quarta-feira, 26 de junho de 2019

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XVII


A POESIA...
    
Para... Há sombra aqui! Para e descansa!
Já ficou para trás a aridez do deserto!
Ao teu lado, a fugir num leito claro e incerto
brinca um riacho feliz de alma ingênua de criança!

Aqui, a terra veste as cores da esperança
e na árvore que oscila e faz sombra, e está perto,
há um pássaro que canta e irrequieto balança
o ramo que de flores todo está coberto!

Há sombra aqui... há um pouco de paz ao redor...
Chegas cansado e triste a arrastar tuas mágoas,
para, - descansa um pouco... e sonha que é melhor...

Dorme, e ouve a canção que te embala dos ninhos,
- se a vida, é como um rio a rolar suas águas,
a poesia- é uma sombra à margem dos caminhos.

ADOLESCÊNCIA

Cabelos leves de vento,
       vento de sol, ouro e música,
boca úmida, alvorada, 
      canto de pássaro sem nome.

Mãos de sonho, vagas mãos
como desejo impossível,      
pressentir como bailados,   
- onde o palco iluminado?  

Curvas, não formas, apenas
     curvas despontando - geração.
Ritmo solto, avançando      
pelo futuro talvez                 
ou pela rua dos olhos.        

Riso, dor irrevelada,         
canto efêmero, prenúncio,
mistério infinito do eco     
múltiplo, pelos espelhos     
se projetando no tempo.     

Irrevelada brancura             
passo no espaço, ascensão,
desejo, ah! o desejo é tudo  
na louca metamorfose,      
- sonho de asas, quase vida!

AH! NÃO SERIA ISTO POESIA?

A alegria provocante do teu sorriso
a fresca alegria
da tua boca molhada como os caminhos
ao nascer do dia,
-ah ! não será isto poesia?

A música de abismo no silencio longo
do teu beijo que atrai,
essa estranha vertigem que inebria,
- ah! não será isto poesia?

O vento a acariciar os tens cabelos soltos
teus cabelos revoltos
macios e leves,
como painas, como nuvens, como neves,
tecidos de seda e de luz
numa estranha magia
ah! não será isto poesia ?

E o mistério de teus olhos profundos, castanhos,
que atraem como horizontes
para mundos estranhos,
onde há noites de amor, e nunca chega o dia ...
- ah! não será isto poesia ?

A visão do teu pescoço branco, selado como um templo,
pelo véu de teus cabelos louros, que eu descubro
nos delírios de minha fantasia,
- ah! não será isto poesia?

E o lóbulo de tua orelha, pequenino, redondo,
onde a maciez do teu corpo se adivinha,
e onde mora o perfume de tua carne que antevejo
e se anuncia ...
- ah! não será isto poesia?

E a beleza de tua adolescência, insubmissa e revolta,
no ritmo de tuas formas libertadas
ferindo o meu olhar como saga bravia ...
- ah! não será isto poesia?

E a tua voz
- a noite que se fez sorri numa flauta macia -
e teu corpo, uma bandeira inquieta desfraldada,
teu amor, prece sensual para a minha heresia...
- ah! não será isto poesia?

- Sim, isto tudo é poesia, em vida revelada,
porque tu és a Poesia, oh! minha doce amada!

ÂNSIA  VAGA
   
Sempre a vida em conserva
o mundo a os acontecimentos
na tela dos mesmos cinemas,
e as mesmas historias em livros diferentes
   e em livros diferentes sempre os mesmos poemas . . .

Sempre a vida em conserva
gravada em discos, irradiada de longe, fotografada,   
nunca a presença, a emoção sentida
deslumbrada...

Ah! pisar outros chãos, colher flagrantes reais
de imprevistas naturezas
feliz a irresponsável como um menino
sem ninguém compreender o que eu faço e o que eu falo . . .

Ah! tomar de surpresa o meu próprio destino,
olhá-lo com os meus olhos cheios de belezas
e assombrá-lo!

AUSÊNCIA 
   
Quando estás longe, querida,
na minha angústia sem fim,
saudade, é o nome da vida
que morre dentro de mim...

Saudade, - estranha ilusão
que à solidão recompensa,
presença no coração
maior que a própria presença.   

Presença no coração
que à vida não satisfaz...
Saudade, estranha emoção
que a distância aumenta mais.

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 2. SP: Ed. Theor, 1965.

Malba Tahan (Mil Histórias sem Fim) Narrativa 9


História singular de um turbante cinzento e a estranha aventura de um enforcado. O encontro inesperado que teve o herói do conto com uma jovem que chorava no meio de uma grande floresta.

 Das Mil histórias sem fim é esta a nona!

 Lida a nona restam, apenas, novecentas e noventa e uma.

Meu nome é Sind Mathusa. Poucos homens têm havido, na Índia, mais ricos do que meu pai e não sei de um só que o excedesse em inteligência, bondade e prudência.

Sentindo-se, certa vez, assaltado de grave enfermidade, e na certeza de que os dias que lhe restavam na vida podiam ser contados pelos dedos da mão, meu pai chamou-me para junto de seu leito e disse-me:

- Escuta, ó jovem desmiolado! Atenta bem no que te vou dizer. És pela lei o herdeiro único de todos os bens que possuo. Com o ouro que te vou deixar poderias viver regaladamente, como um rajá, durante duzentos anos, se a tanto quisessem os deuses prolongar a tua louca e inútil existência. Como sei, porém, que és fraco para resistir aos vícios, e forte em seguir os maus exemplos, tenho a triste certeza de que muito mal empregarás a riqueza que vai em breve cair-te nas mãos. Quero, assim, fazer-te agora um pedido: se for atendido morrerei tranquilo e não levarei para a vida futura o tormento de uma angústia.

- Dizei-me, meu pai - respondi -, qual é o teu desejo. Quero ser mais repelente do que um chacal se deixar de cumprir a tua vontade!

- Meu filho, quero arrancar de ti um juramento. Vês aquele turbante cinzento que ali está? Vais jurar pela imaculada pureza dos ídolos e pelas asas de Vichnu (1) que se algum dia te sentires desonrado procurarás imediatamente a reabilitação que a morte concede aos infelizes, enforcando-te naquele turbante!

Fiz, sem hesitar, a vontade ao enfermo. Jurei pelos ídolos e pelos complicados deuses da Índia que se me visse, no futuro, ferido pela mácula da desonra, procuraria a morte ao enforcar-me no turbante cor de cinza.

Passados dois ou três dias, meu pai, fechando os olhos para a vida, integrou-se no Nirvana. Vi-me, de um momento para o outro, senhor de inúmeras propriedades, das quais auferia uma renda que chegava a causar inveja e insônia ao orgulhoso xá da nossa província. Passei a ostentar uma vida de luxo e dissipações; rodeavam-me, dia e noite, falsos amigos e bajuladores da pior casta que me induziam a praticar toda a sorte de leviandades e loucuras.

Uma noite, tendo reunido em minha casa, como habitualmente o fazia, em grande festa, vários e divertidos companheiros da nossa laia, um deles chamado Ishame, que adquirira considerável riqueza vendendo camelos e elefantes, convidou-me para uma partida de jogo de dados. A princípio a sorte me foi favorável; cheguei a ganhar num golpe o meu peso em marfim. Cedo, porém, perseguido por uma triste fatalidade, entrei a perder e os meus prejuízos excederam de mais de cem vezes o lucro inicial. 

Com a esperança de recuperar o dinheiro perdido redobrei as paradas. Perdi novamente. Na progressiva loucura do jogo, já alucinado, arrisquei nos azares da sorte as minhas joias, escravos e propriedades. Mais uma vez perdi, e ao nascer do sol sobre o Ganges nada mais me restava da herança de meu pai. Na certeza de que poderia contar com a generosidade e auxílio daqueles que me rodeavam, fiz, com a garantia da minha palavra, uma grande dívida de honra, ao perder a última partida. Procurei um jovem brâmane, filho de opulenta família e que sempre vivera a meu lado, no tempo da fartura, e pedi-lhe que me emprestasse algum dinheiro.

- Meu caro Sind - disse-me o brâmane conduzindo-me para o interior de sua rica vivenda -, chegas em péssima ocasião. Fui obrigado a enviar ontem, para resgatar uma dívida de meu pai, cerca de duas mil rupias para Benares. Encontro-me inteiramente desprevenido. Lamento, portanto, não poder servir a um amigo tão querido.

Olhei para as pratarias que se amontoavam por todos os recantos de sua casa. Havia narguilés riquíssimos e bandejas com inscrições que deviam valer alguns milhares.

- Nada disso é nosso - acudiu logo o brâmane, apontando para os adornos e enfeites. - É desejo de meu pai casar minhas irmãs com homens de boa casta, e para atrair os pretendentes alugou toda essa prata e esses tapetes bordados a ouro. Todos acreditam, desse modo, que somos ricos e que vivemos na fartura e na opulência.

Irritado com o cinismo daquele falso amigo, disse-lhe com calculada frieza:

- Bem sabes que sou descendente de nobres e que meus avós pertenciam à mais alta linhagem da Índia. Declaro, pois, que para fugir da situação em que me encontro, estou disposto a casar com uma jovem fina e educada. Peço, pois, a tua irmã mais moça em casamento.

Sorriu o brâmane:

- Pedes em casamento uma jovem que não conheces e que talvez não te aceite para esposo. Em nossa família os casamentos não são ditados pelos interesses pessoais; a mulher deve ser ouvida e suas inclinações pessoais levadas em linha de conta. Se desejas pagar dívidas de jogo com o dote de minha irmã mais moça, sinto dizer-te que estás equivocado, jamais aceitaria, como cunhado, um homem que se arruinou em consequência de uma vida desregrada e pecaminosa!

E, conduzindo-me até a porta de seu palácio, empurrou-me delicadamente para a rua.

Apesar desse péssimo acolhimento, não desanimei. Fui ter à casa em que morava um mercador chamado Meting, que era assíduo frequentador de minha mesa. De mim havia Meting recebido inúmeros obséquios e finezas, e muito dinheiro para ele eu perdera no jogo.

- Que desejas de mim? - perguntou-me. Disse-lhe que precisava de pequeno auxílio.

- Julgas que eu sou algum imbecil da tua espécie? - respondeu-me. - De mim não terás nem um thalung (2) de cobre!

Desesperado, vendo-me repudiado por todos, e sem recursos para pagar o imenso débito que contraíra, abandonei o palácio e fui ter a um grande bosque nas vizinhanças da cidade. Era meu intento cumprir o juramento que formulara junto ao leito de meu pai.

Escolhi, portanto, entre muitas, uma belíssima árvore. Subi pelo nodoso tronco, sentei-me em um dos galhos mais altos, desenrolei o longo e belo turbante cor de cinza, amarrei uma das suas extremidades em outro galho que estava a meu alcance e fiz na outra extremidade um laço seguro em torno do pescoço. Todos esses preparativos trágicos executei-os com a maior calma, sentindo, embora, o coração opresso pela mais imensa tristeza.

Já ia deixar cair o corpo no espaço, quando, ao reforçar o laço fatal que me estrangularia, notei que havia na ponta do turbante, por dentro, qualquer coisa de muito resistente. Que seria? Na esperança louca de encontrar ali qualquer coisa que me pudesse salvar, rasguei o turbante. Embora pareça incrível, senhor, devo contar: de dentro dele retirei uma carta de meu pai redigida nos seguintes termos:

Estás desligado do teu juramento. Vai à casa de Kashiã, o tecelão, e pede-lhe a caixa de areia. Quem se salva por um milagre da desonra e da morte deve evitar o erro e procurar o caminho reto da vida.

Ébrio de alegria saltei da árvore e quase a correr fui ter à choupana onde morava o pobre Kashiã, apelidado “o tecelão”; recebi das mãos desse pobre homem a lembrança que meu pai ali deixara para me ser entregue.

Ao abrir a misteriosa caixa quase desmaiei, tão grande foi o meu assombro. Estava repleta de brilhantes, pérolas e rubis - alguns dos quais valiam mais que as coroas dos príncipes hindus.

Possuidor de tão grande riqueza, não soube dominar a tensão de que fui presa e chorei. Lembrei-me de meu bom pai, sempre generoso e prudente, que ao prever a minha desgraça usara daquele artifício para salvar-me. Era evidente que eu só poderia obter a caixa com auxílio da carta, e a existência desta só chegaria ao meu conhecimento se o turbante fosse por mim próprio desmanchado.

Como louco que se salva de um abismo ao fundo do qual se atirara, assim me vi naquele momento. Depois de lançar aos pés do velho Kashiã um punhado de preciosas gemas, tomei a caixa e encaminhei-me para a cidade. Era minha intenção pagar todas as minhas dívidas e readquirir as minhas antigas propriedades. Quis, porém, a fatalidade que tal não acontecesse.

Ao atravessar um pequeno e sombrio bosque nas margens do Elir, encontrei sentada sob uma grande árvore uma jovem de deslumbrante formosura. Os seus olhos azuis tinham um pouco do céu da Índia com os reflexos mais verdes do mar de Omã. As faces eram como as da terceira deusa do templo de Yhamã. Os lábios da linda criatura tinham um encanto a que talvez não pudesse resistir o faquir mais puro e mais santo da terra. Com essas comparações não exagero a beleza da desconhecida; ao contrário, fico muito aquém da verdade.

A jovem chorava. Os seus soluços vibravam em ondas de indizível angústia.

- Que tens, ó jovem? - perguntei-lhe carinhoso, aproximando-me dela. - Qual é o motivo do teu pranto? Se para o teu mal há remédio, dentro dos recursos humanos, certo estou de que saberei livrar-te de qualquer desgosto!

Isso eu dizia tendo sob um dos braços a preciosa caixa, cheia de cintilantes pedras que me dariam ouro, fama e poderio.

Sem interromper o seu copioso pranto, a jovem olhou com surpresa para mim, segurou com os lábios o belo manto de seda que lhe caía sobre os ombros, e, puxando-o para o lado, deixou a descoberto o colo e os braços mais alvos, ambos, do que as penas das garças sagradas de Hamadã.

Recuei horrorizado. A infeliz tinha as duas mãos cortadas junto aos pulsos!

- Ó desditosa criatura! - exclamei, a alma oprimida pela maior angústia. - Qual foi o bárbaro autor de tamanha crueldade? Conta-me a causa de tua desgraça, e fica certa de que poderás armar o meu braço com o ódio que a vingança te souber inspirar.

A desditosa jovem, entre soluços, narrou-me o seguinte:
_____________________________
Notas
1 Uma das muitas formas que os hindus atribuem às divindades. Vichnu é representado por dez formas diferentes.
2 Thalung - moeda de ínfimo valor.
________________________
continua…
_________________________________

Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim. vol. 2.

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Baú de Trovas e Versos Afins n. 2


O SELO
(1920)

Subiu o imposto do selo,
mas quem do selo se priva?
Inda é bom que não rareie
a produção da saliva!

CALORÃO
(1920)

Em todas as terras frias
está faltando o carvão;
Que pena que não se exporte
este brabo calorão!

NA BAHIA
(1920)

Na Bahia toda gente
tem liberdade bastante,
contanto que esteja dentro
...do partido dominante.

BURRO VELHO
(1909)

Tanta gente que se admira
do macaco fazer renda,
mas eu já vi um burro velho,
ser caixeiro numa venda.

Fonte:
Iba Mendes (seleção/organização). Trovas e Cantigas. São Paulo, 2019.

Luciano Dídimo (Poemas Avulsos) 1


A SINFONIA

Na nossa oração
de cada dia
estamos unidos a cada irmão
como um conjunto de
instrumentos
em harmonia
mesmo na nossa solidão

Na nossa oração
de cada dia
elevamos a Deus
nossa gratidão
nossa alegria
e nossa intercessão
numa única e grande
sinfonia

JARDIM FLORIDO

Os mártires de ontem
Adubaram com sangue
A terra desse jardim
Que hoje florifica

Os mártires de hoje
Regam com sua vida
As flores desse jardim
Assim o fortifica

Com sangue derramado
Ou com martírio branco
Pelas vidas doadas
O jardim frutifica

Cada gesto de amor
Cada mão estendida
Cada ato de louvor
O jardim vivifica

 O BIBLIOTECÁRIO

O bibliotecário
Nos ajuda a navegar
No mar de informações

No oceano dos livros,
Revistas e documentos
Ele é a bússola
Que orienta
A nossa busca

No grande mar
Da leitura e da cultura
Ele é o farol
Que nos guia
Na noite escura

No velejar
Nas águas da pesquisa
Ele é a âncora
Que nos faz aportar
Em segurança

O POETA INTERNAUTA

O poeta internauta
Posta o poema no seu feed
Compartilha em suas redes
Constrói as suas stories

O poeta internauta
Posta o poema no seu blog
No seu site e facebook
Na sua linha do tempo

O poeta internauta
Compartilha seu poema
Na lista de transmissão
E nos grupos de whatsapp

O poeta internauta
compartilha seu poema
No direct e no twitter
Por e-mail e pelo messenger

O poeta internauta
Só esquece um detalhe
Se um dia sair o livro
Todo mundo já vai ter lido!

TEMPO E VIDA
Para Vicente Vieira, nos seus 80 anos

Convertido em poeta
Caminha a letras largas
Vai andando sobre o mar
Deixa rastro de pegadas

Sozinho na multidão
Sem rumo no rumo certo
Contempla o universo
Que cabe em um só verso

No seu olhar no espelho
Você está muito bem
Fica atento ao conselho
Que lhe sussurra alguém

Lá no seu gabinete
Na própria companhia
Vem à memória o tempo
Que o Tempo prevalecia

No embalo da rede
Entoa a poesia
Traduz sua melodia
Afasta a melancolia

Entoa os seus cantos
E os seus desencantos
Versos sem rima brancos

Descobre que o amor
transborda nas discussões
e traz sempre as soluções

Descobre que mãos abertas
Nas ocasiões certas
Mostram as limitações

Não é tempo de despedida
Que a saúde se hospede
E tenha boa guarida

Que Deus mantenha viva
O brilho da fagulha
Na fogueira da vida

Até chegar a colheita
Quando a nova trajetória
Será enfim perfeita

Fonte:

Luciano Dídimo (1971)


Luciano Dídimo Camurça Vieira, nasceu em Fortaleza/CE, em 1971. Filho do poeta, ficcionista e ensaísta Horácio Dídimo Pereira Barbosa Vieira e Maria Evendina Camurça Vieira.

Graduado em Administração de Empresas pela Universidade Estadual do Ceará, em Direito pela UNIFOR - Universidade de Fortaleza. Pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela UNIDERP. Analista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região. Diretor de Secretaria da 7ª Vara do Trabalho de Fortaleza. Secretário de Imprensa e Cultura do Sindissétima - Sindicato dos Servidores da 7ª Região da Justiça do Trabalho nos biênios 2016/2017 e 2018/2019. 

Membro da Ordem dos Carmelitas Descalços Seculares (OCDS). Presidente Provincial da OCDS (Província São José) nos triênios 2013-2016 e 2016-2019. Membro da Academia Brasileira de Hagiologia (ABRHAGI), integrando sua diretoria como Relações Públicas nos biênios 2016/2017 e 2018/2019. Cadeira n. 31 da AVIPAF – Academia Virtual Internacional de Poesia, Artes e Filosofia.

Luciano Dídimo publicou artigos e livros, participou da Antologia Carmelitana da editora LumenGraf, São Paulo, e organizou um livro.

Obras
O Meu Carmelo é Marrom (2011)
A Rosa da Certeza (2016)

Fontes:

Malba Tahan (Mil Histórias sem Fim) Narrativa 8


História surpreendente do infeliz Balchuf, que deixou o trono, a título de experiência, nas mãos de um príncipe louco.

 Das Mil histórias sem fim é esta a oitava!

Lida a oitava restam, apenas, novecentas e noventa e duas...

No país de Astrabad vivia outrora um rei perverso e mau chamado Balchuf.

Não tendo filhos, era seu herdeiro um sobrinho - o príncipe Kabadiã -, moço desajuizado e turbulento que vivia a cometer toda sorte de loucuras e estroinices. Raro era o dia em que o futuro rei não praticava uma proeza qualquer.

O rei Balchuf, longe de procurar corrigir-lhe a índole arrebatada e travessa, distraía-se com suas extravagâncias e ria-se quando ouvia contar alguma nova tropelia daquele a quem já chamavam o “Príncipe Louco”.

O povo de Astrabad antevia bem triste os dias que o aguardavam. Entregue a um monarca impiedoso e sanguinário, o país entraria fatalmente em completa decadência. 

Os estrangeiros já fugiam de Astrabad com receio das perseguições, e o comércio arrastava-se onerado e sem ânimo, coberto de impostos exorbitantes.

Um grupo de patriotas, compreendendo que aquele estado de coisas levaria todos à ruína, resolveu conspirar contra o rei, proclamar a República e entregar ao mais digno a direção do Estado.

Houve, porém, entre os oposicionistas um miserável delator que se apressou em levar ao conhecimento do rei o plano deliberado pelos conspiradores.

Enfureceu-se o soberano ao ter notícias de que alguns ricos súditos pretendiam subverter a ordem legal do país, e resolveu castigar implacavelmente os chefes daquele movimento republicano. Mandou degolar alguns, eliminando os mais influentes, desterrou outros, prendeu os suspeitos e confiscou os bens de todos os adeptos da revolução.

Esta vitória não lhe restituiu, porém, a tranquilidade que perdera. O fantasma da revolta continuava a povoar-lhe a mente, como um sonho mau.

“Uma tentativa destas”, pensava, “deixa terríveis germes nos corações dos descontentes e dos vencidos. Se eu não tomar uma providência enérgica, cedo terei de dominar outra rebelião. E encontrarei, porventura, quem me avise a tempo?”

Preocupado com tais pensamentos, resolveu o rei Balchuf mostrar ao seu povo que ele não era tão ruim como os seus adversários faziam crer.

“Para isto”, refletiu maldoso, “vou afastar-me durante um ano do governo e deixar meu sobrinho no trono. Tais loucuras há de ele praticar, tão frequentes serão os seus atos de tirania que quando eu voltar o povo respirará menos oprimido e verá em mim um soberano ponderado e justo.”

Ora, o rei Balchuf fora informado de que o Príncipe Louco dissera várias vezes a seus amigos e companheiros que quando subisse ao poder praticaria, de início, três façanhas espantosas: uma represa das águas do rio Gurgã; a construção de um castelo subterrâneo; e a abolição do véu para as mulheres.

E, antegozando a dura lição que infligia ao país inteiro, esfregava as mãos de contente:

“O primeiro ato de meu tresloucado sobrinho levará o país às portas da miséria; o segundo à ruína completa; e o terceiro à revolução religiosa e à guerra civil!”

E resolvido a pôr em execução, sem mais delongas, o plano diabólico, o rei Balchuf assinou um decreto em virtude do qual seu sobrinho Kabadiã o substituiria no governo pelo espaço de um ano. Ele - o rei - iria, durante esse tempo, fazer uma visita ao seu velho amigo Iezide II, sultão do Hajar.

Foi com verdadeiro pavor que o povo de Astrabad recebeu a nova da viagem do rei e a consequente ocupação temporária do trono pelo Príncipe Louco.

Partiu o rei Balchuf resolvido a regressar dentro do prazo marcado. Preso, entretanto, por uma grave e prolongada enfermidade no longínquo país de Hajar, não pôde voltar senão quatro anos depois.

Chegado a Astrabad, depois de tão longa ausência, notou que os seus domínios haviam progredido extraordinariamente. Um vizir que por ordem do governo veio esperá-lo na fronteira disse-lhe, sem mais preâmbulos:

- Penso que Vossa Majestade não deve tentar reassumir o trono, pois o povo poderia revoltar-se e massacrá-lo.

- Como assim? - exclamou o rei. - Será possível que meus súditos prefiram ser governados pelo Príncipe Louco a ter-me no trono?

- Peço humildemente perdão a Vossa Majestade - recalcitrou o vizir. - Devo asseverar, porém, que Vossa Majestade está completamente equivocado. O príncipe Kabadiã está governando admiravelmente o país. Até hoje, não havíamos encontrado um chefe de Estado de mais ampla visão e sabedoria!

- É incrível! - protestou o rei. - E a represa do rio Gurgã? E o palácio subterrâneo? E a célebre abolição do véu feminino? Não teria o príncipe praticado nenhuma dessas tão prometidas loucuras.

O vizir explicou, então, ao rei Balchuf que tudo isso e muito mais havia feito o príncipe. A represa do rio Gurgã fora de consequências magníficas, pois as águas espalharam-se pelas terras vizinhas, fertilizando-as e tornando-as mui aperfeiçoadas à agricultura, que logo se desenvolveu; o palácio subterrâneo, depois de construído, tornou-se grande atrativo, e milhares de forasteiros visitaram a capital unicamente para admirar essa nova maravilha, o que para o comércio de Astrabad fora manancial de grandes lucros, e para o país fonte de gerais prosperidades. A abolição do véu feminino fora outra medida de alcance admirável. As raparigas passaram a andar com o rosto descoberto: abandonaram a ociosidade dos haréns e puderam trabalhar livremente não só nos bazares como nas pequenas indústrias. Uma vez condenado o véu, teve o príncipe ocasião de observar que suas jovens patrícias eram belíssimas e resolveu casar-se. Escolheu para esposa uma menina, formosa e inteligente, filha de um grande sábio. A nova princesa exerceu tão boa influência sobre o gênio de seu jovem esposo que o transformou radicalmente. Aconselhado pela fiel e dedicada companheira, o príncipe escolheu bons ministros, esforçados auxiliares, e, bem guiado e melhor secundado, soube modificar bastante o seu gênio irrequieto e impulsivo. Até então não assinara uma única sentença de morte, nem mandara confiscar os bens de nenhum cidadão.

Ao ouvir tão assombrosas revelações, o rei Balchuf ficou pasmado e percebeu que havia perdido para sempre o direito ao trono; jamais poderia ele contar com o apoio de suas tropas ou com a antiga submissão de seu povo.

- Insensato fui eu - confessou ele ao vizir. - Insensato, pois não soube governar o meu povo como ele merecia! Insensato em escolher maus ministros e péssimos conselheiros! Louco era eu quando premiava os vis delatores e perseguia os bons patriotas!

- Agora é tarde para arrependimentos, ó rei - retorquiu com impaciência o vizir. - Volte Vossa Majestade para o país de Hajar e procure acabar lá sossegado os seus dias, que o povo de minha terra não poderá suportá-lo mais!

E, tendo pronunciado tão ásperas palavras, o vizir afastou-se com a sua aparatosa comitiva, deixando o infeliz rei abandonado na estrada, como se fosse um camelo moribundo.

Sentindo-se perdido e sem forças para reconquistar o trono de seus avós, sentou-se o rei Balchuf, tomado de indizível tristeza, numa pedra à margem da estrada, e pôs-se a meditar nos espantosos erros de seu passado e na dolorosa expectativa que lhe oferecia o futuro.

- A morte - exclamou - é para o vencido o caminho mais seguro da reabilitação e do descanso. Devo, pois, morrer!

Um xeque desconhecido que passava no momento pela estrada, acompanhado de seus servos, ao ouvir as palavras de desespero do rei Balchuf, parou o camelo em que ia e assim falou:

- Ó desassisado viandante! Por que te pões, para aí, como um louco, a falar em morrer quando, graças a Deus, há na vida remédio para todos os males? Vem comigo, pois estou certo de que acharei solução para o teu caso!

Vamos olhar, apenas, o lado belo e puro
 Das coisas que circundam este mundo,
 Deixando à margem, voluntariamente,
 Ideias más que vivem no inconsciente
 Como rainhas nefastas do escuro. (1)

- Continua, meu amigo, a tua jornada - redarguiu secamente o rei. - O abismo que se acha diante de mim é intransponível! O problema do meu destino é inexplicável; os versos não me trazem alívio; os conselhos e advertências são, agora, para mim inúteis; os auxílios materiais nada poderão adiantar. Só a morte será capaz de tirar-me da negra situação em que me encontro.

- Estás enganado - contraveio o desconhecido. - Não sei ainda qual é a angústia que pesa sobre teus ombros; ignoro quais são os males que afligem a tua existência. Asseguro-te, porém, que já estive em situação muito pior do que a tua e que logrei salvação precisamente no momento em que decidira morrer. É preciso que a esperança exista sempre em nosso coração. Bem disse o poeta:

Esperança, ventura da desgraça, trecho puro do céu sorrindo às almas, na floresta de angústias e incertezas. (2)

“E por que não crês, ó irmão dos árabes!, na esperança? Serve a esperança de lenitivo para as dores mais torturantes e de bálsamo para as tristezas.”

Só a leve esperança, em toda a vida,
disfarça a pena de viver, mais nada:
nem é mais a existência resumida,
que uma grande esperança malograda! (3)

O xeque do deserto, vendo que o rei continuava taciturno e infeliz, disse-lhe:

- Ouve a história de minha vida e verás se eu tenho ou não razão para confiar no futuro e exaltar a esperança.

E narrou a seguinte e singular história:
_______________________________
Notas
1 Versos do livro Angústia dos Séculos, de Adroaldo Barbosa Lima.
2 Versos de Aníbal Teófilo.
3 Do soneto “Velho Tema”, de Vicente de Carvalho.
___________________________
continua…
__________________________________

Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim. vol. 2.

sábado, 22 de junho de 2019

Baú de Trovas e Versos Afins n.1


ARRAES PEREIRA

O Mendonça Retratista
(1917)


Eu muito me irei de rir
quando for capitalista,
dando sempre que fazer
ao Mendonça retratista.

Em conquistando uma atriz
ou até mesmo uma corista,
vou logo fotografá-la
no Mendonça retratista.

Não há repórter no mundo,
nem tampouco jornalista,
que não conheça o Mendonça,
o Mendonça retratista.

O médico é para o doente;
Tira dentes, o dentista,
mas para tirar retratos,
o Mendonça retratista.

Diz o padre lá na igreja
baixinho para o sacrista:
Olha que tirar retratos
só o Mendonça retratista.

O Mendonça retratista
não sei com quem compará-lo,
se este homem não existisse
era preciso inventá-lo.

Carolina Ramos (Peruíbe)


Peruíbe – “Cidade Alegre” – como a classifica, em seus versos, Maya Alice Ekman, pesquisadora e divulgadora entusiasta das belezas e lendas, fartas, por lá.

Chegamos a conhecer pessoalmente Maya Ekman, em seus derradeiros anos, quando, no livro – Peruíbe – História de suas Origens, Lendas e Contos, definia a cidade como sendo “ Cidade Turística do litoral sul, conhecida pelas belas praias limpas, não poluídas, ar ozonizado, rios, cachoeiras e montanhas ainda não exploradas”. E ainda: - “Peruíbe é uma cidade encantada, que recebe todos os dias a reconstituinte e reformadora neblina orgânica, ozonífera, que faz dela um centro de rejuvenescimento, através do ar que respiramos.” À misteriosa montanha, chamava de “a morada dos deuses.”

Entre as lendas que circulam meio às belezas naturais de Peruíbe, há aquela chamada “Lenda da Pedra”, ou, “O Mistério da Porta e da Janela”, onde costumam aparecer “seres e luzes estranhas”. Contam os indígenas e repetem os historiadores, que, naquele local, havia uma gruta a expelir fogo e fumaça sendo que essa gruta fora fechada pelos “deuses” e marcada em sua porta a figura de uma serpente. A crendice popular acrescenta que, vez ou outra, circula por ali “uma jovem muito alta (mais de dois metros), de longos cabelos louros, envergando, ora um macacão prateado, ora uma túnica branca, trazendo sempre, à altura do peito, a figura de uma serpente”. A aparição entra pelo portal do rochedo e desaparece, enquanto luzes e brilhos estranhos saem da pedra.

A prevenir surpresas, corre de boca a boca o aviso: - “Quem, por perto, observe a cena, acaba por não se sentir bem” - o que, crendo ou não, é bom saber, “para que se deixem as barbas de molho”!

“Castelinho da Prainha” - Este é outro fato que enriquece o folclore de Peruíbe. É voz corrente que um bruxo reside no tal “Castelinho da Prainha”, e, que, algumas vezes, tal bruxo aparece à janela que se abre para o mar. Há até quem jure tê-lo visto!

“Noiva da Praia” – Abandonada pelo noivo, no dia do casamento, reza a tradição que a triste noiva, vez ou outra, passeia solitária pela praia de Parnapuã e alguns garantem tê-la visto... e mais de uma vez!

A Lenda dos Vagalumes, minuciada por Maynard, e outras mais, comprovam a fertilidade do imaginário peruibense, preservador da aura mágica que cerca de misterioso encanto esta bonita cidade praiana.
 
Fonte:
Academia Peruibense de Letras. ROSA DO ABISMO.  9ª Coletânea da Academia Peruibense de Letras. São Paulo/SP: All Print Editora, 2018.

Bulhão Pato (Livro D’ Ouro da Poesia Portuguesa vol. 10) 1


FELIZ DE AMOR!

Não sabes que ao ver-te triste,
E pensativa a meu lado,
O rosto na mão firmado.
E os olhos postos no chão,
Calado, ansioso, anelante,
Quero ler no teu semblante
A causa da dor constante
Que te oprime o coração?

Pois não basta o meu amor
Para te dar a ventura?
Responde: quando a luz pura
Do sol vem beijar a flor,
Não lhe acende mais a cor?
Não lhe dá mais formosura?

Agora, quando se inflama
Em teu peito aquela chama,
À qual tudo se ilumina
De viva, encantada luz,
Dize: é quando, minha vida,
Pálida, triste, abatida,
A tua fronte se inclina,
E melancólica sombra,
De mal contida amargura
Nos teus olhos se traduz?!

Certeza de que és amada
Com quanto poder na terra
Em peito de homem se encerra,
Tem-la em tua alma gravada!
Então de fundo desgosto
Por que vem nuvem pesada
Carregar teu belo rosto?
Pois se ao vívido calor
Do sol a rosa fulgura
E redobra aroma e cor,
Não te há de dar a ventura
A chama do meu amor?!

VAIS PARTIR!

Vais partir! cada instante que passa
Aproxima o adeus derradeiro,
Para mim neste mundo o primeiro,
Que teus olhos proferem aos meus!
Vais partir! nessas mórbidas pálpebras,
Treme agora uma lágrima ansiosa,
Já desliza na face formosa,
Já teus lábios me dizem adeus!

Vais partir! contemplar esses campos,
Que o sol vivo de abril ilumina,
Ver as relvas da alegre campina
Já cobertas agora de flor.
Escutar as estrofes sentidas
Que de tarde improvisam as aves,
Recordar os instantes suaves
De outros dias de encanto, e de amor.

Vais partir! vais tornar aos lugares
Testemunhas de um céu de delícias,
Que em suaves risonhas carícias,
Para nós neste mundo brilhou!
Cada flor, cada tronco viçoso,
Cada espaço de relva florida
Vai lembrar-te uma cena da vida,
Um momento feliz que passou!

Quando for aos clarões da alvorada
O perfume das plantas mais brando,
Quando as aves voarem em bando,
E cantarem ditosas no vale;
Quando as águas correrem mais vivas,
Pelo verde declive do monte,
Quando as rosas erguerem a fronte
Animadas de um sopro vital...

Que saudade! ai que funda saudade
Hás de ter desse tempo encantado,
Em que bela e feliz a meu lado
Viste as pompas da terra e dos céus!
Quando a aurora era a pura alegria,
Uma vaga saudade o sol posto,
Quando meigo sorria teu rosto
Se eu fitava meus olhos nos teus!
.............................................
Vais partir! cada instante que passa
Aproxima o adeus derradeiro,
Para mim neste mundo o primeiro
Que teus olhos proferem aos meus!
Vais partir! nessas mórbidas pálpebras,
Treme agora uma lágrima ansiosa,
Já desliza na face formosa,
Já teus lábios me dizem adeus!

IMPROVISO

Por que lânguida essa frente
Decai, quando a tarde expira?
Por que nesse olhar dormente
Tua alma ingênua suspira?

Por quê? ai! por quê? responde;
Que se amor do céu procura,
Ei-lo; em meu peito se esconde;
Vive, é teu, tens a ventura!

Verás como então brilhante,
Seduz, toma vida, inspira,
Esse teu belo semblante,
Que apenas hoje se admira!

QUEM NÃO AMA, NÃO VIVE

Pois não vês que se a luz do sol nascente
À rosa na manhã desabrochada,
Não ilumina as folhas, desbotada
Fica na haste pendente,
Sem perfume, sem vida abandonada?

Dize: então queres tu que a formosura
Que o Senhor estampou no teu semblante,
Sem renome, sem glória, passe obscura
No mundo em que radiante
Ostentar-se podia majestosa?
Queres vê-la abatida como a rosa
Que o sol não ilumina?

Pois o que falta a essa fronte bela?
Oh! vais sabê-lo: — O amor!
Que se anime e reviva à luz divina
E verás se depois alguém ao vê-la
Lhe nega o seu fulgor!

AMANHÃ!

Resta um dia, mais um dia,
Algumas horas ainda
De amor, de ternura infinda!
Amanhã nos olhos teus,
Uma lágrima sentida;
Em teus lábios, um adeus!

O instante da despedida
Tão perto está!... Minha vida,
Crava teus olhos nos meus,
Um sorriso, um beijo ainda,
Mais uma hora de ternura,
De amor, de alegria infinda
Antes desse longo adeus!

Adeus de tanta amargura!
Sabe Deus! oh! sabe Deus,
Quando outros dias virão,
Tão gratos ao coração!
Quando nessa face linda
Verei sorrir a ventura;
Mas agora um beijo ainda
Antes que chegue o momento
De soltar o extremo adeus!

Oh! tira do pensamento,
A hora da despedida;
Mais um instante de vida,
De delícia e glória infinda!...

Amanhã!... ai! não te lembres
De tal dia de amargura!
Crava teus olhos nos meus;
Inda uma hora de ventura,
De amor, de alegria infinda
Sorrindo nos olhos teus:
Um beijo, mais outro ainda,
O derradeiro: oh! adeus!

ANJO CAÍDO

Na flor da vida, formosa,
Ingênua, casta, inocente,
Eras tu no mundo, rosa!
Quem te arrojou de repente
Para o abismo fatal!
Viste um dia o sol de abril;
O teu seio virginal
Sorriu alegre e gentil.

Ergueu-se aos clarões suaves
Daquela doce alvorada
A tua face encantada.
Amaste o doce gorjeio
Que desprendiam as aves,
E no teu cândido seio
Quanto amor, quanta ilusão
Alegre pulava então!

Mal haja o fatal destino,
Maldita a sinistra mão,
Que em teu cálix purpurino
Derramou fera e brutal
Esse veneno fatal.

Hoje és bela; mas teu rosto
Que outrora alegre sorria,
É todo melancolia!
Hoje nem sol, nem estrela,
Para ti brilha no céu;
Mal haja quem te perdeu!

Fonte:
Bulhão Pato. Versos. Publicado originalmente em 1862. Livro Digital por Iba Mendes (Editor e revisor ortográfico). 2. Ed. São Paulo: Iba Mendes, 2018.

Arthur de Azevedo (Como Eu me Diverti!)


CONTO-COMÉDIA

PERSONAGENS:


JORGE (empregado no comércio)

O COMENDADOR ANDRADE (negociante, sócio principal da firma Andrade, Gomes & Companhia)

UM MÉDICO

DONA MARIA (excelente senhora de meia idade, estabelecida com casa de alugar cômodos a moços solteiros)

A ação passa-se no Rio de Janeiro, em quarta feira de cinzas. Atualidade.

ATO ÚNICO

A cena representa a sala e a alcova que Jorge ocupa em casa de Dona Maria. Atirado sobre um velho canapé um hábito de frade encardido de suor e sujo de lama. No chão, um par de luvas, igualmente sujas, e um nariz de papelão quase a desfazer-se, preso a uns grandes bigodes e a um par de óculos.
CENA I

Dona Maria, o Médico.

O MÉDICO
Que tem ele?

DONA MARIA
Não sei, doutor, não sei. O senhor Jorge tem muito bom coração, mas tem muito má cabeça: é doido pelo Carnaval.

O MÉDICO
Gabo-lhe o gosto.

DONA MARIA
Ontem vestiu-se de frade, pôs aquele nariz postiço e andou, num carro todo enfeitado de flores, ao lado de uma sujeita que mora no Hotel Ravot, acompanhando um préstito (cortejo). Só o vestuário da pelintra lhe custou perto de oitocentos mil-réis!

O MÉDICO
Quem lhe disse?

DONA MARIA
Os meus hóspedes não têm segredo para mim.

O MÉDICO
Adiante.

DONA MARIA
Para se não constipar, o pobre moço levou consigo, por baixo do hábito, uma garrafa de conhaque e de vez em quando atiçava-lhe que era um gosto! Quando o préstito passou pela primeira vez na Rua do Ouvidor (eu estava lá...) já ia o frade que não se podia lamber! Depois na Rua da Constituição — isto sei eu por um amigo dele, que tudo viu — outro moço, também fantasiado, bifou-lhe a pelintra, e isso deu lugar...

O MÉDICO
...a um rolo! Pudera!...

DONA MARIA
Racharam-lhe a cabeça!

O MÉDICO
Naturalmente.

DONA MARIA
E o demônio do rapaz andou toda a noite, de cabeça rachada, à procura da tal mulher, dos Fenianos para os tenentes e dos Tenentes para os Democráticos, bebendo sempre, até cair na Rua do Fogo, às três horas da madrugada!...

O MÉDICO
Com efeito!

DONA MARIA
A polícia levou-o para a estação da travessa do Rosário, e pela manhã uns amigos que tinham sido avisados, trouxeram-no para casa.

O MÉDICO
Onde está ele?

DONA MARIA
Naquela alcova. Há cinco horas que ali está deitado, sem dar acordo de si. Por isso, mandei chamá-lo, doutor.

O MÉDICO
Fez bem. Vamos vê-lo.

(Entram na alcova)

CENA II
Jorge, o Médico, Dona Maria.

(Na alcova, Jorge está de cama, com a cabeça amarrada, os olhos fechados, os braços caídos. O Médico, ao ver o enfermo tem um movimento que escapa à Dona Maria)

O MÉDICO (tomando o pulso do doente)
Não tem febre. (Depois e examinar-lhe a cabeça) O ferimento nada vale... Já lhe puseram uns pontos falsos; é quanto basta... O seu hóspede tem apenas o que os estudantes chamam “uma ressaca”; precisa de descanso e mais nada. Quando voltar a si, se quiser tomar alguma coisa, dê-lhe uma canja, dois dedos de vinho do Porto misturado com água de Vichi, um pouco de marmelada, e disse. Se amanhã continuar incomodado, que tome um laxante.

CENA III
O Médico, Dona Maria.

(Na sala).

O MÉDICO (tomando o chapéu)
A senhora não imagina como estimei por ter sido chamado para ver este senhor Jorge. Foi uma providência.

DONA MARIA
Por que, doutor?

O MÉDICO
Conheço-o, mas não sabia que se tratava dele. É o namorado, quase noivo de minha afilhada, filha do meu amigo Raposo. A menina gosta dele, e o pai já estava meio inclinado a consentir no casamento; tinham-lhe dado boas informações sobre este pândego. Agora, porém, vou prevenir o compadre, e dissuadir minha afilhada, que é muito dócil e me ouve acatamento.

DONA MARIA
Valha-me Deus! e sou eu a culpada de tudo isto!

O MÉDICO
Culpada, por quê?

DONA MARIA
Por ter mandado chamar o padrinho! Pobre rapaz!...

O MÉDICO
A senhora deve estar, pelo contrário, satisfeita, por ter indiretamente contribuído para este resultado. (Voltando-se para a alcova) Que grande patife! namorar uma menina pura como uma flor, e andar de carro, publicamente embriagado, em companhia de uma prostituta.

DONA MARIA
No carnaval tudo se desculpa.

O MÉDICO
Nada! — eu sou o padrinho, o segundo pai daquele anjo! (Vai saindo)

DONA MARIA (tomando o Médico pelo braço)
Doutor, doutor, não vá assim zangado com o senhor Jorge... não diga nada à família da menina... Ah! se eu soubesse... Mas que quer?... Vejo que este hóspede tem segredos para mim... (O doutor tenta safar-se). Ouça doutor... ele tem um bom emprego... é muito estimado pelos patrões...

O MÉDICO
E a minha afilhada tem um dote de cento e cinquenta contos.

DONA MARIA (aterrada, largando o braço do Médico)
Cento e cinquenta contos!

O MÉDICO (saindo)
Fora o que lhe há de caber por morte do pai! (Chegando à porta, para, volta-se e diz:) Canja... vinho do Porto... água de Vichi... marmelada... e disse! (Sai)

CENA IV
Dona Maria, depois Andrade.


DONA MARIA (fica perplexa, de olhos baixos, na atitude de Fedra, quando diz)
Juste ciel! qu’ ai je faite aujourd’hui? *

(É despertada bruscamente pelo Comendador Andrade, que entra com espalhafato)

O COMENDADOR (gritando)
Onde está o senhor Jorge?

DONA MARIA (consigo)
Um homem zangado! É ele, é o pai da menina!

O COMENDADOR
Senhora, pergunto-lhe pelo senhor Jorge!

DONA MARIA
Está doente... naquela alcova... dorme...

O COMENDADOR
Já me contaram as façanhas que ele praticou esta noite! (Apanhando o nariz postiço) Cá está uma prova! (Atira-o longe)

DONA MARIA
Desculpe-me essa rapaziada, e não lhe negue a mão da menina. O Comendador — A mão da menina! Que menina?

DONA MARIA
Sua filha.

O COMENDADOR
Minha filha? Qual delas? Pois este mariola ainda por cima se atreve a erguer os olhos para uma das filhas do seu patrão!

DONA MARIA
Do seu patrão? Ah! então não é o senhor Raposo?

O COMENDADOR
Que Raposo, nem meio Raposo! Eu sou o Comendador Andrade, sócio principal da firma Andrade, Gomes & Companhia! — O senhor Jorge está dormindo, disse a senhora.

DONA MARIA
Sim, senhor.

O COMENDADOR
Pois bem; quando acordar, diga-lhe que eu aqui estive, e o ponho no olho da rua! Que apareça para fazermos as contas!

DONA MARIA
Atenda, senhor Comendador!

O COMENDADOR
A nada atendo! A casa Andrade, Gomes & Companhia não pode ter empregados que se embriagam e passam a noite no xadrez! Era o que faltava! (Sai arrebatadamente).

CENA V
Jorge, Dona Maria.

(Na alcova, Dona Maria sai).

JORGE (abre um olho, depois o outro, olha em volta de si, certifica-se que está em sua casa, dirige à Dona Maria um sorriso de agradecimento, solta um longo suspiro, e exclama com voz rouca e sumida)
Como eu me diverti!
_________________
Nota do blog:
* Juste ciel! qu’ ai je faite aujourd’hui?  (Juste Ciel! - literalmente é Apenas o Céu! Mas é expressão utilizada também como se fosse "Mon Dieu!"). 
 qu’ ai je faite aujourd’hui? (Que eu fiz hoje?). Juntos, no texto acima, tomam um tom de lástima.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Escrita em 1883. Digitalização e revisão ortográfica por Iba Mendes. São Paulo, 2017.