segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Maria Amália Vaz de Carvalho (A Tia Izabel)

Conhecia-a em casa de uma família amiga da minha.

Afirmavam os que a tinham conhecido em menina, que fora bonita; a mim parecia-me simplesmente simpática.

Era alta, magra, loura e muito branca, uma fisionomia serena e melancólica, sem muito relevo, mas com muita doçura.

Andava sempre vestida de escuro, com uma simplicidade em que transpareciam, porventura, vislumbres de antigas elegâncias.

Ao olhar para ela conhecia-se que havia de ter gostado de certas puerilidades mundanas, de se vestir e pentear bem, por exemplo, de ser citada pelo esmero do seu gosto, e pela distinção finíssima de suas maneiras.

Hoje todas as vaidades se tinham apagado; fizera quarenta anos, e acolhera-os com resignação, com dignidade, com uma certa graça melancólica que lhe ficava muito bem.

Nenhum dos rapazes que frequentavam aquela casa se atrevia a chamar-lhe solteirona.

A solteirona é a mulher solteira que não sabe aceitar resignada as amarguras de seu isolamento, e as converte em ridículos quando as não converte em péssimas qualidades.

A solteirona é pretensiosa, presumida, ávida de atrair a atenção, revolve os olhos sentimentalmente, lê romances, come gulodices, tem um king charles (espécie de cachorro) e inveja tudo o que é moço, radiante, feliz, tudo que tem esperanças e para quem o futuro desabrocha em promessas.

A solteirona é egoísta, incomodam-na como uma injúria que lhe é particularmente dirigida todas as alegrias que não tem, persegue-a atrozmente a aspiração irrequieta a um pobre marido que pudesse atormentar à vontade; sente-se na vida como numa casa que não é sua; daqui o seu mau humor continuado que torna dela quase sempre o flagelo da família onde se sente pária!

A tia Izabel, porém, não era nada disto, pelo contrário.

Tinha para os sobrinhos um coração que, sem ser de mãe, encerrava muito de maternal, sobretudo no que as mães têm de indulgente!

Nunca a vi colérica, nunca a vi também excessivamente animada.

Não se ria, mas tinha habitualmente um sorriso plácido, quase , o sorriso de quem se sente um pouco estranha a todas as alegrias que a rodeiam, mas que nem por isso deseja projetar as suas sombras na luz que os outros espalham em torno dela.

Era muito estimada pelo irmão, pela cunhada e pelos sobrinhos, uns traquinas que andavam sempre a recorrer á sua inesgotável paciência, e que nunca foram expulsos com um gesto de irritação ou de desamor.

Sabia a difícil ciência de se tornar útil a todos, quase indispensável; estreitando deste modo os laços que a prendiam aos seus, tornando-os por assim dizer inquebrantáveis:

Sentia-se assim menos só!

Nos jantares de família os melhores pratos eram sempre executados debaixo da sua direção; era ela quem fazia o menu, quem distribuía os lugares, quem presidia a todos os arranjos de casa.

Encarregava-se das tarefas mais enfadonhas, daquela parte aborrecida que tem uma festa e que as donas da casa aceitam com tédio, mas que lhes é mais tarde compensada no aplauso, na satisfação, às vezes mesmo na inveja disfarçada em risos dos seus convivas.

Nessas ocasiões solenes em que ninguém dava por ela, creio que se permitia um instante de inocente amor próprio, vendo a mesa bonita, bem disposta, com a elegante e simétrica poesia das grandes jarras do Japão cheias de flores, dos cristais facetados onde o vinho tomava as olímpicas aparências do néctar, da bela louça da China de lavores extravagantes e fantasiosos, da roupa fresca, pesada, macia, de linho da Rússia adamascado, tendo bordadas iniciais... que não eram as dela.

Depois voltava para o seu lugar secundário, obscuro, e voltava de boa vontade com simplicidade despreocupada.

Estava sempre bem com todos, sem se curvar obsequiosamente diante de alguém.

Tinha mesmo um modo seu de dizer as verdades com firmeza e com brandura, sem transigências covardes, sem severidade excessiva.

Quando havia em casa um doente, sentava-se-lhe tranquilamente à cabeceira, fazia-lhe sentir com discreta suavidade a sua influência boa, perdia as noites com um aspecto de intrepidez e de meiguices; era inapreciável enfim.

Tinha uma infinidade de pequenas ideias que punha em prática e de cada uma das quais resultava um alívio para o doente: arranjava as almofadas, aconchegava as roupas do leito, dir-se-ia que a sua mão esguia, branca, um pouco seca, tinha o segredo de verter bálsamo em todas as feridas de um corpo enfermo.

Na convalescença lia alto.

Escolhia muito bem os livros, tinha a maravilhosa intuição de todas as necessidades de um espírito adormecido, naquela dúbia luz crepuscular da doença física.

A sua voz velada, sem grande sonoridade, tinha umas notas macias que entravam até ao fundo do coração e que o amoleciam docemente.

Ainda nos desgostos de família, na hora das crises e das catástrofes era para ela que instintivamente todos os braços se estendiam.

É que ela, com o seu passo miudinho, o seu ar sereno, os seus hábitos metódicos, nem diante das máximas catástrofes perdia a placidez necessária.

Uma das suas particularidades mais acentuadas era a repugnância pelo barulho, pelo espalhafato, por todas as exterioridades aparatosas.

Andava, falava, trabalhava, movia-se sempre devagarinho.

Lembro-me perfeitamente do quarto dela, como de uma espécie de pequeno santuário onde poucas vezes penetravam as travessas crianças de quem ela era como que segunda mãe.

Quando eu acertava de lá entrar com elas, enquanto a pequenada corria de um lado para outro, vendo, tocando tudo, perguntando informações de todas as coisas, eu observava calada com o meu olhar de mais velha, mais penetrante e mais curioso.

Tudo ali era limpo, asseado mas tudo antigo, datando sem dúvida da sua adolescência, do tempo em que ela fora feliz, porventura requestada e formosa.

A alcova branca, discreta, com o seu oratório de pau santo, cheio de belas imagens, a Virgem risonha e loura com o menino nos braços, o Cristo macerado e sangrento com a expressão de sobre-humana agonia no amortecido olhar.

No gabinete contíguo as cortinas, os reposteiros de chita, as poltronas, as pequeninas mesas cobertas com os seus panos de crochê, as estantes de livros, tudo enfim era bem conservado, sem ser novo; via-se que tinha sido o objeto de atentos cuidados, que todas aquelas coisas mudas haviam sido as companheiras únicas de uma existência concentrada e solitária.

Nas paredes, sobre as pequenas prateleiras, muitos retratos, todo um cortejo moço e triunfante que passava ao longe.

Exalava-se daqueles objetos tão esmeradamente cuidados, um vago, um indistinto perfume de saudade, como de um herbário de flores secas, colhidas entre risos de cristal, nos dias radiantes da primavera...

Os pequenos então, com a sua inconsciente crueldade infantil, faziam mil perguntas, impacientes, curiosas...

— Quem era esta menina, tia Izabel? Tem um vestido de seda decotado e na mão um malmequer que está desfolhando. Como ela cisma tão embevecida! Em que cismaria ela, minha tia?

— No futuro!... respondia ela sorrindo com o seu belo sorriso intraduzível em que havia talvez muitas saudades.

— Que é feito dela? Era sua amiga, não era? Porque é que a não vem cá ver nunca?

— No princípio veio, depois casou-se; o marido levou-a a viajar, foram muito longe, divertiram-se, provavelmente ela esqueceu-se. Quando voltou trazia um filho, um bebê louro e cor de rosa como o teu irmãozinho Arthur. Só o vi uma vez. As crianças absorvem muito as mães, por causa delas esquecem-se de tudo, até das amigas da infância. Hoje só sei que é muito feliz, e quando tenho saudades olho para o retrato dela!... Fomos tão amigas!

E calava-se baixando os olhos, receosa de que a vissem contemplar com demasiado enlevo os dias que já não podiam voltar.

Todos aqueles retratos tinham uma história.

Aquele cortejo de juvenis visões louras, morenas, travessas ou melancólicas faziam parte do passado, por isso lhes queria tanto.

Umas tinham casado, eram felizes, viviam absorvidas pelo divino egoísmo da família, todas entregues ao bem estar dos seus, aos interesses, às alegrias, às dores do seu pequeno círculo de afetos.

Outras tinham morrido; eram as que ali nos apareciam mais pálidas, com um vago reflexo de luz febril nos olhos pasmados e pensativos.

Tinham morrido na plena florescência do seu imaginar juvenil, levando para a cova, como levariam uma flor ainda constelada pelos orvalhos matinais, a doce quimera que nenhum sopro brutal lhes havia desfeito.

Fecharam os olhos cercados por todas as aparições fúlgidas, que envolvem a mocidade como num círculo de estrelas, e foram despertar — quem sabe! Noutras regiões de que ninguém ainda voltou, do sonho feliz que haviam começado na terra.

Não eram essas as menos bem-fadadas.

Ela, porém, ficara só.

Porquê?

Condenação de que não conhecia o implacável segredo!

Também fora moça, também tivera crenças, esperanças, pequenos sobressaltos de amor próprio, efêmeras vaidades de quem se julgara querida!

Estremecera muita vez, ao sentir abrir uma porta, ecoar um passo ligeiro e firme nos vastos corredores, vibrar uma voz viril, grave e terna!

Tivera rubores súbitos, sentindo pousar na sua fronte branca, a luz de um olhar quente e caricioso; colhera uma rosa, prendera nos cabelos um cacho de madressilva, vestira um dia um certo vestido branco, cheia de alegria, agradecendo a Deus ter feito a vida tão boa, o céu tão azul, o cheiro das árvores tão penetrante e tão sadio!

Olhava neste tempo para as crianças, beijava-as como a ensaiar as graças da maternidade, fazia-lhes festas, pensando que também havia de ter um dia uns pequeninos como aqueles, que lhes havia de querer muito, e leva-los a passear, seguida pelo olhar invejoso das outras mães... cujos filhos seriam forçosamente feios.

Então consultava consigo mesma o sistema de educação que adotaria, e o modo porque os havia de vestir, e concluía vendo-os entrar para a Universidade, num dia de muitas lágrimas e de muitos dilaceramentos, altos, esbeltos, um pouco altivos, com um buçozinho louro, apetitoso como a penugem de um pêssego mal maduro.

Foram-se-lhe dias e dias neste sonhar que a entretinha, como a leitura de um romance cujo interesse nunca afrouxa.

Um dia, porém, por acaso viu-se ao espelho, e despediu-lhe o seio um grito de angústia.

Despontava-lhe entre os fartos cabelos louros, o primeiro cabelo branco, um fio de prata, tênue, quase imperceptível, uma coisa em que ninguém reparava.

Reparou ela.

Reparou também nesse momento que todas ou quase todas as companheiras tinham casado, que muitas das suas ilusões se tinham desfeito às ásperas nortadas da realidade, que se ia sentindo na vida muito só.

Teve umas horas de luta, de revolta, quase de desespero.

Alguém, ou alguém invisível em que ela sempre acreditara, mandou-lhe a força, porque lhe mandou a resignação!

Quando o pai lhe morreu veio para casa dos irmãos, e pouco a pouco achou em si a fonte de todas as riquezas misteriosas, que espalhava pelos afetos que o seu coração adotou!

Eis pouco mais ou menos a história da tia Izabel.

Fonte: Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880. Convertido para o português atual por J. Feldman. Disponível em Domínio Público.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) – Capítulo 22: Desobediência

Enila acordou bem disposta e com uma ideia fixa: “ - Hoje eu vou cavalgar. E ninguém vai me impedir.” E foi o que fez após o café. Correu até o estábulo, escolheu um baio já meio antigo, mas forte, robusto. E partiu para apreciar a paisagem, que já conhecia até os detalhes, mas que agora parecia mais bela. O céu, os campos, as flores, ganharam mais cor. Esse é o efeito das novidades que agradam: parecem cintilar tudo o que está acerca da pessoa. Às vezes, quase ofuscam o olhar e fazem enxergar além do infinito. Já, em outras ocasiões, cegam, colocando vidas em iminentes riscos. 

As novidades são como espelhos, portais mágicos, que podem libertar ou aprisionar. Mesmo assim, todos querem, porque rotina cansa. E não há problemas nisso, só não se pode esquecer dos perigos que podem surgir de algumas novidades... 

A cavalo, Enila percorreu toda a fazenda, e fora dela. Foi até o armazém do seu Feliciano, encheu uma sacola de doces, voltou para a estrada retomando a montaria. “- O que deu nessa guria?” – pensou o dono do armazém, que não lembrava ter visto a moça a cavalo, ainda mais desacompanhada, sorridente, comprando doces.

Enila foi até um vilarejo próximo, onde viviam famílias muito carentes para presentear as crianças. O lugar ficava um pouco afastado das atividades das fazendas... Algumas crianças estavam a brincar na rua... Os meninos a jogar futebol, e as meninas a se entreter com bonecas velhas. Ao vê-la se aproximar, a gurizada pausou as brincadeiras, já que não costumavam receber visitas com aparência de gente rica. 

Enila os cumprimentou, buscou saber quem eram as mães dos piazidos* e fez a distribuição dos doces, os quais receberam com brilho nos olhos e largo sorriso.  Um dos meninos disse para os outros: “Acho que faz quase um ano que não ganhava doces tão gostosos.” Enila escutou, e uma lágrima de emoção escapou do seu olhar, rolando ligeira em sua face cheia de ternura. Já ouvira falar daquelas famílias, a maioria descendentes de ex-escravos, sem trabalho, sem padrinhos, viviam apenas do pouco que podiam plantar no terreno de casa. Pedaços de chão que não lhes pertenciam de fato, mas que não comprometiam o espaço ocupado pelo gado ou pelas plantações. Todavia sabiam que a qualquer hora algum dono poderia pedir que se retirassem. Então, além de conviverem com a pobreza, com a falta de estudos, já que ali não havia escola para as crianças, ainda tinham de suportar o temor de irem parar na rua, sem terem para onde ir.  

De tempos em tempos algumas pessoas formavam mutirão para levar cobertores e cestas básicas aos necessitados, mas esse tipo de evento solidário era raro, portanto, pouco esperado pelos moradores do lugar. 

Enila ficou perplexa com o que viu. E pensou em aliar-se à Isadora para ajudar aquelas famílias.

Ao se despedir, uma senhora, aparentemente muito idosa, com suas frágeis mãos trêmulas tomou o rosto de Enila e beijou sua testa. - “Obrigada por lembrar da gente, ‘fia’!” – disse ela, baixinho. Aquela senhora escondia, entre rugas profundas, um olhar profundo... Um poço escuro que parecia conhecer todas as dores do mundo. Com o coração acelerado e nó na garganta, Enila montou o cavalo e tomou o caminho de volta para casa. Repentinamente o animal ficou arisco. E a moça, sem conhecer as artimanhas para contê-lo, precisou fazer algumas paradas. Teve que fazer parte do trajeto a pé. 

Em casa, deram por sua falta. Seus pais estavam tensos. E Vó Gorda pediu ao capataz que verificasse se todos os cavalos estavam na fazenda. 

- Vá depressa, Arlindo – disse ela. 

- Qual o porquê de tanta preocupação? - a patroazinha deve ter se perdido das horas conversando com a amiga, logo retorna. 

- Eu vi... – disse a Vó em tom de suspense.- 

– Viu o quê?  - perguntou o senhor Fiore. 

- A guria Enila ainda era pequena quando me veio a visão de que ela não poderia montar cavalos. Caso desobedecesse, poderia sofrer um grave acidente. 

– Bobagem, Vó, esses “presságios” são alucinações. Nada disso é verdade – retrucou o capataz Arlindo. 

- Isso não importa agora. O que interessa é que minha filha nunca some por longas horas. – disse dona Eliana. 

- De toda forma, vamos verificar se há algum cavalo ausente. – disse o senhor Fiore a Arlindo. 

Ao darem pela falta de um dos cavalos mais bravios, eles se entreolharam, pegaram o jipe e partiram em busca de Enila, que é encontrada sozinha caída no meio da estrada. 
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* Piazidos: termo usado no sul do Brasil, que significa meninos pequenos, moleques, piás. 
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continua…

Fonte: Texto enviado pela autora. 

domingo, 12 de novembro de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 14

 

Mensagem na Garrafa – 32 -


 Francisco Cândido Xavier
Pedro Leopoldo/MG, 1910 - 2002, Uberaba/MG

O Que é Solidão

Solidão não é a falta de gente para, conversar, passear, namorar ou fazer sexo… 
isto é carência.

Solidão não é o sentimento que experimentamos pela ausência de entes queridos que não podem mais voltar… 
isto é saudades.

Solidão não é o retiro voluntário que a gente se impõe às vezes para realinhar os pensamentos…
isto é equilíbrio.

Tampouco é o claustro involuntário que o destino nos impõe compulsoriamente, para que revejamos a nossa vida… 
isto é um princípio da natureza.

Solidão não é o vazio de gente ao nosso lado… 
isto é circunstância.

Solidão é muito mais que isto… 

Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 96

Música e poesia nasceram com o homem. São divindades absorvidas pelo espírito humano desde priscas eras, fundidas em prosa-verso-melodia.

Lembremos do poema lírico, do latim "lyricu", uma composição para ser cantada.

Recorde-se que na Idade Média "trovador"  e "menestrel" eram sinônimos de poeta.  Na Idade Moderna houve alguma distinção entre música e poesia, mas a música nunca abandonou a poesia, nem a poesia abandonou a música.  Grandes músicos e escritores jamais abandonaram essa dupla magistral.  A MELOPOÉTICA  (grego melos = canto + poética) é companhia eterna do ser humano.

É mais do que verdadeiro que o Brasil é um ninho imenso de musicalidade associada com poesia, e então vamos lembrar de nacos, lampejos, pedacinhos que são verdadeiros quase-poemas das músicas do sul da pátria.  Fragmentos preciosos.

Envolvem e encantam.  Assim :

Pagar para o tempo a usura dos dias.
Aroma das flores entrando nas frinchas.
Um açude de taipa arrombada. 
Essa luz que algumas mulheres têm por dentro.
Sinto ciúme do silêncio grande que mora comigo.

Na voz do vento geme a voz de uma saudade. 
Arranchei no campo e acaranchei no rancho.
São tão parecidas as almas e as plantas.
O açude vazou nos olhos.
O vigor vem da raiz que alimenta o ideal.  

São largas minhas penas como as noites são largas. 
Na voz do vento cantava um catavento.
Talvez as formigas me contem um segredo.
Nos teus olhos o regalo das aguadas.
Saudade é um silêncio guardado pela alma.

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Luiz Damo (Trovas do Sul) LI

 Pode ter razões de sobra
pra fazer parte da história,
quem faz da vida uma obra
e ao lê-la a sua memória,
= = = = = = = = = 

O denso lençol bordado
que o céu na noite estendeu,
seja o teu lenço estrelado
que o sol, sem ônus te deu.
= = = = = = = = = 

Se ao mar tens a sensação,
de ondas tão descontroladas,
o que vês, nada mais são,
que as gotas acumuladas.
= = = = = = = = = 

Há quem fale com destreza
como um trovão ao chover
e há quem abra a boca à mesa
só quando senta a comer.
= = = = = = = = = 

Não vivamos de lamentos,
nem de sonhos tão banais,
tudo à vida são momentos,
momentos, ...e nada mais.
= = = = = = = = = 

Passa o tempo e acelera
o processo da chegada,
há quem depressa, exagera,
deixando a vida na estrada.
= = = = = = = = = 

O interesse pela ação
vela a chave do segredo,
alguns veem a solução
mas de agirem guardam medo.
= = = = = = = = = 

Não tem perfeição maior
que a plenitude da vida,
viver cada vez melhor
é missão a ser cumprida.
= = = = = = = = = 

A tempestade, no mar,
sequer aos peixes, assusta,
mas quem vive a navegar
sente à dor o quanto custa.
= = = = = = = = = 

Quem se perde à noite escura
ganha a chance de voltar
à origem, fim da aventura,
quando o sol volta a brilhar.
= = = = = = = = = 

Perder tempo ninguém quer,
nem com ele esmorecer,
sem um proveito qualquer
que faça algo enriquecer.
= = = = = = = = = 

O intelecto fulge mais
quanto menos sombra houver,
das carências sapienciais
em cada homem ou mulher,
= = = = = = = = = 

São tantos apontamentos
nos diários da memória,
lidos por muitos talentos
noutros momentos da história.
= = = = = = = = = 

Os bens que sonhas ou buscas,
não se encontram no alto-mar,
se ocultos é porque ofuscas
a luz que vem do teu lar.
= = = = = = = = = 

Sob o teu manto sagrado,
ó Mãe, guarda os filhos teus!
Preservando-os do pecado
e conduzindo-os a Deus.
= = = = = = = = = 

A imagem perde o sentido
se um borrão lhe for incluso
e o valor, antes mantido,
perde a cor, fica confuso.
= = = = = = = = = 

O homem, quando à lide opina,
julga-a mal ou se atrapalha,
mas a justiça divina
nunca tem postura falha.
= = = = = = = = = 

No caminho, rumo à paz,
lapidamos nosso ser,
o afã de crescer, nos faz
peregrinos do saber.
= = = = = = = = = 

Seja a vida o bem primeiro,
que deve ser preservado,
quem se vende por dinheiro
não vale o que tem comprado.
= = = = = = = = = 

Vejo à vida um nobre enredo
que a muitos causa revolta,
quem parte fica com medo
falta a passagem de volta.
= = = = = = = = = 

Tudo, hoje, do homem requer,
mais do que uma enciclopédia,
acaba, em lixo qualquer,
quem for inferior à média.
= = = = = = = = = 

Existem muitas estradas
que podemos palmilhar,
algumas pavimentadas
e outras faltam ladrilhar.
= = = = = = = = = 

Pode a criança não ter
a mais plena liberdade,
mas pode bem entender
o sentido da verdade.
= = = = = = = = = 

É na fonte da cultura,
manancial a efervescer,
que, sedento, o ser procura
a água viva do saber.
= = = = = = = = = 

A água da chuva, torrente,
carrega às margens da estrada
tudo e debaixo da ponte
passa como uma enxurrada.
= = = = = = = = = 
Fonte: Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021. Enviado pelo trovador.

Amadeu de Queiroz (Chão de terra preta)

Antigamente, no tempo dos bugres, certo caçador que andava com outros pelo mato atirou a um macuco encontrado perto de um córrego sem nome. Daí por diante todas as vezes que os caçadores queriam se referir ao dito córrego, diziam: " O Córrego do Macuco". Por essa forma, o nome da ave passou para a água corrente, foi ficando e ficou até hoje.

Tempos depois, um roceiro, que veio de longe, comprou terras servidas pelo Córrego do Macuco, e ali fez uma casa - casa de pobre - para seu abrigo: a  companheira e mais cinco crianças. À beira do córrego, pai e mãe, criaram a família - os filhos na enxada, as filhas na enxada e no fogão, e logo que deram conta da tarefa, os dois velhos morreram. Os herdeiro repartiram a terrinha entre si e como tocou quase nada a cada um, cada um vendeu a sua parte e gastou o dinheiro para começar a vida. As filhas se casaram, os filhos saíram mundo afora, procurando trabalho e mulher; menos o Chico, que se casou com  com gente da vizinhança e ficou  teimando no seu pedaço de chão, até o dia em que lhe nasceu o segundo filho, um menino.

Nessa quadra da vida, deu-lhe tanta doença em casa, a ponto de passar um ano sem trabalhar, e gastando. Por fim, quando os doentes sararam, viu-se endividado até os cabelos e teve de vender o chão e o rancho, para  pagar os empréstimos.

Do pouco que possuía, só salvou o crédito, o mais  perdeu tudo, até o nome que o pai lhe deixou: o córrego  pegou-lhe, para sempre, o nome que, por sua vez, recebera de um macuco. A princípio era chamado - o Chico, do Macuco: - depois - Chico Macuco, e por fim, só Macuco....

Mas de seu, ficou ainda com muita coisa - ficou com a obrigação e com a necessidade. Então, passou a mão na enxada, arrastou a  família, foi morar em casa alheia e trabalhar no chão dos outros...Foi dar a troco de um jornal de miséria, toda a força dos braços e tudo que é tempo de luz no dia, só guardando para si as sombras da ave-maria e o escuro da noite.

E passaram muitas luzes e sombras, muita escuridão passou enquanto o jornal ia ficando no mesmo ser e a família nas mesmas privações. Mas, ao tempo que o camarada Macuco descansava um pouquinho, ia olhando à roda de si e, com o passar dos dias, foi à lavoura de todas as plantas, a conhecer a força das terras, a tirar proveito do ajutório do sol e da chuva.

O fazendeiro gostou do camarada, lhe deu casa, lhe deu serviço, e pagava pontual. A casa era de sapé, ficava na vertente, numa chapada da grota, à beira de uma terra preta, gorda, em que ninguém nunca plantou. Não tinha horta nem arvoredo nem cercado em torno, tinha a bica d'água à porta da cozinha, perto do mamoeiro velho esgalhado. O mamoeiro fazia as vezes de galinheiro, a galinha de pintos deitava-se debaixo dele; o ninho de jacá estava pendurado nele; toda a criação dormia empoleirado nos seus galhos e se abrigava do sol ou da chuva embaixo da sua folhagem.

A casa tinha dois quartos e cozinha; os quartos se encheram com as camas e com a canastra frasqueira, a cozinha ficou vazia, era maior, dava para o fogão e para se morar. Mas, porém, tudo era pobreza e pouquinho.

De manhã cedo, a menina e o menino iam à fazenda buscar o que era preciso - leite, couve, cebola de folha. Leite vinha por paga, o mais era dado; ovo, sempre havia algum em casa.  A fazenda não ficava longe, as crianças iam sozinhas, mas era tão pequenas, que se sumiam no meio da estrada. A menina ia indo, carregando o caldeirãozinho, parava, olhava para trás e andava outra vez, arrastando os pés, sem brincar, sem falar, o menino fazia a mesma coisa mascando a ponta dos suspensório de tira de pano...

Nestas aperturas, o roceiro Macuco entendeu de dar um jeito na vida para poder vestir a família. O ganho não lhe deixava sobra: na vila só comprava mantimentos para a semana e, as vezes, um doce para as crianças: três biscoitinho de amendoim, duros e velhos, mas o roceiro não perguntava a idade deles, perguntava o preço.

- Três por duzentos réis? Ota!

- ...Mãe, o que é que tem em riba do doce?

- Açucre.

- Açucre antão é duro? Boba...

Quando a precisão era grande, comprava também algum remédio, pouco porém. Se um bicho venenoso mordia as crianças e elas metiam as unhas, tostava um folha de mato chimango e punha em cima da inflamação: se as bichas alvoroçavam, aplicava na barriga das crianças um emplastro de erva mentruz; se a mulher sentia dor de cabeça amarrava na testa um lenço molhado em pinga com cânfora; se ele, Macuco, ficava mofino, amarrava só um lenço na cabeça e aguentava...Mas de qualquer jeito precisava vestir a família, então  pedia a Deus forças para trabalhar, mas a força brota da terra, entra pela boca, enche o peito, sai pelos braços, desce pelo cabo da enxada e entra na terra outra vez.

Ao anoitecer, o roceiro Macuco voltava para casa, com a enxada no ombro, carregando o peso da canseira aí se encontrava com a mulher, que também ia indo com as crianças, cada uma carregando o seu feixe de lenha, e todos seguiam, juntos sem dizer uma palavra...

De tanto maturar, teve uma ideia que dava esperança: plantar um fumo, na chapada da vertente, em redor da casa, de meias com o fazendeiro. Plantação alqueire de chão, pouco mais ou menos. Então, foi procurar o dono da terra, o fazendeiro, e explicou-lhe:

O chão é de boa face; a terra é própria; está em roda da minha casa; a mulher me ajudando, nós dois podemos tratar vinte a vinte e cinco mil pés de fumo, que é mais que pode levar o dito chão. O senhor me adianta as despesas e, no fim, nós partimos. O lucro é bom, mas o seu há de ser melhor porque o fumo dá soca e, a terra sendo boa, a soca também é - dá bem e serve bem o que dá. Ainda, por cima, a terra do fumal fica mais estercada, mais macia; as folhas velhas do fumo, a bagaceira dos talos, das velhas, que a planta vai largando, tudo engorda a terra que, depois, dá com fartura, sem trabalho. 

Macuco fez a sua proposta, explicou tudo muito bem, induzindo o fazendeiro a experimentar a meação na lavoura do fumo. O dono só entrava com a terra e abria um crédito ao meeiro; mesmo assim titubeou, imaginou, perguntou tanta coisa, e deixou a resposta para mais tarde. Mais tarde aceitou com uma dose de interesse e um pouquinho de desconfiança.

- O que for da fazenda, eu vou te fornecendo e assentando; para o que a família precisar - mantimento, remédio e roupa - eu te dou um crédito na vila; na apuração do negócio, você paga tudo o que comprou. Está combinado: é negócio a meias; tiradas as despesas, parte-se o lucro, a soca me pertence, fica de fora. Contrato escrito, não é preciso, nós somos de fiança um para o outro.

Acertaram. Macuco deu parte à mulher e como já era mês de agosto caiu, sem demora, em cima da terra. Primeiro, formou os canteiros para a semeadura, depois, colocou por cima deles uma camada fina de gravetos, folhas secas e lenha miúda; ateou fogo em tudo e, logo que a queima se acabou, os canteiros ficaram cobertos com uma camada de cinza. Deixou esfriar a cinza, espalhou esterco de curral por cima e revirou a terra na fundura de meio palmo. Assim, a terra ficou pronta para a semeadura, livre de pragas e das sementes do mato daninho.

Até chegar setembro - o que é o tempo de semear-se o fumo - Macuco voltou a capinar a roça, e capinou quatro semanas a fio. O tempo chegou, ele mexeu aplainou a terra, semeou a sementes nos canteiros, que a fechou a meia altura. para evitar o estrago das galinhas. Até passar dois meses - prazo que a planta pede para nascer e ficar no ponto de mudar-se - Macuco e a mulher levaram os dois meses no serviço da enxada, pois, quando iam chegando ao fim, voltava ao princípio, para repassar a capina.

O chão era grande, o tempo curto, mas o mato era maneiro e a paciência muita, para aguentar a mesma labuta todos os dias, e todos os dias o mesmo tempo: solão desde manhã até de tarde, sem chuva para refrescar a terra, sem nuvem para tapar o sol..

A noite já dava sinal, e o roceiro Macuco ainda lavrava a terra para a lavoura de meação. A mulher estava ao lado dele e batia enxada também, ajeitando a capina, ajuntando um monte num lugar, outro mais adiante. O menino e a menina trouxeram o fogo para queimar o cisco. O chão estava limpo em derredor, o céu também estava, a fumaça branca subia das fogueiras, acompanhando a viração.

O roceiro trabalhava calado, reparando; só existia para a enxada e para o silêncio; a vida se lhe concentrava em torno, não tinha olhares distantes...Tudo quanto lhe pertencia estava a seu lado: a mulher, os filhos, o cachorro, o fogo e as galinhas ciscando adiante da sua enxada - seu lar vinha trabalhar com ele, e se espalhava pela terra da sua lavoura.

Macuco suspendia o trabalho, deixava cair, a um lado do peito, o cabo da enxada na palma da mão - amarelo como cana de reino - cuspia na palma da mão - amarela e lustrosa - e olhava o ar... Todos os homens que trabalham a terra tem olhar sem vida;  os outros não. Uns tem olhar de espanto ou de mistério; outros de sonho ou da mágoa; outros de indiferença ou desengano; o trabalhador da terra tem olhar de espera...

Quando o sol se escondia, as galinhas era as primeiras a se recolherem ao seu mamoeiro, depois, a mulher com as criança e o cachorro, e por último, o roceiro Macuco. Pela terra, a tarde espalhava as sombras, e os últimos ventos do inverno espalhavam a fumaça branca das fogueiras de cisco.

A mulher acendia a lamparina de querosene, as crianças lavavam os pés na gamela d'água, comiam leite com farinha e iam se deitar na mesma cama, assim como vinham da capina; o roceiro e a mulher, lavavam os pés na mesma água, bebiam uma tigela de café com rapadura e farinha e iam dormir na mesma cama, assim com vinham da terra... O cachorro pulava para cima do fogão e ninguém ouvia o ressonar do homem nem o rosnar do cão, porque o roceiro cansado tem sono de pedra e o cachorro magro, esfomeado não rosna.

Daí a pouco clareava o dia; o roceiro Macuco abria a porta para a   luz entrar: as galinhas desciam do  mamoeiro; uma neblina rasteira cobria a terra preta da campina. O trabalhador bebia outra tigela de café com rapadura e farinha, batia a pedra, soprava na isca, acendia o cigarro, pegava na enxada e voltava para a terra. Ia sozinho, que os mais ficavam em casa - a mulher e as crianças - cada um com a sua a tigela, e o cachorro com um pedaço de angu frio; as galinhas, por sua conta, procuravam o que comer.

O tempo estava firme, o sol subia, rendia o serviço do roceiro, e a mulher mexia o almoço. A menina permanecia de cócoras ao pé da porta da cozinha, imóvel e calada, depois, se levantava, coçava a cabeça, espreguiçava e ia se  acocorar mais adiante. O menino cortava um gomo de mamoeiro para fazer um pito comprido; neste meio, um pássaro preto cantava no pinheiro seco, o menino tirava o pito da boca, assobiava, arremedando o passarinho, e os dois ficavam cantando juntos.

No caldeirão de ferro, desde cedinho, já se cozinhava o feijão, e a mulher punha ao lado dele a panela de barro, de fazer arroz. Mexia um pouquinho cada qual, dava uma voltinha, atiçava o fogo, espiava dentro das panelas e ia se encostar à porta do terreiro. Ficava olhando o Chico, parado no meio do terreno preto, descansando um pouco. O marido, com chapéu de palha rasgado, enfiado na cabeça, a roupa pendurada no corpo, mal comparando, imitava um judas de espantar passarinhos de arrozal...Voltava ao fogão, mexia outra vez a panela de arroz, picava as couves e ia buscar os torresmos.

Pouca panela, pouca comida, trabalho pouco - logo o almoço ficava pronto. A mulher dava mais uma voltinha, empilhava três pratos de folha, à beira do fogão, e gritava pelo Chico. E assim que o marido chegava, cada um recebia o seu prato, a sua colher, cada um ia se acocorar num canto da cozinha, e ninguém dizia uma palavra. A mulher servia o prato seu, dela, e ficava de pé, encostada ao fogão, comendo. O cachorro, sentado sem se mexer, olhava o prato do menino, depois, olhava a menina; por fim, olhava só para a mulher e ficava, com os olhos compridos, esperando.

Os pratos de folha se empilhavam de novo à beira do fogão; o roceiro Macuco puxava um tamborete, sentava-se, olhava a mulher e dizia:

- Agora, vamos descansar um pouco...

Lá fora, o joão-bobo cabeçudo vinha voando com a sua companheira, pousavam no mesmo galho da árvore e gritavam simultaneamente, um ao outro; " Currupiro!" "Currupiro!" Depois, se achegavam, corpo com corpo e ficavam imóveis, bem juntinhos...

O roceiro Macuco não afrouxou na labutação nem perdeu a hora do dia, afora os domingos, que tinha de ir à vila buscar mantimento e querosene, tudo fiado. O fazendeiro respondia pelos seus gastos, é certo, mas precisava ter sempre dinheiro para comprar uma ou outra coisa de necessidade. Então, vendia frangos, ovos, juás, pinhão, fruta e tudo quanto o fazendeiro deixava tirar do mato, sem apagar.

E foi indo nessa toada, até preparar a terra e chegar o tempo da plantação das mudas. Aí ele e a mulher não largaram mais o chão - abrindo cova e plantando, abrindo cova e plantando. Os dois ficaram tão mestres na abertura das covas, que conservavam, entre uma e outra, a distância certinha de cinco a seis palmos, o que era preciso ser feito, por via de ser a terra de boa qualidade.

O plantio pedia muito cuidado: só se aperta, na terra, a raiz e não a haste; portanto, para ajudar, eles ensinaram os filhos, e os filhos plantavam com delicadeza e perfeição, que as mãos das crianças não tinham tamanho nem força para machucar as plantas novas.

O tempo corria bem todos os dias, e assim que o campo ficou plantado, choveu uma chuva mansa, fresca, criadeira, as mudas se firmaram nas covas, as folhas se aprumaram e principiaram a crescer à vista dos olhos.

O roceiro e a mulher redobraram de cuidados e de interesse, tratando com enxada a terra da plantação, removendo a areia das covas e qualquer outra coisa que pudesse prejudicar o desenvolvimento da planta. Os filhos continuavam aprendendo e ajudando; sabiam apanhar as folhas que iam morrendo e secando, na parte inferir dos pés de fumo, a arrancar o mato com as mãos, sem ofender uma folha que fosse.

Toda a gente pensava só no fumal, e ninguém viu que o fumal tomou conta da terra, cresceu, cresceu gordo, mole, viçoso: tinha pé do tamanho de um homem, tinha folha larga, de mais de gêmeo. Nem um pé falhado, nem um folha praguejada. A terra preta, macia e boa, criava, por igual, o fumo, planta que quer força do chão para vingar.

O dono da terra foi ver a lavoura, andou abaixo e acima, espiando aqui e ali; calculou, com uma olhada, o valor da colheita, gostou do que viu mas não disse nada. O roceiro Macuco, que estava junto el, também e calava. Por fim, ao voltar para a fazenda, o homem disse isto:

- Como é que vai o seu gasto, na vila?

- Vai indo, eu compro só meizinha e mantimento...

- É isso mesmo. As coisas estão ficando ruins, a gente precisa minguar as despesas...

O fumal começou a apendoar; as flores tinham pressa de nascer; então, marido e mulher deixava o trabalho e se recolhiam, esperando que também os botões apontassem logo.

O pai, a mãe, os filhos, levantavam-se ao romper do dia e iam para a desponta; almoçavam e iam para a desponta; de noite, deitavam-se para dormir, com os dedos doloridos de tanto despontar, de tanto arrancar um botãozinho tão mole e tão mimoso!

E assim, despontaram muitos mil pendões; os dias foram passando, e chegou o tempo da desolha - que é o trabalho de se tirarem os brotos que nascem entre as folhas e a haste - trabalho incessante porque o fumo brota sempre. Enquanto o broto é novo, se quebra facilmente com os dedos por isso as mulheres e as crianças ajudam muito; mas é preciso se desolhar com cuidado, para não maltratar as folhas.

As crianças aprenderam o serviço, e cedinho já iam para a lavoura. O fumal mandou na casa; levou a gente do roceiro para o seio da sua folhagem; governou a boca e a força da família; mandou em toda a gente, e toda a gente lhe mostrava respeito e amizade, porque não parava nem se cansava.

A mulher e o marido já não trabalhavam pensando só no ganho, no lucro prometido; a ambição deles era também a ambição do pai que quer ver os filhos criados; do criador que quer criar o seu gado; do trabalhador que  deseja concluir sua obra. Macuco percorria o fumal, examinava pé por pé; todos eram irmãos, cresceram juntos, porque a força era igual naquela terra e tanto. E o roceiro quedava, olhando o chão preto, fincava no chão o dedo grande do pé e remexia, com ele, a terra fofa, como se fosse um porco foçando.

A terra, ao redor das plantas, estava coalhada de borboletas arrancadas. A mulher e as crianças tosquiava, tosquiavam, até ficaram com as mãos amortecidas, com um mau jeito nos pulsos, com as unhas descarnadas, doídas, de tanto quebrar o brotinho...

- Corta, gente! 

-  Dói, mãe...

- Corta, gente!

Dessa maneira foram arrancadas milhares e milhares de borbulhas, até se acabar o ano e começar o outro. Mas antes que viesse a colheita, o meeiro Macuco tratou de construir o rancho, livre de sol e de chuva, com os seis andaimes para a seca das folhas do fumo. O rancho era coisa simples: quatro esteios de pouca altura, um pau de cumeeira, uma coberta de sapé, dos dois lados, até o chão, e dentro, os varais para se estenderam as folhas colhidas. Como na fazenda não havia sapé para a coberta, o fazendeiro mandou cortar no vizinho, e pôs na conta das despesas: a madeira - meia dúzia de varas - foi tirada ali mesmo...

Chegou o mês de maio, As folhas da parte inferior dos pés de fumo começaram a amadurecer tomando uma cor amarelada ao mesmo tempo que a parte de cima - a feição da folha - ficava toda empipocada.

Principiou a colheita. Enquanto o roceiro limpava a cultura - que a colheita se deve fazer no limpo - a mulher apanhava as folhas de vez, que as crianças iam transportando para o rancho...

- Mãe, ocê é que nem formiga.

- Ocê é que nem formiga-carregadeira...

A colheita se faz aos poucos, e leva tempo - cada pé dá duas, três e mais apanhadas. As folhas vão sendo penduradas nos varais do rancho, onde ficam uns cinco dias, para depois se tirar, com todo o cuidado o talo de cada uma. O talo cai com facilidade, basta dobrar a folha sobre ele mesmo para logo se separar.

Então se faz a torcida, o cordão e, por fim, o rolo, que se entrega ao fabricante.

O fazendeiro foi passear na roça para ver a a colheita e, decerto gostou porque se mostrou conversando. Aí, o Macuco lhe disse que não podia dispensar o ajutório de camarada. O fazendeiro concordou, e resolveu mandar ver por conta da meação um prático no serviço de torcer e de encordoar o fumo.

Logo depois, veio um prático trabalhador e diligente. A apanha levou um avanço; as crianças aprenderam, também, a estender e destalar as folhas e, desse modo, todo o mundo trabalhava em tudo, e tanto trabalharam que um dia a colheita se acabou, todas as folhas foram torcidas, encordoados, enroladas e entregues ao fabricante.

O fumal ficou que era vara só...

No mês de julho, o fabricante deu conta do fumo, preparado e enrolado, A quadra era boa; o fazendeiro aproveitou e vendeu bem  num lote só. Mandou tirar as contas do Macuco tanto as da vila, com as da fazenda; descontou as despesas feita; apurou a rendição e acertaram o trato. A parte que tocou a cada um foi de um conto e muito, quase dois. A do fazendeiro saiu inteirinha, e a do roceiro. Macuco, descontadas todas as despesas, deu-lhe para salvar um jornal de cinco mil e quinhentos - não se contando o ajutório da mulher - com uma sobra de setenta e cinco mil réis...

O fumal produzira com abundância de compensar, mas o trabalhador ficou na mesma. A meação só lhe deu para viver um ano, com jornal um pouquinho melhor que jornal de enxadeiro... Está certo. A mulher e as crianças ficaram doentes, a família teve de comer e o dinheiro num ano subverte-se.

O fazendeiro não explorou trabalho de ninguém, com maldade ou com imposição, fez negócio limpo e tratado. Não lhe cabia culpa pelo sucedido; tanto que, vendo o meeiro desapontado, sem lucro no bolso e pior de miséria, ficou com dó e lhe deu uns cem mil-réis, do seu bolso.

- Mas olhe que este dinheirinho que estou te dando não tem nada com o trato da meação. Trato é trato.

O roceiro Macuco recebeu o dinheiro, com os olhos no chão, sem dizer uma   palavra; por fim, levantou a cabeça e disse:

- E agora, o que eu hei de fazer?

- Pois, uaí! você continua aí, vai trabalhando de jornal: cinco mil-réis a seco. E já pode pegar, amanhã, na corta do fumal, para a soca.

O trabalhador não disse nada a ninguém, nem permitiu que ninguém lhe dissesse nada. De tarde, foi à bica, amolou a foice e, no outro dia cedo, principiou a cortar as hastes desfolhadas do fumal colhido. O fumal velho, podado em agosto, torna a se enfolhar, dá boa soca e seve bem o que dá...

A poda se faz conservando cada pé na altura de três quartos, mais ou menos. A princípio, o roceiro não cortava na medida certa, depois, pegou a toada e a foice ia e vinha, cortando as plantas na mesma altura. O homem, sem se interromper, avançava para a frente, para a direita, para a esquerda, golpeando com braçadas largas. Olhando de longe, parecia um possesso, de foice em punho matando a torto e a direita. Dir-se-ia que o lavrador enfurecido se vingava da planta. Mas o roceiro Macuco não era homem para destruir os frutos da terra, ele reconstruía a sua obra de lavrador...

Acabou-se a poda. quando a última vara caiu, o roceiro parou na orla do campo arrasado, cruzou os braços e, apoiando-se no cabo da foice, ficou matutando e contemplando.

À sua frente estende-se o chão preto, a terra limpa, seca, ouriçada: nem um fiapo de capim, nem um olho de broto espiando; cada pé de fumo podado virou um estrepe agudo. Mas as raízes estão vivas no fundo da terra, esperando que voltem as chuvas criadeiras do tempo das brotas; então, tudo vai outra vez nascer e verdejar, crescer e ocupar a terra erma. A soca vai cumprir a promessa do roceiro Macuco...

De repente a tarde entristeceu.

Pelos ouvidos do roceiro passa zunindo o vento que vem trazendo de longe uma nuvem cor de chumbo. Macuco levanta a cabeça e acompanha com a vista a nuvem escura que vai lenta pelos ares...

A ventania invade os matos, balanceia os pinheiros duros, fustiga desde a graminha até a perobeira que sobe céu acima, enche o espaço e vai levando, para mostrar mais adiante, a todos os trabalhadores da terra, a nuvem escura cor de chumbo, que prenuncia o tempo fecundo das águas.

Fonte: Contos da Tita. Disponível em Domínio Público.

Lucy V. Hay (Como Escrever um Mistério de Assassinato) – 4, final

CONTANDO A HISTÓRIA

1 – Inclua interrogatórios com os suspeitos em locais diferentes e aos poucos. 

O texto vai ficar chato se todos os interrogatórios acontecerem no mesmo lugar. Portanto, coloque os personagens em ambientes diferentes: a cena do crime, a delegacia de polícia, a rua etc.

2 – Dê ao leitor a chance de solucionar o mistério aos poucos. 

Você pode até citar uma impressão digital ou pilha de lanterna esquecida no fim da narrativa, mas isso é injusto com o leitor. Mostre todas as pistas a ele ao longo da história.

Por exemplo: diga que o assassino esqueceu a lanterna na cena, mas que tinha levado todas as outras coisas do local; mostre também os testes com as impressões digitais no acessório.

3 – Despiste o leitor. 

As pistas podem apontar para uma ou várias pessoas que pareçam candidatas perfeitas para o crime, mas que acabem sendo reveladas como inocentes. Essa tática é muito comum e você pode usar e abusar dela.

Por exemplo: talvez um dos suspeitos goste de fazer trilha no meio do mato e haja pegadas de terra na cena do crime. Na verdade, pode ser que essas pegadas sejam de uma mulher que passou no local com as solas dos sapatos sujas.

4 – Atenha-se fielmente ao enredo. 

Deixe sempre um gosto de quero mais ao longo do livro para intrigar o leitor. Lembre-se de que a narrativa é a sua arma mais importante e não se perca. Siga essa história do início ao fim.

Traga um elemento novo para a história a cada capítulo. No fim de cada trecho do livro, fisgue o leitor para ele continuar explorando o que aconteceu: apresente novas pistas que levem a um suspeito diferente, por exemplo.

5 – Inclua uma reviravolta no fim do enredo. 

Todo bom suspense traz uma reviravolta que pega o leitor de surpresa no final. Não pense em nada abrupto ou injusto, e sim que tenha lógica e esteja ligado às pistas que você soltou ao longo da narrativa.

Por exemplo: talvez as pistas indiquem que o assassino é o filho único de um milionário porque era o único com motivo aparente; no entanto, a verdade vem à tona: o homem teve uma filha fora do casamento e que também receberia a herança. Nesse caso, ambos se encaixam no papel de suspeitos.

O clássico Assassinato no Expresso Oriente, de Agatha Christie, também tem um belo exemplo de reviravolta. No fim, o leitor descobre que todos os suspeitos agiram em conluio para cometer o crime.

6 – Pense na inversão e na resolução após o clímax. 

Depois que o assassino for pego, reflita se os personagens mudaram para melhor ou pior e mostre-os retomando a rotina.

Por exemplo: talvez o detetive extrapole a linha da ética e decida deixar a profissão. Nesse caso, a nova realidade dele vai ser buscar um emprego. Pode ser também que o detetive não tenha experiência, mas acabe sendo promovido por resolver um caso tão complicado.

DICAS

Trace uma meta todos os dias. Você pode pensar em termos de palavras, como escrever 500, ou tempo, como três horas. O importante é se ater a essa rotina.

Leia obras consagradas do gênero suspense para se familiarizar com ele.

Referências
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https://www.thebalancecareers.com/top-rules-for-mystery-writing-1277089
https://www.thecreativepenn.com/2014/01/17/writing-crime/
http://elizabethspanncraig.com/mystery-writing-tips/writing-cozy-mystery-suspects/
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09/11/2023 00:43 Como Escrever um Mistério de Assassinato (com Imagens)
https://pt.wikihow.com/Escrever-um-Mistério-de-Assassinato 9/9
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http://www.springhole.net/writing/things-about-death-dying-and-murder-writersneed-to-know.htm
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