terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Jerônimo Mendes (História da Poesia Universal – Breve Relato ) Parte VII



A UTILIDADE DA POESIA

1. POESIA EM FORMA DE PROTESTO

De alguma forma, a poesia sempre esteve ligada às causas rebeldes, em todos os tempos, desde os grandes dramaturgos até os dias de hoje, nas odes de Píndaro e Temístocles ou nos versos brancos de Thiago de Mello, Ferreira Gullar ou Drummond.

Alceu, poeta do Século VII a.C., contemporâneo e conterrâneo de Safo, pertencia à aristocracia de Lesbos, que entrou em choque com outras forças sociais aspirantes ao poder, representadas pelos chamados tiranos, tais como Melancro, Pítaco e Mirsilo (cuja morte o poeta festejou). Participou intensamente dessas lutas, com seus irmãos. Percorreu o Egito e a Trácia (provavelmente exilado), onde se situa o rio Ebro, celebrado em seus versos. Sua obra, originalmente distribuída em dez livros, apesar de ter chegado a nós muito fragmentada, contém a expressão e a força de suas convicções políticas e de oposição aos governos.

Catulo, já estudado no capítulo anterior, apesar da sua lírica predominante, apresenta em seus textos marcas profundas da sua convicção satírica, jocosa e por vezes irônica mesmo, louvada pela sua simplicidade direta.

Júlio César e seu chefe de estado-maior eram o alvo das farpas de Catulo: “ ambos adúlteros, igualmente ávidos, parceiros na competição pelas mocinhas da cidade “. César, como vimos anteriormente, tinha espírito esportivo. Depois de exigir e receber desculpas, convidou o poeta para jantar.

Cabe, para melhor interpretação da parte inicial do capítulo que estamos estudando, um pequeno trecho do poema mais famoso de Catulo :

Rufo, que acreditei, erroneamente,
ser amigo, de graça (mas, de graça ?
Paguei um alto preço e sofri danos),
Como pôde você insinuar-se,
Abrasar as entranhas deste pobre,
Levar toda a riqueza de uma vida ?
Levou, levou o meu vento ardente,
roubou a praga do meu amor, ai.

Ninguém representou melhor a poesia satírica latina do início do primeiro milênio do que Marcial, poeta espanhol nascido no ano 40 d.C.. Pelo fato de ter vivido uma vida livre e a serviço dos poderosos, foi cronista social obsceno e pornográfico e por isso mesmo muito combatido e perseguido no seu tempo.

Com seu amigo espanhol Juvenal formaram a maior dupla da poesia satírica latina, além de Horácio, no século anterior. Censuradíssimo, só encontrou as primeiras traduções sem maiores empecilhos nos anos 60 e 70, especialmente graças ao trabalho do pioneiro e estudioso de sua obra Guido Ceronetti, do qual muitos historiadores ao longo tempo também se valeram. Abaixo, alguns trechos dos seus famosos epigramas dão razoável dimensão da obscenidade do poeta, despejada sem escrúpulo sobre seus inimigos e, inclusive, sobre aquelas que, embora estivessem na cama dos muitos poderosos, faziam questão de ignorá-lo por sua língua ferina :

I, 24
Veja, Deciano, aquele homem despenteado,
cenho cerrado, que até incute medo,
e que só fala dos varões de antigamente :
Casou-se ontem, acredite : ele era a noiva.

I, 57
De que tipo de garota eu gosto, Flaco ?
Entre a difícil e a fácil, meio a meio.
A namorada ideal é assim que eu quero :
Não infernize a minha vida e não me farte.

Em outro, rebate as críticas de seus contemporâneos que zombam de sua poesia :

Você não publica teus versos, Lélius,
mas critica os meus,
põe fim às tuas críticas
ou publica os teus.

Os poetas latinos do início do século I d.C., salvo algumas raras exceções como Propércio, dedicaram-se a maior parte do tempo a estudar o comportamento de inimigos e desafetos para transformá-lo em verdadeiro objeto de crítica e sátira sem qualquer constrangimento.

Seus protestos ou sátiras eram puras ofensas que, muitas vezes, demoravam a ser compreendidas e chegavam aos ouvidos dos destinatários por outros de maneira distorcida.

Desta forma, não raro os poetas debruçavam-se em réplicas e tréplicas constantes por conta de sua responsabilidade na manutenção da palavra (ou ofensa) perante os cidadãos da época. Catulo e Marcial foram bons no que se propuseram a fazer e por conta de seus protestos muitos imperadores romanos como Júlio César e Cláudio perderam boa parte do seu tempo tentando justificar-se dos insultos e verdades.

Camões, apesar de ter cantado muitos amores, soube servir-se de sua indiscutível capacidade intelectual para atirar suas farpas contra tudo aquilo que julgara inútil em vida. Ao mesmo tempo homem de “armas” e de “ letras “, temperamento aventureiro, ousado e reflexivo, ele é o representante típico de um modelo e ideal de homem que é central para a cultura do século XVI.

Sua vida traz em si a plenitude da experiência da condição humana : soldado, marinheiro, colonizador e estrangeiro, poeta, homem de cultura assombrosa e requintada, universal para os moldes de seu tempo, e em permanente conflito com as vicissitudes do mundo e da vida. E sua obra é, sem dúvida, o espelho fiel desta plenitude e universalidade ” .

Seu espírito rebelde e suas desavenças com o rei de Portugal custaram-lhe anos de exílio e terminaram por obrigá-lo a desempenhar funções longe da terra natal, a serviço da corte, em países onde não tinha a menor afinidade com a língua e costumes. Por este motivo talvez tenha produzido uma obra tão vasta e de caráter turbulento, despejado com fervor em grande parte dos seus poemas, como o que transcrevemos em seguida :

[ TANTA GUERRA, TANTO ENGANO . . . ]
No mar tanta tormenta e tanto dano,
tantas vezes a morte apercebida;
Na terra tanta guerra, tanto engano,
tanta necessidade aborrecida !
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
que não se arme e se indigne o céu sereno
contra um bicho da terra tão pequeno ?

Nosso maior representante da poesia em forma de protesto foi, certamente, Gregório de Matos Guerra, motivo que lhe valeu o apelido de Boca do Inferno e chegou a ser banido para Angola no de 1694. A parte mais significativa de sua obra é lírica, de caráter sacro, porém ficou mais conhecido pela sátira à nobreza e ao clero, escrita nos mais diversos lugares onde estudou e ocupou cargos públicos de destaque. No poema que segue, Gregório de Matos descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia e não poupa elogios (?) aos desmandos de Portugal, embora a interpretação seja difícil somente numa primeira avaliação e leitura de seus versos :

A cada canto um grande conselheiro,
que nos quer governar cabana e vinha.
Não sabem governar sua cozinha
e podem governar o mundo inteiro.
Em cada porta um bem freqüente olheiro
que a vida do vizinho e da vizinha
pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha
para levar à praça e ao terreiro.
Muitos mulatos desavergonhados,
trazidos sob os pés dos homens nobres
posta nas palmas toda a picardia,
Estupendas usuras nos mercados,
todos os que não furtam muito pobres
e eis aqui a cidade da Bahia.

Este soneto dá uma boa idéia da dimensão da produção poética e do comportamento agressivo, mas intelectual e pessoal, do Boca do Inferno. Mais para o nosso século, vamos nos prender aos autores brasileiros que melhor representaram a classe de protestantes (esta definição é nossa, surgiu espontaneamente) do Brasil do início do século até os dias de hoje.

Augusto dos Anjos, mencionado no capítulo dos Grandes Poetas, nunca se filiou a qualquer escola poética, dada sua riqueza de sensações e estilo próprio. O título de seu único livro, Eu, agregado posteriormente a Outras Poesias pelos amigos e estudiosos do poeta, é um monossílabo que fala. Segundo apuramos, três fatores fizeram a profunda tristeza de Augusto dos Anjos : um de caráter individualíssimo, outro mesológico (Relativo a mesologia, a relação entre os seres e seu meio ambiente) e o terceiro espiritual.

Seu protesto era contra a vida, contra tudo e contra todos. Histérico, neurastênico, desequilibrado, a esse tipo de julgamento teve de acostumar o poeta, O Doutor Tristeza.

Cesário Verde, antigo professor da Paraíba, enfurecido com os temas escritos por Augusto dos Anjos no jornal O Comércio, deu-se ao trabalho de mandar imprimir e fazer distribuir pelas ruas da cidade uma “ carta aberta ”, cheia de impropérios, atacando rudemente o Poeta Raquítico , mas a resposta não tardou a chegar, em versos alexandrinos (Versos de doze sílabas, empregados pela primeira vez por Alexandre de Bernay, num poema dedicado a Alexandre, O Grande) , e merece ser lembrada :

BILHETE POSTAL

Ilustre professor da Carta Aberta: - Almejo
que uma alimentação a fiambre e a vinho e a queijo
lhe fortaleça o corpo e assim lhe fortaleça
as mãos, os pés, a perna et coetera e a cabeça.
Continue a comer como um monstro no almoço,
inche como um balão, cresça como um colosso
e vá crescendo e vá crescendo e vá crescendo,
e fique do tamanho extraordinário e horrendo
do célebre Titão e do Hércules lendário;
O seu ventre se torne um ventre extraordinário,
cheio do cheiro ruim de fétidos resíduos,
as barrigas então de cinqüenta indivíduos
não poderão caber na sua ampla barriga;
Não mais lhe pesará a desgraça inimiga,
O seu nome também não será mais Antonio.
Todos hão de chamá-lo o colosso, o demônio,
a maravilha das brilhantes maravilhas.
As hienas carniçais, as leoas e as novilhas,
diante do seu vigor recuarão, e diante
do estribado metal de sua voz atroante
decerto correrão mansas e espavoridas.
Se as minhas orações forem, pois, atendidas,
o senhor há de ser o Teseu do universo.
Seja um gigante, pois; não faça porém, verso
de qualidade alguma e nem também me faça
artigos tresandando a bolor e a cachaça,
ricos de incorreções e erros de gramática,
tenha vergonha, esconda essa tendência asnática,
que somente possui o seu cérebro obtuso -
Esconda-a, e nunca mais se exponha a fazer uso
da pena, e nunca mais desenterre alfarrábios.
Os tolos, em geral, são tidos como sábios,
que sabem calar-se e reprimir-se sabem,
o senhor é palpavo e os palpavos não cabem
no centro literário e no centro político.
Respeite-me, portanto !
O Poeta Raquítico .

Durante a ditadura militar, Carlos Drummond de Andrade já com o peso da idade e os ombros que suportam o mundo (Famoso poema de Drummond incluído em diversos antologias nacionais e internacionais) , sofreu calado, intimidado pelo regime militar que não poupou os manifestos nacionalistas nas suas mais diferentes formas : exílio, tortura, cassação de direitos políticos.

É possível identificar em diversos poemas de Drummond, com um pouco de esforço intelectual, o seu repúdio e ódio pela sistemática do governo ditatorial, intrinsecamente manifestada por uma questão de segurança. Em seus Poema Salário, O Novo Homem, Caça Noturna e O Prisioneiro, o poeta não esconde a insatisfação pelas coisas vis, pelo que considera indigno ao ser humano, que representam o confronto direto entre a sua eterna convicção e tudo o que se produz de ruim no mundo. Certas Palavras resume seu manifesto de oposição e protesto ao sistema controlador da liberdade, do direito à liberdade de vida e expressão, como podemos avaliar a seguir :

Certas palavras não podem ser ditas
em qualquer lugar e hora qualquer.
Estritamente reservadas
para companheiros de confiança,
devem ser sacramente pronunciadas
em tom muito especial
lá onde a polícia dos adultos
não adivinha nem alcança.
Entretanto são palavras simples :
definem partes do corpo, movimentos, atos
do viver que só os grandes se permitem
e a nós é defendido por sentença dos séculos.
É tudo proibido. Então falamos.

Aos 17 anos, o poeta desentendeu-se com seu professor de português no internato onde estudava, exatamente ele, o jovem que nos certames literários do colégio, por sua maestria, era chamado de “general ”. A conseqüência desse incidente é a expulsão do colégio ao término do ano de 1919.

Durante os anos de internato, Drummond descobriu que Itabira era sua : a terra e a livre - seu quarto, infinito. Tristeza, saudades, solidão e rebeldia marcaram este período, duramente protestado em seu poema Fim da casa Paterna, como retratamos abaixo, em um pequeno trecho do poema :

E chegada a hora negra de estudar.
Hora de viajar rumo à sabedoria do colégio.
Além, muito além de mato e serra
fica o internato sem doçura ...
O colchão diferente.
O despertar em série (nunca mais acordo
individualmente, soberano).
A fisionomia indecifrável
dos padres professores.
Até o céu diferente : céu de exílio.

Quase ao mesmo tempo, Thiago de Mello, embora vivendo no Chile, teve mais oportunidade de combater tudo aquilo que julgou contrário aos seus princípios e preceitos básicos da boa convivência e relacionamento. Por esse motivo, o poeta irrompeu na paisagem da poesia brasileira como um força elementar.

Uma personalidade indomável ; um grande individualista que tinha o direito de falar de si próprio e das suas emoções porque manifestava sentimentos representativos ”. Foi o primeiro grande poeta que o Amazonas deu ao Brasil e um cidadão aberto aos anseios coletivos do povo brasileiro. Thiago de Mello colocou seus versos a serviço dos oprimidos e humilhados porque imaginou que a redenção deles marcaria a sua e a nossa liberdade.

Em abril de 1964, quando optou pelo exílio no distante Chile (onde desempenhava a função de adido cultural da embaixada brasileira), a ter de se sujeitar aos desmandos da ditadura militar instalada no Brasil, o poeta produziu um das jóias raras da poesia nacional, seu célebre poema Os Estatutos do Homem, uma espécie de Ato Institucional Permanente, como ele mesmo definiu, dedicando-o a Carlos Heitor Cony, seu amigo das letras.

No poema, Thiago de Mello desabafa toda sua indignação contra o novo regime e, ao contrário do que se tentava implantar no país, pregou a liberdade com maestria e a valorização da ética e do bom senso, protestando sem ironia e com muita esperança contra tudo aquilo que jamais desejou para o povo brasileiro.

Vejamos, então, seu protesto calado, ou parte dele, hoje traduzido em várias línguas e momento da resistência do povo brasileiro contra a opressão :

ARTIGO I
Fica decretado que agora vale a verdade,
que agora vale a vida,
e que de mãos dadas,
trabalharemos todos pela vida verdadeira . . . .

ARTIGO II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo . . . .

ARTIGO III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança . . .

ARTIGO V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura das palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

ARTIGO XII
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.
Tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo Único:
Só uma coisa fica proibida : amar sem amor.

ARTIGO FINAL
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

Ao inserir a pérola poética de Thiago de Mello, encerro o capítulo com o sentimento do dever cumprido, ou seja, o de enaltecer o valor da poesia como instrumento de protesto e resistência aos mais diferentes tipos de opressão acumulada em milênios da existência humana, por conta de corruptos e tiranos detentores do poder em todas as épocas, muitas vezes tomado à força. Naturalmente, não fui capaz de avaliar cada poeta em particular à altura dos grandes estudiosos e críticos do mundo literário, mas descobri, em curto espaço de tempo, a força de suas palavras, a profundidade de suas mensagens e reconheço na sobrevivência poética de todos o verdadeiro valor que representavam para o seu povo, caso contrário, teriam caído no esquecimento e não seria possível tomar conhecimento de suas obras.

Fonte:
Monografia feita pelo autor em Curitiba / PR , março de 2001

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Trova XCVI - Héron Patrício (São Paulo/SP)

Trova sobre imagem da internet capturada de http://chargedodiemer.blogspot.com

Poesias Gauchescas II



Antônio Pereira Mello
QUERÊNCIAS

Gauchada rio-grandense
Sou um gaúcho mui sério
Tenho alma de gaudério
Um dia tomei consciência
Piquei o pingo na espora
E saí estrada afora
Pra conhecer outras querências.

Um dia subi a serra
Saí de casa cedinho
Meu destino - sobradinho -
Queria conhecer tudo
Naquela serra bacana
Arroio do Tigre, Ibirama,
E a cidade de Agudo.

Depois fui pra fronteira
Eu vos digo agora aqui
Que lá no velho Itaqui
Tem muita prenda aragana
Eu lembro a todo momento
De Sant'ana do Livramento
E também de Uruguaiana.

Querências do meu Rio Grande
Umas conheço, outras não
Nesse imenso rincão
Que é o nosso pampa gaúcho
Onde tem prendas decentes
E a gauchada valente
Que agüenta qualquer repucho.

Rio Grande, terra querida
Querência que eu amo tanto
Uma coisa eu te garanto
Eu sou um índio sem luxo
Meu orgulho é ser gaúcho
Filho desse pago santo.
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Apparício Silva Rillo
GAÚCHO VELHO

Gaúcho velho que foste menino
nos entreveros de noventa e três!
Brigaste a vida toda com o destino
e o destino apanhou mais de uma vez!

Está na hora de largar o flete
para a invernada das melhores águas,
e pra lembrança, pelo mesmo brete,
teu passado de risos e de mágoas!

Quanta geada no cabelo escasso
do tapejara que caiu no laço
que a mão do tempo lhe atirou por trás!

Culatra de uma tropa caborteira
que deixou fama e rastro na poeira
pra tropa nova que vem vindo atrás…
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Autor Desconhecido
ARROZ DE CARRETEIRO

Prato simples que sustenta,
O arroz de carreteiro
É rude manjar campeiro
Com sabor tradicional.
Esta iguaria bagual,
Dos tempos de antigamente,
Ganhou fama e, de repente,
É prato tradicional.

Arroz gaúcho, amarelo.
Charque gordinho, cebola
Daquela roxa, crioula
E o verde é salsa picada.
Panela preta areada,
Água quente na cambona,
Colher de pau, Mangerona,
Parece não faltar nada.

Charque picado a capricho
Tem que ser bem escaldado,
Escorrido e colocado
Na panela novamente.
Quando corar, simplesmente
Bote a cebola picada,
Quando esta ficar dourada
Ponha um pouco de água quente.

Baixe o fogo e bote a tampa
Enquanto o charque cozinha.
De vez em quando, uma agüinha
Pra que não fique queimado.
Aí o arroz é lavado
E a Mangerona tem vez,
Mais uma agüinha, talvez,
Garantindo o cozinhado.

Estando o charque macio,
Bote o arroz pra que se aquente.
Revive continuamente
Com calma e muita paciência.
Baixe o fogo, por prudência.
Bote água na cambona,
Prove o sal e a Mangerona
Que são, do gosto, a essência.

Quando o arroz ficar cozido
E ainda estiver molhado,
Tire a panela de lado,
Ponha a salsa e deixe estar.
Chame a turma pra almoçar
E sirva até o bem do fundo
Pra contentar todo mundo
Com delicioso manjar.
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Autor Desconhecido
CHIMARRÃO


Oh! filtro misterioso e ardente
De solilóquios companheiro.
Teu convívio tão prazenteiro
Transforma-te em meu confidente.

Ao sorver-te alegre ou triste,
Alio aos meus sentimentos
alegrias, desalentos,
tudo que em minh'alma existe.

Na eloqüência do teu mutismo
colho a censura com humildade,
recebendo o aplauso sem vaidade,
teus conselhos com altruísmo.

Velha herança guarani!
Oh! meu mate-chimarrão!
Agridoce infusão que resuma até:
amizade, amor, fé.
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Autor Desconhecido
RIO GRANDE

Ser gaúcha não precisa
ter nascido aqui no sul
basta amar o céu azul
e gostar do mate-amargo
do sopro do minuano
que vem nos fazer afago
Este ventinho nativo
que faz parte deste pago.

Ser gaúcha meus senhores
é trazer dentro do peito
com todo amor e respeito
a gloriosa tradição
usar vestido de chita
dançar xote e chimarrita
nos fandangos de galpão.

É trazer no coração
um Rio Grande assim pequeno
molhado pelo sereno
no frescor da madrugada
é gostar da gauchada
é amar o joão-barreiro
e ter a simplicidade
deste povo hospitaleiro!

Amar o cheiro da terra
misto de agreste e selvagem
é o gado na pastagem
pra enfeitar as campinas
são as águas cristalinas
numa incansável viagem
indo ao encontro do mar
levando doce mensagem

E o grito do quero-quero
autêntico sentinela
é o barulho da cancela
do peão voltando pra estância
é ter no peito esta ânsia
de vida paz e esplendor
é cantar todo encanto
Rio Grande feito de amor!
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Autor Desconhecido
PRECE DO CAVALO


Ouve, atende tu que és meu dono,
quando te imploro:

Dá-me que comer e dá-me que beber,
trata-me com carinho ao terminar o
trabalho diário que me exiges;
proporciona-me um bom alojamento,
cama limpa e seca, baia larga e espaçosa,
para que eu possa me deitar com comodidade.

Fala comigo.
Tua voz me indicará melhor
o que devo fazer, do que
o teu chicote ou as tuas esporas.

Acaricia-me às vezes senão muitas,
que desse jeito te servirei
com mais alegria e muito mais saberei te amar.

Não puxes inutilmente pelas rédeas,
não me castigues ao subir uma ladeira,
não me obrigue a sofrer
pesos superiores às minhas forças.

Não me castigues jamais quando
te não tenha compreendido;
procura sempre fazer-me
compreender o que de mim queres.

Olha-me com atenção todas as vezes
que eu deixar de fazer o que me ordenas;
vê se há alguma cousa que não me convenha
ou me ofenda nos arreios ou nas minhas patas.

Quando vires que evito comer
ou resisto ao bom governo,
examina os meus dentes e as minhas barras,
talvez seja um dente dolorido
ou a existência de ferimentos nas barras.

Não tenhas presa a minha cabeça em posição forçada,
de modo que me prive de deitar,
nem me prives da minha defesa
contra as moscas e mosquitos
aparando-me exageradamente a cauda
e os pêlos dos esporões e das quartelas.

Enfim, peço-te me livres do mormo e das esponjas.

Quando se esgotarem as minhas forças
para o serviço não me separes de ti
para que eu não morra de fome ou de frio;
não me vendas a um dono cruel
que me vá torturar pela fome
e pelo trabalho que eu não posso mais dar.

Tira-me antes a vida
por meios mais brandos e menos dolorosos.

O teu Deus há de recompensar-te
pela caridade com que tratas
um ser inferior que também
nasceu numa estrebaria.
================

João Clímaco Bezerra (A Vinha dos Esquecidos)


Análise da obra

Em A Vinha dos Esquecidos, João Clímaco Bezerra narra a angústia existencial do padre Anselmo, ao mesmo tempo em que conta a história do negro Zacarias, numa perdida cidadezinha do interior. O livro tem 35 capítulos que se alternam entre padre Anselmo (capítulos ímpares) e Zacarias (capítulos pares).

João Clímaco Bezerra consegue tramar bem o seu enredo, a partir da subjetividade dos personagens, nuanças de personalidade, também registrando um contexto histórico em que o modo de vida rural começa a mudar.

O título do romance remete à existência de uma população esquecida, assistida por um padre também esquecido:

(...) Agora as pregações haviam dado uma guinada de extremo a extremo. De tudo proibido passara para tudo permitido. Sinal dos tempos. Padre Anselmo não gostava de ameaças de castigo. Preferia mostrar Jesus, o doce Jesus, como o cordeiro de Deus que viera tirar os pecados do mundo. O Ser Supremo que tudo o todos perdoava. E tinha a predileção especial pela palavra “vinha”. (...)

Na obra, encontramos narrativa heterodiegética com acessibilidade lingüística, número atraente de discursos diretos, além dos discursos indireto e indireto livre, alguns até fazendo uso de palavras de baixo calão; encontramos, não raramente, flash-bach; há personagens bem definidos, abundância de criticidade, regionalismo, intensa intertextualidade bíblica; recorrente uso de latinismos; presença dos dois protagonistas (padre Anselmo e Zacarias); idealização de alguns personagens, como seu Leandro; personagens reais, como o padre Mundoca; discursão acerca de temas polêmicos ou inquietantes, como o segredo de confissão ou a educação sexual; há temas emocionantes como a amizade, o amor, e sociais, como a justiça ou a falta dela.

A Igreja era ligada ao conservadorismo. Logo, padre Anselmo seguia este caminho. Mas com a chegada de um novo padre, padre Pierre, que trazia idéias libertadoras da Europa, todos se vêem escandalizados.

Pode-se apontar portanto, temáticas muito relevantes e recorrentes no romance de Clímaco, como morte, desigualdade social, prostituição, injustiça, segredo de confissão, crises existenciais, racismo, tentação, casamentos formal e informal, religiosidade/crenças em milagres e educação sexual.

Obra de densidade psicológica. Configura-se como um romance de personagens, cuja narrativa se volta para a trajetória de vida de dois personagens. Vê-se ao longo da leitura, que a obra desenvolve o mundo interior das personagens, narrando o que pensam e o que lhes diz a consciência de si mesmas e dos demais.

Tempo

Pelos indício de modernidade que a cidade começa a tomar conhecimento, possívelmente a história ocorre na segunda metade do século XX. Embora haja o tempo psicológico, é o cronológico que ainda norteia a seqüência das ações.

Foco narrativo

O foco narrativo é feito na terceira pessoa, através de um narrador onisciente, que parece filtrar todo o tempo o ponto de vista dos protagonistas. O narrador, em alguns momentos, confunde-se com o protagonista, daí a força do discurso indireto livre para manifestar essa identificação.

O narrador de A Vinha dos Esquecidos não é personagem.

Enredo

A obra é ambientada em um lugarejo perdido sem progresso, abandonado das autoridades, dos homens de negócios, de Deus. Uma "cidadela esquecida até por Deus", na qual histórias simples e outras bastante complexas se mesclam.

A história principal focaliza a personagem Padre Anselmo, homem de Deus que, apesar de sua formação de Seminário, vive um confronto enorme: desde criança gostava de esganar os bichinhos, maltratar os animais. Por não ser um menino de muita atitude, aceitou de pronto a ordem de sua mãe de colocá-lo no Seminário; sem muitas manifestações de contrariedade, Anselmo entra no colégio de sacerdotes e, logo no início de sua formação doutrinária recebe, de um professor, o livro "A Imitação de Cristo", livro que o acompanha em todos os momentos, livro que permanece no bolso surrado de suas roupas simples. É desse livreto que Anselmo retira forças nos momentos de maior aflição e provações.

Ao tornar-se padre é enviado de volta a cidade que nasceu. Perde a mãe muito cedo e passa a ser criado pela negra Joana, que nunca o informa do verdadeiro paradeiro de seu pai. Devido o passado crudelíssimo de maltratar os animais, evita criá-los em sua casa, evita ter contato com eles, então, passa a cuidar de rosas, passa a conversar com elas, entende-as, preocupa-se quando estão doentes, vibra quando estão em plena saúde.

Padre Anselmo tem, embora lute muito contra esse sentimento, gosto por ver os moribundos padecendo, sente prazer pela morte das criaturas.

Um grande acaso atormenta a vida de Anselmo: a morte e estupro de uma garota por Inácio, homem que freqüenta as altas rodas da sociedade, possui um armazém e dinheiro, porém, devido a polícia ter chegado ao local do crime no momento em que Pedrinho, pai de família, honesto, incapaz de realizar tamanha barbaridade, passava. Pedrinho é acusado erroneamente de assassino; O padre, devido às confissões de seus fiéis sabe quem foi o verdadeiro assassino, uma vez que Inácio o confessa, porém fica de mãos atadas por se tratar do segredo da confissão, logo guarda para si uma verdade que não pode vir à tona. Sofre muito ao ver Laura, esposa de Pedrinho aos prantos sem poder fazer nada por ela. Anselmo consegue que Pedrinho saia da cadeia, onde está padecendo, para se cuidado pela esposa, embora provisoriamente.

Nos momentos finais do livro, padre Anselmo contesta Deus em como irá apresentar suas ovelhas diante do Todo Poderoso, sabia que ali eram todos mansos e humildes de coração, mas, que algumas vezes, pareciam mais um conjunto de lobos. O livro termina com padre Anselmo contemplando a cidade em que nascera, e que depois de se tornar sacerdote, voltara para seu povo, agradecia a Deus, embalado pela beleza das estrelas e pelo cheiros das rosas que cativava.

Uma história paralela é a do Negro Zacarias, homem direito, que, quando criança, sofria muito por ver Isaura, sua mãe, ganhar dinheiro como "mulher da vida", recebendo homens em sua casa; Zacarias fazia-se de surdo no seu quarto para não ouvir "os ofegos dos homens em cima de sua mãe". Foi mandado para o colégio público, mas não perseverou; Padre Anselmo manda Zacarias para uma escola particular, porém, ao ser humilhado pelo professor, ameaça-o com um estilete, vai embora e não mais se interessa pelos estudos.


Passa a trabalhar na caldeira da casa de máquinas da fábrica de Seu Leandro, que é um homem muito bom, conversa com os empregados, ajuda-os. Na caldeira mostra-se muito útil e inigualável, com o passar do tempo nutre uma grande amizade por Justino, rapaz com o qual Zacarias muito se identifica, por se parecer com ele, porém, Justino tem muito gosto pelos estudos, de uma família de onze irmão, sonha em ser doutor, quando sai da fábrica vai direto para a aula. Isaura, mãe do negro Zacarias, falece e seu Leandro ajuda bastante nos rituais fúnebres. Agora Zacarias está só, sem ninguém, pois não namorava, era filho único, só tinha a mãe por companheira. No velório de uma funcionária da fábrica, Zacarias conhece Maria, "moça donzela", bem cuidada pela mãe, chega a beber um pouco e a falar besteiras, porém sente algo bom por ela, sente-se leve.


Depois do velório acompanha Maria e a mãe dela até em casa. Passam-se os dias e quando Zacarias se encontra tocando violão em casa, no meio da noite, surge uma mulher bonita, limpa, à porta, era Alice, "uma mulher da vida como Isaura", Zacarias deixa-a entrar e por fim mantém relação sexual na mesma cama em que sua mãe morrera. Zacarias fica muito perturbado quanto a tudo, será que trabalhara até agora para se juntar a uma "sem-vergonha"? Ou será que deveria casar direitinho com Maria e viver em paz?

Em um determinado momento a fábrica pega fogo, porém não acontece um grande acidente, os prejuízos são poucos; é nessa hora que o velho Clarindo intensifica sua cobrança pelo sindicato, reivindicando indenizações, seu Leandro tem uma conversa com ele e, pela maneira serena que seu Leandro tem de falar, o homem muda seu comportamento e a idéia esfria. Após o incêndio, Justino passa a trabalhar no escritório, trabalho leve, e no seu lugar entra Jorginho, seu irmão, porém Zacarias não simpatiza com o garoto, por ele ser muito arredio, muito preguiçoso, ser muito diverso de Justino.

Zacarias fala com Maria e pede-a em casamento, fazem uma promessa de nunca mais tocar no nome de Alice. (O livro relata o noivado, mas nada aborda sobre o casamento e o futuro dessas duas personagens).

Vale salientar que ao final do livro, o autor deixa em aberto os finais das histórias, não se relata se a negra Joana morre, se Padre Anselmo morre, não comenta sobre o casamento de Zacarias e Maria.

A resolução do caso de Pedrinho e Inácio, não dá pra dizer se Inácio se entrega às autoridades, tendo em conseqüência a liberdade de Pedrinho.

Fonte:
http://www.passeiweb.com.br

Machado de Assis (Último Capítulo)


Há entre os suicidas um excelente costume, que é não deixar a vida sem dizer o motivo e as circunstâncias que os armam contra ela. Os que se vão calados, raramente é por orgulho; na maior parte dos casos ou não têm tempo, ou não sabem escrever. Costume excelente: em primeiro lugar, é um ato de cortesia, não sendo este mundo um baile, de onde um homem possa esgueirar-se antes do cotilhão; em segundo lugar, a imprensa recolhe e divulga os bilhetes póstumos, e o morto vive ainda um dia ou dois, às vezes uma semana mais.

Pois apesar da excelência do costume, era meu propósito sair calado. A razão é que, tendo sido caipora em minha vida toda, temia que qualquer palavra última pudesse levar-me alguma complicação à eternidade. Mas um incidente de há pouco trocou-me o plano, e retiro-me deixando, não só um escrito, mas dois. O primeiro é o meu testamento, que acabo de compor e fechar, e está aqui em cima da mesa, ao pé da pistola carregada. O segundo é este resumo de autobiografia. E note-se que não dou o segundo escrito senão porque é preciso esclarecer o primeiro, que pareceria absurdo ou ininteligível, sem algum comentário. Disponho ali que, vendidos os meus poucos livros, roupa de uso e um casebre que possuo em Catumbi, alugado a um carpinteiro, seja o produto empregado em sapatos e botas novas, que se distribuirão por um modo indicado, e confesso que extraordinário. Não explicada a razão de um tal legado, arrisco a validade do testamento. Ora, a razão do legado brotou do incidente de há pouco, e o incidente liga-se à minha vida inteira.

Chamo-me Matias Deodato de Castro e Melo, filho do sargento-mor Salvador Deodato de Castro e Melo e de D. Maria da Soledade Pereira, ambos falecidos. Sou natural de Corumbá, Mato Grosso; nasci em 3 de março de 1820; tenho, portanto, cinqüenta e um anos, hoje, 3 de março de 1871. Repito, sou um grande caipora, o mais caipora de todos os homens. Há uma locução proverbial, que eu literalmente realizei. Era em Corumbá; tinha sete para oito anos, embalava-me na rede, à hora da sesta, em um quartinho de telha vã; a rede, ou por estar frouxa a argola, ou por impulso demasiado violento da minha parte, desprendeu-se de uma das paredes, e deu comigo no chão. Caí de costas; mas, assim mesmo de costas, quebrei o nariz, porque um pedaço de telha, mal seguro, que só esperava ocasião de vir abaixo, aproveitou a comoção e caiu também. O ferimento não foi grave nem longo; tanto que meu pai caçoou muito comigo. O cônego Brito, de tarde, ao ir tomar guaraná conosco, soube do episódio e citou o rifão, dizendo que era eu o primeiro que cumpria exatamente este absurdo de cair de costas e quebrar o nariz. Nem um nem outro imaginava que o caso era um simples início de coisas futuras.

Não me demoro em outros reveses da infância e da juventude. Quero morrer ao meio-dia, e passa de onze horas. Além disso, mandei fora o rapaz que me serve, e ele pode vir mais cedo, e interromper-me a execução do projeto mortal. Tivesse eu tempo, e contaria pelo miúdo alguns episódios doloridos, entre eles, o de umas cacetadas que apanhei por engano. Tratava-se do rival de um amigo meu, rival de amores e naturalmente rival derrubado. O meu amigo e a dama indignaram-se com as pancadas quando souberam da aleivosia do outro; mas aplaudiram secretamente a ilusão. Também não falo de alguns achaques que padeci. Corro ao ponto em que meu pai, tendo sido pobre toda a vida, morreu pobríssimo, e minha mãe não lhe sobreviveu dois meses. O cônego Brito, que acabava de sair eleito deputado, propôs então trazer-me ao Rio de Janeiro, e veio comigo, com a idéia de fazer-me padre; mas cinco dias depois de chegar morreu. Vão vendo a ação constante do caiporismo.

Fiquei só, sem amigos, nem recursos, com dezesseis anos de idade. Um cônego da Capela Imperial lembrou-se de fazer-me entrar ali de sacristão; mas, posto que tivesse ajudado muita missa em Mato Grosso, e possuísse algumas letras latinas, não fui admitido, por falta de vaga. Outras pessoas induziram-me então a estudar direito, e confesso que aceitei com resolução. Tive até alguns auxílios, a princípio; faltando-me eles depois, lutei por mim mesmo; enfim alcancei a carta de bacharel. Não me digam que isto foi uma exceção na minha vida caipora, porque o diploma acadêmico levou-me justamente a coisas mui graves; mas, como o destino tinha de flagelar-me, qualquer que fosse a minha profissão, não atribuo nenhum influxo especial ao grau jurídico. Obtive-o com muito prazer, isso é verdade; a idade moça, e uma certa superstição de melhora, faziam-me do pergaminho uma chave de diamante que iria abrir todas as portas da fortuna. E, para principiar, a carta de bacharel não me encheu sozinha as algibeiras. Não, senhor; tinha ao lado dela umas outras, dez ou quinze, fruto de um namoro travado no Rio de Janeiro, pela semana santa de 1842, com uma viúva mais velha do que eu sete ou oito anos, mas ardente, lépida e abastada. Morava com um irmão cego, na rua do Conde; não posso dar outras indicações. Nenhum dos meus amigos ignorava este namoro; dois deles até liam as cartas, que eu lhes mostrava, com o pretexto de admirar o estilo elegante da viúva, mas realmente para que vissem as finas coisas que ela me dizia. Na opinião de todos, o nosso casamento era certo, mais que certo; a viúva não esperava senão que eu concluísse os estudos. Um desses amigos, quando eu voltei graduado, deu-me os parabéns, acentuando a sua convicção com esta frase definitiva:

— O teu casamento é um dogma.

E, rindo, perguntou-me se por conta do dogma, poderia arranjar-lhe cinqüenta milréis; era para uma urgente precisão. Não tinha comigo os cinqüenta mil-réis; mas o dogma repercutia ainda tão docemente no meu coração, que não descansei em todo esse dia, até arranjar-lhos; fui levá-los eu mesmo, entusiasmado; ele recebeu-os cheio de gratidão. Seis meses depois foi ele quem casou com a viúva.

Não digo tudo o que então padeci; digo só que o meu primeiro impulso foi dar um tiro em ambos; e, mentalmente, cheguei a fazê-lo; cheguei a vê-los, moribundos, arquejantes, pedirem-me perdão. Vingança hipotética; na realidade, não fiz nada. Eles casaram-se, e foram ver do alto da Tijuca a ascensão da lua de mel. Eu fiquei relendo as cartas da viúva. "Deus, que me ouve (dizia uma delas), sabe que o meu amor é eterno, e que eu sou tua, eternamente tua..." E, no meu atordoamento, blasfemava comigo: — Deus é um grande invejoso; não quer outra eternidade ao pé dele, e por isso desmentiu a viúva; — nem outro dogma além do católico, e por isso desmentiu o meu amigo. Era assim que eu explicava a perda da namorada e dos cinqüenta mil-réis.

Deixei a capital, e fui advogar na roça, mas por pouco tempo. O caiporismo foi comigo, na garupa do burro, e onde eu me apeei, apeou-se ele também. Vi-lhe o dedo em tudo, nas demandas que não vinham, nas que vinham e valiam pouco ou nada, e nas que, valendo alguma coisa, eram invariavelmente perdidas. Além de que os constituintes vencedores são em geral mais gratos que os outros, a sucessão de derrotas foi arredando de mim os demandistas. No fim de algum tempo, ano e meio, voltei à Corte, e estabeleci-me com um antigo companheiro de ano: o Gonçalves. Este Gonçalves era o espírito menos jurídico, menos apto para entestar com as questões de direito. Verdadeiramente era um pulha. Comparemos a vida mental a uma casa elegante; o Gonçalves não aturava dez minutos a conversa do salão, esgueirava-se, descia à copa e ia palestrar com os criados. Mas compensava essa qualidade inferior com certa lucidez, com a presteza de compreensão nos assuntos menos árduos ou menos complexos, com a facilidade de expor, e, o que não era pouco para um pobre diabo batido da fortuna, com uma alegria quase sem intermitências. Nos primeiros tempos, como as demandas não vinham, matávamos as horas com excelente palestra, animada e viva, em que a melhor parte era dele, ou falássemos de política, ou de mulheres, assunto que lhe era muito particular.

Mas as demandas vieram vindo; entre elas uma questão de hipoteca. Tratava-se da casa de um empregado da alfândega, Temístocles de Sá Botelho, que não tinha outros bens e queria salvar a propriedade. Tomei conta do negócio. O Temístocles ficou encantado comigo: e, duas semanas depois, como eu lhe dissesse que não era casado, declarou-me rindo que não queria nada com solteirões. Disse-me outras coisas e convidou-me a jantar no domingo próximo. Fui; namorei-me da filha dele, D. Rufina, moça de dezenove anos, bem bonita, embora um pouco acanhada e meio morta. Talvez seja a educação, pensei eu. Casamo-nos poucos meses depois. Não convidei o caiporismo, é claro; mas na igreja, entre as barbas rapadas e as suíças lustrosas, pareceu-me ver o carão sardônico e o olhar oblíquo do meu cruel adversário. Foi por isso que, no ato mesmo de proferir a fórmula sagrada e definitiva do casamento, estremeci, hesitei, e, enfim, balbuciei a medo o que o padre me ditava...

Estava casado. Rufina não dispunha, é verdade, de certas qualidades brilhantes e elegantes; não seria, por exemplo, e desde logo, uma dona de salão. Tinha, porém, as qualidades caseiras, e eu não queria outras. A vida obscura bastava-me; e contanto que ela ma enchesse, tudo iria bem. Mas esse era justamente o agro da empresa. Rufina (permitam-me esta figuração cromática) não tinha a alma negra de lady Macbeth, nem a vermelha de Cleópatra, nem a azul de Julieta, nem a alva de Beatriz, mas cinzenta e apagada como a multidão dos seres humanos. Era boa por apatia, fiel sem virtude, amiga sem ternura nem eleição. Um anjo a levaria ao céu, um diabo ao inferno, sem esforço em ambos os casos, e sem que, no primeiro lhe coubesse a ela nenhuma glória, nem o menor desdouro no segundo. Era a passividade do sonâmbulo. Não tinha vaidades. O pai armou-me o casamento para ter um genro doutor; ela, não; aceitou-me como aceitaria um sacristão, um magistrado, um general, um empregado público, um alferes, e não por impaciência de casar, mas por obediência à família, e, até certo ponto, para fazer como as outras. Usavam-se maridos; ela queria usar também o seu. Nada mais antipático à minha própria natureza; mas estava casado.

Felizmente — ah! um felizmente neste último capítulo de um caipora, é, na verdade, uma anomalia; mas vão lendo, e verão que o advérbio pertence ao estilo, não à vida; é um modo de transição e nada mais. O que vou dizer não altera o que está dito. Vou dizer que as qualidades domésticas de Rufina davam-lhe muito mérito. Era modesta; não amava bailes, nem passeios, nem janelas. Vivia consigo. Não mourejava em casa, nem era preciso; para dar-lhe tudo, trabalhava eu, e os vestidos e chapéus, tudo vinha "das francesas", como então se dizia, em vez de modistas. Rufina, no intervalo das ordens que dava, sentava-se horas e horas, bocejando o espírito, matando o tempo, uma hidra de cem cabeças, que não morria nunca; mas, repito, com todas essas lacunas, era boa dona de casa. Pela minha parte, estava no papel das rãs que queriam um rei; a diferença é que, mandando-me Júpiter um cepo, não lhe pedi outro, porque viria a cobra e engolia-me. Viva o cepo! disse comigo. Nem conto estas coisas, senão para mostrar a lógica e a constância do meu destino.

Outro felizmente; e este não é só uma transição de frase. No fim de ano e meio, abotoou no horizonte uma esperança, e, a calcular pela comoção que me deu a notícia, uma esperança suprema e única. Era o desejado que chegava. Que desejado? um filho. A minha vida mudou logo. Tudo me sorria como um dia de noivado. Preparei-lhe um recebimento régio; comprei-lhe um rico berço, que me custou bastante; era de ébano e marfim, obra acabada; depois, pouco a pouco, fui comprando o enxoval; mandei-lhe coser as mais finas cambraias, as mais quentes flanelas, uma linda touca de renda, comprei-lhe um carrinho, e esperei, esperei, pronto a bailar diante dele, como Davi diante da arca... Ai, caipora! a arca entrou vazia em Jerusalém; o pequeno nasceu morto.

Quem me consolou no malogro foi o Gonçalves, que devia ser padrinho do pequeno, e era amigo, comensal e confidente nosso. Tem paciência, disse-me; serei padrinho do que vier. E confortava-me, falava-me de outras coisas, com ternura de amigo.

O tempo fez o resto. O próprio Gonçalves advertiu-me depois que, se o pequeno tinha de ser caipora, como eu dizia que era, melhor foi que nascesse morto.

— E pensas que não? redargui.

Gonçalves sorriu; ele não acreditava no meu caiporismo. Verdade é que não tinha tempo de acreditar em nada; todo era pouco para ser alegre. Afinal, começara a converter-se à advocacia, já arrazoava autos, já minutava petições, já ia às audiências, tudo porque era preciso viver, dizia ele. E alegre sempre. Minha mulher achava-lhe muita graça, ria longamente dos ditos dele, e das anedotas, que às vezes eram picantes demais. Eu, a princípio, repreendia-o em particular, mas acostumei-me a elas. E depois, quem é que não perdoa as facilidades de um amigo, e de um amigo jovial? Devo dizer que ele mesmo se foi refreando, e dali a algum tempo, comecei a achar-lhe muita seriedade. Estás namorado, disse-lhe um dia; e ele, empalidecendo, respondeu que sim, e acrescentou sorrindo, embora frouxamente, que era indispensável casar também. Eu, à mesa, falei do assunto.

— Rufina, você sabe que o Gonçalves vai casar?

— É caçoada dele, interrompeu vivamente o Gonçalves.

Dei ao diabo a minha indiscrição, e não falei mais nisso; nem ele. Cinco meses depois... A transição é rápida; mas não há meio de a fazer longa. Cinco meses depois, adoeceu Rufina, gravemente, e não resistiu oito dias; morreu de uma febre perniciosa. Coisa singular: — em vida, a nossa divergência moral trazia a frouxidão dos vínculos, que se sustinham principalmente da necessidade e do costume. A morte, com o seu grande poder espiritual, mudou tudo; Rufina apareceu-me como a esposa que desce do Líbano, e a divergência foi substituída pela total fusão dos seres. Peguei da imagem, que enchia a minha alma, e enchi com ela a vida, onde outrora ocupara tão pouco espaço e por tão pouco tempo. Era um desafio à má estrela; era levantar o edifício da fortuna em pura rocha indestrutível. Compreendam-me bem; tudo o que até então dependia do mundo exterior, era naturalmente precário: as telhas caíam com o abalo das redes, as sobrepelizes recusavam-se aos sacristães, os juramentos das viúvas fugiam com os dogmas dos amigos, as demandas vinham trôpegas ou iam-se de mergulho; enfim, as crianças nasciam mortas.

Mas a imagem de uma defunta era imortal. Com ela podia desafiar o olhar oblíquo do mau destino. A felicidade estava nas minhas mãos, presa, vibrando no ar as grandes asas de condor, ao passo que o caiporismo, semelhante a uma coruja, batia as suas na direção da noite e do silêncio...

Um dia, porém, convalescendo de uma febre, deu-me na cabeça inventariar uns objetos da finada e comecei por uma caixinha, que não fora aberta, desde que ela morreu, cinco meses antes. Achei uma multidão de coisas minúsculas, agulhas, linhas, entremeios, um dedal, uma tesoura, uma oração de São Cipriano, um rol de roupa, outras quinquilharias, e um maço de cartas, atado por uma fita azul. Deslacei a fita e abri as cartas: eram do Gonçalves... Meio-dia! Urge acabar; o moleque pode vir, e adeus. Ninguém imagina como o tempo corre nas circunstâncias em que estou; os minutos voam como se fossem impérios, e, o que é importante nesta ocasião, as folhas de papel vão com eles. Não conto os bilhetes brancos, os negócios abortados, as relações interrompidas; menos ainda outros acintes ínfimos da fortuna. Cansado e aborrecido, entendi que não podia achar a felicidade em parte nenhuma; fui além: acreditei que ela não existia na terra, e preparei-me desde ontem para o grande mergulho na eternidade. Hoje, almocei, fumei um charuto, e debrucei-me à janela. No fim de dez minutos, vi passar um homem bem trajado, fitando a miúdo os pés. Conhecia-o de vista; era uma vítima de grandes reveses, mas ia risonho, e contemplava os pés, digo mal, os sapatos. Estes eram novos, de verniz, muito bem talhados, e provavelmente cosidos a primor. Ele levantava os olhos para as janelas, para as pessoas, mas tornava-os aos sapatos, como por uma lei de atração, interior e superior à vontade. Ia alegre; via-se-lhe no rosto a expressão da bem-aventurança.

Evidentemente era feliz; e, talvez, não tivesse almoçado; talvez mesmo não levasse um vintém no bolso. Mas ia feliz, e contemplava as botas. A felicidade será um par de botas? Esse homem, tão esbofeteado pela vida, achou finalmente um riso da fortuna. Nada vale nada. Nenhuma preocupação deste século, nenhum problema social ou moral, nem as alegrias da geração que começa, nem as tristezas da que termina, miséria ou guerra de classes; crises da arte e da política, nada vale, para ele, um par de botas. Ele fita-as, ele respira-as, ele reluz com elas, ele calca com elas o chão de um globo que lhe pertence. Daí o orgulho das atitudes, a rigidez dos passos, e um certo ar de tranqüilidade olímpica...

Sim, a felicidade é um par de botas. Não é outra a explicação do meu testamento. Os superficiais dirão que estou doido, que o delírio do suicida define a cláusula do testador; mas eu falo para os sapientes e para os malfadados. Nem colhe a objeção de que era melhor gastar comigo as botas, que lego aos outros; não, porque seria único. Distribuindo-as, faço um certo número de venturosos. Eia, caiporas! que a minha última vontade seja cumprida. Boa noite, e calçai-vos!

Fonte:
ASSIS, Machado de. Volume de contos. Rio de Janeiro : Garnier, 1884.

Jean-Pierre Bayard (História das Lendas) Parte XXVI


V. — O pássaro da verdade

Vimos anteriormente que a ajuda sobrenatural vem muitas vezes de um pássaro. Totem individual ou gênio protetor, esses animais alados são agentes de união, confidentes; em Florine., Serpentin vert, puxam a carruagem da bela que vai ao encontro de seu príncipe encantado. Simbolizam os sonhos ternos, os beijos, as carícias; são prestativos, permitem encontrar a coroa de ouro do rei (Grimm, Les deux compagnons en tournée) (Os dois companheiros em tournée); procura distrair os prisioneiros (Andersen, Les cygnes sauvages) (Os cisnes selvagens). Prince et princesse (Príncipe ou princesa), ou previnem dos perigos (Carnoy, Le fidèle Jean; tema do aprendiz feiticeiro). L’oiseau bleu (O pássaro azul) (Mme. d’Aulnoy) e ele próprio é o príncipe encantado amado por Florine.

O pássaro muitas vezes branco — desempenha papel primordial no tema de o pássaro da verdade. Para curar uma rainha; para defender uma pessoa, é preciso encontrar três objetos encantados: a árvore que canta, o pássaro que fala e a água de ouro (Carnoy, Contes français). Madrastas impelem crianças nessa aventura perigosa e num mundo desértico — o do Graal — moços foram transformados em pedra por não serem capazes de respeitar o pacto; o malefício desaparecerá assim que o herói conseguir apoderar-se dos objetos maravilhosos. Para atingir a Árvore da vida é preciso atravessar uma região desértica; ora, essa árvore está no centro do Paraíso terrestre, no centro de Jerusalém celeste; tem doze frutos e talvez devamos ver a concordância que há com os doze Aditias. Esse tema aproxima-se muito do. da demanda do Graal e aliás, conforme Orígenes, o próprio Cristo é a árvore da vida. “O Cristo que é a virtude de Deus, a Sabedoria de Deus é também a árvore da vida pela qual devemos ser tentados

Muitas vezes esse tema liga-se ao do Chevalier au cygne, romance da Idade Média. A mãe do rei anuncia falsamente que sua nora deu à luz cães e gatos com o intuito de mandar matar as crianças e repudiar a esposa detestada. Mas um vassalo condoído não pode cometer esse crime horrível; entrega as criancinhas a um eremita e apenas tira-lhes o colar de ouro. As crianças que perderam assim o poder de um pentáculo mágico, se transformam em cisnes. Depois de muitas tribulações, encontram novamente sua forma primitiva com a posse do seu colar.

Cosquin menciona essas variantes nos seus Contes lorrains (Contos lorenos). Mais conhecido do que o conto siamês (Asiatic Researches, 1836), é o de duas irmãs que têm ciúmes da irmã caçula nas Mil e uma noites, que se assemelha ao conto caucasiano traduzido por Schiefner (Mémoires de l’Académie des Sciences, t. XIX). Este último tema é o que mais liga ao tema inicial de Pássaro da verdade.

Pois finalmente toda a verdade é revelada por esse pássaro falador. Muitas vezes esse papel é desempenhado por um ancião (Grimm 96; Gubernatis; Carnoy). Mme d’Aulnoy retoma esse tema em La princesse Belle-Etoile (A princesa Bela-Estrela) e Henry Pourrat (Trésor des Contes, t. I (Tesouro dos Contos) aproveitou um conto semelhante.

Observemos que muitas vezes é uma jovem que leva a bom termo essa busca perigosa. Pela sua vontade, maior do que a sua força, ela fará com que cesse o malefício que reina na região e restitui dessa forma a vida a esses cavaleiros malogrados que foram transformados em pedra. O paralelo com o Graal é evidente. As vezes, porém, a jovem muito frágil, serve-se de um ardil: é o artifício de tampar os ouvidos com cera a fim de não ouvir o horroroso tumulto; o tema não é novo. A heroína se apodera de três objetos maravilhosos e ao voltar esposa o ancião compadecido, o que estava encarregado de aconselhar; é o eremita iniciador de João, o Urso. Com esse casamento o personagem é libertado e o ancião se transforma num príncipe encantado.

VI. — O chapeuzinho vermelho

1. — O motivo

Collin de Plancy descreve a história de uma camponesa de Finistère que deu ouvidos aos propósitos de um desconhecido; volta com o rosto enegrecido e macilento; encontrou o diabo, o espírito da astúcia. No conto de Grimm (26) e na maioria das outras versões a menina devorada pode ser retirada do ventre do lobo. Em Perrault o fim trágico é um castigo desproporcional ao erro.

2. — Interpretações

Se Perrault vê nesse conto uma moral que proibe às moças conversarem com desconhecidos pelo caminho — tema da proibição violada — Husson pensa no mito védico de Vartica, no qual o Acvins são os crepúsculos e a adolescência, uma aurora interceptada pelo “sol devorador sob a forma de um lobo” Essa escuridão pode ainda ser o inverno (Lefèvre, Dillaye). Para Ploix o lobo é o inverno. Saintyves nele vê uma rainha de maio: a cor vermelha sugere a alegria, atemoriza as feiticeiras enquanto que o bolo e o vinho — o vinho de maio seriam oferendas rituais. Essa alegria mágica envolvendo o sol novo teria sido resumida na versão francesa onde o clima é mais sereno. As versões nórdicas são mais completas. Depois da permanência no corpo do lobo — espécie de aprisionamento que encontramos no conto O lobo e os sete cabritinhos, de Grimm — O chapeuzinho vermelho sai da barriga do lobo graças ao auxílio de um caçador. Pretendeu-se ver nessa lenda a interpretação do ciclo estacional.

VII — O Pequeno Polegar

Esse conto de origem iniciática interpreta a luta de uma criança franzina contra o papão.

1. — Interpretações

Para Husson, o Pequeno Polegar é a luz da manhã; — na floresta — durante a noite — ele joga seixos — as estrelas; o sol — o papão — devora suas crianças, os primeiros raios do alvorecer Saintyves pensa nas provações de iniciação; o Pequeno Polegar, franzino antes da iniciação, torna-se poderoso. Essa transformação para a virilidade efetua-se nesse recinto sagrado representado pela floresta. As fontes védicas são, desta forma, aparentes para Cosquin e P. Régnaud (1897).

2. — Os temas

É um anão ou uma criatura franzina; sua inteligência ativa permite-lhe triunfar do gigante de espírito lento. É também, Tom Ponce, cavaleiro do rei Artur (Brueyre); em Grimm, (37, 45) na Dinamarca, na Áustria, é pequeno como um dedinho. Prudente, o Pequeno Polegar demarca o caminho com o auxílio de pequenos seixos ou com um rasto de cinza (contos de Mekidech, Cabilia).

Graças à substituição de objetos, consegue fugir com seus irmãos. O papão — ou o diabo -. enganado mata a sua progenitora. Saintyves observa numerosas variantes deste tema que é encontrado nos contos berberes (H. Basset), ou nos de Lorraine (Histoire de Courtillon).

Finalmente, por meio de uma falsa inépcia, de uma fingida ignorância, o herói consegue livrar-se do próprio papão: por exemplo, pergunta ao feiticeiro como poderia penetrar num forno; o papão nele penetra e fica trancado. É o tema da caldeira que aparece nas variantes de Barba-Azul. Saintyves evoca desta forma a iniciação dos guerreiros, nas tribos do Sul da África, por ocasião da cerimônia da circuncisão.

3. — O papão

Pretendeu-se ver no papão o símbolo das devastações húngaras; mas para Gaston Paris, ele herdeiro dos racsas da Índia. O papão — ou diabo — Saintyves nele vê uma sobrevivência dos ritos de antropologia e refere os contos zulus, malgaxes (Renel). Para Loeffler-Delachaux ele é Saturno que devora seus filhos à medida que Cibele (a Terra) os põe no mundo.

4. — Os objetos mágicos

Os pantufos mágicos permitem a Chao Gnoh (Cambodge) viajar no ar. As botas de sete léguas são novamente mencionadas em Sébillot (Mélusine., III), Cosquin; os sapatos mágicos nos contos de Cachemira (Brihat-Katha), Madagascar (Capa), Pérsia (Tutiname); são da mesma natureza que o chapéu da invisibilidade ou a espada do poder. Hermes era o deus das sandálias aladas e ocultava os bois de Apolo como freqüentemente o faz o Pequeno Polegar (Gastão Paris).

A troca de trajes, túnicas, anéis, penteados, induz o papão ao erro (Saintyves, Deulin). No Ino de Eurípedes, Temisto mata seus filhos tendo Ino, sua rival, trocado as túnicas. L. Brueyre menciona uma variante escocesa, bem como Carnoy (Courtillon) e Sébillot (La Perle e le Petit-Peucerot) (A Pérola e o Pequeno Peucerot).

VIII — João, o Urso

Existe, assim, grande número de contos nos quais um grupo de crianças perde-se, intencionalmente, na floresta. O tema do Pequeno Polegar se aparenta ao do Cavaleiro do cisne, no qual os filhos do rei, perdidos intencionalmente por ordem de sua avó ciumenta, encontram um auxílio protetor antes de retornarem ao meio a que têm direito. Perseu, Édipo, Ciro, Páris, Rômulo são, da mesma forma, expostos à morte, mas salvos, cumprem, sozinhos, a prediçâo anunciada. Essas crianças solitárias são muitas vezes salvas por animais selvagens ou pastores, como Mowgli, o menino-lobo, imortalizado por Kipling. Houve, contudo, casos muito mais pungentes e precisamos nos lembrar particularmente daquelas pobres criaturas humanas, Amala e Camala, que viveram com animais e morreram em, aproximadamente, 1930. Moisés foi recolhido por uma princesa egípcia e João, por uma loba ou por uma ursa. O leite colhido desse animal compassivo deu-lhe uma força excepcional. Esse adolescente leva uma vida vegetativa até o dia em que encontra o primeiro homem, o iniciador; é a adolescência de Parsifal no Graal ou o de um dos numerosos heróis do Pássaro da Verdade. João, o Urso pode tornar-se um cavaleiro cortês e instruído, cuja força sobre-humana faz com que seja classificado acima dos seus companheiros,; ascende assim aos mais altos graus; contudo, continua um jovem de espírito estreito. Esse pesado gorducho vive nos contos de Cosquin (Contes lorrains), Grimm (Le jeune géant) (O jovem gigante), Asbjoernsen e essa estupidez aparece ainda no conto caucasiano Oreille d’ours (Orelha de urso). Geralmente, esse jovem que cresce em força e beleza executa trabalhos extraordinários; pode ter tido um nascimento comparável ao de Roberto, o Diabo; mas João, o Urso consegue triunfar continuando bom para os seus semelhantes; por fim desposa uma princesa (Carnoy, Contes français, 1885).
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continua...
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Fonte:
BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores

domingo, 27 de dezembro de 2009

Trova XCV - Neide Rocha Portugal (Bandeirantes/PR)

Olavo Bilac (As Estações)


O inverno

Coro das quatro estações:


Cantemos, irmãs, dancemos!
Espantemos a tristeza!
E dançando, celebremos
A glória da natureza!

O inverno:

Sou a estação do frio;
0 céu está sombrio,
E o sol não tem calor.
Que vento nos caminhos!
Trago a tristeza aos ninhos,
E trago a morte à flor.

Há névoa no horizonte,
No campo e sobre o monte,
No vale e sobre o mar.
Os pássaros se encolhem,
Os velhos se recolhem
À casa a tiritar.

Porém fora a tristeza!
Em breve a natureza
Dá flores ao jardim:
Abramos a janela!
Outra estação mais bela
Ja vem depois de mim.

Coro das quatro estações:

Cantemos, irmãs, dancemos!
Espantemos a tristeza!
E dançando, celebremos
A glória da natureza!

A primavera

Coro das quatro estações:

Cantemos! Fora a tristeza!
Saudemos a luz do dia:
Saudemos a natureza!
Já nos voltou a alegria!

A primavera:

Eu sou a primavera!
Está limpa a atmosfera,
E o sol brilha sem véu!
Todos os passarinhos
Já saem dos seus ninhos,
Voando pelo céu.

Há risos na cascata,
Nos lagos e na mata,
Na serra e no vergel:*
Andam os beija-flores
Pousando sobre as flores,
Sugando-lhes o mel.

Dou vida aos verdes ramos,
Dou voz aos gaturamos
E paz aos corações;
Cubro as paredes de hera;
Eu sou a primavera,
A flor das estações!

Coro das quatro estações;

Cantemos! Fora a tristeza!
Saudemos a luz do dia:
Saudemos a natureza!
Já nos voltou a alegria!

O verão

Coro das quatro estações:

Que calor, irmãs! Cantemos
Como ardem as ribanceiras
Cantemos, irmãs, dancemos,
À sombra destas mangueiras

0 verão:

Sou o verão ardente:
Que, vivo e resplendente,
Acaba de nascer;
Nas matas abrasadas,
0 fogo das queimadas
Começa a se acender.

Tudo de luz se cobre...
Dou alegria ao pobre;
Na roça a plantação
Expande-se, viceja,
Com a vinda benfazeja
Do próvido** verão.

Sou o verão fecundo!
Nasce no céu profundo
Mais rutilo o arrebol...
A vida se levanta...
A natureza canta...
Sou a estação do sol!

Coro das quatro estações:

Que calor, irmãs! Cantemos
Como ardem as ribanceiras
Cantemos, irmãs, dancemos,
À sombra destas mangueiras.

0 outono

Coro das quatro estações:

Há tantos frutos nos ramos,
De tantas formas e cores!
Irmãs! Enquanto dançamos,
Saíram frutos das flores!

O outono:

Sou a sazão*** mais rica:
A árvore frutifica
Durante esta estação;
No tempo da colheita,
A gente satisfeita
Saúda a criação,

Concede a natureza
O prêmio da riqueza
Ao bom trabalhador,
E enche, contente e ufana,
De júbilo a choupana
De cada lavrador,

Vede como do galho,
Molhado inda de orvalho,
Maduro o fruto cai...
Interrompendo as danças,
Aproveitai, crianças!
Os frutos apanhai!

Coro das quatro estações:

Ha tantos frutos nos ramos,
De tantas formas e cores!
Irmãs! Enquanto dançamos,
Saíram frutos das flores!
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* Vergel = jardim, pomar
* * Próvido =abundante, cheio
*** Sazão =o mesmo que estação

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Andréa Donadon-Leal (Os Quatro Meninos)



Os meninos saíam da escola como sempre, numa gritaria danada. Luizinho, moleque rechonchudo e bagunceiro dava trabalho para os professores. Metido a valentão, de vez em quando dava uma coça nos colegas e ainda não sabia flexionar os verbos. Guto, colado sempre em Luizinho, era um garoto meigo, mais inteligente dos meninos, responsável nos deveres ; magrinho, olhos grandes e óculos ainda maiores. João, cabeça de abóbora, como todos chamavam, era sistemático, falava pouco e acertado. Só tinha fixação por coisas que botavam medo nas pessoas. Uma vez, colocou na porta de dentro da sala de aula, um boneco grande pendurado numa corda, cheia de sangue de galinha, assustando até a professora, coitada, grávida de oito meses, quase ganhou o bebê na sala de aula.

Osvaldo, colecionava piadas, charadas e revistinhas. Era extrovertido e aonde chegava à molecada se reunia para escutar suas histórias engraçadas. Os meninos, na faixa de dez a doze anos, estudavam na mesma sala. Não se largavam pra nada, nem nas brigas.Véspera de férias escolares, animação na primeira semana. Iriam passar um final de semana na fazenda antiga, afastada da cidade. Pertencia ao pai de Luizinho. Os quatro desciam as escadas da galeria da escola juntos, aos berros, cada um querendo falar ao mesmo tempo. Ainda no pátio Luizinho gritou:

- Falando sério agora, gente! Ocês tão sabendo, né, caras! Amanhã, nóis vai levantá junto com as galinha. Ocês já preparam a mala, vara de pesca, as barraca? Fica espertos, ocês! Papai já pediu pras suas mães e elas deixaram ocês ir com papai e eu pra fazenda em Alvinópolis! Vamo azará muito neste final de semana.

Na manhã seguinte o pai de Luizinho esquentava o motor da caminhonete velha para a viagem. Buzinou na casa do Guto, João e Osvaldinho e todos aguardaram na porta de casa com suas mães que pediam de novo: não esqueça dos conselhos de ontem, vê se não .. não! Saíam correndo afoitos pro carro, deixando as mães falando para os ventos.

Na viagem, tagarelices de João que não parava de falar em assombração, Guto, calado e azedo de medo, Osvaldinho dava gargalhadas e Luizinho não flexionava os verbos.

Viajaram duas horas na estrada de poeira, buracos e mato alto. A paisagem de repente, começou a mudar... Pedras escuras, montanhas altas, neblina densa. O sol havia ficado para trás, e o céu se transformou em cinza escuro. De longe, surgiu um telhado pontiagudo escuro de musgo no topo das encostas. Parecia torre de igreja de tão pontudo. Silêncio no carro...

Os meninos prenderam a respiração, até o Osvaldinho com suas gargalhadas dementes. A casa, uma mansão velha. O jardim tinha morrido, ficaram os galhos secos das árvores. Uma fonte seca, adornada com a estátua de um homem de bengala de ferro presa em suas mãos gigantescas. Uma cara sem graça, semblante carrancudo.

Pularam do carro, carregaram as malas pra dentro da casa grande. Uma sala de estar que parecia maior que o pátio da escola. Quadros nas paredes, infestados de poeira e teias de aranhas. Seu José, pai de Luizinho explicou que a casa estava mal cuidada e havia tempos que ele não ia pra lá. Afoitos foram conhecer a casa, percorrendo os cômodos espaçosos.

Seu José colocou Luizinho e Guto num quarto grande, João e Osvaldinho do lado do quarto dos meninos. Disse que a cozinheira chegaria logo para preparar o almoço, limpar a casa e fechou-se no escritório. A dona cozinheira apareceu de uniforme preto, cabelos presos em um coque alto, rosto quadrado, nariz grande e olhos esbugalhados... Parecia que tinha saído dos contos de assombração de tão feia e estranha. Estavam na cozinha, os quatro, caçando algo para comer e de repente aparece àquela mulher esquisita. Assustados saíram aos berros. Seu José saiu imediatamente do escritório assustado com a gritaria. Os quatro meninos rubros de vergonha com a dona e seu José pediram desculpas.

O pai de Luizinho dirigiu-se para o escritório batendo a porta pesada de madeira. A dona torceu a cara feia, deu de ombros e desapareceu na cozinha. Osvaldinho chorava de tanto rir da correria. Até ele tinha zunado no pé de medo. Guto, ainda branco como boneco de cera. João, misterioso fazendo planos para suas peças. Luizinho estava com a perna bamba tremendo de susto. O almoço, feito pela dona estava horrível: um punhado de folhas verdes amargas com um arroz que mais parecia um angu de tão cozido. De tarde, foram conhecer o resto da fazenda. Seu José tinha explicado que ficaria o tempo todo no escritório trabalhando. Foram para o sótão da casa. Sujeira, teias de aranhas, mais quadros de gente. Pessoas horríveis, cabeludas demais. No canto do sótão, livros de números, estantes que iam até o teto de livros.

Guto, muito intelectual se esbaldou nos livros de medicina, plantas, matemática, história... João encontrou um livro de contos de assombração e ficou lendo avidamente as páginas amareladas. Luizinho ficou de pé namorando as armas antigas penduradas da parede, sua mão coçava para tirar uma pequena do lugar e brincar de bang-bang.

Osvaldinho cínico como só ele, correu os olhos pelo sótão sem muito interesse, encontrou um livro antigo de piadas e soltou algumas gargalhadas sarcásticas.

- Luizinho, essas piadas são mais velhas que a criação do mundo! Dá vontade até de chorar! Raaaa

- Ô seu prego, já que ocê tem imaginação fértil, porque não aproveita grande escritor, e refaz todas elas?!

- Ô Luizinho, você de vez em quando solta uma boa pela boca. Idéia irada.

Ficaram até tarde no sótão até escutaram uns ecos estranhos de vozes que vinha lá de cima chamando-os para o jantar. Nem deram ouvidos. Quando a noite caiu no céu, o sótão ficou repleto de trevas. As luzes não acenderam, estavam queimadas. O Guto pediu pra tentar de novo, mas nada. Começaram com a neurose do medo, medo do escuro... Todos pediram ao mesmo tempo para Luizinho parar com a brincadeira sem graça e acender as luzes. Escutaram uivos de lobo, portas abrindo e fechando... Tremeram de medo, correndo desvairados para cozinha e gritaram ainda mais com a dona que os aguardava no pé da porta do sótão com o corpo estremecido de gargalhadas maldosas..

- Meninos da cidade grande! Metidos, arrogantes e medrosos. Tremem feito gelatina.

No jantar mais comida ruim da dona. Não tinha batata frita, macarrão ... Folhas verdes e amargas à vontade e o arroz empapado foi colorido com beterraba. Jantaram fazendo caretas simulando repulsa. Seu José fulminava os meninos com o olhar, passando sermão sobre o benefício do consumo dos legumes e verduras para uma vida saudável. Após a gororoba, Seu José explicou para os meninos que dona Otila tinha arrumado todas as camas e para eles não esquecerem de escovar os dentes antes de dormir... Depois dirigiu-se para o escritório, desaparecendo na escuridão do corredor cumprido. A dona bruxa, pegou o casaco, chapéu e sombrinha pendurados no cabideiro, despedindo-se dos meninos:

- Meninos, não façam xixi no colchão à noite! Se escutarem algum barulho estranho, não saem do quarto! Lembrem-se: não saiam do quarto até amanhecer! Tenham, se possível, uma boa-noite. Esbravejou a dona virando as costas para os meninos, rodopiando os pés e batendo a porta da sala com força. Tiveram tempo de espiá-la pela janela de vidro da sala.

Ela conversava e gesticulava sozinha. Seu José trancado no escritório, passava horas no trabalho. Os meninos assistiram alguns filmes sem graça na televisão que ora pegava, ora saía do ar. Olharam para o relógio grande e já eram onze e meia da noite. Correram para os quartos. Luzinho e Guto foram pro primeiro do corredor e Osvaldinho e João para o segundo. No quarto não havia sequer um abajur. Guto perguntou se não havia uma vela na casa porque tinha medo do escuro. Luizinho, metido a machão:

- Guto deixa disso cara! Eu não tô aqui co cê?! Cê já pensô se ficasse num quarto sozinho? Tá com medo de quê? Esse quarto nem tão escuro é! Ói! Apagou a luz e tomei um susto com o breu! Não via nada, só escuridão.

- Viu, Luizinho? Não dá pra ver um palmo de luz!

- Tá bem, molenga! Vou deixá as cortina da janela aberta e a lua alumia o quarto. Agora vá deitar que amanhã nóis vai nadá no rio e pescá uns peixe grande. Guto, ainda com medo, começou a rezar baixinho o credo, ave-marias, pai-nossos, salve rainha ... Luizinho também com medo dos quadros de gente morta, da dona bruxa, do sótão sinistro... De repente escutaram portas batendo com força, passos arrastando nas tábuas... Um frio gelado no quarto, vento soprando no rosto; janela do quarto batendo! Luizinho e Guto engoliram gritos de pavor, cada um em sua cama! Guto rangia os dentes de medo chamando atônito Luizinho:

- Luizinho! Cochichou. Você tá escutando o que estou? Têm umas portas rangendo! O frio no quarto tá gelando meus ossos. Estou com medooooo...

- Guto, tem medo não! Né nada não, seu medroso! É meu pai que tá abrindo e fechando as portas. Ele tem esta mania! Falou pouco convincente. O vento estava vindo da janela aberta. Luizinho atordoado de medo, mas firme para Guto.

- Pra você não ficar sozinho aí na cama, pode vim dormir comigo aqui na cama, cabe nós dois. A dona bruxa, aquela vaca sem consciência, deixou a janela aberta para matar os meninos de susto. Guto apertou o interruptor da luz e nada. De novo a escuridão. Não tinha luz. Nem vela. Luizinho levantou da cama e foi tremendo fechar a janela. Topou de cara com os olhos de vidro de uma coruja no galho seco de uma árvore, logo em frente da janela do quarto. Gritaram horrores de medo e pavor, Luizinho, Guto e a coruja... Fechou de uma vez a janela pesada de madeira.

- Tenho que admitir, Guto, tô com medo. E mais medo vinha por aí. Os dois deitados juntos na cama, escutavam uivos de lobo, pios de corujas, correntes batendo no chão da casa velha... Tremeram de pavor. A noite demorava pra terminar. Lembraram do conselho da dona bruxa, não podiam sair do quarto...No quarto ao lado, Osvaldinho e João jogavam conversa fora deitados nas camas espaçosas. João satisfeito com a casa assombrada da fazenda. Osvaldinho cheio de histórias para contar para os colegas da escola. Apagaram a luz e foram dormir, pois já passava das duas horas da madrugada. Osvaldinho escutou sons dentro do quarto, alguém abriu cortina abruptamente e a luz da lua invadiu o quarto escuro.

- João, por que abriu as cortinas?

- Eu?! Ia perguntar o mesmo para você, seu engraçadinho.

- Fui eu não, moleque! Não gosto de luz no quarto quando estou dormindo! João levantou com má vontade e fechou a cortina de renda. Antes de chegar à cama, de repente, a cortina abriu novamente. João, assustado, acendeu as luzes do quarto e Osvaldinho estava de pé com os olhos arregalados, balbuciando:

- Cê viu cara? Viiiiu?.... Sombras de chifres e rabo correndo pelo quarto! É você né, seu prego? Cadê a fantasia, moleque sem graça!

- Você pirou de vez! Não fui eu! Quem abriu as cortinas do quarto, quando eu estava perto da cama? Foi você?

- Não...As luzes do quarto começaram a piscar, como se a energia começasse a falhar. Osvaldinho foi até o interruptor para apagar as luzes e nada. O interruptor enguiçou. Os dois viam sombras nas paredes do quarto, chifres e rabo andando em círculos. Os quadros do quarto de cabeça pra baixo. Os tapetes pendurados no teto. Urros de bichos... Osvaldinho e João, abraçados correram até a porta do quarto e a maçaneta queimou a mão de João. Os dois corajosos estavam com as calças molhadas. Gritavam em vão, ninguém escutou os berros! A noite demorou a passar para os meninos presos nos quartos da casa grande. Gritos, uivos de lobisomem, correntes que arrastavam pelo chão, quadros e cortinas mexiam sozinhos, figuras fantasmagóricas nas sombras das paredes, pio de coruja, tapete pendurado no teto. Os meninos abraçados e molhados de xixi! Se tivessem problemas cardíacos de manhã seus corpos estariam estirados no chão do quarto, mortos de tanto susto.

Ficaram a noite inteira acordados. Finalmente os raios do sol invadiram os quartos. Levantaram rapidamente das camas molhadas. Luizinho e Guto trocaram de roupa e desceram para a cozinha, mortos de fome, com olhos inchados, afônicos... Lá já estavam Osvaldinho e João, olharam para os dois, não dormiram também! Estavam todos emburrados com os cabelos em pé, olheiras fundas... Sentaram nas cadeiras altas da cozinha esperando o desjejum matinal. A dona bruxa abriu a porta da cozinha, olhou para os quatro meninos e perguntou:

- Já de pé!? Tiveram uma boa noite, meninos da cidade grande?

Nem esperou resposta; olhou fundo para cada um deles, levantou uma das sobrancelhas grossas e riu alto, como uma desvairada, a dona bruxa!

Fontes:
Jornal Aldrava Cultural. http://www.jornalaldrava.com.br/
Imagem = http://portugalporreiro.blogspot.com

Alex Giostri (O plano B de cada Autor Brasileiro )




Não é de hoje que venho trabalhando com autores. Autores teatrais, autores literários, roteiristas, dramaturgos, autores de poemas nada poéticos, Adicionar imagemautores de textos banais, autores consagrados, autores equivocados, enfim, seres humanos que por causalidade da vida, por alguma circunstância, que não serei eu a dizer aqui qual foi, optou pelo fazer textual, seja lá qual o seu destino, a sua bitola, como se diz no cinema. Talvez a palavra opção não seja a melhor, pois há os que não tem outra senão o escrever, o que invalida o tal livre-arbítrio neste sentido e o põe na posição de necessitado, de um homem (ou mulher) que não conhece o mundo senão sob o olhar de suas palavras, que necessita e se salva no mundo das palavras, o que, aqui, na realidade, não nos importa, menos ainda se escreve bem ou mal. Não nos cabe um julgamento de valor, um critério se isso ou aquilo é bom ou nos agrada enquanto leitores.

O fato é que há autores espalhados pelos quatro cantos do país. Novos, velhos, jovens, idosos, rapazes, meninas, pessoas que são o que poderíamos chamar de a reciclagem do que se diz literatura. E o que é a literatura? E o que ou quem são essas novas pessoas? O que querem?

Naturalmente, alguns querem levar seus discursos adiante, mostrar ao que vieram e ampliar os seus universos aos universos de seus cobiçados leitores, outros querem se salvar de si mesmos, vomitar na tela do computador tudo aquilo que não são, ou o que são, ou o que querem ser e não conseguem. Há também os deslumbrados que querem ficar famosos, reconhecidos internacionalmente, assediados pelos pedestres nas ruas, enfim, há de tudo, como em qualquer ramo profissional.

Independente do objetivo de cada um, que é a única coisa que não nos importa aqui, cada escritor, e eu me incluo nesse pacote, quer sobreviver de seu ofício, de suas obras, de seu campo de pesquisa.

Para isso, há de se ter uma enorme coragem. Sim, coragem. Não está no mérito o talento de cada um. Talento é á ultima característica que é vista. Há de se ter uma enorme coragem para dizer para si mesmo que o que quer se tornar é um escritor, mesmo aqueles que dizem não terem escolha – a sua não escolha, torna-se também uma escolha -, mesmo esses, todos; há de se ter coragem para encarar a vida com uma tela de computador, um teclado, um mouse e idéias na cabeça. Há de se ter coragem para perder um ano e escrever um livro, sem saber se o resultado será satisfatório, se corresponderá às próprias expectativas, se toda a pesquisa feita sobre o assunto tratado na obra será bem direcionada, se os conflitos que entrarão no enredo serão bem conduzidos, se os personagens ficarão verossímeis, mesmo se a verossimilhança pretendida seja uma inverossimilhança quando postos numa balança de peso e medida no campo da vida real, se o tempo pretendido dentro da obra será bem delineado para absorver toda a narrativa imaginada, há de se ter coragem.

Mas não acabou. Com a obra pronta, há de se ter coragem para encarar a vida e as portas nas caras das editoras que quando muito, dizem: não, muito obrigado, volte amanhã. E há de se ter coragem quando, depois de três quatro anos da obra escrita, alguma alma generosa interessa-se pela obra e a publica. Está tudo resolvido. Não. É aí que começam os novos problemas, as novas agonias, as novas investidas no há de se ter coragem. Uma vez publicada, uma obra deve ter toda uma assessoria de imprensa. A assessoria de imprensa só se levantará de sua cadeira se o autor tiver alguma evidência na mídia, se for notícia, ou se a editora tiver um poder de compra muito alto.

Uma vez assessorado, o autor então começa a frequentar os programas de TV, de rádio e colunas literárias, tudo para que o seu livro alce vôo e saia como pássaro das livrarias, direto para casa dos futuros leitores. No entanto, a obra não sai. E por quê? Mas como, se foi tudo feito tão minuciosamente? Ninguém lê? Ninguém compra? Sim, naturalmente sim. Mas não o seu livro. Não o livro do João das Couves que chegou ontem. E essa é a realidade nua e crua, sem demagogia. Nem mesmo o poder de imprensa fará com que um livro seja vendido assim, de uma hora para outra. Há de se ter um gancho, há de se ter coragem para continuar tentando.

Aí então, o escritor, inconformado, depois de lamentar a sua existência sobre os pacotes de seus livros na sala de sua casa, passa para o plano B. Arruma um emprego num banco, vai trabalhar numa loja de shopping, vira balconista, faz faculdade de odontologia, de direito, casa-se com alguém que o financie, endivida-se num banco, ou então, respira fundo e passa a mais uma pesquisa, para uma nova obra, dessa vez a infalível, a que o tirará do fundo do poço, da lama. A palavra mais adequada a isso tudo é a persistência. É dela que se frutificará o alicerce sólido de cada escritor. É dessa persistência que será arrancada a sede de querer conquistar os próprios ideais, os sonhos realizados e o próprio sustento. Agora, essa persistência é muito dura de ser enfrentada sozinho.

Um escritor lutando sozinho não terá forças o suficiente. Mas isso é para qualquer ideal, como uma frase clichê que nem me lembro de quem é, mas não é minha que diz “que um sonho sonhado sozinho não é realidade”. Isso numa reflexão superficial já nos apresenta escancaradamente que o há de se ter coragem tão dito ao longo do texto significa que é fundamental que todos tenham coragem de permanecer no campo de batalha e que todos, principalmente os novos e idealistas, tenham sua força na força do outro, que se amparem e juntos formem o que está por vir, o que será... que é o que a literatura dita clássica hoje já foi; um dia ela também foi o que será, e pelos mesmos jovens que ontem eram cada um dos novos escritores de hoje e que hoje são tudo aquilo que os novos escritores, os reais novos escritores, querem para si, o ser apenas um escritor, reconhecidos e respeitados como tal, sobrevivendo modestamente e com dignidade de seu ofício, sejam indo pelo plano B ou não, mas juntos e unidos, sempre, ao longo da vida. Nunca sozinhos.

Fonte:
http://www.alexgiostri.com.br/artigos.html

Sérgio Antonio Costa Gomes (O Anão)



A impossibilidade de satisfazer um desejo o torna ainda mais intenso; isso é um fato. Alguns desejos, de tão intensos que são, podem levar à loucura; essa é outra verdade.

Buscaremos a comprovação de tal tese em um ambiente e com pessoas bastante improváveis.

Melquisedeque era um anão. Por conta disso, talvez, muitos pudessem duvidar que um coração tão pequeno pudesse conter um amor tão grande. O pequenino homem tinha uma aparência engraçada: as pernas curtas e roliças lhe conferiam um andar semelhante ao de um pinguim, a cabeça exageradamente grande, a testa proeminente, lhe davam um aspecto caricato, muito embora, não obstante a aparência um tanto quanto estranha, fosse quase impossível não se contagiar com seu sorriso largo e espontâneo – todos gostavam dele – diziam os mais íntimos que um gigante se escondia sob suas proporções bizarras. Trabalhava como assistente de palhaços no Danúbio Azul, um misto de circo e parque de diversões de quinta categoria. Um mero coadjuvante, em cores espalhafatosas, vestia-se de bobo da corte em suas apresentações e sofria com as travessuras diabólicas de seus companheiros de picadeiro.

O Danúbio Azul, apesar de ser um local destinado a diversões, não tinha um ambiente agradável: a qualidade precária de suas instalações, aliada ao mau-gosto dos entretenimentos oferecidos, só poderia atrair pessoas pouco exigentes ou até mesmo mentalmente degeneradas. Operários de baixa-renda, bêbados, vadios e alguns mal-intencionados se constituíam em seu público predominante. O medonho parque era uma das poucas possibilidades de diversão oferecidas por seus mundinhos reduzidos.

O sombrio local estava a algum tempo na mira da polícia. Crimes sequenciais, com as características predominantes da ação de um serial killer, ocorriam com certa frequência nas adjacências de onde o Danúbio Azul costumava se instalar. As vítimas, sempre do sexo masculino, empaladas por algum objeto pontiagudo, no sentido de baixo para cima, tingiam o chão onde jaziam com o produto mais íntimo de suas carnes.

Carlos Mariano era o soturno proprietário do Danúbio Azul. Era um homem enorme e desagradável; bronco e de feições endurecidas, pouco afeito aos hábitos da higiene, tinha um aspecto seboso, salientado pelos bigodes compridos e grisalhos, amarelados pelo hábito do fumo. Ambicioso, sugava seus funcionários até o tutano dos ossos e pouco se importava com as condições precárias em que viviam. Indiferente aos crimes que ocorriam nas redondezas de seu parque de diversões, interpelado diversas vezes pela polícia, enquanto esbaforia a fumaça fedorenta de seu inseparável cachimbo nos rostos dos agentes da lei, dizia que não tinha nenhuma pista, que era trabalho deles prender o autor de tais atrocidades.

Alheios ao que se passava além do cercado que isolava seu local de trabalho dos bairros periféricos por onde passavam, Melquisedeque e seus colegas mantinham o ritmo normal de suas atividades; tentavam dar o melhor de si no intuito de trazer alguma alegria à paupérrima população que se constituía em seu público fiel.

Amigo de todos, Melquisedeque tinha uma predileção especial por Ananias, o contorcionista e por Nora, a mulher-gorda, por quem nutria uma intensa e anônima paixão, conhecida apenas por Ananias, seu melhor amigo. Sempre envoltos em uma cortina de fumaça de cigarro, juntos, tomavam umas “branquinhas” para aliviar as amarguras da vida. Nessa noite, impulsionado pela coragem etílica, Melquisedeque, que se sentia desencorajado pela incompatibilidade física que havia entre ele e Nora, disse ao contorcionista que não obstante as dificuldades pretendia declarar todo amor que sentia por ela.

Ébrio, Ananias contorcia o corpo esquálido das formas mais aberrantes possíveis, enquanto desdenhava da possibilidade do pequenino amigo realizar seus desejos amorosos:

– Heh! Você e Nora? Não sei não... Ela pesa quase duzentos quilos! È muita carne pra tu. Não dá! Não dá! Não dá!

Uma canção sertaneja embalava a dor-de-cotovelo que invadiu o coração desesperançado de Melquisedeque que esperava uma palavra de encorajamento por parte de seu melhor amigo. Tentando talvez uma posição diferente de Ananias em relação a suas pretensões amorosas, o anão conjeturou:

– Mas será que não tem alguma forma de...

Ainda mais contundente, Ananias interrompeu as considerações do amigo antes que ele pudesse concluí-las:

– Vocês são fisicamente incompatíveis! Não dá! Não dá!

Desiludido, Melquisedeque deixou Ananias bebendo sozinho e foi dormir mais cedo. Estacas de desapontamento varavam seu coração sofrido em todas as direções possíveis. A intraduzível dor do amor impossível tomava-o por completo. Com a esperança fraquejada, banhado em lágrimas, atirou-se em seu catre e mesmo morto de cansaço não conseguiu dormir. Nora não lhe saía dos pensamentos atormentados, roubando-lhe a paz.

Dada suas condições físicas grotescas, Nora não era uma mulher feliz. Trabalhava em um daqueles dispositivos sádicos onde o cliente, conseguindo acertar o alvo com a força e precisão necessárias, mergulhava seu corpanzil no aquário de águas geladas num “chuá redundante”. Frequentemente alguns abusados lhe dirigiam palavras e gestos ofensivos, em meio a gargalhadas estridentes, enquanto tentavam mandá-la para a água.

Cada palavra menos digna dirigida a Nora, penetrava o coração apaixonado de Melquisedeque feito setas envenenadas. Algumas vezes, esquecendo-se de sua estatura acanhada, ele desejou socar até a morte um e outro mais abusado que pegava pesado demais com sua amada. Mas isso significaria tirar seu amor do anonimato, algo que estava fora de cogitação, pelo menos naquele momento, para o inseguro anão.

Pensando em tais infortúnios, Melquisedeque conseguiu pegar no sono apenas quando o sol causticante do verão já se encontrava no final da tarde. Não muito tardou e logo ele acordou com o barulho das primeiras atividades do Danúbio Azul que já estava aberto ao público para mais uma noite de diversões. Sonolento, com uma expressão fisionômica carregada, arrastando-se com seu andar peculiar, caminhou até o local onde Nora divertia um grupo de homens rudes e sádicos.

Raimundo Silva, um operário da construção civil, recém-chegado do norte, exagerava no consumo de álcool e nas ofensas. Com gestos e palavreados chulos que não cabem aqui descrever, ofendia a pobre mulher que estava apenas exercendo sua profissão. Quando conseguia acertar o alvo, mandando-a para o aquário, dizia que ali era seu lugar e tantas coisas mais.

Ao observar a cena, Melquisedeque transfigurou em ódio sua face caricata e desejou atracar-se ali mesmo com Raimundo e fazê-lo retirar, a socos e pontapés, uma a uma de suas ofensas. Ananias, que também observava tudo de perto, ao perceber que o amigo preparava-se para ir às vias de fato, o segurou, desencorajando-o.

– Deixa esse idiota pra lá! Você não pode com ele.

Tomado pelo ódio, o anão vociferou com uma voz desproporcional a seu tamanho:

– Canalha! Quem ele pensa que é para tratar Nora assim?

Tentando apaziguar os ânimos, Ananias retrucou:

– Ele é um idiota! Esquece o cara.

Indignado, Melquisedeque retirou-se do local e foi preparar-se para mais uma de suas apresentações. Mesmo com a algazarra pertinente aos espetáculos dos quais fazia parte, não conseguia tirar da cabeça toda ignomínia da cena de outrora.

Finda as atividades, o Danúbio azul cerrou seus portões e funcionários e artistas, exaustos, retiraram-se para seus precários aposentos coletivos a fim de se recuperar da fadiga de mais uma movimentada noite de diversões.

Logo ao amanhecer, a polícia foi procurar Carlos Mariano em busca de pistas. Um cadáver, que posteriormente foi identificado como sendo Raimundo Silva, foi encontrado em uma rua próxima do local onde o Danúbio Azul encontrava-se instalado. O corpo, empalado por algum objeto pontiagudo, no sentido de baixo para cima, apresentava as mesmas características dos crimes que vinham ocorrendo, já há algum tempo, nas adjacências de onde o circo de Carlos costumava se instalar. Mais uma vez, com seu jeito bronco de ser, enquanto fumava seu cachimbo, Carlos disse que não tinha nenhuma pista, que era trabalho da polícia investigar e prender o criminoso.

Alheios ao que se passou na noite passada, além das cercas que os continham em seu sombrio local de trabalho, os funcionários do Danúbio Azul, após o descanso diurno, se preparavam para mais uma rotineira noite de entretenimentos. Porém, dessa vez, pelos para Nora, um fato inusitado estava prestes a acontecer. Melquisedeque tomara uma crucial decisão: no calor de sua paixão, resolveu deixar as inseguranças de lado e finalmente declarar todo seu amor ao objeto de sua especial predileção. Tímido, resolveu dirigir-se aos aposentos de Nora enquanto ela ainda estivesse dormindo. Aproveitaria-se do torpor de sua sonolência para pegá-la de surpresa e, enfim, lhe dizer tudo o que havia guardado por quase três anos de anonimato.

Os quartos onde descansavam os funcionários do Danúbio eram precários e mal iluminados. Sem bater na porta que não tinha trancas nem fechadura, Melquisedeque adentrou o recinto onde Nora dormia ruidosamente e lhe sacudiu o corpanzil que se esparramava sobre a cama reforçada. Pega de surpresa, tonta de sono, Nora reconheceu Melquisedeque, apesar da escuridão, por sua pequena estatura e por sua voz peculiar:

– Ah! È você? O que foi? Estou atrasada?

– Nora... Tem uma coisa que há muito tempo preciso lhe dizer...

Melquisedeque, tomado por uma inusitada coragem, confessou a obesa mulher todo amor que sentia por ela, o quanto ela era especial para ele, o quanto a desejava. Nora, espantada com aquela confissão repentina, puxou-o a si, esmagando-o contra a consistência gelatinosa de seu corpanzil, e disse:

– Oh, meu lindinho! Vem para os braços da mamãe!

Assim, ambos permaneceram abraçados e calados por alguns minutos até que Nora soltou uma gargalhada de sarcasmo, desmoronando o paraíso onírico em que, por alguns breves instantes, viveu Melquisedeque.

– Ah, ah, ah! Você é louco? Ah, ah, ah! Você e eu? Amantes? Que ridículo! Olhe para você. Não acredito nisso... Ah, ah, ah...

Ainda gargalhando, ignorando Melquisedeque e todo seu amor, Nora levantou-se e, atrasada que estava, foi preparar-se para mais uma noite de trabalho e humilhações.

Arrasado por ter seu amor sincero e ardente, assim desprezado, Melquisedeque não compareceu a suas obrigações da noite e ninguém o achou em lugar nenhum.

No dia seguinte, os funcionários encarregados da limpeza depararam-se com uma cena macabra: chorando copiosamente, Melquisedeque encontrava-se abraçado ao corpanzil ensanguentado e inerte de Nora. Empalado no abdômen, no sentido de baixo para cima, a obesa vítima apresentava as mesmas características dos crimes que ocorriam além das fronteiras de madeira compensada que separavam o Danúbio do mundo lá fora.

Ananias que já sabia do amor do anão por Nora, chamou a polícia que não tardou em chegar. Banhado em lágrimas, o anão se entregou sem oferecer resistência e sem nada dizer em sua defesa. Uma expressão de revolta estampava-se nos rostos dos funcionários e amigos de Nora que, com olhos odientos, acompanharam a viatura que levava Melquisedeque até ela sumir de vista.

Diz um ditado popular que “a voz do povo é a voz de deus”. Sentença que é profundamente questionável. Nunca gostei muito de ditados populares, embora alguns deles sejam, de fato, eficientes no sentido de enunciarem verdades simples. “Quem ama o feio, bonito lhe parece” é um deles.

Quem quer que observasse Nora e suas formas grotescamente deformadas pela obesidade mórbida, jamais imaginaria que ela fosse capaz de despertar paixões tão intensas. Ananias mantinha, já há alguns anos, uma caso secreto com ela. O contorcionista, sem coragem de assumi-la perante todos, mantinha o relacionamento no anonimato, embora isso não fosse do agrado dela.

Na noite em que Melquisedeque resolveu declarar seu amor, poucos minutos depois, Ananias resolveu ir visitá-la em seus aposentos. Ao adentrar seu quarto no momento em que ela abraçava o anão, o contorcionista, na obscuridade proporcionada pela escuridão do recinto, imaginou ter visto o que não aconteceu. Tomado pelo fel do ciúme, retirou-se antes de ouvir as gargalhadas de desprezo de Nora e planejou a forma mais cruel de se vingar de ambos.

De há muito tempo, Ananias já vinha eliminando, de forma contumaz, aqueles que escarneciam Nora de uma maneira mais contundente. Conhecedor que era do amor de Melquisedeque por sua obesa namorada, cometia os assassinatos de forma a incriminar o anão e assim se livrar de um provável rival na disputa pelas carícias de Nora. Dessa vez, ensandecido pela dor de uma traição que só aconteceu em sua cabeça, decidiu acabar com os dois, aniquilando a vida de Nora, produzindo uma espécie de morte em vida em Melquisedeque que seria culpado pela morte de sua amada.

Enquanto isso, na cadeia, inocente, jogado em um canto sujo e úmido de sua cela, Melquisedeque permanecia calado – para ele a vida havia perdido a razão de ser.

Fonte:
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