quinta-feira, 24 de maio de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 10


Hely Marés de Souza (Crestomatia de Trovas)


A neve, o frio, a trincheira...
o pracinha suportou.
Pela honra brasileira
ele não se intimidou.

A nossa brava Nação,
em festa de aniversário,
recebe nossa expressão
no seu quinto centenário!

Ao cair lento da tarde...
o sol reflete brilhante
como fogo sem alarde,
e se apaga num instante.

Ao festejar o natal
usemos a tradição:
para as crianças, presentes,
e aos pais, grande emoção!

Ao retornar vitorioso,
bandeira como agasalho,
pracinha chegou ansioso
pra dedicar-se ao trabalho.

Aos amigos trovadores
desejo um Feliz Natal
vinho de vários sabores
num abraço fraternal.

Aquelas nuvens revoltas
sob o imenso firmamento,
parecem ovelhas soltas
voando a favor do vento.

Brasil com quinhentos anos,
merece ser avaliado:
alguns curtem desenganos
e outros... feliz passado!

Bravo amigo e companheiro
caçador de sabiá.
Não precisa usar dinheiro
para aprender a trovar.

Com lua cheia, serena,
perscrutando o firmamento,
aos poucos me integro à cena...
voando em meu pensamento!

De uma pinha escultural
o pinheiro é gerador,
dá pinhão, castanha real...
de inexcedível sabor!

Deus fez o planeta Terra
e, pra companheira sua,
pelo valor que ele encerra,
num sopro... criou a lua!

Hely Marés de Souza
Da poesia somos fãs,
por destino, combatentes!
A trova cria titãs,
a guerra cria valentes.

Esposa amada e amorosa,
feliz em meio à família,
trouxe ao mundo, esperançosa:
-A Vânia, o Hely e a Brasília...!

Glória ao Brasil, neste evento!
Junto a paz universal!
Saudemos, neste momento
a bandeira nacional.

Glória às forças brasileiras
em festa o povo gritava,
quando derrotou trincheiras
e o algoz que os torturava!

História, trova e civismo
a transbordar neste instante,
com salvas mui respeitosas
ao General Comandante.

Hoje, medalha no peito,
confirma seu destemor,
pracinha foi sem defeito,
à Pátria rendeu amor!

Já pronto pra trabalhar,
não terá dificuldade,
serviço não vai faltar
tamanha é a capacidade!

Mais uma etapa vencida,
cada importante vitória
foi à Pátria oferecida,
pra enriquecer nossa história.

Mascarenhas comandou
sempre a caminho da glória
e Deus o recompensou
com os louros da vitória.

Mascarenhas foi coerente
no comando e na ação,
quando impôs, pujantemente,
ao “tedesco” a rendição.

Mas, o que trouxe a vitória
alguém até já explicou:
-A Itália tem na memória
que a FEB a libertou.

Na guerra, audaz e engenhoso,
negou trégua ao inimigo,
sem se tornar rancoroso,
trouxe a vitória consigo.

Na guerra foi varonil,
na volta, um trabalhador.
O pracinha do Brasil
trouxe a paz e muito amor.

Na Itália o barco aportou,
a bordo um grande salseiro...
O Iwersen se apressou
e desembarcou primeiro!

Na Legião Paranaense,
“Casa do Expedicionário”,
a UBT em muito suspense
faz da Trova um relicário...

Nasci onde o vento bate
e junto a um grande terreiro,
ao lado um pé de erva-mate
e um majestoso pinheiro.

Neste dia tão festivo,
data em que você nasceu,
receba o abraço afetivo
de quem nunca o esqueceu.

No mundo da fantasia
que faz sorrir a criança,
o palhaço, na folia,
é o arauto da esperança!

No seu lar pleno de amor
neste natal reine a paz,
rememorando o esplendor
de dois mil anos atrás.

O Brasil foi ao Timor
salvar aquela nação.
Levou mensagem de amor
e cumpriu sua missão!

O Brasil, país ordeiro,
jamais pensou em maldade.
Foi à guerra o brasileiro
defender a liberdade.

O civismo e a poesia
são elos de ligação
que unem, com maestria,
Trovadores e a Legião!

O homem que foi à guerra,
água fresca em seu cantil,
por certo foi um gigante
na defesa do Brasil.

O pracinha da “Legião”,
sempre bem representada,
abraça o poeta irmão
e augura feliz jornada!

Padre Alberto, capelão
da FEB expedicionário,
na Itália com distinção
lutou como um missionário!

Persistir na caminhada
de trovas sensacionais,
é missão tão delicada
quanto regar os rosais!

Pracinha soldado bamba
em Camaiore atacou
com granadas fez um samba
e o tedesco se entregou.

Quero rever os meus pagos
e ouvir toda a velha história.
Quero sentir os afagos
da minha União da Vitória.

Saúdo o neto engenheiro!
sucesso terá na soma...
Provou ser bom brasileiro
e conquistou o diploma.

Se eu devo até navegar
nas ondas bravas da vida,
preciso com você estar:
Meu amor, minha querida!

Sem demonstrar seu cansaço
e sem pensar no porvir,
no picadeiro, o palhaço
faz a plateia sorrir.

Sob intensa artilharia
conquistou Monte Castello,
onde hasteou com galhardia
o pano verde e amarelo.

Zenóbio grande guerreiro
comandou a Infantaria,
mas não superou Cordeiro...
-Poderosa Artilharia!!!
_________________________________
Hely Marés de Souza, nasceu em 1923, em União da Vitória/PR. Descende de tradicional família espanhola que introduziu o cultivo da erva-mate naquela cidade e construiu o Engenho do Mate no século XIX, localizado em Rondinha, Campo Largo. Formou-se em Direito, na Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde também cursou até o terceiro ano de Engenharia.

Aos 19 anos, foi subitamente convocado para integrar a Força Expedicionária Brasileira durante a II Guerra Mundial, na Itália, quando o Brasil encontrava-se ameaçado pela tirania nazi-fascista. Participou do 6º Regimento de Infantaria, 2º Grupo de Artilharia, 9º Batalhão de Engenharia, 2º Grupo de Obuses Auto Rebocado e de todas as ações da artilharia brasileira nos combates de Monte Castello, Montese, Camaiore, Belvedere, Abetaia, Monte Della Castellina, Pietra Collina, entre outros. No seu retorno ao Brasil, foi um dos fundadores da Legião Paranaense do Expedicionário, sócio n° 22, entre os 2500 registrados e seu presidente por sete gestões.

Como expedicionário, Hely fez a diferença. Ao retornar ao Brasil, vivenciou as dificuldades enfrentadas por muitos dos ex-companheiros de caserna, que diante dos horrores da guerra precisavam de apoio psicológico e financeiro. Se as famílias eram ajudadas pelo governo federal até então, o auxílio cessou com o retorno dos soldados. Diante disso, Hely se empenhou na formação e fundação da Casa do Expedicionário de Curitiba, onde atualmente localiza-se o Museu do Expedicionário, no bairro Alto da XV, para dar apoio aos ex-combatentes e suas famílias.

Formou-se em Direito pela UFPR e trabalhou no Palácio Iguaçu, onde ocupou o cargo de Procurador do Estado, tornando-se o consultor das questões mais complexas do Direito Público. Durante 30 anos, trabalhou no Palácio Iguaçu, com 16 governadores. Foi, diretor jurídico do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul – BRDE. 

Foi condecorado com as medalhas de Campanha e de Guerra, concedidas pelo Ministério da Guerra; de Mérito, pelo Governo do Estado do Paraná; Mascarenhas de Moraes, pela Associação dos Ex-Combatentes do Brasil; do Pacificador, conferida pelo Ministério do Exército; de Cavaleiro da Ordem do Mérito, medalha de ouro conferida pelo Governo Polonês, em Londres; de Reconhecimento, pela Associação Nacional dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira (ANVFEB); da Vitória, pela Associação dos Ex-Combatentes do Brasil/RJ, e Max Wolff Filho, outorgada pela Legião Paranaense do Expedicionário. 

Grande incentivador da cultura e membro de várias entidades culturais: Membro efetivo do Círculo de Estudos Bandeirantes, Centro Cultural Ítalo-Brasileiro Dante Alighieri, Soberana Ordem do Sapo, Sociedade dos Amigos de Alfredo Andersen, Academia de Cultura de Curitiba, Clube dos Vinte e Um Irmãos Amigos e ANVFEB do Rio de Janeiro. Foi escritor, poeta, pesquisador, trovador e presidente da União Brasileira de Trovadores, Seção de Curitiba. Faleceu em 2013.

Fontes:
União Brasileira de Trovadores Porto Alegre - RS. 
Trovas de Vânia França de Souza Ennes e Hely Marés de Souza. 
Coleção Terra e Céu. vol. LXVIII. Porto Alegre/RS: Texto Certo, 2016.

Mário Quintana (Velha história)

Era uma vez um homem que estava pescando, Maria. Até que apanhou um peixinho! Mas o peixinho era tão pequenininho e inocente, e tinha um azulado tão indescritível nas escamas, que o homem ficou com pena. E retirou cuidadosamente o anzol e pincelou com iodo a garganta do coitadinho. Depois guardou-o no bolso traseiro das calças, para que o animalzinho sarasse no quente. E desde então ficaram inseparáveis. Aonde o homem ia, o peixinho o acompanhava, a trote, que nem um cachorrinho. 

Pelas calçadas. Pelos elevadores. Pelos cafés. Como era tocante vê-los no 17! - o homem, grave, de preto, com uma das mãos segurando a xícara de fumegante moca, com a outra lendo o jornal, com a outra fumando, com a outra cuidando o peixinho, enquanto este, silencioso e levemente melancólico, tomava laranjada por um canudinho especial...

Ora, um dia o homem e o peixinho passeavam à margem do rio onde o segundo dos dois fora pescado. E eis que os olhos do primeiro se encheram de lágrimas. E disse o homem ao peixinho:

“Não, não me assiste o direito de te guardar comigo. Por que roubar-te por mais tempo ao carinho do teu pai, da tua mãe, dos teus irmãozinhos, da tua tia solteira? Não, não e não! Volta para o seio da tua família. E viva eu cá na terra sempre triste!”

Dito isto, verteu copioso pranto e, desviando o rosto, atirou o peixinho n'água. E a água fez um redemoinho, que foi depois serenando, serenando... até que o peixinho morreu afogado…

Fonte:
Mário Quintana. Sapato florido. 
Porto Alegre/RS: Editora Globo, 1948.

quarta-feira, 23 de maio de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 9


Caldeirão Poético 6


ANA PAULA COSTA BRASIL
Santana de Parnaíba/SP

Você!

Corri... como corri
Para pular em seu colo
Fundir nossos corpos
Morder seus lábios
Acariciar seu corpo... sentir sua pele
Provar de seu gosto... descobrir minha alma
Mesclar nossos braços... misturas os cabelos
Entrelaçar nossas pernas
Mas... Corri... como corri
Quando vi que você não era você
Que eu nem mesmo conhecia você
Eu fantasiava... construía um você
Como corri por não saber quem é esse outro você
Que não é o meu você
Você... meu você
Fez-me viver... fez-me voltar a sonhar
Fez-me querer... fez-me fazer
Você... o outro você
Fez-me chorar... fez-me sofrer
Fez-me esquecer
O quanto amei
Oh! Meu você
O você que construí para amar
O meu você
________________________

APARECIDO DONIZETTI HERNANDEZ
Itapevi/SP

Amor Oculto

Quanto te esperei... quanto te esperei!...
Não viestes..., onde estavas?
Não respondas, eu sei...
Estavas junto aos anjos.

Te esperei... e quanto te esperei!...
Não perguntarei onde estavas,
Pois sei, estavas junto aos anjos
Esperando a hora de vires,
Mas será que é essa a hora?!
Quanto te esperei!... esperei...

Somente agora os anjos a deixas vir,
Deixarás os céus com anjos tristonhos
E me fará feliz!
______________________

HENRIQUE DO CERRO AZUL
Fortaleza/CE

Contraste

Longe de ti, eu te imagino perto:
Vejo esse teu sorriso a todo instante;
Qual se te visse, o coração amante
É um doce ninho ao teu amor aberto.

Perto de ti, te julgo tão distante…
Nem mesmo vejo o teu sorriso incerto;
Com saudade de ti o peito aperto
Relembrando o fulgor do teu semblante.

Também tu és como eu:- os teus sentidos
Se enganam, como os meus, pelos caminhos…
E assim passamos desapercebidos

Do erro de nossos múltiplos carinhos:
- Quanto mais longe tanto mais unidos,
- Quanto mais juntos tanto mais sozinhos !
____________________

RAFAEL DOS SANTOS BARROS
Pernambuco

As Mãos de Vitalino*

Vitalino com mãos sujas e santas
modelava em barro os nordestinos
e transportava a dor e os desatinos
para os bonecos tantas vezes, tantas.

Bonecos mudos, quantas vezes quantas,
Minha alma cega por meus olhos viu?
A tua dor meu coração sentiu
no canto triste que ainda hoje cantas.

Soprou a vida num boneco mudo
que sem falar, assim, dizia tudo
dos nordestinos, dos desatinos seus,

advertência dos que nascem pobres
pelas mãos rudes que ficaram nobres,
abençoadas pelas mãos de Deus.


_________________
*Nota sobre Vitalino:
Vitalino Pereira da Silva nasceu no dia 10 de julho de 1909, no Sítio Campos, em Caruaru, Pernambuco. Seu pai, humilde lavrador, preparava o forno para queimar peças de cerâmica que sua mãe fazia, para melhorar o orçamento familiar. E sua mãe, artesã, preparava o barro que ia buscar nas margens do Rio Ipojuca. Depois, sem usar o torno, ia fazendo peças de cerâmica utilitária, que vendia na feira. Levava a cerâmica nos caçuás (cestos grandes) colocados nas cangalhas do jegue (burrico). Com apenas seis anos (1915), Vitalino iniciou-se na arte do artesanato de barro. O material que ele usava para as suas peças era o massapê, que retirava da vazante do Rio Ipojuca e transportava em balaios para casa. O barro era molhado e deixado em um depósito por dois dias para ser curtido, sendo então amassado e modelado. As peças eram cozidas em forno circular, construído ao ar livre, atrás da casa.

Sua capacidade criadora se desenvolveu de tal maneira que acabou se tornando o maior ceramista popular do Brasil.

No início, a aplicação da cor nos bonecos era feita com barro de diferentes tons — tauá, vermelho, branco. Depois, Vitalino passou a usar produtos industriais na pintura dos seus bonecos. As peças da primeira fase não possuíam marca de autoria. Posteriormente, o artista passou a assinalar com lápis e tinta preta as iniciais V.P.S., no reverso da base dos grandes grupos, e, a partir de 1947, começou a utilizar o carimbo, também de barro, com as mesmas iniciais V.P.S., adotando, em 1949, o seu nome de batismo.

Casado com Joana Maria da Conceição, teve 18 filhos e, destes, somente cinco viveram até a idade adulta. Dono de um grande talento musical, aprendeu a tocar pífano (espécie de flauta sem claves e com sete furos) e, com apenas 15 anos, montou sua própria banda, a Zabumba Vitalino.

Mestre Vitalino morreu de varíola aos 20 de janeiro de 1963 A partir dessa época, os bonecos de barro de Vitalino ganharam fama como obras de arte e passaram a percorrer o Brasil e o mundo.

Sua produção é estimada em cerca de 130 peças, que são cuidadosamente reproduzidas pela família. Os seus filhos, netos e bisnetos continuam o seu trabalho até hoje.
(Fonte: http://www.construirnoticias.com.br/asp/materia.asp?id=908)

Nilto Maciel (O Livro de Pedro Amaro)

Sentia-se tonto, o mundo todo de pernas para o ar, feito barata emborcada, a remexer-se em agonia de moribundo sem vela. As palavras perdiam a conotação lógica dos textos regulares de uma lei, tratado sobre a natureza humana, curso dos rios. Via-se lendo a macabra língua dos mitos. O chão virava teto, a cadeira pregava-se como aranha às vigas de uma teia de circo, as linhas proféticas das mãos metamorfoseavam-se em desenhos misteriosos de capas clássicas.

Não sabia explicar se não aceitava aquela mistura de arcaísmos, tupi e expressões populares, ou se apenas tinha medo de sonhar com livros cabalísticos.

Chegava ao fim da leitura com nojo de Pedro Amaro, estupefato diante daquele monstro que confessava sua torpeza: “Perguntado por que razão passara a lambedeira no cangote de um curumim, disse que a causa disso fora porque carecia de se espichar debaixo da jaqueira onde o mesmo estava deitado.”

Nunca mais leria tamanho cinismo. Aquilo deveria ser ficção de algum doido. Nada daquilo ficaria em sua memória, aquelas páginas de extrema virulência, por mais que lhe tivesse ferido os olhos. Se não, apagaria letra por letra, até não se lembrar mais sequer dos vocábulos arcaicos. Sobretudo aquele parágrafo nauseante: “Perguntado se no tempo que lá andou praticava malvadezas, disse que não; somente por rir metia a faca no bucho dos curumins quando dava na veneta desenferrujar o aço mas que não era de fazer marteiros nem de viver de ribaldarias nem de culpas”.

Jogou o livro para cima, irritado, acertou a lâmpada, que se espatifou. Houve um papoco e cacos finos caíram-lhe como neve sobre os cabelos. E ao relâmpago sucedeu a treva, e gritaram: – Seu Amaro, o que foi isso? Enxotou a empregada da sala, quando a infeliz tentava apanhar o livro estatelado aos seus pés. – Não pegue nisso, é porcaria. E continuou a falar do matador de índios, assassino, desalmado, monstro. E berrava: Queime isso, esse Pedro Amaro é um demônio.

Despachou a moça, que apanhou o livro e o levou para os fundos do quintal. Chamou-a de ladra e imediatamente telefonou para a polícia: “Roubou um livro meu, peça rara, documento histórico adquirido por uma fortuna.”

“Ao chegarem os policiais, há muito se havia arrependido da acusação. Lia para a empregada o livro. E recebeu as visitas com extrema inquietação. – Escutem só esta maluquice.”

Figura curiosa a daquele velho português. Verdadeiramente um bicho, mas todo bicho é curioso ao homem. Para que ter medo da realidade? Ali estava um estranho personagem. Necessário reler aquelas confissões. Teria sido um louco? Vissem: “Perguntado se era lembrado dizer alguma hora que seu preço era mais alto do que o de el-rei, disse que si, porque nunca tivera receança, posto não dormisse, nem sofresse, nem falasse, mas que antes não era de capitania, era só e elle”.

Relia o livro tintim por tintim, devagar, olhos grudados nas letrinhas miúdas, esquecido de cheques e notas fiscais, fumando feito uma caipora, consultando dicionários e enciclopédias, detendo-se nesta e naquela palavra, neste e naquele parágrafo, coçando o queixo, pensando, sonhando. Intrigava-o a insolência do colonizador: “Perguntado se dizia ele que se siso fosse bom era era regedor de poder, capitão de regimento, disse que si, e que sua sanha era só de esfolar, porque nunca teve coita, durão e brabo de peito e coração.”

Entendia já termo por termo e sentia-se convencido da existência real de Pedro Amaro. – Passou à história, embora em rodapé, como o típico colonizador. Porém alguma coisa ainda escapava ao seu entendimento, inclusive certos vocábulos em desuso e que nem os dicionários mais completos mencionavam. Mister então ler, reler, tresler o texto, como o joalheiro que olha, reolha, tresolha a pedraria que engasta na joia.

Não perdia ocasião de abrir o livro, sempre à mão, como antes conduzia a pasta repleta de documentos mercantis. Ao acordar, em vez de ler os jornais, lia o interrogatório.

Certa feita pôs-se a ler para um amigo, em plena rua, trechos do livro, assim de repente, como se o outro soubesse do seu interesse: “Perguntado si disse alguma hora que não havia de nunca vestir costume de rei, disse que si e disse mais que andar carecia de sujidade e feitio de onça, para assustar os medrosos, e que seu aspeito era esse de bicho do mato, sem respeito à vida”. O amigo ouvia calado, mas, como se aborrecesse com o prolongado da leitura, riu e o interrompeu para saber o que significava aquilo. Pedro mostrou-se surpreso: – Então o amigo não conhecia o interrogatório de Pedro Amaro? À negativa, expôs sua opinião a respeito do colonizador, no que foi contestado pelo outro: – Pelo que acabei de ouvir, trata-se de um criminoso dos mais bárbaros. Pedro irritou-se, defendeu com unhas e dentes seu homônimo, concluindo ter sido apenas um homem forte no meio de um magote de selvagens, e que seus atos, chamados de crimes, podiam ser muito bem explicados, embora tivessem sido praticados com alguma crueldade. – Vamos levar em conta o meio em que os praticou.

De sua mesa de trabalho ordenou que a moça retirasse os papelórios e as pastas. Não queria desviar os olhos do livro. Necessitava de ler mais o texto antigo. Também não o interrompesse à toa.

Há tempos andava daquele jeito. Se a empregada vinha dar recados, irritava-se. Não lhe tomasse o tempo com recadinhos idiotas. Se lhe vinha pedir ordens, só faltava espaldeirar a coitada. Resolvesse tudo sozinha, não torrasse sua paciência.

Deixava cheques por assinar, documentos bancários esquecidos, relatórios por ler e abraçava o livro com sofreguidão de colegial aplicado. Balançava a cabeça como que aprovando as respostas do interrogado: “Perguntado si era lembrado dizer alguma hora que lugar de argel era debaixo dos sete palmos do chão, fosse galalau ou tamborete-de-forró, que o bicho era ele, disse que si e que isso devia merecer aplausos até dos bugiadões.”

A cada dia mais se tornava irresponsável com os próprios negócios. Em vez de discutir preços com os fregueses, discutia a personalidade do outro Pedro Amaro, sempre a defendê-lo. Súbito encheu-se de fúria, pegou o revólver e disparou seis vezes contra a moça.

E voltou ao livro.

Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos). 
Brasília/DF: Editora Códice, 1997.

terça-feira, 22 de maio de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 8


Manoel de Barros (Poemas Escolhidos)


NA ENSEADA DE BOTAFOGO

Como estou só: Afago casas tortas,
Falo com o mar na rua suja…
Nu e liberto levo o vento
No ombro de losangos amarelos.

Ser menino aos trinta anos, que desgraça
Nesta borda de mar de Botafogo!
Que vontade de chorar pelos mendigos!
Que vontade de voltar para a fazenda!

Por que deixam um menino que é do mato
Amar o mar com tanta violência?

ODE VINGATIVA

Ela me encontrará pacífico, desvendável
Vendável, venal e de automóvel.
Ela me encontrará grave, sem mistérios, duro
Sério, claro como o sol sobre o muro.

Ela me encontrará bruto, burguês, imoral,
Capaz de defendê-la, de ofendê-la e perdoá-la;
Capaz de morrer por ela (ou então de matá-la)
Sem deixar bilhete literário no jornal.

Ela me encontrará sadio, apolítico, antiapocalíptico
Anticristão e, talvez, campeão de xadrez.
Ela me encontrará forte, primitivo, animal
Como planta, cavalo, como água mineral.

COMPÊNDIO PARA USO DOS PÁSSAROS

O MENINO E O CÓRREGO

Ao Pedro


A
água
é madura.
Com penas de garça.
Na areia tem raiz
de peixes e de árvores.

Meu córrego é de sofrer pedras
Mas quem beijar seu corpo
é brisas…

II

O córrego tinha um cheiro
de estrelas
nos sarãs anoitecidos

O córrego tinha
suas frondes
distribuídas
aos pássaros

O córrego ficava à beira
de um menino…

III

No chão da água
luava um pássaro
por sobre espumas
de haver estrelas

A água escorria
por entre as pedras
um chão sabendo
a aroma de ninhos.

IV

Ai
que transparente
aos voos
está o córrego!
E usado
de murmúrios…


Com a boca escorrendo chão
o menino despetalava o córrego
de manhã todo no seu corpo.

A água do lábio relvou entre pedras…

Árvores com o rosto arreiado
de seus frutos
ainda cheiravam a verão
Durante borboletas com abril
esse córrego escorreu só pássaros…

UM BEM-TE-VI

O leve e macio
raio de sol
se põe no rio.
Faz arrebol…

Da árvore evola
amarelo, do alto
bem-te-vi-cartola
e, de um salto

pousa envergado
no bebedouro
a banhar seu louro

pelo enramado…
De arrepio, na cerca
já se abriu, e seca.

GRAMÁTICA EXPOSITIVA DO CHÃO

Antissalmo por um desherói

a boca na pedra o levara a cacto
a praça o relvava de passarinhos cantando
ele tinha o dom da árvore
ele assumia o peixe em sua solidão

seu amor o levara a pedra
estava estropiado de árvore e sol
estropiado até a pedra
até o canto
estropiado no seu melhor azul
procurava-se na palavra rebotalho
por cima do lábio era só lenda
comia o ínfimo com farinha
o chão viçava no olho
cada pássaro governava sua árvore

Deus ordenara nele a borra
o rosto e os livros com erva
andorinhas enferrujadas

ARRANJOS PARA ASSOBIO

(A um Pierrô de Picasso)

Pierrô é desfigura errante,
andarejo de arrebol.
Vivendo do que desiste,
se expressa melhor em inseto.

Pierrô tem um rosto de água
que se aclara com a máscara.
Sua descor aparece
como um rosto de vidro na água.

Pierrô tem sua vareja íntima:
é viciado em raiz de parede.
Sua postura tem anos
de amorfo e deserto.

Pierrô tem o seu lado esquerdo
atrelado aos escombros.
E o outro lado aos escombros.
…………………………….…
Solidão tem um rosto de antro.

(…)

O poema é antes de tudo um inutensílio.
Hora de iniciar algum
convém se vestir roupa de trapo.

Há quem se jogue debaixo de carro
nos primeiros instantes.

Faz bem uma janela aberta
uma veia aberta.

Pra mim é uma coisa que serve de nada o poema
enquanto vida houver.

Ninguém é pai de um poema sem morrer.

SUJEITO

Usava um Dicionário do Ordinário
com 11 palavras de joelhos
inclusive bestego. Posava de esterco
para 13 adjetivos familiares,
inclusive bêbado.
Ia entre azul e sarjetas.
Tinha a voz de chão podre.
Tocava a fome a 12 bocas.
E achava mais importante fundar um verso
do que uma Usina Atômica!
Era um sujeito ordinário.

VISITA

Na cela de Pedro Norato, 23 anos de reclusão,
a morte sesteava de pernas abertas…
Dentre grades se alga, ele!
Tem o sono praguejado de coxas.
Contou que achara a mulher dentro de um pote e a bebeu.
Sem amor é que encontramos com Deus — me diz.
O mundo não é perfeito como um cavalo — me diz.
Vê trinos de água nos relógios.
E para moscas bate continência.

Eu volto de sarjeta para casa.

O GUARDADOR DE ÁGUAS

Esse é Bernardo. Bernardo da Mata. Apresento.
Ele faz encurtamento de águas.
Apanha um pouco de rio com as mãos e espreme nos vidros
Até que as águas se ajoelhem
Do tamanho de uma lagarta nos vidros.
No falar com as águas rãs o exercitam.
Tentou encolher o horizonte
No olho de um inseto — e obteve!
Prende o silêncio com fivela.
Até os caranguejos querem ele para chão.
Viu as formigas carreando na estrada duas pernas de ocaso
para dentro de um oco… E deixou.
Essas formigas pensavam em seu olho.
É homem percorrido de existências.
Estão favoráveis a ele os camaleões.
Espraiado na tarde —
Como a foz de um rio — Bernardo se inventa…
Lugarejos cobertos de limo o imitam.
Passarinhos aveludam seus cantos quando o veem.
____________________

De tonto tenho roupa e caderneta.

Eu sei desigualar por três.
Já gostei muito de mula
E Estação de Estrada de Ferro.
Depois troquei por anu-branco
E Estação de Estrada de Ferro.
Hoje gosto de santo e peneira.
Uma dona me orvalha sanguemente.
O que no alforje eu trago
É um azul arriscado a pássaros…
Eu sei o nome das letras.
E desenvolvo moscas em peneira.
Sou muito lateralmente entretontos.
O que desabre o ser é ver e ver-se.
Aragem cor de roupa me resplende.

RETRATO QUASE APAGADO EM QUE SE PODE VER PERFEITAMENTE NADA


Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
— Imagens são palavras que nos faltaram.
— Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
— Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo).
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos,
retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

II

Todos os caminhos — nenhum caminho
Muitos caminhos — nenhum caminho
Nenhum caminho — a maldição dos poetas.

[…]


Escrever nem uma coisa
Nem outra —
A fim de dizer todas —
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar —

Tanto quanto escurecer acende os vagalumes.

Fonte:
Manoel de Barros. Meu quintal é maior do que o mundo. 
1. ed.  Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.