1923, mudou-se para Maceió (AL), onde, aos 14 anos de idade, começou a dar aulas particulares de português. Aos 15, ingressou efetivamente no magistério: foi convidado pelo Ginásio Primeiro de Março a lecionar em seu curso primário, passando a se interessar pela língua e literatura portuguesas. Diplomou-se em Direito pela Faculdade do Recife, em 1936.

Em 1930 fez parte de um grupo de intelectuais que exerceria forte influência literária no Nordeste, entre outros, Valdemar Cavalcanti, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Raul Lima, Rachel de Queiroz.

Em 1936 e 1937, foi professor de Português, Literatura e Francês no Colégio Estadual de Alagoas, e em 1937 e 1938, diretor da Biblioteca Municipal de Maceió.

Passou a residir no Rio de Janeiro a partir de 1938. Continuou no magistério, como professor de Português e Literatura Brasileira no Colégio Anglo-Americano em 1939 e 1940; professor de Português no Colégio Pedro II, de 1940 a 1969, e professor de Ensino Médio do Estado do Rio de Janeiro, de 1949 a 1980. Contratado pelo Ministério das Relações Exteriores, exerceu a cadeira de Estudos Brasileiros na Universidade Autônoma do México, de junho de 1954 a dezembro de 1955.

Colaborou na imprensa carioca, com contos e artigos. Foi secretário da Revista do Brasil (1939-1947), quando era seu diretor Otávio Tarquínio de Sousa, de 1939 a 1943. Nessa época, evidenciava-se o escritor, nos contos de Dois mundos, livro publicado em 1942 e premiado em 1944 pela Academia Brasileira de Letras, e no ensaio "Linguagem e estilo de Eça de Queirós", publicado em 1945.

Em 1941 começou Aurélio Buarque a atividade que o iria absorver a vida inteira e que, de certa forma, iria suplantar o Aurélio escritor: o Aurélio dicionarista. Foi quando o convidaram a executar, pela primeira vez, um trabalho lexicográfico, como colaborador do Pequeno dicionário da língua portuguesa. Em janeiro de 1945, tomou parte no I Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em São Paulo.

Em 1947, iniciou no Suplemento Literário do Diário de Notícias a seção "O Conto da Semana", que durará até 1960 e, a partir de 1954, terá a colaboração de Paulo Rónai. Essa colaboração entre os dois amigos vinha desde 1941, quando se conheceram na redação da Revista do Brasil, e se concretizou no trabalho conjunto dos cinco volumes da coleção Mar de histórias, antologia do conto mundial, o primeiro deles publicado em 1945.

A partir de 1950 Aurélio Buarque manteve, na revista Seleções do Reader's Digest, a seção "Enriqueça o seu vocabulário", que em 1958 ele irá reunir e publicar no volume de igual título. Em 1963, tomou parte, em Bucareste, representando a Academia, no Simpósio de Língua, História, Folclore e Arte do Povo Romeno, visitando na mesma ocasião a Bulgária, Iugoslávia, Tchecoslováquia e Grécia. Foi membro da Comissão Nacional do Folclore e da Comissão Machado de Assis.

A preocupação pela língua portuguesa, a paixão pelas palavras levou-o à imensa tarefa de elaborar o próprio dicionário, e esse trabalho lexicográfico ocupou-o durante muitos anos. Finalmente, em 1975, saiu o Novo dicionário da língua portuguesa, conhecido por todos como o dicionário Aurélio. Desde a sua publicação, Mestre Aurélio atendeu a muitos convites, no Brasil inteiro, para falar do Dicionário e dos mistérios e sutilezas da língua portuguesa, que ele enriqueceu de tantos brasileirismos, fazendo do brasileiro comum um consulente de dicionário e um usuário consciente do seu idioma. Pronunciou numerosas conferências, sobre assuntos literários e lingüísticos, no México, Estados Unidos, Cuba, Guatemala e Venezuela.

Pertenceu à Associação Brasileira de Escritores, seção do Rio de Janeiro (1944-49). Era membro da Academia Brasileira de Filologia, do Pen Clube do Brasil, do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, da Academia Alagoana de Letras e da Hispanic Society of America.

Bibliografia
Obras:
Dois mundos, contos (1942);
Linguagem e estilo de Eça de Queirós, in Livro do centenário de Eça de Queirós (1945);
Mar de histórias (Antologia do conto mundial), em colaboração com Paulo Rónai, I vol. (1945); II vol. (1951); III vol. (1958); IV vol. (1963); V vol. (1981);
Contos gauchescos e lendas do sul, de Simões Lopes Neto. Edição crítica, com amplo estudo sobre a linguagem e o estilo do autor (1949);
O romance brasileiro (de 1752 a 1930);
Roteiro literário do Brasil e de Portugal (Antologia da língua portuguesa), em colaboração com Álvaro Lins (1956);
Território lírico, ensaios (1958);
Enriqueça o seu vocabulário, filologia (1958);
Vocabulário ortográfico brasileiro (1969);
O chapéu de meu pai, edição revista e reduzida de Dois mundos (1974);
Novo dicionário da língua portuguesa (1975);
Minidicionário da língua portuguesa (1977).

Fonte:
Academia Brasileira de Letras
Fotomontagem = José Feldman

Nélida Piñon (Colheita)

Aurea Antunes - pintura em acrílico (A Colheita)
Um rosto proibido desde que crescera. Dominava as paisagens no modo ativo de agrupar frutos e os comia nas sendas minúsculas das montanhas, e ainda pela alegria com que distribuía sementes. A cada terra a sua verdade de semente, ele se dizia sorrindo. Quando se fez homem encontrou a mulher, ela sorriu, era altiva como ele, embora seu silêncio fosse de ouro, olhava-o mais do que explicava a história do universo. Esta reserva mineral o encantava e por ela unicamente passou a dividir o mundo entre amor e seus objetos. Um amor que se fazia profundo a ponto de se dedicarem a escavações, refazerem cidades submersas em lava.

A aldeia rejeitava o proceder de quem habita terras raras. Pareciam os dois soldados de uma fronteira estrangeira, para se transitar por eles, além do cheiro da carne amorosa, exigiam eles passaporte, depoimentos ideológicos. Eles se preocupavam apenas com o fundo da terra, que é o nosso interior, ela também completou seu pensamento. Inspirava-lhes o sentimento a conspiração das raízes que a própria árvore, atraída pelo sol e exposta à terra, não podia alcançar, embora se soubesse nelas.

Até que ele decidiu partir. Competiam-lhe andanças, traçar as linhas finais de um mapa cuja composição havia se iniciado e ele sabia hesitante. Explicou à mulher que para a amar melhor não dispensava o mundo, a transgressão das leis, os distúrbios dos pássaros migratórios. Ao contrário, as criaturas lhe pareciam em suas peregrinações simples peças aladas cercando alturas raras.

Ela reagiu, confiava no choro. Apesar do rosto exibir naqueles dias uma beleza esplêndida a ponto de ele pensar estando o amor com ela por que buscá-lo em terras onde dificilmente o encontrarei, insistia na independência. Sempre os de sua raça adotaram comportamento de potro. Ainda que ele em especial dependesse dela para reparar certas omissões fatais.

Viveram juntos todas as horas disponíveis até a separação. Sua última frase foi simples: com você conheci o paraíso. A delicadeza comoveu a mulher, embora os diálogos do homem a inquietassem. A partir desta data trancou-se dentro de casa. Como os caramujos que se ressentem com o excesso da claridade. Compreendendo que talvez devesse preservar a vida de modo mais intenso, para quando ele voltasse. Em nenhum momento deixava de alimentar a fé, fornecer porções diárias de carpas oriundas de águas orientais ao seu amor exagerado.

Em toda a aldeia a atitude do homem representou uma rebelião a se temer. Seu nome procuravam banir de qualquer conversa. Esforçavam-se em demolir o rosto livre e sempre que passavam pela casa da mulher faziam de conta que jamais ela pertencera a ele. Enviavam-lhe presentes, pedaços de toicinho, cestas de pêra, e poesias esparsas. Para que ela interpretasse através daqueles recursos o quanto a consideravam disponível, sem marca de boi e as iniciais do homem em sua pele.

A mulher raramente admitia uma presença em sua casa. Os presentes entravam pela janela da frente, sempre aberta para que o sol testemunhasse a sua própria vida, mas abandonavam a casa pela porta dos fundos, todos aparentemente intocáveis. A aldeia ia lá para inspecionar os objetos que de algum modo a presenciaram e eles não, pois dificilmente aceitavam a rigidez dos costumes. Às vezes ela se socorria de um parente, para as compras indispensáveis. Deixavam eles então os pedidos aos seus pés, e na rápida passagem pelo interior da casa procuravam a tudo investigar. De certo modo ela consentia para que vissem o homem ainda imperar nas coisas sagradas daquela casa.

Jamais faltou uma flor diariamente renovada próxima ao retrato do homem. Seu semblante de águia. Mas, com o tempo, além de mudar a cor do vestido, antes triste agora sempre vermelho, e alterar o penteado, pois decidira manter os cabelos curtos, aparados rentes à cabeça — decidiu por eliminar o retrato. Não foi fácil a decisão. Durante dias rondava o retrato, sondou os olhos obscuros do homem, ora o condenava, ora o absolvia: porque você precisou da sua rebeldia, eu vivo só, não sei se a guerra tragou você, não sei sequer se devo comemorar sua morte com o sacrifício da minha vida.

Durante a noite, confiando nas sombras, retirou o retrato e o jogou rudemente sobre o armário. Pôde descansar após a atitude assumida. Acreditou deste modo poder provar aos inimigos que ele habitava seu corpo independente da homenagem. Talvez tivesse murmurado a algum dos parentes, entre descuidada e oprimida, que o destino da mulher era olhar o mundo e sonhar com o rei da terra.

Recordava a fala do homem em seus momentos de tensão. Seu rosto então igualava-se à pedra, vigoroso, uma saliência em que se inscreveria uma sentença, para permanecer. Não sabia quem entre os dois era mais sensível à violência. Ele que se havia ido, ela que tivera que ficar. Só com os anos foi compreendendo que se ele ainda vivia tardava a regressar. Mas, se morrera, ela dependia de algum sinal para providenciar seu fim. E repetia temerosa e exaltada: algum sinal para providenciar meu fim. A morte era uma vertente exagerada, pensou ela olhando o pálido brilho das unhas, as cortinas limpas, e começou a sentir que unicamente conservando a vida homenagearia aquele amor mais pungente que búfalo, carne final da sua espécie, embora tivesse conhecido a coroa quando das planícies.

Quando já se tornava penoso em excesso conservar-se dentro dos limites da casa, pois começara a agitar nela uma determinação de amar apenas as coisas venerandas, fossem pó, aranha, tapete rasgado, panela sem cabo, como que adivinhando ele chegou. A aldeia viu o modo de ele bater na porta com a certeza de se avizinhar ao paraíso. Bateu três vezes, ela não respondeu. Mais três e ela, como que tangida à reclusão, não admitia estranhos. Ele ainda herói bateu algumas vezes mais, até que gritou seu nome, sou eu, então não vê, então não sente, ou já não vive mais, serei eu logo o único a cumprir a promessa?

Ela sabia agora que era ele. Não consultou o coração para agitar-se, melhor viver a sua paixão. Abriu a porta e fez da madeira seu escudo. Ele imaginou que escarneciam da sua volta, não restava alegria em quem o recebia. Ainda apurou a verdade: se não for você, nem preciso entrar. Talvez tivesse esquecido que ele mesmo manifestara um dia que seu regresso jamais seria comemorado, odiaria o povo abundante na rua vendo o silêncio dos dois após tanto castigo.

Ela assinalou na madeira a sua resposta. E ele achou que devia surpreendê-la segundo o seu gosto. Fingia a mulher não perceber seu ingresso casa adentro, mais velho sim, a poeira colorindo original as suas vestes. Olharam-se como se ausculta a intrepidez do cristal, seus veios limpos, a calma de perder-se na transparência. Agarrou a mão da mulher, assegurava-se de que seus olhos, apesar do pecado das modificações, ainda o enxergavam com o antigo amor, agora mais provado.

Disse-lhe: voltei. Também poderia ter dito: já não te quero mais. Confiava na mulher; ela saberia organizar as palavras expressas com descuido. Nem a verdade, ou sua imagem contrária, denunciaria seu hino interior. Deveria ser como se ambos conduzindo o amor jamais o tivessem interrompido.

Ela o beijou também com cuidado. Não procurou sua boca e ele se deixou comovido. Quis somente sua testa, alisou-lhe os cabelos. Fez-lhe ver o seu sofrimento, fora tão difícil que nem seu retrato pôde suportar. Onde estive então nesta casa, perguntou ele, procure e em achando haveremos de conversar. O homem se sentiu atingido por tais palavras. Mas as peregrinações lhe haviam ensinado que mesmo para dentro de casa se trazem os desafios.

Debaixo do sofá, da mesa, sobre a cama, entre os lençóis, mesmo no galinheiro, ele procurou, sempre prosseguindo, quase lhe perguntava: estou quente ou frio. A mulher não seguia suas buscas, agasalhada em um longo casaco de lã, agora descascava batatas imitando as mulheres que encontram alegria neste engenho. Esta disposição da mulher como que o confortava. Em vez de conversarem, quando tinham tanto a se dizer, sem querer eles haviam começado a brigar. E procurando ele pensava onde teria estado quando ali não estava, ao menos visivelmente pela casa.

Quase desistindo encontrou o retrato sobre o armário, o vidro da moldura todo quebrado. Ela tivera o cuidado de esconder seu rosto entre cacos de vidro, quem sabe tormentas e outras feridas mais. Ela o trouxe pela mão até a cozinha. Ele não se queria deixar ir. Então, o que queres fazer aqui? Ele respondeu: quero a mulher. Ela consentiu. Depois porém ela falou: agora me siga até a cozinha.

— O que há na cozinha?

Deixou-o sentado na cadeira. Fez a comida, se alimentaram em silêncio. Depois limpou o chão, lavou os pratos, fez a cama recém-desarrumada, tirou o pó da casa, abriu todas as janelas quase sempre fechadas naqueles anos de sua ausência. Procedia como se ele ainda não tivesse chegado, ou como se jamais houvesse abandonado a casa, mas se faziam preparativos sim de festa. Vamos nos falar ao menos agora que eu preciso?, ele disse.

— Tenho tanto a lhe contar. Percorri o mundo, a terra, sabe, e além do mais...

Eu sei, ela foi dizendo depressa, não consentindo que ele dissertasse sobre a variedade da fauna, ou assegurasse a ela que os rincões distantes ainda que apresentem certas particularidades de algum modo são próximos a nossa terra, de onde você nunca se afastou porque você jamais pretendeu a liberdade como eu. Não deixando que lhe contasse, sim que as mulheres, embora louras, pálidas, morenas e de pele de trigo, não ostentavam seu cheiro, a ela, ele a identificaria mesmo de olhos fechados. Não deixando que ela soubesse das suas campanhas: andou a cavalo, trem, veleiro, mesmo helicóptero, a terra era menor do que supunha, visitara a prisão, razão de ter assimilado uma rara concentração de vida que em nenhuma parte senão ali jamais encontrou, pois todos os que ali estavam não tinham outro modo de ser senão atingindo diariamente a expiação.

E ela, não deixando ele contar o que fora o registro da sua vida, ia substituindo com palavras dela então o que ela havia sim vivido. E de tal modo falava como se ela é que houvesse abandonado a aldeia, feito campanhas abolicionistas, inaugurado pontes, vencido domínios marítimos, conhecido mulheres e homens, e entre eles se perdendo pois quem sabe não seria de sua vocação reconhecer pelo amor as criaturas. Só que ela falando dispensava semelhantes assuntos, sua riqueza era enumerar com volúpia os afazeres diários a que estivera confinada desde a sua partida, como limpava a casa, ou inventara um prato talvez de origem dinamarquesa, e o cobriu de verdura, diante dele fingia-se coelho, logo assumindo o estado que lhe trazia graça, alimentava-se com a mão e sentia-se mulher; como também simulava escrever cartas jamais enviadas pois ignorava onde encontrá-lo; o quanto fora penoso decidir-se sobre o destino a dar a seu retrato, pois, ainda que praticasse a violência contra ele, não podia esquecer que o homem sempre estaria presente; seu modo de descascar frutas, tecendo delicadas combinações de desenho sobre a casca, ora pondo em relevo um trecho maior da polpa, ora deixando o fruto revestido apenas de rápidos fiapos de pele; e ainda a solução encontrada para se alimentar sem deixar a fazenda em que sua casa se convertera, cuidara então em admitir unicamente os de seu sangue sob condição da rápida permanência, o tempo suficiente para que eles vissem que apesar da distância do homem ela tudo fazia para homenageá-lo, alguns da aldeia porém, que ele soubesse agora, teimaram em lhe fazer regalos, que, se antes a irritavam, terminaram por agradá-la.

— De outro modo, como vingar-me deles?

Recolhia os donativos, mesmo os poemas, e deixava as coisas permanecerem sobre a mesa por breves instantes, como se assim se comunicasse com a vida. Mas, logo que todas as reservas do mundo que ela pensava existirem nos objetos se esgotavam, ela os atirava à porta dos fundos. Confiava que eles próprios recolhessem o material para não deteriorar em sua porta.

E tanto ela ia relatando os longos anos de sua espera, um cotidiano que em sua boca alcançava vigor, que temia ele interromper um só momento o que ela projetava dentro da casa como se cuspisse pérolas, cachorros miniaturas, e uma grama viçosa, mesmo a pretexto de viver junto com ela as coisas que ele havia vivido sozinho. Pois quanto mais ela adensava a narrativa, mais ele sentia que além de a ter ferido com o seu profundo conhecimento da terra, o seu profundo conhecimento da terra afinal não significava nada. Ela era mais capaz do que ele de atingir a intensidade, e muito mais sensível porque viveu entre grades, mais voluntariosa por ter resistido com bravura os galanteios. A fé que ele com neutralidade dispensara ao mundo a ponto de ser incapaz de recolher de volta para seu corpo o que deixara tombar indolente, ela soubera fazer crescer, e concentrara no domínio da sua vida as suas razões mais intensas.

À medida que as virtudes da mulher o sufocavam, as suas vitórias e experiências iam-se transformando em uma massa confusa, desorientada, já não sabendo ele o que fazer dela. Duvidava mesmo se havia partido, se não teria ficado todos estes anos a apenas alguns quilômetros dali, em degredo como ela, mas sem igual poder narrativo.

Seguramente ele não lhe apresentava a mesma dignidade, sequer soubera conquistar seu quinhão na terra. Nada fizera senão andar e pensar que aprendeu verdades diante das quais a mulher haveria de capitular. No entanto, ela confessando a jornada dos legumes, a confecção misteriosa de uma sopa, selava sobre ele um penoso silêncio. A vergonha de ter composto uma falsa história o abatia. Sem dúvida estivera ali com a mulher todo o tempo, jamais abandonara a casa, a aldeia, o torpor a que o destinaram desde o nascimento, e cujos limites ele altivo pensou ter rompido.

Ela não cessava de se apoderar das palavras, pela primeira vez em tanto tempo explicava sua vida, tinha prazer de recolher no ventre, como um tumor que coça as paredes íntimas, o som da sua voz. E, enquanto ouvia a mulher, devagar ele foi rasgando o seu retrato, sem ela o impedir, implorasse não, esta é a minha mais fecunda lembrança. Comprazia-se com a nova paixão, o mundo antes obscurecido que ela descobriu ao retorno do homem.

Ele jogou o retrato picado no lixo e seu gesto não sofreu ainda desta vez advertência. Os atos favoreciam a claridade e, para não esgotar as tarefas a que pretendia dedicar-se, ele foi arrumando a casa, passou pano molhado nos armários, fingindo ouvi-Ia ia esquecendo a terra no arrebato da limpeza. E, quando a cozinha se apresentou imaculada, ele recomeçou tudo de novo, então descascando frutas para a compota enquanto ela lhe fornecia histórias indispensáveis ao mundo que precisaria apreender uma vez que a ele pretendia dedicar-se para sempre. Mas de tal modo agora arrebatava-se que parecia distraído, como pudesse dispensar as palavras encantadas da mulher para adotar afinal o seu universo.

Fonte:
http://www.nelidapinon.com.br/

Nélida Piñon (1937)

Nélida Cuiñas Piñon, jornalista, romancista, contista, professora, carioca de Vila Isabel, Rio de Janeiro, RJ, nasceu em 3 de maio de 1937.

Filha de Lino Piñon Muiños, comerciante, e Olívia Cuiñas Piñon. O nome Nélida é anagrama do nome do avô, Daniel. Sua família é originária da Galiza, radicada no Brasil desde a década de 1920. Na infância, seus pais a estimularam para a leitura, deram-lhe livros e levaram-na a viajar. Aos dez anos foi para a Galiza, onde ficou dois anos. Essa vivência foi fundamental para a futura escritora, que em sua obra irá revelar, sobretudo, o amor por duas pátrias: a Galiza e o Brasil.

Formou-se em Jornalismo pela Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Foi editora assistente da revista Cadernos Brasileiros (1966-67); membro do Conselho Consultivo da revista Tempo Brasileiro (1976-1993), da revista Impressões (1997), dos Cadernos Pedagógicos e Culturais (1993); membro do Conselho Editorial da revista Imagem Latino-Americana (Caracas, 1993), da Encyclopedia of Latin American Literature (Inglaterra, 1994), da Review: Latin American Literature and Arts (Nova York, desde junho de 1995); colunista semanal do jornal O Dia (Rio de Janeiro, desde 1995). Exerceu cargos no Conselho Consultivo de inúmeras entidades culturais do Rio de Janeiro.

Inaugurou a cadeira de Criação Literária na Faculdade de Letras da UFRJ. Desde 1965, quando recebeu a bolsa "Leader Grant", concedida pelo Governo norte-americano, que lhe deu a oportunidade de viajar pelos Estados Unidos, Nélida Piñon tem feito viagens a vários países, para participar de congressos, seminários e encontros internacionais, proferindo conferências e palestras, sobre temas ligados à cultura, à literatura e à criação literária.

Deu cursos na University of New York, na Columbia University, na John Hopkins University em Baltimore, na Universidade Católica de Lima, na Sorbonne, na Universidade Complutense de Madri, e em outras universidade internacionais. As viagens para outros países foram fundamentais para sua biografia e sua obra e para melhor mostrar-lhe o Brasil, país que é para ela a preocupação maior, a razão da sua inquietação intelectual.

Em 1990, candidatou-se à cátedra Henry King Stanford em Humanidades, da Universidade de Miami, para substituir Isaac Bashevis Singer. Na seleção de 80 intelectuais inscritos, foi um dos cinco finalistas. Assumiu, como titular da cátedra, em 1991. A partir desse ano, ali realizou cursos anualmente, de janeiro a maio, participando de debates, encontros, e proferindo conferências. Em agosto de 1996, desligou-se temporariamente da cátedra, ao assumir interinamente a presidência da Academia Brasileira de Letras, na ausência de presidente Antonio Houaiss.

Eleita em 27 de julho de 1989 para a Cadeira n. 30, na sucessão de Aurélio Buarque de Holanda, foi recebida em 3 de maio de 1990, pelo acadêmico Lêdo Ivo.

Na Academia Brasileira de Letras, foi diretora do Arquivo (desde 1990); eleita primeira-secretária (26.6.1995) e secretária-geral (7.12.1995); presidente em exercício (ago.-dez. 1996). Foi eleita presidente da Academia em 5 de dezembro de 1996. É a primeira mulher, em 100 anos de existência da ABL, a integrar a Diretoria e ocupar a presidência da Casa de Machado de Assis, no ano do seu I Centenário.

Sua estréia na literatura foi com o romance Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, publicado em 1961, que trata do tema do pecado, do perdão e da relação dos mortais com Deus através do diálogo entre a protagonista e seu anjo da guarda. Desde o início a escritora filiou-se ao movimento que, depois de Guimarães Rosa, se orienta pela renovação formal da linguagem.

No romance Fundador, publicado em 1969, Nélida Piñon abandona a base realista que comanda a criação literária analógica do mundo e põe em cena personagens históricos e ficcionais, criando um mundo eminentemente estético.

Em 1972, publica A casa da paixão, romance em que irrompe o tema do desejo e da iniciação sexual. Publica a seguir livros de contos e mais dois romances, até sair o romance autobiográfico A república dos sonhos, em 1984, narrando a saga de uma família enraizada na Galiza que emigra para o Brasil.

Em A doce canção de Caetana, romance de denúncia política publicado em 1987, faz uma incursão ao universo de uma cidade do interior, Trindade, à época da mentira do milagre brasileiro, no começo dos anos 70.

No livro O pão de cada dia, de 1994, Nélida Piñon deixa de lado a moderna ficção na qual se consagrou e empreende uma reflexão profunda sobre as inquietações do homem, através de fragmentos que exprimem emoções, idéias e pensamentos.

Em 2004, esteve presente à 1.a Reunião Plenária da Comissão do Quarto Centenário da Publicação do Dom Quixote, promovida pelo Presidente Zapatearo na Biblioteca Nacional de Madri. Designada membro do Conselho de Honra do Don Quijote, assumiu em dezembro de 2004, em Madri.

Em sua homenagem foi inaugurada a Biblioteca Nélida Piñon, no Morro Santa Marta, promoção da Editora Record e da Oldemburg.

Ao longo de mais de 35 anos de ininterrupta atividade criadora, Nélida Piñon é um testemunho de que, entre as possíveis maneiras de se exprimir que o homem tem a seu dispor, a palavra é aquela que mais diretamente o põe a nu consigo mesmo, quer diante dos seus problemas individuais, quer frente às suas mais dramáticas contradições enquanto ser social, político, cultural, economicamente determinado. Daí a sua consciência da função do escritor, que não deve se limitar apenas a criar, sua tarefa máxima, mas também deve emprestar sua consciência à consciência dos seus leitores, sobretudo em um país como o Brasil, onde é preciso fazer com que o povo reflita sobre a sua realidade e reivindique uma realidade melhor e mais justa.

Sua obra está traduzida para países como Alemanha, Itália, Espanha, União Soviética, Estados Unidos, Cuba e Nicarágua. Contos seus encontram-se publicados em centenas de revistas e fazem parte de antologias brasileiras e estrangeiras.

Recebeu vários prêmios literários:
Prêmio Walmap, pelo romance Fundador (1970);
Prêmio Mário de Andrade, pelo romance A casa da paixão (1973);
Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte e Prêmio Ficção Pen Clube pelo romance A República dos sonhos (1985);
Prêmio José Geraldo Vieira, da União Brasileira de Escritores de São Paulo, pelo romance A doce canção de Caetana (1987);
Prêmio Golfinho de Ouro, pelo Conjunto de Obras, conferido pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro (1990);
Prêmio Bienal Nestlé, pelo Conjunto de Obras (1991);
Prêmio Internacional de Literatura Juan Rulfo, o mais importante da América Latina e do Caribe, concedido pela primeira vez a uma mulher e a um autor de língua portuguesa (1995).

Obras:
Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, romance (1961);
Madeira feita cruz, romance (1963);
Tempo das frutas, contos (1966);
Fundador, romance (1969);
A casa da paixão, romance (1972);
Sala de armas, contos (1973);
Tebas do meu coração, romance (1974);
A força do destino, romance (1977);
O calor das coisas, contos (1979);
A república dos sonhos, romance (1984);
A doce canção de Caetana, romance (1987);
O pão de cada dia, fragmentos (1994);
A roda do vento, romance infanto-juvenil (1996);
O ritual da arte, ensaio sobre a criação literária (inédito).

Fontes:
http://www.biblio.com.br/
Academia Brasileira de Letras.
Fotomontagem = José Feldman

sábado, 2 de maio de 2009

Adelino Fontoura (O Poeta no Papel)



CELESTE

É tão divina a angélica aparência
e a graça que ilumina o rosto dela,
que eu concebera o tipo de inocência
nessa criança imaculada e bela.

Peregrina do céu, pálida estrela,
exilada na etérea transparência,
sua origem não pode ser aquela
da nossa triste e mísera existência.

Tem a celeste e ingênua formosura
e a luminosa auréola sacrossanta
de uma visão do céu, cândida e pura.

E quando os olhos para o céu levanta,
inundados de mística doçura,
nem parece mulher - parece santa.
–––––––––––––––––––-

BORGHI MAMO

Ao doce timbre harmonioso e brando
Da tua voz, ó alma enamorada,
Sinto minha alma em sonhos embalada
E como que eu também fico sonhando!

Como agitava o vento, perpassando,
A harpa eólea no salgueiro alada,
Tal me agita essa voz apaixonada
Quando, ó ave de amor, surges cantando.

Ouvir-te é como ver nascer a aurora:
Tudo inunda de luz, tudo ilumina
A tua voz angélica e sonora.

Solta, pois, a volata peregrina!
Ama, geme, soluça, canta e chora,
Celeste Aída, Malibran divina!
Rio, 1882.
––––––––––––––––

ATRAÇÃO E REPULSÃO

Eu nada mais sonhava nem queria
Que de ti não viesse, ou não falasse;
E como a ti te amei, que alguém te amasse,
Coisa incrível até me parecia.

Uma estrela mais lúcida eu não via
Que nesta vida os passos me guiasse,
E tinha fé, cuidando que encontrasse,
Após tanta amargura, uma alegria.

Mas tão cedo extinguiste este risonho,
Este encantado e deleitoso engano,
Que o bem que achar supus, já não suponho.

Vejo, enfim, que és um peito desumano;
Se fui té junto a ti de sonho em sonho,
Voltei de desengano em desengano.
–––––––––––––––––––––––

ANTES DE PARTIR

Venho ensopar de lágrimas o lenço
No tristíssimo adeus de despedida;
Em breve a Pátria vou deixar perdida
Além - na curva do horizonte imenso!

Em breve sobre o mar profundo e extenso
Adejará minh'alma dolorida,
Como a gaivota errante, foragida,
Sem ter um ninho onde pousar, suspenso!

Então, senhora, hei de pensar, tristonho,
Revendo a vossa angélica bondade,
Neste ninho de amor calmo e risonho;

E triste, sobre a triste imensidade,
Como quem despertou de um ledo sonho,
Hei de chorar o pranto da saudade.
–––––––––––––––––––––––

VÁCUO

Não sei se pode haver padecimento
Mais profundo, mais íntimo e que tanto
Nos ponha na alma a dor que gera o pranto,
Do que um longo e tristonho isolamento.

Não ter um bem sequer no pensamento,
Nem o calor de um lar, nem o encanto
De um amor de mulher suave e santo,
É viver sem nenhum contentamento.

Bem sei que é bom sofrer, e me parece
Que esta vida sem dor nada seria,
E que é por isso até que se padece.

Mas esta solidão contínua e fria
Chega a ser tão cruel, que a não merece
Um coração que a dor mereceria.
–––––––––––––––––––––––

SÚPLICA

Por mais que aspire ou queira, anele ou tente
Esquecer-me de ti - jamais me esqueço,
Ó bem amado ser por quem padeço,
Por quem tanto soluço inutilmente!

Bem que eu te peça, foges de repente,
E só me fica a dor que te não peço;
E eis tudo, ó céus! eis tudo o que eu mereço,
Em paga deste amor tão puro e crente.

Se te não move, pois, um desafeto
E se te apraz ao menos consolar
A desventura amarga deste afeto,

Ilumina com teu divino olhar
Esta alma que os teus pés, anjo dileto,
Vem, banhada de lágrimas, beijar.
–––––––––––––––––––––––

GAZETINHA
(No dia do seu primeiro aniversário)

Eu não venho trazer a vossa excelência
Um fantástico mimo "high-lifeano";
Possuo um coração meridiano,
Mas não vivo nas pompas da Regência.

Porém, se eu fosse um príncipe indiano,
De sangue azul e antiga descendência,
Possuindo a Golconda, essa opulência,
E os tesouros do Índico Oceano,

Nessas pequenas mãos, tímido e mudo,
Minha senhora, eu deporia tudo...
Como os brilhantes de um colar, dispersos!

Mas... se sou pobre, o que tão mal me fica,
Consinta que, sem luvas de pelica,
Venha depor-lhe aos pés estes meus versos.
4 de maio de 1882.
–––––––––––––––––––––––

DESPEDIDA

Pois que é chegada finalmente a hora
Do triste afastamento e da provança,
Venho dizer-te adeus, gentil criança,
Venho dizer-te adeus, pois vou-me embora.

Morreu em mim a última esperança,
Bem como um sonho bom que se evapora;
Não sei que dor maior que resta agora
Sofrer, nem que maior desesperança.

Não sei, ó sorte mísera e nefasta,
Que assim me arrancas do seu lar querido,
Que assim me roubas sua imagem casta.

Bem vês que eu tenho o coração partido,
E teu peito, inda assim, não desengasta
Um soluço, uma lágrima, um gemido.
–––––––––––––––––––––––

OHS! E AIS!

Essa mulher que tantos ohs! provoca,
Essa mulher que tantos ais! arranca,
Essa mulher quem é? Por que abre a boca
O Silvestre quando a vê? - É branca?

É morena? É francesa? É carioca?
As belezas helênicas desbanca?
O seu olhar os cérebros desloca?
O seu sorriso as lágrimas estanca?

Vamos, Raimundo, tu que viste há dias
A mágica visão, o ser terrestre,
Por quem já deste uns ais! e uns ohs! eu sinto,

Tira as garras da dúvida ao Matias,
Faze valsar o Lins, rir o Silvestre
E reler os "Subsídios" o Filinto.
(Gazetinha, de 14-1-1882.)
–––––––––––––––––––––––
Fontes:
Academia Brasileira de Letras
http://pt.wikipedia.org

Adelino Fontoura (1859 – 1884)

Adelino Fontoura Chaves (Axixá, 30 de março de 1859 — Lisboa, 2 de maio de 1884) foi um jornalista, ator e poeta brasileiro, patrono da cadeira 1 da Academia Brasileira de Letras.

Nasceu Fontoura num pequeno povoado maranhense, filho de Antônio Fontoura Chaves e de Francisca Dias Fontoura. É tio-avô do padre, poeta e escritor Fontoura Chaves.

Ainda muito pequeno começa a trabalhar e trava contato com Artur Azevedo – amizade que perduraria.

Mudando-se para o Recife, onde alista-se no Exército, colaborando numa publicação chamada “Os Xênios”, de teor satírico. Inicia, também a carreira de ator, voltando ao Maranhão natal para uma apresentação – cujo papel rendeu-lhe a prisão. Após este fato, decide mudar-se para o Rio de Janeiro, para onde se mudara o amigo Artur Azevedo, anos antes.

Pretendia seguir carreira teatral e no jornalismo, falhando na primeira. Colaborou nos periódicos “Folha Nova” e “O Combate”, de Lopes Trovão e em “A Gazetinha”, onde Azevedo escrevia (1880). Participara junto a outros jovens talentos do jornal “A Gazeta da Tarde” – que seria aziago, no dizer de Múcio Leão, pois, em menos de 3 anos de sua fundação, os seus criadores haviam todos morrido.

Adelino Fontoura viveu nessa fase de sua vida uma paixão não correspondida e, mesmo com a saúde precária, ao ser convidado para representar a Gazeta da Tarde na Europa, decidiu viajar. No dia 1º de maio de 1883 partiu, no navio Senegal, para Paris. Lá esperava encontrar melhoras para a saúde, mas deparou-se com insuportável inverno. Viajou para Lisboa, para onde seguiu José do Patrocínio que havia comprado o “Gazeta da Tarde”, na esperança de convencê-lo a embarcar de volta para o Brasil. Seu estado de saúde era crítico e, por isso, foi internado no Real Hospital São José, onde veio a falecer aos 25 anos de idade, justamente quando poderia produzir toda uma obra poética de mérito literário. Foi sepultado no Cemitério Oriental de Lisboa.

Tinha apenas vinte e cinco anos, e nenhuma obra publicada.

Anos mais tarde, Adelino ocupa a cadeira nº 38 da Academia Maranhense de Letras.

É o único caso de um patrono, na Academia, sem livro publicado. Em vida, ou não atribuíra muita importância a seus trabalhos para reuni-los em livro, ou confiara em não morrer tão cedo. Após a morte, várias tentativas foram feitas para reunir a obra dispersa do poeta.

Ao tomar posse na Academia a 29 de agosto de 2003, Ana Maria Machado retratou o desconhecimento que cerca a obra desse poeta, mesmo entre os eruditos:

Mas como? Não foi Machado de Assis seu primeiro ocupante? Então ele era o patrono? Não. O patrono, escolhido por Murat, foi Adelino Fontoura. Quem? Pois é... Não encontrei quem, ao ouvir essa correção, identificasse o nome . De minha parte, confesso que também mal havia ouvido falar nele, vaga lembrança de algum poema numa antologia. Pois descobri coisas interessantes na magnífica biblioteca desta nossa Academia, aliás aberta ao público para ser utilizada e fruída.”

Sua obra, esparsa, constitui-se em cerca de 40 poesias, reunidas pela primeira vez na Revista da Academia (números 93 e 117). Foi depois reunida em 1943 e em 1955, por Múcio Leão. Fontora não figura na quase totalidade das antologias e históricos da Poesia brasileira - nem a obra "Apresentação da Poesia Brasileira", de outro Acadêmico, Manuel Bandeira, faz-lhe referência. Seu soneto mais conhecido é "Celeste"
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Fontes:
http://pt.wikipedia.org/
Academia Brasileira de Letras
Fotomontagem = José Feldman

Alfred de Musset (Teia de Poemas)


Tristeza

Eu perdi minha vida e o alento,
E os amigos, e a intrepidez,
E até mesmo aquela altivez
Que me fez crer no meu talento.

Vi na Verdade, certa vez,
A amiga do meu pensamento;
Mas, ao senti-la, num momento
O seu encanto se desfez.

Entretanto, ela é eterna, e aqueles
Que a desprezaram - pobres deles! -
Ignoraram tudo talvez.

Por ela Deus se manifesta.
O único bem que ainda me resta
É ter chorado uma ou outra vez.
(Tradução Guilherme de Almeida)
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Chanson

Disse a meu peito, a meu pobre peito:
- Não te contentas co'uma só amante?
Pois tu não vês que este mudar constante
Gasta em desejos o prazer do amor?

Ele respondeu: - Não! não me contento;
Não me contento com uma só amante.
Pois tu não vês que este mudar constante
Empresta aos gozos um melhor sabor?

Disse a meu peito, a me pobre peito:
- Não te contentas desta dor errante?
Pois tu não vês que este mudar constante
A cada passo só nos traz a dor?

Ele respondeu: - Não! não me contento,
Não me contento desta dor errante...
Pois tu não vês que este mudar constante
Empresta às mágoas um melhor sabor?

(Tradução de Castro Alves)
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Vida não Vivida

Era bela, como a estátua
Em mortuária capela,
Dormindo em leito de pedra,
Imóvel, pode ser bela.

Tinha bondade, se basta
Dar, ao acaso, sem dó,
Sem que Deus enxergue a esmola,
Se a esmola é dinheiro só.

Pensava, se o vão ruído
De um falar suave e lento,
Como gemido de arroio,
Denuncia o Pensamento.

Orava, se os olhos negros
Uma vez fitos no chão,
Outra vez ao céu erguidos,
Podem chamar-se oração.

Sorrira, se o refrigério
De uma brisa, na alvorada,
Chegasse a expandir a flor
Que se conserva fechada.

Chorava, se, argila inerte,
Seu coração ressequido
Gotas de celeste orvalho
Pudesse haver recolhido.

Amara, se no seu peito
Não velasse orgulho fútil,
Como em cima de um sepulcro
Se entretém lâmpada inútil.

Aparentava viver...
Sem ter vivido morreu...
Cai-lhe das mãos o livro...
Nesse livro nada leu!

(Tradução de Francisco Otaviano)

Alfred de Musset (1810 – 1857)



Alfred Louis Charles de Musset (Paris, 11 de Dezembro de 1810 — Paris, 2 de Maio de 1857) foi um poeta, novelista e dramaturgo francês do século XIX, um dos expoentes mais conhecidos do período literário conhecido como o Romantismo. Diz-se que ele foi "o mais clássico dos românticos e o mais romântico dos clássicos". O seu estilo influenciou profundamente a literatura europeia, tendo surgido múltiplos seguidores, entre os quais se conta o poeta português Fausto Guedes Teixeira, o expoente máximo do neo-romantismo na poesia lusófona.

Alfred de Musset nasceu em Paris, filho de Victor-Donatien de Musset-Pathay e de sua mulher Edmée Guyot-Desherbiers, uma família culta e equilibrada, desde há longa data ligada às letras. O seu avô fora poeta e o seu pai, também escritor de mérito, mantinha uma relação estreita com Jean-Jacques Rousseau, cujas obras editava. Por esta via, Rousseau exerceu uma grande influência sobre o jovem poeta, em cuja obra recebe diversas homenagens, enquanto atacava violentamente Voltaire, o grande adversário de Rousseau.

Matriculou-se no Lycée Henri-IV com 9 anos de idade. Em 1827 ganhou o segundo lugar no prêmio de escrita em latim do Concours général com o ensaio A origem de nossos sentimentos, revelando assim o seu talento literário. Ainda hoje um busto assinala naquele liceu a passagem de Musset como aluno distinto.

Depois de tentar iniciar uma carreira em Medicina, que abandonou devido à sua repugnância pelas dissecações, tentou Direito, desenho, ensino da língua inglesa, piano e saxofone. Foi então que, com a ajuda de Paul Foucher, um cunhado de Victor Hugo, começou a frequentar, com apenas 17 anos de idade, o Cénacle, o salão literário de Charles Nodier na Bibliothèque de l'Arsenal, descobrindo a sua vocação para a literatura e decidindo seguir carreira literária.

No Cénacle simpatiza com Charles Augustin Sainte-Beuve e Alfred de Vigny, mas recusa-se a adular o «mestre» Victor Hugo. Mais tarde ridicularizou os passeio noturnos dos membros do Cénacle pelas torres da catedral de Notre-Dame e outras actividades do grupo.

Publicou em 1829 o seu primeiro livro, intitulado Contos de Espanha e da Itália, que despertou ao mesmo tempo admiração e protesto, por conter paródias em verso a algumas das mais reverenciadas obras românticas da época.

Sendo o mais novo integrante da nova escola literária francesa, ombreando com grandes nomes, como Alfred de Vigny, Prosper Mérimée, Charles Augustin Sainte-Beuve, entre outros, quando tinha 20 anos a sua fama literária era já grande, colocando-o entre os melhores cultores do Romantismo, mas também já o ligando a hábitos de dandy e a uma vida amorosa desregrada e boêmia.

Musset tentou então a sua sorte no teatro, tentando produzir obras dramáticas que lhe permitissem ganhar a vida. Em Dezembro de 1832 aparece o seu primeiro Spectacle dans un fauteuil, que se compunha de um drama, La Coupe et les Lèvres, uma comédia, À quoi rêvent les jeunes filles?, e um conto oriental, Namouna. Musset exprime já nesta recolha a dolorosa tensão entre deboche e pureza de costumes que dominará muita da sua obra.

Contudo, após o fracasso da sua obra Nuit Vénitienne, escreveria, numa carta a P. Calais «adieu à la ménagerie, et pour longtemps» (adeus à ribalta, e por muito tempo), num afastamento que duraria até 1847, ano em que, já alcoólico, retorna às lides teatrais com outra serenidade.

Em 1832 parte para Itália na companhia de George Sand, com quem mantinha um escandaloso relacionamento amoroso. Esta viagem inspirou-lhe a obra Lorenzaccio, um drama romântico escrito em 1834. Publica então os Contes d'Espagne et d'Italie.

Durante esta viagem Musset adoece e George Sand torna-se na amante do seu médico, Pietro Pagello. Regressa então a Paris, onde faz representar as comédias Le Chandelier, On ne badine pas avec l'Amour e Il ne faut jurer de rien, que se mantêm no repertório do Théâtre-Français. Escreve também novelas em prosa e a Confession d'un enfant du siècle, autobiografia anónima dedicada a George Sand, onde ele descreve os sofrimentos que ela lhe teria inflingido com a sua infidelidade.

Entre 1835 e 1837, Musset compõe a sua principal obra lírica, intitulada Les Nuits (Nuits de mai, d'août, d'octobre, de décembre), em torno de temáticas relacionadas com o sofrimento amoroso, o amor e a inspiração. Estas poesias, muitos sentimentais, são hoje consideradas como as obras mais representativas do romantismo francês.

Foi entretanto nomeado bibliotecário do Ministério do Interior durante a Monarquia de Julho, envolvendo-se durante esse período numa polêmica relacionada com as pretensões francesa nas margens do Reno, agudizadas durante a Crise Franco-Alemão de 1840. A polêmica iniciou-se quando o primeiro-ministro francês Adolphe Thiers, que enquanto Ministro do Interior tinha chefiado Musset, exigiu que o território francês se prolongasse até à margem esquerda do Reno, então assumida como a "fronteira natural" da França a leste. Essa pretensão, apesar da população da região ser de língua alemã, baseava-se no domínio sobre a zona exercido durante o consulado de Napoleão Bonaparte, mas era fortemente rejeitada pelos alemães.

Surgiram então canções e poemas rejeitando a pretensão francesa, entre os quais um poema heróico de Nikolaus Becker intitulado Rheinlied (Canção do Reno), que continha o verso: "Sie sollen ihn nicht haben, den freien, deutschen Rhein ..." (Jamais o terão, o livre Reno alemão). Musset respondeu a este poema com o seu: "Nous l'avons eu, votre Rhin allemand" (Já o tivemos, o vosso Reno alemão).

Musset foi exonerado do seu lugar de bibliotecário na sequência da Revolução de 1848, mas foi depois nomeado bibliotecário do Ministério da Instrução Pública durante o Segundo Império.

Musset recebeu a Légion d'honneur em 24 de Abril de 1845, ao mesmo tempo que Honoré de Balzac, e foi eleito para a Academia Francesa em 1852, depois de duas tentativas frustradas em 1848 e 1850.

De saúde frágil devido a uma malformação cardíaca congênita, estava frequentemente adoentado, situação que se foi agravando devido ao alcoolismo e a um estilo de vida desregrado. Faleceu em Paris a 2 de Maio de 1857, quase esquecido. A influência do seu irmão mais velho, Paul de Musset, levou a que fosse sepultado no cemitério de Père Lachaise, em Paris, onde hoje uma artística obra funerária o relembra.

Foi também Paul de Musset quem exerceu um importante papel na redescoberta da obra de Musset, redigindo a sua biografia e reeditando muitas das suas obras.

A polêmica e os comentários despertados pela sua célebre relação amorosa entre Musset e George Sand, que durou entre 1833 e 1835, levou a que escrevesse a novela autobiográfica La Confession d'un Enfant du Siècle, a que ela ripostou com Elle et lui, recontando a história do seu ponto de vista. Esta obra de Sand, publicada em 1859, não foi bem recebida pelos admiradores de Musset, em particular por Paul de Musset, o irmão do visado, que a parodiou seis meses mais tarde com a obra Lui et Elle.

Sobre esta relação têm sido publicadas diversas obras, entre as quais Les Amants de Venise, George Sand et Musset de Charles Maurras (1902), que leva a cabo um aturado estudo do envolvimento amoroso e do relacionamento intelectual entre eles.

A obra

O poeta francês Arthur Rimbaud foi muito crítico em relação à obra de Musset. Rimbaud escreveu nas suas Lettres du Voyant (Cartas de um Vidente) que a poesia de Musset nada conseguia pois o seu autor "fechava os olhos" perante as visões do espírito (Lettre à Paul Demeny, Maio de 1871).

Em 1999, Diane Kurys realizou um filme, intitulado Les Enfants du Siècle, tendo como tema a relação entre Alfred de Musset e George Sand. Em 2005, a obra Il ne faut jurer de rien foi adaptada para o cinema por Eric Civanyan.

O realizador Jean Renoir inspirou-se na peça Les Caprices de Marianne, de Musset, para realizar La règle du jeu.

Em 2006 surgiu uma edição moderna da obra de Musset, com o título de Poésies complètes, com introdução e anotações por Frank Lestringant.

Obras publicadas

Poesia
A ma mère (1824)
A Mademoiselle Zoé le Douairin (1826)
Un rêve, L'Anglais mangeur d'opium (1828)
Premières poésies (1829)
Contes d'Espagne et d'Italie, La quittance du diable , Une nuit vénitienne (1830)
La coupe et les lèvres, Namouna (1831)
Spectacle dans un fauteuil, A quoi rêvent les jeunes filles (1832)
Lorenzaccio, Les Caprices de Marianne, Rolla, André del Sarto (1833)
Fantasio. On ne badine pas avec l'amour , Perdican, Camille et Perdican (1834)
La quenouille de Barberine, La Nuit de mai, La nuit de décembre. Le Chandelier (1835)
Il ne faut jurer de rien, Lettre à M. de Lamartine, Faire sans dire, La nuit d'août. Poesias completas (1836)
Chanson de Barberine (1836)
Un caprice, La nuit d'octobre, À la Malibran, Emmeline, Les deux maîtresses. Lettres à Dupuis et Cotonet (1837)
Le fils du Titien, Frédéric et Bernerette, L'espoir en Dieu. Dupont et Durand. Margot (1838)
Croisilles (1839)
Les deux maîtresses, Tristesse, Une soirée perdue (1840)
Souvenir, Nouvelles (« Emmeline », « Le fils du Titien », « Croisilles », « Margot ») (1841)
Le voyage où il vous plaira, Sur la paresse, Histoire d'un merle blanc, Après une lecture (1842)
Pierre et Camille, Le secret de Javotte, Les frères Van Bruck (1844)
Il faut qu'une porte soit ouverte ou fermée, Mademoiselle Mimi Pinson (1845)
Nouvelles (« Pierre et Camille », « Le secret de Javotte ») (1848)
Louison. L'Habit vert, On ne saurait penser à tout (1849)
Poésies nouvelles, Carmosine (1850)
Bettine, Faustine (1851)
Publicação de Premières Poésies (entre 1829 e 1835) e de Poésies Nouvelles de 1836 a 1852) (1852)
La mouche (1853)
Contes (1854)

Teatro
André del Sarto, 1833
Les Caprices de Marianne, 1833
Lorenzaccio, 1833
Fantasio, 1834
La nuit vénitienne, 1834
On ne badine pas avec l'amour, 1834
Barberine, 1835
Il faut qu'une porte soit ouverte ou fermée, 1845

Novelas
La Confession d'un enfant du siècle (autobiográfica), 1836

Fonte:
http://pt.wikipedia.org

Otto Lara Resende (Três pares de patins)



No amplo adro de ladrilhos, o ruído surdo, enrolado, parecia sepultar-se na terra. Os risos e os gritos da meninada embaraçavam-se na copa da grande magnólia, iam aninhar-se nas torres da igreja. Os sinos de bronze ruminavam, bojudos e quietos, o próprio silêncio. De quando em quando, a queda de algum patinador provocava uma algazarra que aumentava a confusão. Alheio a tudo, Betinho corria de uma ponta a outra com voltas arriscadas em torno da magnólia que projetava uma sombra compacta e úmida sobre as escadas de pedra-sabão. Betinho deslizava na pista e maldosamente abalroava os menos hábeis. Lá embaixo, depois do largo, as sombras do crepúsculo começavam a envolver os telhados baixos, encardidos.

— Vem — disse Betinho, quando cruzou com Francisco.

Pouco adiante, Débora já os esperava. Juntos, os três procuravam não tropeçar na emenda das lajes, mais altas, mais baixas, ásperas ou lascadas. Betinho ia à frente, puxava Débora pela mão. Olhos fixos no chão, Débora erguia os pés como se saltasse obstáculos e lançava um olhar suplicante a Francisco, que acompanhava timidamente Betinho. O cemitério já se entrevia por trás do gradil.

— Vem — disse Betinho, petulante.
— Onde você está me levando? — perguntou Francisco.

— Medroso — disse Betinho.

Até ali atrás da igreja chegavam os ecos dos patinadores no adro. Débora olhou para trás: ninguém pela redondeza. Um movimento em falso, deitou-a de comprido no chão.

Prolongou a queda, como se esperasse auxílio de alguém. Indeciso, Francisco não a socorreu.

— Betinho — chamou Francisco, para significar que não ia mais adiante.

— Tirem os patins — disse Betinho.

Os três ao mesmo tempo desabotoaram as fivelas dos patins e os descalçaram. Era bom pisar com os pés dormentes em terra firme. Como se tivessem vindo de águas revoltas, em movimento.

— O cadeado está trancado — disse Francisco.

— A gente pula — disse Betinho, e atirou os patins por cima das grades do portão.

— Olha o vigário — disse Francisco.

— Onde? — Betinho, voltou-se de olhos vivos, assustados.

— Pode aparecer — resmungou Francisco.

— Medroso — e Betinho começou a subir no portão, mãos e pés nas vigas de ferro.

— Agora vem você — disse a Débora e lhe estendeu a mão direita.

— Empurra a Dé — disse Betinho, agora em posição segura.

Francisco agarrou os tornozelos da menina sem saber o que lhe competia.

— Assim não — disse Betinho.

Francisco subiu-lhe as mãos pelas pernas, ajudou-a a galgar a primeira etapa, mãos nos seus pés. Depois subiu e alcançou a coluna. Evitava as hastes pontudas. Francisco e Débora acompanhavam-lhe os passos — não havia outro caminho. Em cima do portão, letras de ferro, bordadas, estava escrito: "Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris". Os meninos desciam pelo outro lado, dentro do cemitério.

— Depressa — e Betinho escondeu-se entre o muro e um túmulo.

Francisco apertou a mão de Débora, que era fria, e estendeu a vista de um lado e outro, até lá em cima, no ossário e na parede de engavetar defuntos. Já não se ouvia a meninada no adro. Os patinadores deviam ter se recolhido. Em pouco era a noite. A treva cobriria o cemitério, envolveria a igreja. Uma densa mancha engoliria a copa da magnólia. Em casa o esperavam para jantar, talvez dessem por sua falta e fossem buscá-lo — pensou Francisco.

— Está ficando tarde — disse.

— A gente volta já.

Betinho puxava Débora, que ia nas pontas dos pés, pesada como quem se recusa. Francisco viu Betinho enlaçar a menina e ambos desapareceram por trás de um mausoléu com um anjo de asas de bronze, a mão parada no ar. Francisco olhou os fundos da igreja — quieta e solene como o morro. Voltou-se depois para os túmulos que se sucediam encosta acima. Hora indecisa, entre a noite e o dia. No silêncio, tudo tinha parado. A cidade e o mundo, esquecidos, não ultrapassavam as fronteiras do cemitério. Francisco queria apoiar-se em alguma coisa, mas não ousou encostar-se no túmulo mais próximo. O Cristo de bronze pregado numa cruz de mármore, os companheiros, a vida, o mundo — tudo era absurdo e longe. O arrulhar dos pombos no beiral da igreja queria dizer-lhe qualquer coisa que ele não entendia.

— Francisco.

A cara de Betinho por trás do mausoléu. Francisco foi andando pela aléia entre as sepulturas, até aproximar-se do companheiro, que abotoava os suspensórios por baixo da blusa. Por um momento, estranhou a ausência de Débora e logo a viu deitada, puxando o vestido que deixava à mostra os joelhos.

— Vai — disse Betinho. Está escurecendo. Francisco aproximou-se da menina, tocou-lhe os pés que as alpercatas mal escondiam. Não sabia o que fazer. Olhou Betinho como se pedisse instruções.

— Anda — disse Betinho.

Francisco ajoelhou-se aos pés de Débora e viu Betinho de novo a espreitá-lo.

— Vai embora — e bateu a mão com impaciência.

Betinho sumiu. De joelhos, Francisco apoiou-se com as mãos no chão. O cordão, as medalhas. Débora permanecia passiva, corno a vítima prestes a ser imolada. Estendendo-se de comprido, Francisco sentiu o corpo morno que inerme o recebia. Era como um ritual de que ambos se tinham esquecido. Recortado contra o céu escuro, Débora via parte do anjo de bronze, o braço erguido em sinal de advertência. As mãos no chão, Francisco levantou-se a meio corpo. Débora tentou cobrir o rosto, mas deixou à mostra os olhos que eram cinzentos, quase opacos.

— Está chorando? — perguntou Francisco e passou-lhe a mão pelos cabelos, puxou-lhe os anéis até os ombros.

— Anda — disse Débora.

Francisco não precisou responder, porque Betinho aparecia naquele momento:

— Pronto?

Débora ergueu-se e sacudiu a saia como se quisesse limpá-la. Betinho estava grimpado no alto da pilastra.

— Espera sua irmã — disse Francisco, a voz tão alta que o assustou.

Betinho escorregou para o outro lado, sem fazer caso. Um patim em cada mão, alguns passos adiante voltou-se:

— Ela sabe o caminho.

— Dé — disse Francisco. — Eu te levo.

E saltaram o portão. O vestido de Débora rasgou-se numa haste. Cada qual pegou o seu par de patins. Junto à parede de engavetar defuntos, lá em cima, acendeu-se uma lâmpada vermelha, que anunciava a noite. Em cima do mausoléu, imóvel, o anjo dava adeus num gesto de bronze.

— Tarde demais — e Débora ergueu os olhos para o céu sem estrelas.

— Sua mãe zanga? — perguntou Francisco.

De mãos dadas, de costas para o cemitério, ganharam a calçada que contornava a igreja. No jardim, um padre passeava para lá e para cá, um livro aberto nas mãos. Francisco sussurrou qualquer coisa que Débora não entendeu. Voltaram ambos pelo mesmo caminho, passaram diante do gradil do cemitério e contornaram a igreja pelo outro lado. Confundido agora com as sombras da noite, o silêncio a tudo emprestava proporções monumentais. O adro imenso, desabrigado. O vento na copa da magnólia iluminava as folhas de um lado como se tivessem luz própria.

A escadaria, os degraus gastos, familiares, caminho da missa, da novena, da bênção e do mês de maio. Chegaram ao largo e apertaram o passo até a esquina da mangueira. A casa no alinhamento tinha janelas baixas. Na ponta dos pés como uma boneca, Débora abriu a porta e, lá dentro, ouviu a voz de Betinho entre vozes adultas, indiferentes.

— Está na mesa — disse a mãe.

— Onde está Dé? — perguntou o pai.

— Evem aí — disse Betinho, fungando.

Sozinho na rua, Francisco ouviu o sino que começou a dobrar e despejava sobre a cidade uma onda de sons, a noite grave e triste que ia começar. Na rua parada, as casas paradas, as árvores paradas. O sino o perseguia, ia à frente e vinha atrás. Francisco deixou cair os patins e não voltou para apanhá-los. Fugia como se o cemitério tivesse se despenhado rua abaixo, no seu encalço.

Abriu o portão de casa, atravessou o jardim, parou no alpendre que uma trepadeira atulhava. A dama-da-noite impregnava o ar de um perfume sereno, pacificador. Uma luz estava acesa lá dentro. Limpou com insistência os pés no capacho, como se chegasse da chuva. Enxugou seu rosto molhado de lágrimas na fralda da camisa.

O sino tinha parado de tocar, mas alguma coisa vibrava no ar, sobre a cidade que acabava de acender as suas luzes para dormir.

Fonte:
RESENDE, Otto Lara. O Boca do Inferno. SP: Companhia das Letras,1998.