quinta-feira, 24 de maio de 2018

Mário Quintana (Velha história)

Era uma vez um homem que estava pescando, Maria. Até que apanhou um peixinho! Mas o peixinho era tão pequenininho e inocente, e tinha um azulado tão indescritível nas escamas, que o homem ficou com pena. E retirou cuidadosamente o anzol e pincelou com iodo a garganta do coitadinho. Depois guardou-o no bolso traseiro das calças, para que o animalzinho sarasse no quente. E desde então ficaram inseparáveis. Aonde o homem ia, o peixinho o acompanhava, a trote, que nem um cachorrinho. 

Pelas calçadas. Pelos elevadores. Pelos cafés. Como era tocante vê-los no 17! - o homem, grave, de preto, com uma das mãos segurando a xícara de fumegante moca, com a outra lendo o jornal, com a outra fumando, com a outra cuidando o peixinho, enquanto este, silencioso e levemente melancólico, tomava laranjada por um canudinho especial...

Ora, um dia o homem e o peixinho passeavam à margem do rio onde o segundo dos dois fora pescado. E eis que os olhos do primeiro se encheram de lágrimas. E disse o homem ao peixinho:

“Não, não me assiste o direito de te guardar comigo. Por que roubar-te por mais tempo ao carinho do teu pai, da tua mãe, dos teus irmãozinhos, da tua tia solteira? Não, não e não! Volta para o seio da tua família. E viva eu cá na terra sempre triste!”

Dito isto, verteu copioso pranto e, desviando o rosto, atirou o peixinho n'água. E a água fez um redemoinho, que foi depois serenando, serenando... até que o peixinho morreu afogado…

Fonte:
Mário Quintana. Sapato florido. 
Porto Alegre/RS: Editora Globo, 1948.

quarta-feira, 23 de maio de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 9


Caldeirão Poético 6


ANA PAULA COSTA BRASIL
Santana de Parnaíba/SP

Você!

Corri... como corri
Para pular em seu colo
Fundir nossos corpos
Morder seus lábios
Acariciar seu corpo... sentir sua pele
Provar de seu gosto... descobrir minha alma
Mesclar nossos braços... misturas os cabelos
Entrelaçar nossas pernas
Mas... Corri... como corri
Quando vi que você não era você
Que eu nem mesmo conhecia você
Eu fantasiava... construía um você
Como corri por não saber quem é esse outro você
Que não é o meu você
Você... meu você
Fez-me viver... fez-me voltar a sonhar
Fez-me querer... fez-me fazer
Você... o outro você
Fez-me chorar... fez-me sofrer
Fez-me esquecer
O quanto amei
Oh! Meu você
O você que construí para amar
O meu você
________________________

APARECIDO DONIZETTI HERNANDEZ
Itapevi/SP

Amor Oculto

Quanto te esperei... quanto te esperei!...
Não viestes..., onde estavas?
Não respondas, eu sei...
Estavas junto aos anjos.

Te esperei... e quanto te esperei!...
Não perguntarei onde estavas,
Pois sei, estavas junto aos anjos
Esperando a hora de vires,
Mas será que é essa a hora?!
Quanto te esperei!... esperei...

Somente agora os anjos a deixas vir,
Deixarás os céus com anjos tristonhos
E me fará feliz!
______________________

HENRIQUE DO CERRO AZUL
Fortaleza/CE

Contraste

Longe de ti, eu te imagino perto:
Vejo esse teu sorriso a todo instante;
Qual se te visse, o coração amante
É um doce ninho ao teu amor aberto.

Perto de ti, te julgo tão distante…
Nem mesmo vejo o teu sorriso incerto;
Com saudade de ti o peito aperto
Relembrando o fulgor do teu semblante.

Também tu és como eu:- os teus sentidos
Se enganam, como os meus, pelos caminhos…
E assim passamos desapercebidos

Do erro de nossos múltiplos carinhos:
- Quanto mais longe tanto mais unidos,
- Quanto mais juntos tanto mais sozinhos !
____________________

RAFAEL DOS SANTOS BARROS
Pernambuco

As Mãos de Vitalino*

Vitalino com mãos sujas e santas
modelava em barro os nordestinos
e transportava a dor e os desatinos
para os bonecos tantas vezes, tantas.

Bonecos mudos, quantas vezes quantas,
Minha alma cega por meus olhos viu?
A tua dor meu coração sentiu
no canto triste que ainda hoje cantas.

Soprou a vida num boneco mudo
que sem falar, assim, dizia tudo
dos nordestinos, dos desatinos seus,

advertência dos que nascem pobres
pelas mãos rudes que ficaram nobres,
abençoadas pelas mãos de Deus.


_________________
*Nota sobre Vitalino:
Vitalino Pereira da Silva nasceu no dia 10 de julho de 1909, no Sítio Campos, em Caruaru, Pernambuco. Seu pai, humilde lavrador, preparava o forno para queimar peças de cerâmica que sua mãe fazia, para melhorar o orçamento familiar. E sua mãe, artesã, preparava o barro que ia buscar nas margens do Rio Ipojuca. Depois, sem usar o torno, ia fazendo peças de cerâmica utilitária, que vendia na feira. Levava a cerâmica nos caçuás (cestos grandes) colocados nas cangalhas do jegue (burrico). Com apenas seis anos (1915), Vitalino iniciou-se na arte do artesanato de barro. O material que ele usava para as suas peças era o massapê, que retirava da vazante do Rio Ipojuca e transportava em balaios para casa. O barro era molhado e deixado em um depósito por dois dias para ser curtido, sendo então amassado e modelado. As peças eram cozidas em forno circular, construído ao ar livre, atrás da casa.

Sua capacidade criadora se desenvolveu de tal maneira que acabou se tornando o maior ceramista popular do Brasil.

No início, a aplicação da cor nos bonecos era feita com barro de diferentes tons — tauá, vermelho, branco. Depois, Vitalino passou a usar produtos industriais na pintura dos seus bonecos. As peças da primeira fase não possuíam marca de autoria. Posteriormente, o artista passou a assinalar com lápis e tinta preta as iniciais V.P.S., no reverso da base dos grandes grupos, e, a partir de 1947, começou a utilizar o carimbo, também de barro, com as mesmas iniciais V.P.S., adotando, em 1949, o seu nome de batismo.

Casado com Joana Maria da Conceição, teve 18 filhos e, destes, somente cinco viveram até a idade adulta. Dono de um grande talento musical, aprendeu a tocar pífano (espécie de flauta sem claves e com sete furos) e, com apenas 15 anos, montou sua própria banda, a Zabumba Vitalino.

Mestre Vitalino morreu de varíola aos 20 de janeiro de 1963 A partir dessa época, os bonecos de barro de Vitalino ganharam fama como obras de arte e passaram a percorrer o Brasil e o mundo.

Sua produção é estimada em cerca de 130 peças, que são cuidadosamente reproduzidas pela família. Os seus filhos, netos e bisnetos continuam o seu trabalho até hoje.
(Fonte: http://www.construirnoticias.com.br/asp/materia.asp?id=908)

Nilto Maciel (O Livro de Pedro Amaro)

Sentia-se tonto, o mundo todo de pernas para o ar, feito barata emborcada, a remexer-se em agonia de moribundo sem vela. As palavras perdiam a conotação lógica dos textos regulares de uma lei, tratado sobre a natureza humana, curso dos rios. Via-se lendo a macabra língua dos mitos. O chão virava teto, a cadeira pregava-se como aranha às vigas de uma teia de circo, as linhas proféticas das mãos metamorfoseavam-se em desenhos misteriosos de capas clássicas.

Não sabia explicar se não aceitava aquela mistura de arcaísmos, tupi e expressões populares, ou se apenas tinha medo de sonhar com livros cabalísticos.

Chegava ao fim da leitura com nojo de Pedro Amaro, estupefato diante daquele monstro que confessava sua torpeza: “Perguntado por que razão passara a lambedeira no cangote de um curumim, disse que a causa disso fora porque carecia de se espichar debaixo da jaqueira onde o mesmo estava deitado.”

Nunca mais leria tamanho cinismo. Aquilo deveria ser ficção de algum doido. Nada daquilo ficaria em sua memória, aquelas páginas de extrema virulência, por mais que lhe tivesse ferido os olhos. Se não, apagaria letra por letra, até não se lembrar mais sequer dos vocábulos arcaicos. Sobretudo aquele parágrafo nauseante: “Perguntado se no tempo que lá andou praticava malvadezas, disse que não; somente por rir metia a faca no bucho dos curumins quando dava na veneta desenferrujar o aço mas que não era de fazer marteiros nem de viver de ribaldarias nem de culpas”.

Jogou o livro para cima, irritado, acertou a lâmpada, que se espatifou. Houve um papoco e cacos finos caíram-lhe como neve sobre os cabelos. E ao relâmpago sucedeu a treva, e gritaram: – Seu Amaro, o que foi isso? Enxotou a empregada da sala, quando a infeliz tentava apanhar o livro estatelado aos seus pés. – Não pegue nisso, é porcaria. E continuou a falar do matador de índios, assassino, desalmado, monstro. E berrava: Queime isso, esse Pedro Amaro é um demônio.

Despachou a moça, que apanhou o livro e o levou para os fundos do quintal. Chamou-a de ladra e imediatamente telefonou para a polícia: “Roubou um livro meu, peça rara, documento histórico adquirido por uma fortuna.”

“Ao chegarem os policiais, há muito se havia arrependido da acusação. Lia para a empregada o livro. E recebeu as visitas com extrema inquietação. – Escutem só esta maluquice.”

Figura curiosa a daquele velho português. Verdadeiramente um bicho, mas todo bicho é curioso ao homem. Para que ter medo da realidade? Ali estava um estranho personagem. Necessário reler aquelas confissões. Teria sido um louco? Vissem: “Perguntado se era lembrado dizer alguma hora que seu preço era mais alto do que o de el-rei, disse que si, porque nunca tivera receança, posto não dormisse, nem sofresse, nem falasse, mas que antes não era de capitania, era só e elle”.

Relia o livro tintim por tintim, devagar, olhos grudados nas letrinhas miúdas, esquecido de cheques e notas fiscais, fumando feito uma caipora, consultando dicionários e enciclopédias, detendo-se nesta e naquela palavra, neste e naquele parágrafo, coçando o queixo, pensando, sonhando. Intrigava-o a insolência do colonizador: “Perguntado se dizia ele que se siso fosse bom era era regedor de poder, capitão de regimento, disse que si, e que sua sanha era só de esfolar, porque nunca teve coita, durão e brabo de peito e coração.”

Entendia já termo por termo e sentia-se convencido da existência real de Pedro Amaro. – Passou à história, embora em rodapé, como o típico colonizador. Porém alguma coisa ainda escapava ao seu entendimento, inclusive certos vocábulos em desuso e que nem os dicionários mais completos mencionavam. Mister então ler, reler, tresler o texto, como o joalheiro que olha, reolha, tresolha a pedraria que engasta na joia.

Não perdia ocasião de abrir o livro, sempre à mão, como antes conduzia a pasta repleta de documentos mercantis. Ao acordar, em vez de ler os jornais, lia o interrogatório.

Certa feita pôs-se a ler para um amigo, em plena rua, trechos do livro, assim de repente, como se o outro soubesse do seu interesse: “Perguntado si disse alguma hora que não havia de nunca vestir costume de rei, disse que si e disse mais que andar carecia de sujidade e feitio de onça, para assustar os medrosos, e que seu aspeito era esse de bicho do mato, sem respeito à vida”. O amigo ouvia calado, mas, como se aborrecesse com o prolongado da leitura, riu e o interrompeu para saber o que significava aquilo. Pedro mostrou-se surpreso: – Então o amigo não conhecia o interrogatório de Pedro Amaro? À negativa, expôs sua opinião a respeito do colonizador, no que foi contestado pelo outro: – Pelo que acabei de ouvir, trata-se de um criminoso dos mais bárbaros. Pedro irritou-se, defendeu com unhas e dentes seu homônimo, concluindo ter sido apenas um homem forte no meio de um magote de selvagens, e que seus atos, chamados de crimes, podiam ser muito bem explicados, embora tivessem sido praticados com alguma crueldade. – Vamos levar em conta o meio em que os praticou.

De sua mesa de trabalho ordenou que a moça retirasse os papelórios e as pastas. Não queria desviar os olhos do livro. Necessitava de ler mais o texto antigo. Também não o interrompesse à toa.

Há tempos andava daquele jeito. Se a empregada vinha dar recados, irritava-se. Não lhe tomasse o tempo com recadinhos idiotas. Se lhe vinha pedir ordens, só faltava espaldeirar a coitada. Resolvesse tudo sozinha, não torrasse sua paciência.

Deixava cheques por assinar, documentos bancários esquecidos, relatórios por ler e abraçava o livro com sofreguidão de colegial aplicado. Balançava a cabeça como que aprovando as respostas do interrogado: “Perguntado si era lembrado dizer alguma hora que lugar de argel era debaixo dos sete palmos do chão, fosse galalau ou tamborete-de-forró, que o bicho era ele, disse que si e que isso devia merecer aplausos até dos bugiadões.”

A cada dia mais se tornava irresponsável com os próprios negócios. Em vez de discutir preços com os fregueses, discutia a personalidade do outro Pedro Amaro, sempre a defendê-lo. Súbito encheu-se de fúria, pegou o revólver e disparou seis vezes contra a moça.

E voltou ao livro.

Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos). 
Brasília/DF: Editora Códice, 1997.

terça-feira, 22 de maio de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 8


Manoel de Barros (Poemas Escolhidos)


NA ENSEADA DE BOTAFOGO

Como estou só: Afago casas tortas,
Falo com o mar na rua suja…
Nu e liberto levo o vento
No ombro de losangos amarelos.

Ser menino aos trinta anos, que desgraça
Nesta borda de mar de Botafogo!
Que vontade de chorar pelos mendigos!
Que vontade de voltar para a fazenda!

Por que deixam um menino que é do mato
Amar o mar com tanta violência?

ODE VINGATIVA

Ela me encontrará pacífico, desvendável
Vendável, venal e de automóvel.
Ela me encontrará grave, sem mistérios, duro
Sério, claro como o sol sobre o muro.

Ela me encontrará bruto, burguês, imoral,
Capaz de defendê-la, de ofendê-la e perdoá-la;
Capaz de morrer por ela (ou então de matá-la)
Sem deixar bilhete literário no jornal.

Ela me encontrará sadio, apolítico, antiapocalíptico
Anticristão e, talvez, campeão de xadrez.
Ela me encontrará forte, primitivo, animal
Como planta, cavalo, como água mineral.

COMPÊNDIO PARA USO DOS PÁSSAROS

O MENINO E O CÓRREGO

Ao Pedro


A
água
é madura.
Com penas de garça.
Na areia tem raiz
de peixes e de árvores.

Meu córrego é de sofrer pedras
Mas quem beijar seu corpo
é brisas…

II

O córrego tinha um cheiro
de estrelas
nos sarãs anoitecidos

O córrego tinha
suas frondes
distribuídas
aos pássaros

O córrego ficava à beira
de um menino…

III

No chão da água
luava um pássaro
por sobre espumas
de haver estrelas

A água escorria
por entre as pedras
um chão sabendo
a aroma de ninhos.

IV

Ai
que transparente
aos voos
está o córrego!
E usado
de murmúrios…


Com a boca escorrendo chão
o menino despetalava o córrego
de manhã todo no seu corpo.

A água do lábio relvou entre pedras…

Árvores com o rosto arreiado
de seus frutos
ainda cheiravam a verão
Durante borboletas com abril
esse córrego escorreu só pássaros…

UM BEM-TE-VI

O leve e macio
raio de sol
se põe no rio.
Faz arrebol…

Da árvore evola
amarelo, do alto
bem-te-vi-cartola
e, de um salto

pousa envergado
no bebedouro
a banhar seu louro

pelo enramado…
De arrepio, na cerca
já se abriu, e seca.

GRAMÁTICA EXPOSITIVA DO CHÃO

Antissalmo por um desherói

a boca na pedra o levara a cacto
a praça o relvava de passarinhos cantando
ele tinha o dom da árvore
ele assumia o peixe em sua solidão

seu amor o levara a pedra
estava estropiado de árvore e sol
estropiado até a pedra
até o canto
estropiado no seu melhor azul
procurava-se na palavra rebotalho
por cima do lábio era só lenda
comia o ínfimo com farinha
o chão viçava no olho
cada pássaro governava sua árvore

Deus ordenara nele a borra
o rosto e os livros com erva
andorinhas enferrujadas

ARRANJOS PARA ASSOBIO

(A um Pierrô de Picasso)

Pierrô é desfigura errante,
andarejo de arrebol.
Vivendo do que desiste,
se expressa melhor em inseto.

Pierrô tem um rosto de água
que se aclara com a máscara.
Sua descor aparece
como um rosto de vidro na água.

Pierrô tem sua vareja íntima:
é viciado em raiz de parede.
Sua postura tem anos
de amorfo e deserto.

Pierrô tem o seu lado esquerdo
atrelado aos escombros.
E o outro lado aos escombros.
…………………………….…
Solidão tem um rosto de antro.

(…)

O poema é antes de tudo um inutensílio.
Hora de iniciar algum
convém se vestir roupa de trapo.

Há quem se jogue debaixo de carro
nos primeiros instantes.

Faz bem uma janela aberta
uma veia aberta.

Pra mim é uma coisa que serve de nada o poema
enquanto vida houver.

Ninguém é pai de um poema sem morrer.

SUJEITO

Usava um Dicionário do Ordinário
com 11 palavras de joelhos
inclusive bestego. Posava de esterco
para 13 adjetivos familiares,
inclusive bêbado.
Ia entre azul e sarjetas.
Tinha a voz de chão podre.
Tocava a fome a 12 bocas.
E achava mais importante fundar um verso
do que uma Usina Atômica!
Era um sujeito ordinário.

VISITA

Na cela de Pedro Norato, 23 anos de reclusão,
a morte sesteava de pernas abertas…
Dentre grades se alga, ele!
Tem o sono praguejado de coxas.
Contou que achara a mulher dentro de um pote e a bebeu.
Sem amor é que encontramos com Deus — me diz.
O mundo não é perfeito como um cavalo — me diz.
Vê trinos de água nos relógios.
E para moscas bate continência.

Eu volto de sarjeta para casa.

O GUARDADOR DE ÁGUAS

Esse é Bernardo. Bernardo da Mata. Apresento.
Ele faz encurtamento de águas.
Apanha um pouco de rio com as mãos e espreme nos vidros
Até que as águas se ajoelhem
Do tamanho de uma lagarta nos vidros.
No falar com as águas rãs o exercitam.
Tentou encolher o horizonte
No olho de um inseto — e obteve!
Prende o silêncio com fivela.
Até os caranguejos querem ele para chão.
Viu as formigas carreando na estrada duas pernas de ocaso
para dentro de um oco… E deixou.
Essas formigas pensavam em seu olho.
É homem percorrido de existências.
Estão favoráveis a ele os camaleões.
Espraiado na tarde —
Como a foz de um rio — Bernardo se inventa…
Lugarejos cobertos de limo o imitam.
Passarinhos aveludam seus cantos quando o veem.
____________________

De tonto tenho roupa e caderneta.

Eu sei desigualar por três.
Já gostei muito de mula
E Estação de Estrada de Ferro.
Depois troquei por anu-branco
E Estação de Estrada de Ferro.
Hoje gosto de santo e peneira.
Uma dona me orvalha sanguemente.
O que no alforje eu trago
É um azul arriscado a pássaros…
Eu sei o nome das letras.
E desenvolvo moscas em peneira.
Sou muito lateralmente entretontos.
O que desabre o ser é ver e ver-se.
Aragem cor de roupa me resplende.

RETRATO QUASE APAGADO EM QUE SE PODE VER PERFEITAMENTE NADA


Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
— Imagens são palavras que nos faltaram.
— Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
— Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo).
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos,
retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

II

Todos os caminhos — nenhum caminho
Muitos caminhos — nenhum caminho
Nenhum caminho — a maldição dos poetas.

[…]


Escrever nem uma coisa
Nem outra —
A fim de dizer todas —
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar —

Tanto quanto escurecer acende os vagalumes.

Fonte:
Manoel de Barros. Meu quintal é maior do que o mundo. 
1. ed.  Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Jose Feldman (Álbum de Trovas) 7


Stanislaw Ponte Preta (Não Sei se Você se Lembra)

ENTÃO, não sei se você se lembra, nos veio aquela vontade súbita de comer siris. Havia anos que nós não comíamos siris e a vontade surgiu de uma conversa sobre os almoços de antigamente. 

Lembro-me bem — e não sei se você se lembra — que o primeiro a ter vontade de comer siris fui eu, mas que você aderiu logo a ela, com aquele entusiasmo que lhe é peculiar, sempre que se trata de comida ou de mulher. 

Então, não sei se você se lembra, começamos a rememorar os lugares onde se poderia encontrar uma boa batelada de siris, para se comprar, cozinhar num panelão e ficar comendo de mãos meladas, chão cheio de cascas do delicioso crustáceo e mais uma para rebater de vez em quando. E só de pensar nisso a gente deixou pra lá a vontade pura e simples e passou a ter necessidade premente de comer siris. 

Então, não sei se você se lembra, telefonamos para o Raimundo, que era o campeão brasileiro de siris e, noutros tempos, dava famosos festivais do apetitoso bicho em sua casa. Ele disse que, aos domingos, perto do Maracanã, havia um botequim que servia siris maravilhosos, ao cair da tarde. 

Não sei se você se lembra que ele frisou serem aqueles os melhores siris do Rio, como também os únicos em disponibilidade, numa época em que o siri anda vasqueiro e só é vendido naquelas insípidas casquinhas. Ah... foi uma alegria saber que era domingo e havia siris comíveis e, então, nos dois — não sei se você se lembra — apesar da fome que o uisquinho estava nos dando — resolvemos não almoçar para ficar com mais vontade ainda de comer siris. Passamos incólumes pela refeição, enquanto o resto do pessoal entrava firme num feijão que cheirava a coisa divina do céu dos glutões. O pessoal — aliás — achava que era um exagero nosso, guardar boca para um siri que só comeríamos à tarde, porque podíamos perfeitamente ter preparo estomacal para eles, após o almoço. 

Mas — não sei se você se lembra — fomos de uma fidelidade espartana aos siris. Saímos para o futebol com uma fome impressionante e passamos o jogo todo a pensar nos siris que comeríamos ao sair do Maracanã. 

Então — não sei se você se lembra — saímos dali como dois monges tibetanos a caminho da redenção e chegamos no tal botequim. 

Então — não sei se você se lembra — que a gente chegou e o homem do botequim disse que o siri já tinha acabado.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Garoto Linha Dura. 
Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964.

Nota: a crônica foi originalmente publicada em um só parágrafo,
foi dividida aqui para melhor visualização.

Ester Figueiredo (Buquê de Trovas)


Algemas são os teus braços
que me prendem com ardor...
De alma nova, sem cansaços,
eu vou render-me a este amor!

Amanheci tão contente
por mais um dia de vida,
podendo seguir em frente
com Deus me dando guarida.

As alegres margaridas
enfeitam nosso jardins
jamais ficam às escondidas
parecem até manequins

A vagar por nossas mentes,
sempre tão belas, tão novas,
as palavras são sementes
que dão vida às minhas trovas.

Bem lá no alto a Estrela-Guia...
Na manjedoura, Jesus,
trazendo ao mundo alegria,
bondade, esperança e luz.

A paisagem que desfila
perante este meu viver,
lembra o tempo, lembra a vila,
o amor que me fez sofrer.

Dia de verão, tão lindo...
O sol, teu corpo dourando...
Tua, nua, quase dormindo...
E eu, bem perto, apreciando!

É magia, é sedução,
sempre que meu corpo inteiro,
ao toque da tua mão,
se transforma em um “braseiro”.

És o rumo em minha estrada...
És a luz que me ilumina...
És uma noite estrelada...
És o sol que bem me anima...

Estas rugas no seu rosto
que a deixam amargurada
formam marcas de desgosto 
por amar sem ser amada.

Esta união que é um exemplo
de amor, de fidelidade,
fez dos corações o templo
que acolhe a felicidade.

Este orgulho que carregas,
insano, dentro do peito,
foge, tão logo te entregas
de corpo e alma em meu leito.

E tu seguiste... sozinho...
Aqui fiquei rejeitada...
Prologarás teu caminho,
eu buscarei nova estrada.

Exalando este perfume,
enlaçando-me em teus braços,
eu me esqueço do ciúme
e entrego uma alma em pedaços.

Exploram o trabalhador,
prostituem a mestiça,
e quase sempre este autor
fica impune, sem justiça.

Inverno de frias noites
e também de solidão,
ausências que são açoites
machucando o coração.

Lembrando as chaves das portas,
que abrias de madrugada:
passos lentos, horas mortas...
marcando tua chegada.

Linda manhã de verão,
o sol surgiu radiante,
à noite estrelas virão
abrilhantar meu semblante.

Mãe!... Exemplo de ternura,
coragem, fé, devoção.
A tua face é moldura
que adorna meu coração.

Minha Barra tão amada,
de palmeiras, tradições...
Tu serás sempre lembrada
num século de orações.

Muito te amei... tanto, tanto,
com grande ardor dos quinze anos...
Hoje, se rola o meu pranto,
a culpa é dos desenganos.

Na carícia do teu beijo
e no calor deste abraço,
te demonstro o meu desejo
e, em prazer, me despedaço.

Na contramão desta vida,
a criança, sem saber,
é pelo povo esquecida,
mas luta para viver.

Na corrente dos teus braços,
adormecida e bem calma,
eu te entrego meus cansaços,
torno cativa a mina alma.

Não sofra, não se atormente,
tenha fé, muita coragem,
pois nesta vida silente
nós estamos de passagem.

Nas noites de serenata,
o poeta sonhador,
canta, na triste sonata,
as suas dores de amor.

Neste instante derradeiro
em que nada mais restou
sou errante marinheiro
que na saudade afundou…

Neste momento, calado,
de gestos e olhar bisonho,
penso em você ao meu lado,
nos “amanhãs” dos meus sonhos!

Num bom livro, sem frescura,
devaneio na emoção,
de tanto amor e candura,
dando-me sustentação.

O teu carinho de amante,
tão ardente e sem pudor,
eu desejo a todo instante
que me dês com muito amor.

Partiste com ar tristonho
e repleto de razão...
Fui ingrata, mas proponho:
-Volta! Dá-me o teu perdão.

Pobre menino de rua,
sem amor e sem carinho,
só a clara luz da lua
ilumina o teu caminho.

Por causa dos teus maus-tratos,
indiferença... desdém...
eu rasguei os teus retratos,
mas hoje não sou ninguém!

Por sobre o lençol macio,
desejosos, sem pudor,
brilhos de olhos no cio
clamam momentos de amor.

Quando escrevo minhas trovas,
sem saber como e porque,
sinto que são como provas
do meu amor por você.

Que a minha infância floriu
com os conselhos e cuidados,
saudades de quem partiu
mas deixou muitos legados.

Que me tire todo o breu
e que surja a claridade,
pra que neste mundo meu
reine só felicidade.

São tuas mãos que me afagam
e teus beijos que me aquecem...
E quando as luzes se apagam,
os desejos me enlouquecem...

Segue teu rumo a teu gosto...
E esqueça que eu existi,
pois as rugas do meu rosto
revelam o que já sofri.

Se me olhas, estremeço...
Se me tocas, aí, socorro!
Se me beijas, enlouqueço...
No teus braços, quase morro!

Se o mundo te encheu de dor,
se te feriram a alma,
lembra-te sempre: há o amor...
Espera, conserva a calma!

Sob um velho abacateiro,
revivo os doces amores...
E o violão companheiro
é quem canta as minhas dores.

Somente a fé na justiça
do Supremo Criador
destruirá a cobiça
de quem promove o terror.

Tantas tardes de alegria
e tantas noite de amor!
Hoje, à madrugada fria,
busco, em vão, o teu calor.

Tu finges que não me queres,
percebi tudo, já sei...
Mas nenhuma das mulheres
Vai te amar como eu te amei...

Tu trazes na alma a nobreza
e, por caminhos diversos,
mostra bem toda a beleza
tão presente nos teus versos.

Um mundo melhor seria
se o homem fosse capaz
de, num toque de magia,
converter a guerra em paz.

Um olhar cheio de brilho,
de ternura, de emoção,
é o da mãe ao nascer seu filho,
fruto de amor, de doação.

Vejo um mundo de carinho
neste teu jeito de olhar
como a seta de um caminho
que me conduz a te amar.

Vendo as ondas e os rochedos,
num encontro sedutor,
vi que escondiam segredos
de um belo sonho de amor.

Fontes:
- União Brasileira de Trovadores Porto Alegre - RS. 
Trovas de Ester Figueiredo e Lávinio Gomes de Almeida 
Coleção Terra e Céu LXX. Porto Alegre/RS: Texto Certo, 2016.