terça-feira, 17 de abril de 2018

Contos e Lendas do Mundo (Irâ: O Pássaro Trinador de Flores)

Era uma vez um Rei que tinha três filhos: Malik Mhuhammad, Malik Dschamschid e Malik Ibrahim. Ibrahim era o mais moço e seu pai o amava, tal como o filho amava o pai. Tendo o Rei adoecido, os médicos de todo o império não conseguiram descobrir qual o remédio para sua doença. Mas aí um certo doutor declarou que o remédio existia, desde que se conseguisse encontrá-lo: pois havia no mar um peixe verde que trazia um anel de ouro na mandíbula, e se alguém conseguisse pescá-lo, abrindo-lhe a barriga e colocando um pedacinho do coração de tal peixe sobre o coração do Sultão, este certamente se restabeleceria.

Os três filhos ofereceram dinheiro a vários mergulhadores e pescadores para que os mesmos procurassem o tal peixe, e afinal, após alguns dias, estes conseguiram pescá-lo e o trouxeram a Malik Ibrahim. Tomando-o nas mãos, o moço ficou tremendamente impressionado com a grande beleza do peixe e, examinando-o, verificou que ele trazia inscrito na testa: "Alá é o único Deus, Maomé é seu profeta e Ali é seu sucessor". Bem, é esse o credo Shiita maometano. Ora, ao ler aquilo, Malik Ibrahim sentiu-se profundamente comovido e exclamou: "Mesmo que meu pai possa ser curado por este peixe, não posso matá-lo", e lançou o peixe de volta ao mar.

Enquanto isso, todos aguardavam que ele trouxesse o peixe e, abrindo-lhe a barriga, curasse o pai, até que descobriram que o rapaz devolvera o peixe ao mar, o que os fez morder os dedos de espanto, sem conseguir entender o fato. 

Quando disseram isso ao Rei, este ficou furioso e falou: "Se na verdade Malik Ibrahim está esperando que eu morra para se apoderar do trono, eu o deserdarei".

Daí em diante o Rei foi piorando cada vez mais, não tendo mais paz nem de dia nem de noite; mais uma vez os médicos se reuniram em torno de seu leito e declararam: "Ainda existe um remédio que conhecemos, que é o Pássaro Trinador de Flores. Toda vez que ele gorjeia, cai-lhe do bico uma linda flor e, se alguém conseguir aprisioná-lo e colocar uma dessas flores sobre o coração do Rei, ele ficará curado de sua enfermidade".

O Rei beijou seus outros dois filhos, dizendo-lhes: "Agora, minha única esperança é que vocês encontrem o Pássaro Trinador de Flores". Então os dois filhos montaram seus cavalos e partiram, sendo seguidos por Ibrahim, pouco tempo depois. Os irmãos perguntaram o que estava fazendo ele ali, ao que Ibrahim respondeu que também ele ia em busca do pássaro, de modo que resolveram prosseguir juntos. Chegando a uma encruzilhada onde havia uma árvore e uma fonte, desceram dos cavalos para descansar um pouco. Tendo os seus irmãos adormecido, Ibrahim foi dar um pequeno passeio, e de repente avistou uma tábula de pedra onde estava escrito:

"Aqueles que chegarem a esta encruzilhada precisam saber que a estrada da direita não apresenta perigo e é agradável, mas a da esquerda é cheia de perigos e nenhum viajante que por ela seguir poderá ter esperança de voltar".

Os dois irmãos, naturalmente, tomaram o caminho da direita, enquanto a Ibrahim coube o da esquerda. Mas havia na tábula uma outra inscrição que dizia que quem tomasse o caminho da esquerda deveria levá-la consigo. E assim fez Ibrahim. Primeiramente, foi dar a um castelo cercado de um lindo jardim onde encontrou uma bela jovem que o flertou; ele se apaixonou por ela e esta já sabia o seu nome. De repente porém Ibrahim se lembrou da tábula que trouxera consigo e, retirando-se para um recanto do jardim, viu que nela estava escrito: "Se tomares o caminho da esquerda, encontrarás belíssima e sedutora jovem, mas não te deixes atrair por suas tramas pois ele é uma astuta feiticeira que deseja matar-te. Ela vai te desafiar para uma luta e, quando isso ocorrer, tens de arrancar-lhe a blusa e então verás em seu ombro um sinal negro. Toma tua faca e enterra-a com toda força nessa mancha negra, tratando porém de não errares o alvo, pois se isso acontecer tu serás transformado em pedra negra".

Aconteceu tudo como fora previsto e Ibrahim conseguiu mergulhar sua adaga na mancha negra da feiticeira. Então surgiu um furacão, com raios e trovões, tendo Ibrahim desmaiado de terror. Ao recobrar os sentidos viu a seu lado o cadáver de uma terrível e decrépita velha; quanto ao jardim e ao palácio, tudo desaparecera e ele se achava num deserto. 

Então Ibrahim prosseguiu caminho e logo se achou num jardim muito semelhante ao primeiro; no centro havia um lago e nele vagava um barco. Nadou até o barco e ali encontrou dez homens, dos quais apenas um manifestava sinais de vida. Malik Ibrahim alimentou-o fazendo-o comer pedacinhos de maçã, pois o homem estava demasiado fraco e faminto para poder falar. Após se sentir mais reconfortado, o homem contou a Ibrahim que o barco fora colhido por um redemoinho e que, diariamente, ao meio-dia, surgia das profundezas uma grande mão que arrebatava um deles para dentro do lago, quer estivesse vivo ou morto, e que antes havia vinte homens a bordo, dos quais dez haviam sido agarrados e os demais tinham morrido de fome. Ibrahim recorreu novamente à tábula, na qual leu: "Se chegares a este barco, não te deixes distrair por qualquer coisa que vejas, ou que aconteça, ou que a dona da mão te relate. Essa mão que emerge do fundo das águas pertence à irmã da primeira feiticeira. Tens que apertá-la com toda a tua força, que é para romperes a maldição. Caso sejas superado na luta, perderás para sempre tua liberdade".

Aí surgiu da água uma linda mão enquanto uma voz o saudava dizendo: "Apertemos as mãos, em sinal de amizade!" Ao que Ibrahim respondeu: "Sim, com todo prazer", e estendeu-lhe a mão; reparando porém que a outra o ia puxando cada vez mais para a água, ele se colocou sob a proteção de Deus e, com quantas forças tinha, apertou tanto a tal mão, que a esmagou; novamente desabou uma tempestade e ele viu a seu lado o cadáver da feiticeira, achando-se perdido novamente no deserto.

Pôs-se então a caminho e foi dar a um lugar onde havia uma árvore alta e uma fonte, com muitos macacos em torno da árvore. Ele não sabia como explicar a presença de tantos macacos, mas estes o cercavam, olhando-o com olhos tristes. Ibrahim recorreu à  tábula e leu: "Agora que mataste a feiticeira hás de chegar a uma árvore cheia de macacos e a uma fonte. Segue o veio da água e irás dar a um enorme edifício, onde encontrarás uma jovem; mas também é feiticeira e tentará te cativar e te iludir. Desta vez, terás que atirar-lhe à  testa esta tábula, para que lhe quebres a cabeça e rompas o encantamento". 

Tudo aconteceu como ali estava escrito e, logo que atirou a pedra à cabeça da feiticeira, todos os macacos viraram lindas donzelas. A líder das moças era uma Fada-princesa, que fora à caça de uma gazela com suas damas. Mas a gazela que ela caçava era a própria feiticeira e, mal as jovens entraram na floresta, a gazela começou a correr em círculos transformando-se numa mulher horrorosa e, no mesmo instante, transformou as jovens em macacos.

Agora que Ibrahim matara a bruxa-gazela, as moças estavam libertas do encanto. Ibrahim levou a Fada-princesa de volta à  casa de seu pai e pediu-a em casamento, porém o Rei confessou a Ibrahim que não tinha só essa filha, Maiúne, que ele desencantara, mas também um filho que tentara dar combate às feiticeiras e fora morto, achando-se sepultado num cemitério próximo. Todas as noites, porém, chegavam as feiticeiras e, como a bruxa de Endor, da qual fala a Bíblia, retiravam da tumba o corpo do filho do Rei, ainda envolto nos restos da sua mortalha; e a cada manhã o cadáver tinha que ser novamente sepultado até que, na noite seguinte, tudo se repetisse.

Por isso Ibrahim se colocou, à  noite, perto do túmulo e, tendo sido outra vez instruído do que lhe competia fazer, tomou uma lança e, quando duas feiticeiras apareceram para reiniciar suas artimanhas, em um só golpe ele as degolou, tendo-se desencadeado, no mesmo instante, uma terrível tempestade. Quando, porém, tudo se acalmou, o Príncipe morto ressuscitou e declarou que, por ter sido libertado por Ibrahim, fazia-se seu escravo para sempre.

Depois disso Malik Ibrahim se casou com a Fada-princesa, embora continuasse determinado a partir em busca do Pássaro Trinador de Flores. Alguém lhe disse que o pássaro se encontrava numa grande montanha rodeada por milhares de demoniozinhos e que ninguém podia por ali passar. Mas Ibrahim simplesmente se dirigiu aos mil demoniozinhos e, quando estes o atacaram, destemidamente os fez estacar, o que os deixou curiosos por saber o que é que aquele simpático e ingênuo rapaz pretendia ali. Em lugar de o matarem imediatamente, deram-lhe a chance de dizer porque viera. Ibrahim então confessou que desejava o Pássaro Trinador de Flores. Abertamente contou-lhes toda a verdade e os demoniozinhos então disseram que o pássaro se achava ali na montanha e que pertencia a Tarfe Banu, filha do Rei; acrescentaram que eles não lhe podiam trazer o pássaro e que Ibrahim teria que roubá-lo sozinho; eles não se importariam. Chegaram mesmo a conduzir Ibrahim ao castelo encantado, onde, num dos aposentos, encontrou Tarfe Banu adormecida sobre um coxim todo ornamentado com pedras preciosas. Ela era tão bela que não existe linguagem humana capaz de descrever-lhe a beleza. Em sua cabeceira se achava uma linda gaiola, dentro da qual estava o Pássaro Trinador de Flores, e a cada trinada que este emitia caíam-lhe do bico flores suavemente perfumadas. Ibrahim com grande rapidez se apoderou da gaiola e fugiu, pedindo aos demoniozinhos que o levassem para casa.

Quando já se achava próximo do castelo onde morava, pendurou a gaiola numa árvore e caiu no sono. Então, como se pode imaginar, os irmãos apareceram e roubaram o pássaro, levando-o para o Rei, a quem disseram terem sido eles mesmos que o haviam encontrado. Mas o pássaro não cantava! 

Ibrahim consegue chegar à  corte e, ao vê-lo, o pássaro logo se põe a cantar e as flores a lhe tombarem do bico, de modo que o Rei logo fica curado. Eis, porém, que chega ali um exército. Ao redor do palácio surge grande número de tendas e os irmãos, horrorizados, descobrem que Tarfe Banu viera em busca de quem lhe roubara o Pássaro. O ladrão, disse ela, teria que comparecer à  sua presença, pois não falaria com qualquer outra pessoa. Todos empalideceram, mas Ibrahim se declarou disposto a ir.

Vestiu-se principescamente e compareceu diante da Princesa, que o recebeu muito afavelmente, declarando-lhe ter feito um juramento de se casar com ele porque, a despeito da perseguição das feiticeiras, conseguira encontrá-la, bem como ao pássaro, e que por isso era ele o único que merecia se tornar seu esposo.

Ibrahim se casou, portanto, com Tarfe Banu, permitindo que mais tarde Maiúne viesse se reunir a ele e todos viveram felizes até o fim de suas vidas, como manda o destino.

Fonte:

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Trova 290 - Antonio Juraci Siqueira (Belém/PA)

Fonte: Facebook (Bonde Trova)

Antonio Juraci Siqueira (Poemas Escolhidos)


ARTE POÉTICA

Hoje,
amanheci meio peixe,
meio pássaro.

Estou aprendendo a nadar,
tomando aulas de vôo
e aprimorando o canto.

Amanhã,
pássaro pleno,
insofismável peixe,
debulharei meu canto sobre a terra
em nados abissais

e vôos rasantes.

UM PÁSSARO A CANTAR DENTRO DE UM OVO

Se o mundo quer calar-me, eu não hesito:
recorro à trova e crio um mundo novo
onde ponho o calor e a voz do povo,
um punhado de humor, um beijo e um grito.

Na trova eu me divirto e me comovo,
nela o meu sonho é muito mais bonito,
nela eu prendo as estrelas do infinito
e um pássaro a cantar dentro de um ovo.

Trova é roupa estendida na varanda,
relva molhada pela chuva branda,
rosa vermelha, moça na janela,

gotas de orvalho a tremular na flor…
Por isso não a queiram mal, pois ela
é a voz e o coração do trovador!

ACRÓSTICO DE ADEUS PARA ADEMAR MACEDO

Ademar, poeta-menino,
Demiurgo da poesia,
Emissário da palavra,
Mensageiro da alegria,
Amansador da saudade,
Regente da fantasia!

Macedo, poeta do povo,
A lançar trovas ao léu,
Consolando os infelizes,
Encantando o justo e o réu.
Doravante escreverá
Os seus poemas no céu.

VERDE CANTO

Verde é o meu canto

vivo muiraquitã de amor talhado
na pedra da existência e pendurado
no invisível pescoço do amanhã.

VERDE É O MEU PRANTO

musgo a crescer nas fendas seculares
abertas pelas mãos da malquerença
na história carcomida deste chão.

VERDE É O VENENO

que escondo na palavra – jararaca
furtivamente oculta entre a folhagem
no emaranhado chavascal de mim

VOO NOTURNO

Na fogueira da aurora eu me consumo
e ressuscito entre os lençóis da noite
para tecer meu ninho de discórdias
 do teu coração.

A minha pena – faca de dois gumes –
ao mesmo tempo fere e acaricia;
as minhas asas - guarda-sóis se abertas,
quando fechadas, grades de prisão.

Trago nas veias sangue canibal:
bebo esperanças, mastigo ilusões
e, às vezes, sorvo sonhos matinais.

Portanto não se engane: sou poeta
em cujo peito dorme um troglodita
que traz no coração pluma e punhal.

BARQUEIROS DE AMOR E FÉ

I
Senhora do Amor Eterno,
em Vossa barca de flores,
volvei-nos o olhar materno,
rogai por nós, pescadores,
nas lutas do dia a dia
pelo pão da poesia
num mar de risos e dores.
II
Nesse rio de romeiros
nossa fé em Vós revoa;
somos todos canoeiros
a remar, com Deus à proa,
nessa igarité tão linda
que o povo chama Berlinda
e vos serve de canoa.
III
Pelas marolas da vida,
envoltos em nossos ais,
em Vós buscamos guarida
aportando em Vosso cais
- porto seguro e divino -
para atar nosso destino
no esteio de Vossa Paz.
IV
Seguimos nossos caminhos,
Senhora de Nazaré,
nós, humildes ribeirinhos
remando contra a maré
rio abaixo, rio acima
na barca que nos anima
onde embarca a nossa fé.
V
Nas rabetas, nas bajaras,
nos cascos, nas montarias,
nos batelões, nas igaras,
vencendo marés bravias
descem cargas de bonança
trazendo amor e esperança
em eternas romarias.

VI
Guiai os nossos barqueiros
com suas cargas de sonhos,
nossos produtos brejeiros,
de artesãos belos, risonhos
e os livrai das emboscadas,
das abordagens tramadas
por malfeitores medonhos.
VII
Virgem Mãe dos construtores
das nossas embarcações,
aliviai suas dores
dai paz aos seus corações
para que sem sacrifícios
possam passar seus ofícios
às futuras gerações.
VIII
Ó, Virgem Santa, coloque
Vosso manto sobre nós
pondo em cada roque-roque
a voz dos nossos avós
junto aos sons da Natureza
emprenhando de beleza
este mundo grave e atroz.
IX
Eliminai nossos medos
nos dando um novo sentido,
nos fazei vossos brinquedos
de miriti colorido.
Livrai o meio ambiente
desse monstro poluente
que é o Capital atrevido.
X
E ao final desta jornada,
em prol do Supremo Bem,
Santa Mãe Imaculada,
olhai por nossa Belém!
Abençoai vossos filhos
direcionando seus trilhos
para todo o sempre. Amém!

Oscar Wilde (O Gigante Egoísta)

Todas as tardes, ao saírem do colégio, as crianças costumavam a ir brincar no jardim do Gigante.

Era um jardim lindo e grande, com grama verde e suave. Aqui e ali, sobre a grama, apareciam flores belas como estrelas, e havia doze pessegueiros que, na primavera, abriam-se em flores delicadas em tons de rosa e pérola, e davam ricos frutos no outono. Os pássaros pousavam nas árvores e cantavam tão docemente que as crianças costumavam parar de brincar para ouvi-los.

- Como nos sentimos felizes aqui! - exclamavam elas.

Certo dia ele voltou. Ele tinha andado visitando seu amigo, o ogre da Cornualha, e ficara sete anos com ele. Depois de sete anos ele já havia dito tudo que tinha o que não tinha para dizer, já que sua conversa era limitada, e resolveu voltar para seu próprio castelo. Ao chegar, ele viu as crianças brincando no jardim.

- O que é que vocês estão fazendo aqui? - gritou ele com uma voz muito ríspida, e as crianças saíram correndo.

- O meu jardim é meu jardim - disse o Gigante. - Qualquer um pode compreender isso. Eu não vou permitir que ninguém brinque nele, a não ser eu mesmo.

De modo que ele construiu um muro alto em torno do jardim e colocou um cartaz de aviso.

OS INVASORES SERÃO PROCESSADOS!

Ele era um Gigante muito egoísta.

As pobres crianças agora não tinham mais onde brincar. Elas tentaram brincar na estrada, mas a estrada era muito poeirenta e cheia de pedras duras, e eles não gostavam. Começaram a passear em torno do muro depois das aulas, conversando sobre o lindo jardim que ficava lá dentro. "Como éramos felizes lá!", diziam uma ás outras.

Então chegou a Primavera, e por todo o país apareceram pequenas flores e pequenos pássaros. Só no jardim do Gigante Egoísta é que continuava a ser inverno. Os passarinhos não gostavam de cantar lá, porque não havia crianças, e as árvores se esqueceram de florescer. Uma vez uma flor bonita chegou a brotar, mas ao ver o cartaz de aviso ficou com tanta pena das crianças que se enfiou de volta no chão e adormeceu. Os únicos que estavam contentes eram a Neve e o Gelo.

- A Primavera se esqueceu deste jardim - eles exclamaram -, de modo que podemos viver aqui o ano inteiro.

A neve cobriu toda a grama com seu manto branco, e o Gelo pintou todas as árvores de prata. Eles convidaram o Vento do Norte para se hospedar com eles, e ele veio. Todo enrolado em peles, rugia o dia inteiro pelo jardim, derrubando as chaminés com seu sopro.

- Este lugar é ótimo - disse ele. - Nós precisamos convidar o Granizo para vir fazer uma visita.

E o Granizo apareceu. Todos os dias, durante três horas, ele matracava no telhado do castelo até quebrar quase todas as telhas, e depois corria, dando voltas pelo jardim o mais depressa que podia. Sempre vestido de cinza, soprava gelo para todo lado.

- Não entendo porque as Primavera está demorando tanto a chegar! - disse o Gigante Egoísta, sentado junto à janela e olhando para seu jardim frio e branco. - Espero que o tempo mude logo.

Mas a Primavera não apareceu, nem o Verão. O Outono trouxe frutos dourados para todos os jardins, mas nenhum para o do Gigante.

- Ele é muito egoísta - disse o Outono.

De modo que ali ficou sendo sempre inverno, e o Vento Norte e o Granizo, a Neve e o Gelo dançavam em meio às árvores.

Certa manhã, o Gigante estava deitado, acordado, na cama, quando ouviu uma música linda Soava com tal doçura em seus ouvidos que ele até pensou que deviam ser os músicos do Rei que passavam. Na realidade era apenas um pequeno pintarroxo cantando do lado de fora de sua janela, mas já fazia tanto tempo que ele não ouvia um só passarinho em seu jardim que aquela parecia ser a música mais bonita do mudo. E então o Granizo parou de dançar sobre a cabeça dele, e o Vento do Norte parou de rugir, e um perfume delicioso chegou até ele, através da janela aberta.

- Acho que finalmente a Primavera chegou - disse o Gigante. - E, pulando da cama, olhou par fora.

O que ele viu?

A visão mais bonita que se possa imaginar. Por um buraquinho no muro as crianças haviam conseguido entrar, e estavam todas sentadas nos ramos das árvores. Em todas as árvores que ele conseguia ver havia uma criança. E as árvores estavam tão contentes de terem as crianças de volta que se cobriram de flores, balançando delicadamente os galhos, por cima da cabeça da meninada. Os passarinhos voavam de um lado para outro, chilreando de prazer, e as flores espiavam e riam. Era uma cena linda, e só em um canto é que continuava as ser inverno. Era o canto mais distante do jardim, e nele estava de pé um menininho. Ele era tão pequeno que não conseguia alcançar os ramos da árvore, e ficou andando em volta dela, chorando, muito sentido. A pobre árvore continuava coberta de neve e de gelo, e o Vento do Norte soprava e rugia acima dela.

- Sobe logo, menino! - dizia a Árvore, curvando os ramos o mais que podia. Mas o menino era pequeno de mais.

E o coração do Gigante se derreteu quando ele olhou lá para fora.

- Como eu tenho sido egoísta! - disse ele. - Agora já sei porque a Primavera não aparecia por aqui. Eu vou colocar aquele menininho em cima daquela árvore, depois vou derrubar o muro, e meu jardim será um lugar onde as crianças poderão brincar para sempre e sempre.

Ele estava realmente arrependido do que tinha feito. E assim, desceu a escada, abriu a porta da frente com toa a delicadeza, e saiu para o jardim. Mas quando as crianças o viram ficaram tão assustadas que fugiram, e o inverno voltou ao jardim. Só o menininho pequeno é que não fugiu, porque seus olhos estavam marejados de lágrimas e não viu o Gigante chegar. E o Gigante aproximou-se de mansinho por trás dele, pegou delicadamente em sua mão e o colocou em cima da árvore. A árvore imediatamente floresceu, e os passarinhos vieram cantar nela; e o meniniho esticou os braços, passou-os em torno do pescoço do Gigante e o beijou. Quando viram eu o Gigante não era mais mau, as outras crianças voltaram correndo, e com elas veio a Primavera.

- Agora o jardim é de vocês, crianças - disse o Gigante. E pegando um imenso machado, derrubou o muro. Quando toda a gente começava a iro para o mercado, ao meio-dia, lá estava o Gigante brincando com as crianças no jardim mais bonito que todos já haviam visto.

Elas brincavam o dia inteiro, mas quando chegava a noite despediam-se do Gigante.

- Mas onde está seu companheirinho? - perguntou ele. - O menino que eu botei em cima da árvore.

O Gigante gostava dele mais do que de todos os outros, porque ele lhe havia dado um beijo.

- Nós não sabemos - responderam as crianças. - Ele foi embora.

- Vocês têm de dizer a ele par anão deixar de vir aqui amanhã - disse o Gigante.

Mas as crianças disseram que não sabiam onde ele morava, e que jamais o haviam visto antes. O Gigante ficou muito triste.

Todas as tardes, quando acabavam as aulas, as crianças iam brincar como Gigante. Mas o menininho de quem o Gigante gostava nunca mais apareceu. O Gigante era muito bondoso com todas as crianças, mas sentia saudades de seu primeiro amiguinho, e muitas vezes falava nele.

- Como eu gostaria de vê-lo! - costumava dizer.

Os anos se passaram, e o Gigante ficou mais velho e fraco. Ele já não conseguia brincar direito, e então ficava sentado em uma poltrona enorme, olhando as crianças que brincavam e admirando seu jardim.

- Tenho tantas flores lindas - dizia ele -, ma as crianças são as flores mais bonitas de todas.

Certa manhã de inverno, ele olhou pela janela enquanto se vestia. Agora já não odiava o inverno, pois sabia que este era apenas a Primavera enquanto dormia, e que as flores estavam descansando.

De repente ele esfregou os olhos, espantado, e olhou, e olhou, e olhou. Era por certo uma visão maravilhosa. No cantinho mais distante do jardim havia uma árvore toda coberta de flores brancas. Seus ramos eram dourados, carregados de frutos de prata, e debaixo deles estavam o menininho que ela amava.

O Gigante correu pelas escadas, com a maior alegria, e saiu para o jardim. Cruzou depressa o gramado e chegou perto do menino. E quando chegou bem perto, seu rosto ficou rubro de raiva, e ele disse:

- Quem ousou te ferir?

Nas palmas das mãos da criança estavam as marcas de dois pregos, como m haviam marcas de dois pregos em seus pezinhos.

- Quem ousou te ferir? - gritou o Gigante. - Dize-me, para que eu possa tomar de minha grande espada para matá-lo.

- Não - respondeu o menino -, pois essas são as feridas do Amor.

- Quem és? - perguntou o Gigante, e quando o temor apossou-se dele, ajoelhou-se diante da criança.

A criança sorriu para o Gigante e lhe disse:

- Você me deixou, certa vez, brincar em seu jardim, e hoje você irá comigo para o meu jardim que é o Paraíso.

Naquela tarde, quando as crianças chegaram correndo, encontraram o Gigante morto, deitado debaixo da árvore, todo coberto por flores brancas.

Fonte: Oscarwilde2k

domingo, 15 de abril de 2018

SÁ de Carvalho (Caminho da Luz)


Barão de Itararé (Como o Primeiro Advogado entrou no Céu)

Logo que Santo Ivo morreu, encaminhou-se ao Céu e bateu à porta, que São Pedro não se atreveu a abrir, subestimando as razões do bom santo. 

— Faço o que quiseres — repetia o porteiro do Céu —, mas não acho que deva permitir a entrada a um advogado, não só porque nem um tem assento entre os santos, mas também porque; muito ao contrário, juraria que se encontram no inferno todos os de tua profissão.

Santo Ivo não se desconcertou; antes, como bom advogado, teve tão convincentes razões para rebater as de São Pedro que este lhe permitiu finalmente entrar no Céu, mas com a condição de permanecer junto à porta.

O hóspede entrou calmamente, sentou-se no lugar indicado por São Pedro, que foi participar a Nosso Senhor o sucedido...

— Fizeste mal! Muito mal, Pedro! — respondeu Deus, quando acabou de escutá-lo. — Havia resolvido que nenhum advogado entraria no Céu, e tinha cá minhas razões para isso. Mas já que está, deixa ficar; sem embargo, não deixes que ele se misture com os outros santos, pois do contrário acabarão no Céu a paz e a boa harmonia. Não o deixes passar além da porta.

Aborrecido e cabisbaixo, voltou São Pedro aonde estava Santo Ivo e comunicou-lhe as ordens dadas pelo Senhor. O Santo advogado encolheu os ombros e, à guisa de passatempo, começou a entabular conversa com São Pedro.

— Que posto ocupas aqui no Céu? 

— Não sabes? Sou o porteiro.

— Por quanto tempo?... 

— Para todo o sempre.

— Deixa disso. Só se tiveres algum contrato firmado...

— Não há contrato nem coisa que o valha, e para dizer a verdade não há necessidade disso.

— Como assim? Então não estás vendo, grande ingênuo, que qualquer dia Deus pode ter a idéia de te destituir, sem mais nem menos, do cargo que com zelo vens desempenhando há tanto tempo, sem que possas fazer valer teus direitos?

São Pedro coçou a orelha, e, mais amofinado que antes, foi novamente falar com Deus.

— Vamos lá, que é que pensas?

— Preciso de um contrato em que se declare que sou o porteiro do Céu para todo o sempre. Até hoje temos deixado as coisas andar à vontade; mas se vos der na ideia, qualquer dia me destituís do cargo que com tanto zelo...

— Não te dizia eu? Tudo isso são trapaças daquele advogadozinho que tens na porta e que soube encher-te a cabeça.

E ajuntou depois, tomando uma resolução:

— Anda, Pedro, corre e manda-o entrar imediatamente, pois prefiro tê-lo perto de mim a vê-lo junto à porta.

Eis como entrou no Céu o primeiro advogado.

Fonte: Afonso Félix de Souza (organizador). Máximas e Mínimas do Barão de Itararé. Rio de Janeiro: Record, 1985.

Barão de Itararé (1895 – 1971)

Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, conhecido por Aporelly e pelo falto título de nobreza de Barão de Itararé, nasceu em Rio Grande, no Rio Grande do Sul, no dia 29 de janeiro de 1895.

Sua mãe, Amélia, teve morte trágica, suicidou-se quando tinha 18 anos e ele 18 meses; seu pai enviou-o a um internato em 1906, no Colégio Nossa Senhora da Conceição, em São Leopoldo-RS, onde faz o seu primeiro jornal manuscrito, intitulado "Capim Seco", com tiragem de um exemplar, em 1909.

Deixa o colégio após cursar o 5o ano ginasial, em 1911. Anos depois, por pressão familiar, matricula-se na Faculdade de Medicina de Porto Alegre/RS.

"Pontas de Cigarros", o primeiro e único livro com seu nome verdadeiro, é publicado em 1916.

Em 1918, durante suas férias, sofre um derrame quando andava a cavalo na fazenda de um tio. Face ao problema surgido, abandona a Faculdade no 4o ano e inicia viagens pelo interior do estado, fazendo conferências sobre diversos assuntos. Publica sonetos e artigos em jornais e revistas, como: "Kodak", "A Máscara" e "Maneca". A partir de então, dedica-se exclusivamente ao jornalismo.  Nessa mesma época funda "A Noite e a Reação", "A Tradição" e " O Chico", seu primeiro jornal de humor. 

Casa-se com Alzira Alves, com quem tem três filhos: Ady, Ary e Arly.

Já separado, em 1925, muda-se para o Rio de Janeiro. Começa a trabalhar no jornal "O Globo" como articulista, tendo como padrinho Irineu Marinho, diretor-proprietário daquele matutino. Com sua morte, naquele mesmo ano, Aparício Torelly  desliga-se do jornal e, a convite de Mário Rodrigues (pai de Nelson Rodrigues), ex-secretário do Correio da Manhã, começa a escrever uma coluna na primeira página da que, no futuro, seria "A Manhã”.

No dia 2 de janeiro de 1926 estréia na "A Manhã” com a coluna intitulada "A manhã tem mais...", assinada sob o pseudônimo de Apporelly. Diante da boa receptividade que obteve, o humorista é levado a criar outra coluna, também na primeira página.

Aproveitando-se da data, em 13 de maio de 1926 abandona o emprego e funda seu próprio jornal, "A Manha", um tablóide de circulação nacional. O jornal é um sucesso completo, superando as fórmulas já velhas conhecidas dos leitores, como "O Malho", "Fon-Fon" e "Careta".

Em 1929 "A Manha" circula como encarte semanal do jornal "O Diário da Noite", por quatro meses. O jornal, de Assis Chateaubriand, na primeira semana dobra a tiragem, vendendo 15.000 exemplares, até atingir a marca de 125.000 exemplares na data da publicação do programa da Aliança Liberal. 

Sempre irreverente, em 1930, com a revolução, em outubro de 1930, Apparício se autodeclarara Duque nas páginas de A Manha: “O Brasil é muito grande para tão poucos duques. Nós temos o quê por aqui? O Duque Amorim, que é o duque dançarino, que dança muito bem mas não briga e o Duque de Caxias que briga muito bem, mas não dança. E agora eu, que brigo e danço conforme a música.” O autor proclama-se Duque de Itararé, herói da batalha que não houve. Semanas depois, rebaixa-se a Barão como prova de modéstia. No dia 02 de setembro de 1932 é preso pela delegacia responsável pela ordem política e social, após "delirante atividade revolucionária" mantida nas páginas da "A Manha" e constantes estocadas contra o governo instalado pela revolução. 

O ano de 1934 marca a abertura do "Jornal do Povo", em outubro, em companhia de Aníbal Machado, Pedro Mota Lima e Osvaldo Costa.  Nos dez dias, o jornal publica em fascículos a história de João Cândido, um dos marinheiros da revolta de 1910. O Barão é seqüestrado e espancado por oficiais da marinha nunca identificados. Depois do atentado retorna à redação e afixa uma placa na porta: "Entre sem bater".

Preso, novamente, em 09 de dezembro de 1935, por ser militante e um dos fundadores da Aliança Nacional Libertadora, permanece preso durante todo o ano de 1936, primeiro a bordo do navio presídio D. Pedro I, depois na Casa de Detenção do Rio de Janeiro; juntamente com Hermes Lima, Eneida de Morais, Nise da Silveira e Graciliano Ramos. 

Dona Zoraide, sua segunda mulher, falece nesse ano.

Graciliano, em "Memórias do Cárcere", referiu-se por diversas vezes  ao Barão, tendo dito: "... Ao fundo, Apporelly arrumava cartas sobre uma pequena mesa redonda, entranhado numa infinita paciência. Avizinhei-me dele, pedi notícias do livro que me anunciara antes: a biografia do Barão de Itararé Como ia esse ilustre fidalgo? A narrativa ainda não começara, as glórias do senhor barão conservavam-se espalhadas no jornal. Ficariam assim, com certeza: o panegirista não se decidia a pôr em ordem os feitos do notável personagem."

Solto em 21 de dezembro de 1936, com outros 100 presos, reabre "A Manha", que só consegue funcionar por um ano, sob severa censura do DIP. Casa-se, pela terceira vez, com D. Juracy, que lhe dá mais um filho, Amy Torelly.

Janeiro de 1938 marca sua volta ao "Diário de Notícias", do Rio de Janeiro, e da coluna "A manhã tem mais...", onde colabora por quase seis anos. 

No dia 27 de janeiro de 1939 épreso novamente por três dias. O fato se repetirá diversas vezes até o fim do Estado Novo. 

D. Juracy, sua esposa, falece em 1940, ao dar à luz àquele que seria seu segundo filho com ela. A criança também falece. Apporelly retira-se para uma chácara em Bangu, no Rio, e ali instala um laboratório onde desenvolve pesquisas sobre a vacina contra a febre aftosa, baseado em teorias de Pasteur.

Sua filha Ady morre em 1943, vítima de complicações pós-operatórias provocadas pela extração do apêndice.

Homenageado com um jantar na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), por amigos e jornalistas, em 1944, pelos seus 25 anos de jornalismo, no ano seguinte o Barão encabeça, no ano seguinte, um abaixo-assinado por liberdades democráticas. Ressurge "A Manha" com enorme sucesso, superando o que havia feito nas décadas de 20 e 30, contando com a colaboração de renomados escritores, tais como: José Lins do Rego, Sérgio Milliet, Rubem Braga, Raimundo Magalhães Jr. e Álvaro Lins. 

Arnon de Melo assume a área comercial do jornal e incentiva o aparecimento da figura do Barão como garoto-propaganda. Participa ativamente da campanha de Yedo Fiuza, candidato oficial do Partido Comunista Brasileiro (PCB) á presidência da República.

Candidata-se à Câmara do Distrito Federal pelo PCB e, provando sua popularidade, é o oitavo mais votado de sua bancada, a qual obtém maioria na Câmara de Vereadores. O slogan da campanha foi: "Mais leite, mais água, mas menos água no leite — Vote no Barão de Itararé Apparício Torelly." A convite de Luiz Carlos Prestes, passa a colaborar com a "Folha do Povo". Faziam parte da equipe Carlos Drummond de Andrade, Di Cavalcanti, Jorge Amado e o jovem Sérgio Porto (posteriormente conhecido como Stanislaw Ponte Preta). No final do ano o registro do PCB é cassado e seus representantes eleitos perdem seus mandatos.

Em virtude de problemas financeiros, "A Manha" deixa de circular, em 1948.

O Barão associa-se a Guevara e lança o primeiro "Almanhaque" ou "Almanaque d' "A Manha" em São Paulo (1949).

Com o sucesso do lançamento, anima-se o Barão e, em 1950 "A Manha" volta a circular, editada em São Paulo, onde o humorista passa a viver por algum tempo, ou seja, até setembro de 1952, quando o jornal deixa de circular, definitivamente.

Em 1955 lança dois "Almanhaques", no 1o e 2o semestres. Colabora com o jornal "Última Hora". Velho e cansado, fixa-se novamente no Rio e casa-se, pela quarta e última vez com Aida Costa, que teve fim trágico anos depois.

Viaja pela China, em 1963, a convite do governo de Pequim, com passagem por Praga e Moscou. 

Nos anos seguintes (1964/1970), foi deixando o humor de lado e passou a se interessar pela ciência, e pelo esoterismo, estudou filosofia hermética, as pirâmides do Antigo Egito e a astrologia, campo no qual desenvolveu o "horóscopo biônico". e "quadrados mágicos". Passa a maior parte do tempo estudando e vive só em um pequeno apartamento em Laranjeiras, bairro do Rio de Janeiro.

Teve dignidade por toda sua vida — respeito por todo mundo e por todas coisas. E teve dignidade ao morrer. Morreu sozinho para não sofrerem por ele enquanto estava morrendo.

No dia 27 de novembro de 1971, faleceu dormindo, em seu apartamento, aos 76 anos de idade.

Em 1985, a Editora Record publica em livro, sob o título de Máximas e Mínimas do Barão de Itararé, uma seleção de textos de humor extraídos de A Manhã, em coletânea organizada por Afonso Félix de Sousa e com prefácio de Jorge Amado. No mesmo ano, Máximas e Mínimas alcançou rapidamente quatro edições.

Em 14 de agosto de 2011, o programa De lá pra cá, da TV Brasil relembrou a vida e a obra do Barão de Itararé.

Há duas escolas com o nome "Barão de Itararé” no Rio de Janeiro: uma em Marechal Hermes e outra em Santa Cruz. Em Japeri, Baixada Fluminense, o CIEP 402 leva o nome de Apparício Torelly.

Livros Publicados:
- Pontas de Cigarros, Apparício Torelly, Rio de Janeiro - 1925
- "O Globo" - Rio de Janeiro - 1925 - artigos
- "A Manhã” - Rio de Janeiro - 1926 - artigos
- "A Manha" - Rio de Janeiro - 1926-1952 - artigos
- "Jornal do Povo" - Rio de Janeiro - 1934 - artigos
- "Avante", "Homem Livre", "O Povo" - RJ - Década de 30 - artigos
- "Diário de Notícias" - Rio de Janeiro - 1938-1942 - artigos
- "Almanhaque" - São Paulo - 1949 - 1. semestre
- "Almanhaque" - São Paulo - 1955 - 1. semestre
- "Almanhaque" - São Paulo - 1955 - 2. semestre
- "Última Hora"  - São Paulo - 1955-1959 - artigos esparsos
- "Almanhaque" - Agência Studioma Editora - São Paulo - 1989 (reedição de 1955)

Fontes: 

sábado, 14 de abril de 2018

Trova 289 - Cláudia Bergamini (Londrina/PR)

Fonte: Facebook (Bonde Trova)

Vanda Fagundes Queiroz (Resto de Sol)


APARÊNCIA E REALIDADE

O som de minha voz inutilmente
acontece, sem cor e sem motivo,
Tão diverso é o real mundo que vivo
da hora em que pareço estar presente.

É presença enganosa, que desmente
outra força suprema — a do furtivo
viver por dentro, onde, devota, arquivo
ignotos pulsares da alma ardente.

A voz que fala, o riso, a cor que é vista
é invólucro somente, e bem despista
do meu ego a essência, a vida inteira...

E, assim, esta duidade faz-me artista
na arte de viver de forma mista:
a que parece ser... e a verdadeira.

A COR DA MINHA TRISTEZA

A tristeza em meus suspiros tão frequente,
não lhe vês o ar de órfã desolada,
não entendes sua voz — brado silente,
não lhe dás nunca razão, nem cor, nem nada. .

E ela tem, nítida, a cor do riso ausente...
É triste andante de faces desbotadas,
tem a cor dos pés descalços, do inclemente 
abrigo sujo ostentado nas calçadas.

Tem a cor do pranto alheio, sofre o espinho
que a tantas flores impede de brotar.
Tem a cor da nulidade de urn caminho

que — acaso existe? —ninguém logra alcançar 
a cor de um mundo de risos tão mesquinho, 
tão farto em dor, que dá cor ao meu penar....

SUBLIMAÇÃO

Tento louvar a beleza do universo, 
cantar o céu, o infinito, o sol, a flor.
No silêncio existe som que escuto em verso, 
do matiz inexistente vejo a cor.

Numa gota d’água posso ver, submerso, 
do gigante mar azul todo o esplendor.
Penso em rosas onde o espinho mais perverso 
cresce, banindo a alegria e impondo a dor

A solidão povoei, o peito imerso
nos meus sonhos enfeitados com o verdor
da esperança, alado aroma ao céu disperso.

A viver concebo o Bem. Em meu fervor, 
sonhando a Paz, quando há guerra, quão diverso 
vê-se o mundo no altar-mor do meu Amor!...

COTA SUFICIENTE

Bendita a pérola pequena e inculta 
que fartas vezes vislumbrar logrei 
na concha humilde, a única que herdei 
do mar imenso que agiganta e avulta.

Bendito o mínimo botão que a estulta 
gente distante, nos jardins que andei, 
calcou aos pés. Pois dele me apossei, 
deixando a todos, livre, a rosa culta.

E vendo o mundo em ouro se encantar, 
busquei nas coisas simples me abrigar, 
sem ter cobiça a ventura imponente.

Fortuna tenho, imensa, a ostentar: 
pois no alto vendo o astro-rei brilhar, 
eu desejei a sombra. Simplesmente...

POLICROMIA

Nesta, profusão oculta de sentires 
que aconchego e acalento com ardor, 
não estranhes quando acaso descobrires, 
misturada a tanta cor, a tua cor.

Se entre as ânsias de minha alma um dia ouvires 
um som que possa a um lamento enfim se opor, 
é tua a voz! E feliz quando me vires, 
da alegria que eu sentir serás credor.

No cinzento do meu peito, mil nuanças, 
cor de rosa e de esperança, tentas pôr.
Com teus olhos, as tormentas são bonanças;

por tua mão, o agudo espinho é fina flor.
A mistura policroma já não cansa 
quando, em meio a tanta cor, há a tua cor.. .

ILOGISMO

Coisas simples por vezes têm magia; 
minúscula porção — eis que é bastante 
a tornar toda pequenez gigante 
e inundar o meu mundo de alegria.

A ave canta, a alma canta. A alma é poesia, 
vez ou outra: eis o amor de mim diante.
Há no ar perfumado um som cantante.
Olho o céu, vejo Deus. A noite é dia.

Arbitrário, impreciso sentimento!
Sublima meu instante, breve ou lento, 
mas se vem. .. quando vai... não dá certeza.

Bem assim acontece outro momento 
em que quero sorrir. Forcejo. Tento.
E, sem saber por que, tudo é tristeza...

IRREVERSÃO

Da terra brota a flor cada estação, 
haurindo a seiva fértil do existir. 
Nutrindo-se de vida, o coração 
da planta vibra, em cores a expandir.

Um dia... o ar sombrio, a acridão 
da quadra estéril, triste, que há de vir, 
desnuda o solo, onde, em contradição, 
terá lugar a ausência do florir.

A estação das flores retornando, 
cor de esperança a terra se enfeitando, 
a haste ostentará de novo a flor.

Murcha no peito a rosa da ilusão, 
a seiva não renova, e o coração 
passa, infecundo, à estação da dor.

A MEU FILHO

Vejo a criança de ontem em você 
que embalei nos meus braços ternamente. 
Sinto inundar-me de emoção porque 
eu vi botão a flor hoje imponente.

Ao pressentir o homem que, latente, 
eu já descubro e quase já se vê, 
tenho almejado que haja tão somente 
o bem, no mundo que se lhe antevê.

Não saber-lhe o porvir faz-se tortura 
que na alma-mãe me paira e assim perdura 
na ânsia vã de pautar-lhe a jornada.

Uma lágrima oculta, na costura 
enxugo. E rogo a Deus que faça pura 
e perfumosa a flor por mim plantada.

ANTES DE FECHAR A PORTA

Recordo, muita vez, sentada à porta 
de mim mesma, o tão nosso antigamente! 
O que espreito, bem sei, não mais importa 
que a mim só que de novo estou presente.

É a mão da saudade que transporta 
o que sou ao que fomos. De repente, 
tanta coisa, com rótulo de morta, 
vive em mim nova vida, inteiramente. ..

Julgas mera tolice a devoção 
de minha ardente peregrinação 
ao passado, E me acordas à verdade.

Volvo ao deserto de viver, então.
Mas, antes de esconder o coração, 
guardo já dentro mais uma saudade.

MALOGRO

Intenta extravasar-se em verso ardente 
a ânsia do sentir, impetuosa...
Mas vejo que a palavra é impotente 
e tem veracidade duvidosa.

Versos apócrifos — são meu presente 
ao papel onde quero, em verso ou prosa, 
retratar a minha alma, ardentemente, 
da forma como em mim apoteosa.

Tortura-me, no entanto, a rima ausente... 
Outro canto, outra luz, inutilmente 
vou tenteando em minha busca ansiosa.

Descubro que querer tornar patente 
este universo que há dentro da gente 
é uma ação sempre falha e lacunosa...

Fonte: 
Aparício Fernandes (organizador). Poetas do Brasil. Anuário de 1980. 
3. volume. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1980.