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segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Ambrose Bierce (O Capitão do Camelo)

Tradução de Octávio Marcondes

Ambrose Bierce (1842-1914 - Estados Unidos)
Criativo e crítico, escritor e aventureiro (ele foi lutar na Revolução Mexicana e acabou desaparecendo. Carlos Fuentes transformou-o em personagem no seu romance Nuestro Gringo), Bierce deixou uma obra diversificada, como o livro de humor em forma de dicionário (The Devils Dictionary), muito popular, além de fábulas modernas, contos e outros relatos. Aqui, escolhemos uma amostra de sua criatividade um conto de puro non-sense, no melhor tradição anglo-saxã.


–––––––––––-
O nome do navio era Camelo. Sob certos aspectos tratava-se de um barco extraordinário. "Media" 600 toneladas; mas depois de embarcar lastro suficiente para impedir que emborcasse como um pato morto, mais as provisões necessárias para uma viagem de três meses, era preciso ser muito meticuloso na escolha, tanto da carga, quanto dos passageiros. Uma vez, só para ilustrar, quando estava para zarpar veio um bote do porto com dois passageiros, um homem e sua mulher; eles haviam feito reservas no dia anterior, mas ficaram em terra para fazer mais uma refeição decente antes de se sujeitar ao "pé sujo de bordo", como o homem chamava a mesa do capitão. A mulher veio a bordo, e o homem se preparava para segui-la, quando o capitão, se inclinando na amurada, o viu.

- Bem - disse o capitão -, que é que o senhor pretende?

- Que é que eu pretendo? - disse o homem, se agarrando à escada. - Embarcar neste navio é o que eu vou fazer.

- Não, gordo deste jeito, o senhor não vai - gritou o capitão. - O senhor pesa no mínimo 120 quilos, e eu ainda não levantei a âncora. Ou vai querer que eu abandone minha âncora?

O homem disse que a âncora não era problema dele - que era como Deus o tinha feito (embora, pela sua aparência, desse a impressão que um cozinheiro tivesse dado uma mão ao Criador), e, por bem ou por mal, ele se propunha a embarcar no navio. Uma bela discussão se seguiu, mas finalmente um dos marinheiros jogou-lhe um colete salva-vidas, e o capitão, dizendo que assim ele ficaria mais leve, deixou-o embarcar.

Este era o Capitão Abersouth, anteriormente no comando do Atoleiro, o melhor marinheiro que alguém possa imaginar, sentado na murada da popa e lendo uma trilogia. Nada podia se igualar à paixão daquele lobo do mar pela literatura. Em cada viagem ele vinha com tantos pacotes de livros que não havia espaço para a carga. Eram romances no porão, romances no convés, romances no salão e ainda havia romances nos beliches dos passageiros.

O Camelo fora desenhado e construído por seu proprietário, um arquiteto do centro de Londres, e se parecia tanto com um navio quanto a Arca de Noé. Tinha sacadas e varanda; um beiral e portas na linha d'água. As portas tinham sinetas e campainhas. Em uma área tinha havido até uma tentativa fútil de se construir um navio. O salão dos passageiros era na ponte e coberto de telhas. A esta estrutura, com a aparência de uma corcova, o barco devia seu nome. Seu arquiteto havia construído várias igrejas (a de Santo Ignotus ainda é usada por uma cervejaria em Hotbath Meadows) e, possuído pela inspiração eclesiástica, dera ao navio um casco em forma de cruz, mas, descobrindo que as laterais atrapalhavam seu deslocamento na água, as removera, o que enfraquecera bastante a estrutura da quilha a meia nave.

O mastro principal era como um pedestal e no topo havia um cata-vento em forma de galo, de sua gávea se descortinava uma das mais belas vistas da Inglaterra.Era assim o Camelo quando me juntei à sua tripulação, em 1864, para uma viagem de descoberta ao Pólo Sul. Uma expedição sob os auspícios da Real Sociedade pela Promoção do "Fair Play". Numa reunião desta excelente associação, ficara decidido: 1 - que o favoritismo da ciência pelo Pólo Norte era uma indevida diferenciação entre dois objetivos igualmente meritórios, pela qual a Natureza já havia mostrado sua desaprovação castigando Sir Jonh Franklin e tantos outros de seus imitadores (o que era bem feito para eles); 2 - que esta empresa seria uma forma de protesto contra tal preconceito; e, finalmente, 3 - que nenhuma despesa ou responsabilidade devia reverter para a dita sociedade como corporação, mas que se criaria um fundo para o qual qualquer membro de forma pessoal poderia contribuir, se alguém fosse suficientemente idiota para isto (o que, justiça seja feita, ninguém foi). Aconteceu apenas que o cabo de amarração do Camelo arrebentou, num dia em que eu estava nele. O barco deixou o porto vagando com a corrente rumo ao Sul, debaixo dos insultos e imprecações de quantos o conheciam e, como eu, já não podiam voltar. Em dois meses ele cruzou o Equador, e o calor se tornou insuportável.

De repente começou uma calmaria. Tivéramos uma brisa perfeita até as três da tarde, e o navio vinha fazendo quase dois nós por hora quando, sem um aviso, as velas se inflaram ao contrário, isto devido ao ímpeto com que vínhamos, e então, quando ele parou de todo, as velas caíram, mais lisas que saia de mulher magra.

O Camelo não só parou por completo como começou um lento movimento de ré, rumo à Inglaterra. O velho Ben, nosso mestre, disse que calmaria igual só tinha visto mesmo uma, e esta, ele explicou, foi quando Pregador Jack, o marinheiro regenerado, se excitou demais num sermão e gritou que Miguel, o Arcanjo, sacudiria o Dragão de dentro do barco e faria o maldito provar a ponta de uma corda!

Nós permanecemos nesta situação deplorável boa parte do ano, até que, com impaciência crescente, a tripulação me delegou poderes de representação para procurar o capitão e ver se alguma coisa podia ser feita. Eu o encontrei, sob a coberta, entre um convés e outro, num canto empoeirado e coberto de teias de aranha, com um livro nas mãos. De um lado ele tinha, recém desembrulhados, três pacotes de "Ouida", do outro lado uma pilha de Miss M. E. Braddon que chegava à altura de sua cabeça.

Havia terminado "Ouida" e começara a atacar Miss Braddon. Ele estava muito mudado.

- Capitão Abersouth - eu disse, na ponta dos pés para poder ver por cima dos picos montanhosos de Miss Braddon -, o senhor poderia, por gentileza, me dizer até quando isso vai durar?

- Não tenho certeza - me respondeu sem tirar os olhos do livro. - Provavelmente eles vão transar pela metade do livro. Enquanto isso o jovem Monshure de Boojower vai entrar na posse de uma fortuna milionária. Então, se a bela e orgulhosa Angélica não vier atrás dele, depois de abandonar o advogado naval, então, pelo de Deus, eu não entendo nada do profundo e misterioso coração humano.

Eu me sentia incapaz de relatar aos homens de bordo a forma esperançosa que o capitão encarava nossa situação e subi para o convés bastante desanimado, mas foi só botar a cabeça para fora para notar que o navio movia-se com uma velocidade incrível.

Nós tínhamos a bordo um touro e um holandês. O touro estava preso ao mastro, pelo pescoço, com uma corrente, já o holandês tinha bastante liberdade e só era trancado à noite. Havia uma desavença entre eles - uma antipatia que tinha suas raízes no apetite do holandês por leite e no senso de dignidade pessoal do touro; seria penoso e cansativo relatar aqui o incidente específico que deu origem ao ódio. Aproveitando a siesta, que seu inimigo fazia depois do almoço, o holandês conseguira passar pelo mastro sem ser visto, e chegar até a proa, para pescar. Quando o animal, acordando, viu a outra criatura na sua frente pescando, deu uma folga na corrente, para pegar impulso, abaixou os chifres e atacou seu desafeto. O mastro era firme, a corrente era forte e com o touro rebocando o navio, como diria Byron: "caminhar sobre as águas foi coisa normal".

Depois disso nós deixamos o holandês exatamente onde estava, noite e dia. O velho Camelo andava como nem mesmo um furacão o faria andar. A bússola mostrando sempre o rumo Sul.

Nosso problema agora era outro. Há algum tempo não tínhamos comida suficiente, faltava carne em especial. Nós não podíamos sacrificar nem o touro nem o holandês; e o carpinteiro de bordo, tradicionalmente o primeiro recurso dos esfomeados no mar, era magro como um esqueleto. Os peixes nem mordiam nem se deixavam morder. Quase todos os cabos já haviam sido usados numa macarronada; tudo que era de couro, inclusive nossos sapatos, tinha acabado dentro de uma omelete; com trapos e betume fizéramos uma salada bastante razoável, e depois de uma breve carreira como dobrada à moda do Porto, nossas velas haviam dado adeus ao mundo para sempre. Só restavam duas alternativas, ou comíamos uns aos outros, como manda a etiqueta naval, ou lançávamos mão dos romances do capitão Abersouth. Terrível alternativa! - mas sempre uma escolha. E raramente, creio, marinheiros esfomeados têm o privilégio de encontrar à sua disposição um inteiro carregamento de nossos melhores autores contemporâneos já fritos pela crítica. Nós comemos toda aquela ficção.

As obras que o capitão já terminara de ler duraram seis meses, a maioria eram best-sellers e bastante substanciais. Depois que elas acabaram (é claro que alguma coisa tinha de dada ao touro e ao holandês) nós apertamos o capitão, tomando os livros de suas mãos assim que ele os acabava de ler. Algumas vezes, quando parecia que nós estávamos nas últimas e já nada podia nos salvar, ele saltava uma página inteira de considerações éticas, ou aquelas partes chatas com descrições monótonas, que eram imediatamente devoradas; e sempre, assim que ele começava a prever o desenvolvimento da trama (o que em geral acontecia pela metade do segundo volume), ele nos entregava o final do livro sem uma reclamação.

Os efeitos desta dieta não só não eram desagradáveis, mas ao contrário bastante interessantes. Nos sustentava fisicamente, nos exaltava o intelecto e moralmente não nos tornava muito piores de que já éramos. Nós falávamos como nunca ninguém falou, antes de nós. Coisas de uma absoluta falta de sentido eram ditas com muito espírito. Como na coreografia óbvia de um duelo de palco, onde cada golpe tem seu previsível contragolpe, nas nossas conversas, cada observação era a deixa para a outra fala que, por sua vez, provocava o seu preciso retorno. Uma seqüência que, quando interrompida, fazia perceber o vazio de que era feita; como um colar que, rompido o fio, deixasse ver suas contas, uma a uma, brilhantes e ocas.

Nós fizemos amor, uns com os outros, e conspiramos sombrios pelos cantos mais escuros do porão. Cada grupo de conspiradores tinha seus espiões e traidores que às vezes brigavam entre si. Às vezes havia confusão entre eles, dois ou mais indivíduos disputando o direito de espionar a mesma conspiração. Lembro-me quando o cozinheiro, o carpinteiro, o segundo cirurgião assistente e um marinheiro brigaram com ferros na mão pela honra de trair minha confiança. Outra vez, eram três os assassinos mascarados do segundo turno de vigia, debruçando-se ao mesmo tempo sobre o vulto adormecido do grumete que mencionara na semana anterior possuir: Ouro! Ouro! - acumulado durante oitenta anos (pois é, oitenta) de pirataria enquanto parlamentar pelo distrito de Zaccheus-cum-down e ia à missa todos os domingos. Vi o capitão no alto da ponte cercado de pretendentes à sua mão enquanto ele mesmo tentava adivinhar, sem desembrulhar, o conteúdo de um pacote de livros olhando pela fresta do papel e, ao mesmo tempo, fazia uma serenata para sua amada que se barbeava num espelho.

Nossas falas compunham-se de partes iguais, de alusões dos clássicos, citações diretamente das tabernas, amostras de fofoca copa-e-cozinha, do código de iniciados dos clubes esnobes e do jargão técnico da heráldica. Nós nos vangloriávamos muito de nossos ancestrais e admirávamos a brancura de nossas mãos, sempre que se pudesse ver alguma coisa através da camada de sujeira e graxa que as cobriam. Depois de amor, botânica, assassinato, incêndio, adultério e liturgia, o que mais ocupava nossa conversação eram as artes. A figura de proa do Camelo, representando um negro da Guiné sentindo um mau cheiro, e dois golfinhos corcundas pintados na popa assumiram uma nova importância. O holandês quebrara o nariz do negro com um pontapé e os restos da cozinha haviam praticamente coberto os golfinhos. Mas as duas obras eram objeto de peregrinações diárias de amantes das artes que a cada vez descobriam belezas ocultas, tanto na concepção quanto na excelente e sutil execução. Nós mudáramos muito; e se o suprimento de ficção contemporânea fosse igual à demanda, eu acho que o Camelo seria pequeno para conter as forças morais e estéticas despertadas pela maceração da imaginação dos autores no suco gástrico dos marinheiros.

Tendo conseguido transferir do seu cérebro para os nossos toda a literatura a bordo, o capitão apareceu na ponte de comando pela primeira vez desde que havíamos deixado o porto. Nós continuávamos no mesmo curso, e, fazendo sua primeira observação do sol com o sextante, o capitão constatou que estávamos a 83º de latitude Sul. O calor era insuportável; o ar como o bafo de uma fornalha dentro de uma fornalha. O mar fervia como um caldeirão e no seu vapor nossos corpos eram cozidos - nossa última ceia estava sendo preparada. Empenado pelo sol, o navio tinha popa e proa fora d'água; o convés da proa estava tão inclinado que o touro corria ladeira acima e o holandês se equilibrava precariamente no pico da proa em vertical. Havia um termômetro no mastro principal e nós nos reunimos em volta dele enquanto o
capitão fazia a leitura.

- Oitenta graus centígrados! - ele murmurou com evidente assombro. - Impossível! - virando-se rapidamente, ele correu os olhos sobre nós, e perguntou em voz alta:

- Quem ficou no comando enquanto eu passava os olhos nos livros?

- Bem, capitão - eu respondi, o mais respeitosamente possível -, no quarto dia no mar eu me vi, infelizmente, envolvido numa disputa, no meio de um jogo de cartas, com o imediato e o segundo oficial. Na falta desses excelentes marinheiros, senhor, eu me senti na obrigação de assumir.

- Matou eles, hein?

- Eles se suicidaram, capitão, questionando a eficácia de quatro reis e um ás.

- Bem, seu trapalhão, como é que você justifica esta temperatura absurda?

- Não é minha culpa, capitão. Nós estamos no Sul, muito ao Sul mesmo, e sendo agora o meio de julho, a temperatura é desconfortável, eu admito, mas, considerando a latitude e a estação, não chega a ser absurda.

- Latitude e estação! - ele gritou, pálido de raiva. - Latitude e estação! Sua besta emplumada, quadrúpede, alimária, você não sabe nada? Ninguém nunca disse a você que as latitudes ao Sul são mais frias que ao Norte, ou que julho é o meio do inverno aqui? Considere-se confinado ao seu alojamento, saia da minha frente agora mesmo, seu filho de uma égua, ou eu arrebento você.

Oh! Muito bem - respondi. - Eu não vou ficar aqui de qualquer forma, que não sou homem de aturar esse tipo de insultos, estou avisando. Faça como achar melhor.

Eu mal acabara de falar, quando um vento frio e cortante me fez olhar o termômetro. Segundo as novas noções de ciência geográfica o mercúrio vinha caindo rapidamente; no próximo segundo o instrumento estava completamente coberto por uma nevasca que impedia a visão. Enormes icebergs se levantavam do mar por todos os lados, erguendo-se monstruosamente dezenas de metros acima do mastro e nos cercando por completo. O navio se contorceu e tremeu, empurrado para cima; cada peça de madeira nele rangeu, e o barco fez um último balanço, como o coice de uma pistola. O Camelo congelou rápido. A parada brusca partiu a corrente atirando ao mar o touro e o holandês, que assim continuaram no gelo sua guerra pessoal.

Tentando descer para minha cabine, como me ordenara o capitão, ao passar pelos homens eu os vi caírem, à esquerda e à direita, como bonecos de boliche. A tripulação estava rigidamente congelada. Passando pelo capitão, eu perguntei com certa dose de ironia o que ele estava achando do tempo segundo o novo regime. Ele me respondeu com um olhar vago. O frio tinha chegado a seu cérebro e afetado suas faculdades. Ele disse:

- Nesse delicioso lugar, contentes e estimados por todos, cercados de tudo aquilo que torna a vida tranqüila, eles viveram felizes até o fim de seus dias. FIM.

Sua boca ficou aberta. O capitão do Camelo estava morto.

Fonte:
Flávio Moreira da Costa (org.). Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal. 5.ed. RJ: Ediouro, 2001.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Ellis Avery (A Casa de Chá)


Artigo por Ana Lucia Santana

A saborosa obra A Casa de Chá revela o olhar de uma mulher estrangeira, que adota a identidade japonesa aos nove anos, sobre o Japão do século XIX. Aqui se revela a visão de uma alteridade que não se assume enquanto tal, de uma exilada que antecipa a condição pós-moderna.

Aurelia Bernard, filha de uma francesa, nascida em Nova York, ainda menina sozinha no Japão, não tem mais lar ou pátria; ela vive o dilema da busca ansiosa de uma definição sobre si mesma, pois se esforça para nem mesmo se lembrar que um dia foi uma estrangeira em território japonês, mas, ao mesmo tempo, não pode impedir que o olhar do outro sobre ela a represente, pouco a pouco, como uma forasteira.

O leitor, página após página, vê a história do Japão deste período se desenrolar justamente através da percepção deste ser sem raízes, que disseca sem complacência o implacável processo de ocidentalização deste país. Quando a menina, órfã de mãe, segue para as terras japonesas, que recentemente haviam discretamente aberto as portas para o Ocidente, ao lado de seu tio Charles, padre aspirante a missionário, esta nação ainda estava mergulhada no regime feudal, sob o comando do Xogum. Era uma terra considerada selvagem, e seus habitantes deveriam ser compulsoriamente convertidos ao Cristianismo.

Assediada pelo tio, Aurelia foge e, após um incêndio que destroi a casa de Charles e boa parte do bairro da cidade de Kyoto, quando ainda era conhecida como Miyako, ela se refugia na casa de chá Baishian e dá início a uma metamorfose interior quando é aceita, finalmente, pela família de Yukako. Neste instante ela ganha inclusive um novo nome, Urako, que marca sua transformação e a profunda assimilação do universo cultural japonês.

A partir de então, os caminhos destas duas mulheres seguem, por muito tempo, linhas convergentes, que se cruzam constantemente com o Chado ou Caminho do Chá, cerimônia tradicional perpetuada há séculos pela família Shin, a quem Urako irá servir por muito tempo. Desta forma ela acompanha os desenvolvimentos paralelos do Temae – ritual do Chá  praticado milenarmente por este grupo familiar, que se confunde com a própria história do clã – e do próprio Japão.

O patriarca dos Shin, intitulado como Montanha pela garota adotada para ser a dama de companhia de Yukako, é o mestre de chá mais importante de sua terra. Filho de samurais, ele mesmo foi acolhido pelos Shin quando o antigo chefe da família, pertencente à casta dos comerciantes, ficou sem herdeiros.

Aos poucos, Urako se apega cada vez mais a Yukako, que a considera, por sua vez, como sua irmã caçula. Com o tempo, porém, ela desenvolve por sua senhora uma paixão proibida, a qual não pode de forma alguma ser saciada. A jovem sublima este sentimento com uma dedicação cada vez maior a sua amada, de quem se torna aliada na luta pela preservação da cerimônia do chá e pela afirmação feminina no interior deste ritual em uma cultura ainda fechada, que reserva as decisões mais importantes ao mundo masculino.

A cumplicidade entre as duas mulheres se intensifica à medida que o Xogunato é substituído pelo crescente poder do Imperador, o que culmina na instauração da Era Meiji. Este novo regime permite a crescente ocidentalização do Japão, a tradição e o novo se chocam, e Yukako e Urako se unem para não permitir que este processo, aparentemente irreversível, destrua o Caminho do Chá.

Ao mesmo tempo, a chegada dos estrangeiros no Japão, anteriormente conhecidos apenas por ilustrações distorcidas em alguns livros, abala a identidade de Urako, pois desta forma, contraposta aos novos seres que invadem o território japonês, sua alteridade se acentua, e o olhar dos japoneses sobre ela, nunca totalmente desprovido de cautela e preconceito, se transforma radicalmente, definindo-a cada vez mais como não-japonesa.

A discriminação se intensifica, despertando novamente em Urako a sombra de Aurelia, sua antiga identidade. Mais que nunca emerge sua condição de exilada, ameaçadora e voraz. Embora o Japão acolha cada vez mais o Ocidente em sua sociedade já não mais tão fechada, instaura-se o antigo paradoxo. Eles precisam dos estrangeiros, mas não os desejam. Resta saber o quanto este processo transformador refletirá sobre a antiga relação entre Urako e Yukako.

A autora, Ellis Avery, pesquisou durante cinco anos o Caminho do Chá em Nova York e em Kyoto. Ela escreveu diversos artigos para o Publishers Weekly, o The Village Voice e o Kyoto Journal. Algumas de suas histórias foram adaptadas para o teatro no New York’s Expanded Arts Theater. Ela reside, hoje, em Nova York.

Fontes:
Avery, Ellis. A Casa de Chá. Editora Record, Rio de Janeiro, 2010, 488 pp.
Artigo disponível em Infoescola http://www.infoescola.com/livros/a-casa-de-cha/

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Edgar Allan Poe (O Corvo) Tradução de Fernando Pessoa


1
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."

2
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

3
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".

4
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

5
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.

6
Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."

7
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.

8
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".

9
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".

10
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhão também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".

11
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".

12
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".

13
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
. ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

14
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

15
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".

16
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Édem de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

17
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

18
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!

sábado, 13 de março de 2010

Truman Capote (1924 – 1984)



Truman Streckfus Persons Capote nasceu no ano de 1924 na cidade de Nova Orleans, Luisiana - EUA.

Convivendo, na infância, com diversos problemas familiares — prisão do pai, divórcio do casal, briga por sua guarda — o autor acabou indo morar em Nova York na companhia de sua mãe e seu padrasto. Foi dele, cubano, que Truman adotou o sobrenome.

No início dos anos 40, foi admitido como contínuo na New Yorker. Durou pouco o emprego, do qual foi demitido por brigas internas.

Suas primeiras histórias foram publicadas na Harper's Bazaar, quando tinha vinte e poucos anos. Muito bem recebidas, com o romance "Other voices, other rooms" (1948) e a novela "The grass harp" (1951), consolidaram sua fama precoce.

Com uma ampla gama de escritores e artistas, figuras da alta sociedade e uma constante presença na mídia, passou a dedicar suas forças ao palco — adaptou The grass harp e escreveu o musical House of flowers — ao jornalismo e, também ao cinema.

O assassinato de uma família no Kansas fez com que Capote se interessasse pelo assunto e, após, muita investigação, escreveu o famoso "A sangue frio" (1966), seu livro mais aclamado e de maior sucesso.

Truman Capote faleceu no dia 25 de agosto de 1984.

Outros livros do autor:

- Travessia de verão
- Música para camaleões
- Bonequinha de luxo
- Os cães ladram — Pessoas públicas e lugares privados

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Robert Frost (O Poeta no Papel)



A ESTRADA NÃO TRILHADA

Num bosque, em pleno outono, a estrada bifurcou-se,
mas, sendo um só, só um caminho eu tomaria.
Assim, por longo tempo eu ali me detive,
e um deles observei até um longe declive
no qual, dobrando, desaparecia...
Porém tomei o outro, igualmente viável,
e tendo mesmo um atrativo especial,
pois mais ramos possuía e talvez mais capim,
embora, quanto a isso, o caminhar, no fim,
os tivesse marcado por igual.
E ambos, nessa manhã, jaziam recobertos
de folhas que nenhum pisar enegrecera.
O primeiro deixei, oh, para um outro dia!
E, intuindo que um caminho outro caminho gera,
duvidei se algum dia eu voltaria.
Isto eu hei de contar mais tarde, num suspiro,
nalgum tempo ou lugar desta jornada extensa:
a estrada divergiu naquele bosque – e eu
segui pela que mais ínvia me pareceu,
e foi o que fez toda a diferença.
––––––––––––––
A FAMÍLIA DA ROSA

A rosa é uma rosa
E sempre foi rosa.
Mas hoje se usa
Crer que a pêra é rosa
E a maçã vistosa
E a ameixa, uma rosa.
Pergunta a amorosa
Que mais será rosa.
Você, claro, é rosa –
Mas sempre foi rosa.
––––––––––––––
NUM CEMITÉRIO EM DESUSO

O vivos vêm pisando a grama,
vêm ler no morro as inscrições;
o cemitério ainda os atrai;
os mortos é que não vêm mais.
Os versos nele se repetem:
“Aqueles que hoje vivos vêm
a ler as pedras e se vão
mortos é que amanhã virão.”
Certas da morte as lousas rimam,
mas não sem deixar de notar
que nenhum morto já não vem.
Do que é que os homens medo têm?
Seria fácil ser esperto
e lhes dizer: "Eles detestam
a morte, e já não entram nela."
Talvez caíssem na esparrela.
––––––––––––––
EM WOODWARD’S GARDENS

Por mera conjetura, um menino acercou-se
certa vez de uma jaula e expôs a dois macacos
uma lente de aumento – objeto que macacos
não podem compreender, nem podem ser levados
a compreender, por mais que se empreguem palavras
ou que se diga que tais lentes são capazes
de concentrar num ponto as radiações do sol.
Mas, para lhes mostrar a arma em funcionamento,
ele fez um pontinho em cima do nariz
do primeiro macaco e, após, do outro, gerando
uma névoa de espanto em seus olhos perplexos,
que piscadela alguma alcançou dissipar.
De braços dados junto às grades, os macacos,
com grande confusão, olhavam para a vida.
Um levou ao nariz uma mão pensativa,
como se recordasse – ou como se estivesse
parado a alguns milhões de anos de alguma idéia.
Atingiram-se os nós de seus rosados dedos.
O já sabido foi outra vez confirmado
por meio dessa experiência psicológica.
E então a descoberta acabaria nisso,
não houvesse o menino, em suas conjeturas,
se demorado tanto e aproximado tanto.
Como um relâmpago de braço, houve um puxão,
e agora era do símio o que foi do menino.
Correram, num tropel, para o fundo da cela
e deram logo início a uma investigação
por conta própria e sem a intuição necessária.
Perscrutaram o gosto, a mordiscar a lente;
destroçaram o cabo e a argola que o prendia.
E, não mais sábios, desistiram em seguida.
E eis que, ocultando-a sob a palha onde dormiam,
na ampla modorra de outro dia de prisão,
voltaram novamente às grades, com secura,
a si mesmos dizendo: E quem disse que importa
o que os macacos compreendem, e o que não?
Podem não compreender o vidro que incendeia.
Podem não compreender a luz do próprio sol.
Saber o que fazer das coisas é que conta.
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UM PÁSSARO MENOR

Quis, de fato, que o pássaro voasse
E próximo ao meu lar não mais cantasse.
Cheguei à porta para afugentá-lo,
Por sentir-me incapaz de suportá-lo.
Penso que a inteira culpa fosse minha,
E não do pássaro ou da voz que tinha.
O erro estava, decerto, na aflição
De querer silenciar uma canção.

(Tradução de Renato Suttana)
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MURO REMENDADO

Alguma coisa existe que não aprecia o muro,
Que enfia bojos de terra gelada por baixo,
E derrama as pedras superiores ao sol,
E faz buracos onde até dois podem passar abraçados.
O trabalho dos caçadores é outra coisa:
Eu cheguei depois deles e fiz a reparação
Onde não deixaram pedra sobre pedra,
Mas conseguiram pôr a lebre fora do esconderijo,
Para deleitar cães latidores. As brechas, quero dizer,
Ninguém as viu fazer ou as ouviu fazer,
Mas na época primaveril dos arranjos encontramo-as lá,
faço o meu vizinho saber para lá da colina;
E um dia encontramo-nos para percorrer a linha
E assentarmos o muro outra vez entre nós.
Mantemos o muro entre nós enquanto avançamos.
A cada um as pedras que caíram para cada um.
E algumas são formas e outras são tão como bolas
Que temos de usar um feitiço para as equilibrar:
"Fica onde estás até voltarmos as costas!"
Ficamos com os dedos ásperos de as manipular.
Oh, somente outro género de jogo ao ar livre,
Um de cada lado. Mas vai mais longe:
Aí onde se encontra, nós não precisamos de muro:
Ele é todo pinheiros e eu sou um pomar de maçãs.
As minhas macieiras nunca atravessarão
Para comer os cones sob os seus pinheiros, digo-lhe eu.
Ele só me diz, "Boas cercas fazem bons vizinhos."
A primavera instiga-me e pergunto-me
Se lhe posso despertar a razão:
"Porque razão fazem bons vizinhos? Isso não é
Onde existem vacas? Mas aqui não há vacas.
Antes de construir um muro eu inquiriria para saber
O que estaria a incluir ou a excluir,
E a quem era suposto ofender.
Alguma coisa existe que não aprecia o muro,
Que o quer no chão”. Poderia dizer-lhe "duendes",
Mas não são duendes exactamente, e eu prefiro
Que ele o diga a si próprio. Vejo-o por ali,
A agarrar uma pedra com firmeza pelo topo
Em cada mão, como um antigo selvagem armado de pedras.
Move-se na escuridão e parece-me,
Não apenas a das florestas e a da sombra das árvores.
Ele não irá atrás do dito de seu pai,
Gosta de ter pensado naquilo tão bem
E diz novamente, "Boas cercas fazem bons vizinhos."
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domingo, 6 de abril de 2008

Erskine Caldwell (1903 - 1987)

Erskine Preston Caldwell (White Oak, Geórgia, 17 de dezembro de 1903 - Paradise Valley, Arizona, 11 de abril de 1987) foi um escritor estadunidense, autor de romances e contos geralmente ambientados no sul dos Estados Unidos. Foi também ensaísta e correspondente de guerra.

Biografia

Caldwell passou os primeiros anos de sua vida mudando-se de um estado para outro, porque a isso o obrigava a profissão de seu pai, que era pastor presbiteriano. Foi operário, criado, trabalhador rural, cozinheiro, maquinista de teatro e jogador de basebol. Freqüentou a Universidade da Virgínia por três anos; não se formou, mas foi incentivado a tornar-se escritor. Foi ali que viu nascer, em 1926, seu primeiro trabalho impresso, o ensaio "The Georgia Cracker", onde já se encontram vários dos temas que mais tarde abordaria em sua carreira literária: injustica racial, demagogia, religião, irresponsabilidade social.

Seu primeiro livro importante foi a coletânea de contos American Earth (Frenesi de Verão, Brasil), de 1931. Nos dois anos seguintes, publicou suas obras mais conhecidas: Tobacco Road (A Estrada do Tabaco, Brasil e Portugal) e God's Little Acre (Pequeno Rincão de Deus, Brasil ou A Jeira de Deus, Portugal). A crueza da linguagem, a ousadia dos temas e o tratamento dado aos personagens chocaram os leitores. Acusados de obscenidade, ambos os livros foram perseguidos e banidos de várias bibliotecas. Caldwell chegou a ser preso quando foi a Nova Iorque para uma noite de autógrafos quando do lançamento de God's Little Acre. No entanto, a crítica mais progressista elogiou fartamente essas obras, sendo que Tobbaco Road foi adaptado para o teatro, tendo permanecido em cartaz por quase dez anos. Em 1941, foi transformado em filme, sob a direção de John Ford.

Nos anos 1930, Caldwell e Helen Lannigan, sua primeira esposa, mantiveram uma livraria no estado do Maine, para onde haviam se mudado na década anterior. Até o início dos anos 1940, Caldwell já havia escrito mais dois romances, além de três livros de contos e um ensaio fotográfico junto com sua nova esposa, Margaret Bourke-White. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi correspondente de guerra na União Soviética, mais precisamente na Ucrânia. De volta, fixou-se em São Francisco (Califórnia), já divorciado. Entre 1942 e 1955, foi editor da American Folkways, uma série de livros regionais. Pelos próximos anos, além de continuar a escrever, Caldwell dedicou-se a viajar pelo mundo, sempre tomando anotações que podem ser consultadas no The Erskine Caldwell Birthplace and Museum, na cidade de Moreland, Geórgia, um museu dentro da casa onde nasceu. Publicou romances e contos até a década de 1970, mas já sem o aval da crítica e do público. Ainda assim, calcula-se que tenha vendido 40.000.000 de exemplares de suas obras, principalmente aquelas de sua fase mais produtiva artisticamente.

Fumante inveterado, Erskine Caldwell faleceu devido a um enfisema e um câncer no pulmão.

Obra

Caldwell sofreu grande influência de seu pai, um reformador social conservador. Seus primeiros livros tratam de uma outra América, a América dos vencidos, dos desgraçados e sem esperança, daqueles que ficaram de fora do Sonho Americano. Daí sua escrita ser crua e direta, às vezes mesclada com um humor sombrio e patético; seus personagens, a quem faltam consciência social, tendem ao animalesco e à degenerescência moral. As obras são impregnadas de lascívia, crueldade, volúpia, violência física ou mental, racismo e soturna resignação. Assim como William Faulkner, John Steinbeck e outros escritores do período, Caldwell procurou retratar a vida desses miseráveis de um Sul arcaico, segregacionista e reacionário. Apesar de contar com o reconhecimento da crítica menos acomodada e de vender milhões de exemplares, os temas desses livros desagradaram a maioria silenciosa, o que fez com que Caldwell nunca conseguisse livrar-se da pecha de obsceno, comunista e pornográfico. Por isso vários de seus livros foram proibidos, apreendidos ou sofreram todo tipo de perseguição.

No entanto, com a morte do pai em 1944, seu grande leitor e encorajador, a obra de Caldwell entrou em declínio lento e irreversível. Seus personagens já não eram retratados com a mesma força de antigamente e seus temas passaram a sofrer influência de outros campos do conhecimento, como no romance Gretta (Gretta, Brasil), de 1955, em que a psicanálise é convocada para explicar o estranho vício da personagem-título.

Tanto no Brasil como em Portugal, foram publicados diversos livros do autor, principalmente entre as décadas de 1940 e 1960.
Bastard, 1929 - contos
Poor Fool, 1930 - contos
American Earth, 1931 - contos (Frenesi de Verão, Brasil)
Tobacco Road, 1932 - romance (A Estrada do Tabaco, Brasil e Portugal)
We Are the Living, 1933 - contos
God's Little Acre, 1933 - romance (Pequeno Rincão de Deus, Brasil ou A Jeira de Deus, Portugal)
Tenant Farmers, 1935 - ensaios
Some American People, 1935 - ensaios
Journeyman, 1935 - romance (O Pregador, Portugal)
Kneel to the Rising Sun, 1935 - contos
The Sacrilege of Alan Kent, 1936 - poema em prosa
You Have Seen Their Faces, 1937 - ensaio fotográfico (com Margaret Bourke-White)
Southways, 1938 - contos
North of the Danube, 1939 - ensaio fotográfico (com Margaret Bourke-White)
Trouble in July, 1940 - romance
Say Is This the USA, 1941 - ensaio fotográfico (com Margaret Bourke-White)
Moscow Under Fire, 1942 - reportagens do front germano-russo
Russia at War, 1942 - reportagens do front germano-russo
All-Out on the Road to Smolensk, 1942 - reportagens do front germano-russo
All Night Long, 1942 - romance (Guerrilheiros Russos, Portugal))
Georgia Boy, 1943 - romance (Um Rapaz da Geórgia, Portugal)
Tragic Ground, 1944 - romance (Chão Trágico, Brasil)
A House in the Uplands, 1946 - romance (Uma Casa no Planalto, Portugal)
The Sure Hand of God, 1947 - romance
This Very Earth, 1948 - romance (Três Destinos, Brasil)
A Place Called Estherville, 1949 - romance (A Cidade do Ódio, Brasil)
Episode in Palmetto, 1950 - romance (Episódio em Palmetto, Portugal)
Call It Experience, 1951 - autobiografia
The Courting of Susie Brown, 1952 - contos
A Lamp for Nightfall, 1952 - romance (Os Donos da Terra, Brasil)
Love and Money, 1954 - romance
Gretta, 1955 - romance (Gretta, Brasil)
Gulf Coast Stories, 1956 - contos
Certain Women, 1957 - contos
Claudelle Inglish, 1958 - romance
Molly Cottontail, 1958 - infantil
When You Think of Me, 1959 - contos
Jenny by Nature, 1961 - romance
Men and Women, 1961 - contos
Close to Home. 1962 - romance
The Last Night of Summer, 1963 - romance
In Search of Bisco, 1965 - viagens
The Deer at Our House,1966 - infantil
Writing in America, 1967 - ensaios Miss Mamma Aimee, 1967 - romance
Summertime Island, 1968 - romance
Deep South, 1968 - viagens
The Weather Shelter, 1969 - romance
The Earnshaw Neighborhood, 1971 - romance Annette, 1973 - romance
Afternoons in Mid America, 1976 - ensaios
With All My Might, 1987 - autobiografia

Em 1946, a editora portuguesa Atlântida, Livraria Editora, Lim., dentro de sua coleção "Antologia do Conto Moderno", publicou o volume intitulado "Erskine Caldwell", com as seguintes histórias:
Ajoelhai Ante o Sol Nascente (Kneel to the Rising Sun)
Raquel (Rachel)
Ladrão de Cavalos (Horse Thief)
A Rapariga Amarela (Yellow Girl)
O Burro Turbulento (Meddlesome Jack)
O Rio Quente (Warm River)
O Meu Velhote (My Old Man)

Fontes:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Erskine_Caldwell
http://id.mind.net (foto)

quinta-feira, 20 de março de 2008

O. Henry (1862 - 1910)

William Sydney Porter, contista estadunidense nascido em Greensboro, Carolina do Norte, cuja produção de contos romantizados, muitas vezes com finais imprevistos que se tornaram sua marca registrada e o tornaram um dos autores mais populares do seu tempo. De família culta e abastada, sua mãe morreu tuberculosa quando ele tinha três anos e foi criado por uma tia. Começou a trabalhar como aprendiz de boticário aos quinze anos e depois mudou-se para o Texas (1882) onde trabalhou em uma fazenda de gado.

Casou e empregou-se como caixa num Banco de Austin, tentando ao mesmo tempo escrever comédia. Comprou um jornal, a revista de humor The Rolling Stone (1894), porém o projeto fracassou e ele passou a trabalhar como repórter, colunista e cartunista no Houston Post.

Acusado de um desfalque no Banco (1896), fugiu sozinho para Honduras, mas voltou a Austin passados três anos, ao saber da doença terminal da esposa. Viúvo, foi condenado a cumprir três anos de prisão numa penitenciária do Ohio, período em que escreveu contos sob vários pseudônimos até definir-s por O. Henry.

Em liberdade mudou-se para New York (1902), onde continuou escrevendo praticamente um conto por semana e militando na imprensa e, embora extremamente popular, viveu o resto da vida recluso, para não ser reconhecido como William Sydney Porter.

Faleceu alcoólico e na miséria, em New York, deixando várias coletâneas de contos, entre elas Cabbages and Kings (1904), The Four Million (1906), Heart of the West (1907), The Voice of the City (1908) e The Gentle Grafter (1908).

Fontes:
http://www.brasilescola.com/biografia/william-sydney.htm
http://www.releituras.com/ohenry_menu.asp

O. Henry (Os Caminhos que Tomamos)

Vinte milhas para oeste de Tucson o rápido parou ao pé de um depósito para tomar água. Além deste líquido, porém, a máquina daquele comboio adquiriu também outras coisas que lhe não convinham.

Enquanto o fogueiro estava baixando a mangueira de alimentação, o Bob Tidball, o Dodson Tubarão e um índio de raça cruzada chamado João Cão Grande treparam para a máquina e apresentaram ao maquinista os orifícios de três canos de revólver. As possibilidades desses orifícios a tal ponto impressionaram o maquinista que ergueu logo ambas as mãos num gesto do gênero do que acompanha a exclamação: "Conta lá!” ·

À ordem brusca do Dodson Tubarão, que era o comandante da força, o maquinista desceu ao chão e desligou a máquina e o tender. Então o João Cão Grande, empoleirado no carvão, sorriu por trás de dois revólveres apontados ao ajudante e ao fogueiro, lembrando que corressem a máquina cinqüenta metros pela linha abaixo e ali aguardassem novas ordens.
O Dodson Tubarão e o Bob Tidball, desdenhando proceder à limpeza de minério tão baixo como os passageiros, dedicaram-se ao veio magnífico que era o vagão de valores. Encontraram o guarda envolto na crença firme de que a máquina não estava tomando nada mais forte que água pura. Enquanto o Bob lhe tirava esta idéia da cabeça por meio de uma coronha de revólver, o Dodson Tubarão ocupava-se em ministrar uma dose de dinamite ao cofre do vagão.

O cofre explodiu no sentido de trinta mil dólares, ouro e notas. Os passageiros espreitaram vagamente pelas janelas a ver de onde vinha a trovoada. O condutor puxou a correia que lhe ficou lassa e caída na mão. O Dodson Tubarão e o Bob Tidball, com o espólio numa saca de lona forte, saíram do vagão e correram pesadamente, com suas botas altas, até à máquina.

O maquinista, amuado, mas prudente, correu velozmente a máquina, obedecendo às ordens, para longe do comboio parado. Mas antes que isto estivesse feito, o guarda do rápido, tendo despertado do argumento com que o Bob Tidball lhe tinha imposto a neutralidade, saltou do vagão com uma Winchester e entrou no jogo. O sr. João Cão Grande, empoleirado no carvão, perdeu a vasa pelo processo involuntário de imitar perfeitamente um alvo. O guarda caçou-o. Com uma bala exatamente entre as espáduas, o cavalheiro de cor e indústria caiu para o chão, aumentando assim automaticamente em um sexto o quinhão de cada um dos camaradas.

A duas milhas do depósito deu-se ordem ao maquinista que parasse.

Os ladrões gritaram um adeus de desafio e enfiaram pelo declive abaixo para os bosques que marginavam a linha férrea. Cinco minutos de caminho difícil através de uma mata de chaparral trouxe-os a um bosque mais aberto, onde estavam três cavalos, presos a ramos baixos. Um esperava o João Cão Grande, que nunca mais andaria a cavalo de dia ou de noite. A este animal tiraram os ladrões a sela e o freio, e puseram-no em liberdade. Montaram nos outros dois, estendendo o saco sobre a maçã da sela de um deles, e seguiram depressa mas discretamente através da floresta e por uma garganta primitiva e solitária acima. Aqui o animal que levava Bob Tidball escorregou num pedregulho musgoso e partiu uma das pernas dianteiras. Mataram-no com um tiro na cabeça, e sentaram-se para realizar um conselho de fuga. Seguros por enquanto, em virtude do caminho tortuoso que haviam tomado, já a questão de tempo os não apoquentava tanto. Havia já muitas horas e léguas entre eles e a mais rápida perseguição que se pudesse organizar. O cavalo do Dodson Tubarão, de corda arrastada e freio caído, resfolegava e comia com agrado da erva à margem do riacho da garganta. Bob Tidball abriu o saco, tirou às mãos ambas maços de notas e um saco único de ouro, e riu com uma alegria de criança.

— Olha lá, meu grande pirata — disse ele rindo para Dodson —, bem dizias tu que a coisa se conseguia. Tens uma cabe~ a de financeiro que deixa atrás tudo no Arizona.

— O que é que a gente vai fazer a respeito de um cavalo para ti, Bob? A gente não pode esperar aqui muito tempo. Logo de madrugada, com a primeira luz, os tipos estão na nossa pista.

— Oh, aquele teu bicho tem que levar dois um bocado — respondeu Bob com otimismo. Deitamos a mão ao primeiro bicho que encontrarmos por aí. Caramba, que fizemos bom negócio, hein? Aqui pelos sinais nas cintas e no saco temos trinta mil dólares — quinze mil a cada bico!

— É menos do que eu esperava — disse o Dodson Tubarão, dando pontapés leves nos pacotes. Depois olhou meditativamente para os flancos suados da sua montada.

— O Bolívar, coitado, está quase que não pode mais disse ele devagar —. Que pena que o teu bicho se estropiasse!

— Ninguém tem mais pena do que eu — disse o Bob sem abatimento —, mas o que é que se há de fazer? O Bolívar é rijo, e pode bem com nós dois até arranjarmos outras montadas. Raios me partam, ó Tubarão, mas não me passa da idéia a piada que tem um tipo do leste como tu vir para aqui ensinar-nos a nós do oeste a dar cartas no negócio de salteador! De que parte do leste é que és?

— Estado de Nova Iorque — disse o Dodson Tubarão, sentando-se num toro e mastigando um fio de erva —. Nasci numa herdade do distrito de Ulster. Fugi de casa quando tinha dezessete anos. Foi um acaso eu vir para oeste. Eu ia pela estrada fora com a roupa numa trouxa a caminho de Nova Iorque, da cidade. A minha idéia era ir para lá e ganhar muito dinheiro. Uma tarde cheguei a um ponto onde a estrada fazia garfo, e eu não sabia por que caminho havia de tomar, estive para aí meia hora a estudar o caso, e depois tomei pelo da esquerda. Nessa noite mesmo fui dar ao acampamento de um circo do oeste que andava dando espetáculos nas várias terras, e segui para oeste com eles. Muitas vezes tenho pensado se não teria dado em qualquer coisa muito diferente se tivesse tomado o outro caminho.

— Hum, a minha idéia é que davas mais ou menos no mesmo — disse Bob Tidball, com uma filosofia alegre —. Não são os caminhos que a gente toma, é o que está dentro de nós, que faz que a gente dê no que vem a dar.

O Dodson Tubarão levantou-se e encostou-se a uma árvore.

— Tomara eu que aquela tua montada se não tivesse estropiado, Bob — tornou a dizer, com uma certa tristeza.

— E dois! — concordou o Bob —. Era um belo bicho. Mas o Bolívar tira-nos aos dois da alhada. Olha lá, e o melhor é a gente ir-se pondo a mexer, hein? Vou meter isto tudo outra vez no saco, e ala para outra terra!

O Bob Tidball repôs o espólio no saco, e apertou a boca deste, com força, com uma corda. Quando levantou a cabeça, a coisa mais notável que viu foi o cano da pistola do Tubarão visando-lhe sem tremer o centro da testa.

— Deixa-te de piadas, rapaz — disse o Bob sorrindo —. A gente tem é que se pôr a mexer.

— Está quieto — disse o Tubarão —. Tu não te vais pôr a mexer para parte nenhuma, Bob. Tenho pena de te dizer, mas não há saída senão para um de nós. O Bolívar, coitado, está muito cansado, e não pode levar dois.

— Temos sido camaradas, eu e tu, Tubarão, há uns três anos — disse o Bob com sossego —. Muita e muita vezes arriscou a gente a vida juntos. Sempre te tenho tratado às direitas, e julgava que eras um homem. Já ouvi coisas que contavam de ti, de como tinhas matado um ou dois homens de uma maneira esquisita, mas nunca acreditei. Ora agora, se estás a brincar comigo, desvia lã a pistola e vamo-nos embora. Mas se queres atirar, atira, filho de um lacrau!

A cara de Dodson Tubarão tinha uma expressão de profunda mágoa.

— Não imaginas que pena eu tenho — suspirou ele — a respeito daquele desastre que aconteceu ao teu cavalo, Bob. A expressão no rosto do Dodson mudou de repente para uma de ferocidade fria mista de inexorável cupidez. A alma do homem mostrou-se de repente uma cara sinistra à janela de uma casa honrada.

E, na verdade, nunca Bob Tidball se poria mais a mexer para parte nenhuma. Falou a pistola do amigo falso, enchendo a garganta de um estrondo que os seus muros devolveram indignadamente. E o Bolívar, cúmplice inconsciente, levou depressa para longe o último dos salteadores do rápido sem ter que "levar dois".

Mas à medida que o Dodson Tubarão galopava parecia que os bosques se esfumavam e desapareciam; o revólver na mão direita converteu-se no braço curvo de uma cadeira de mogno: a sela estava extremamente estofada, e ele abriu os olhos e viu seus pés, não em estribos, mas pousados alto na ponta de uma secretária rica.

Estou contando aos senhores que o Dodson, da Dodson & Decker, corretores de Wall Street, abriu os olhos. Peabody, o empregado de confiança, estava de pé a seu lado, hesitando em falar. Lá em baixo havia um ruído confuso de rodas, e ao pé o sussurro acariciador de uma ventoinha elétrica.

— Hum, Peabody — disse o Dodson, piscando os olhos . Então não adormeci! Tive um sonho muito curioso. O que é que há?

— É o sr. Williams, sr. Dodson, de Tracy & Williams, que está ali fora. Vem liqüidar aquilo daquelas ações. A alta caiu-lhe em cima, lembra-se o sr. Dodson?

— Sim, lembro-me. Como está isso cotado hoje, Peabody?

— Cento e oitenta e cinco, sr. Dodson.

— Então é isso que ele paga.

— O sr. Dodson dá licença... — disse Peabody, com uma certa hesitação —. Desculpe-me falar nisso, mas estive a falar com o Williams. Ele é um velho amigo seu, e o sr. Dodson pode-se dizer que tem na mão todo este papel. Pensei se o sr...., isto é, pensei que o sr. talvez se não lembrasse que ele lhe vendeu o papel a noventa e oito. Se ele líqüida ao preço do mercado, vai-se-lhe tudo quanto tem e ainda por cima, coitado, tem que vender a casa, e a mobília e tudo, para lhe poder entregar as ações.

A expressão no rosto do Dodson mudou de repente para uma de ferocidade fria mista de inexorável cupidez. A alma do homem mostrou-se de repente como uma cara sinistra à janela de uma casa honrada.

— Cento e oitenta e cinco é que ele paga — disse o Dodson —. O Bolívar não pode levar dois.

Fonte:
http://www.releituras.com/ohenry_menu.asp

O. Henry (Memórias de um Cachorro Amarelo)

Não creio que a nenhum de vós incomode ler o que diz um cão. Kipling e muitos outros demonstraram que os animais podem expressar-se num inglês sofrível e, hoje em dia, não se imprime revista alguma que não publique a história de um animal; somente as revistas mensais de feição antiga continuam pintando os horrores de Bryan e Monte Pelado.

Entretanto, não deveis procurar aqui literatura aborrecida, como a do urso, do tigre ou da serpente da selva antilhana. Pode-se esperar qualquer surpresa de um cachorro amarelo que passou a maior parte de sua vida num sobrado barato de Nova Iorque, dormindo num canto sobre um velho vestido de cetim: o mesmo em que a dona derramou vinho do Porto, em banquete oferecido por Senhora Longshoremen.

Vim ao mundo como um cachorrinho amarelo. A data, local, genealogia e peso me são desconhecidos. O que primeiro me recordo é que uma velha me tinha metido numa cesta, e que estava em entendimentos de me vender a uma robusta dama da Broadway.

A velha, mamãe Hubard, enaltecia-me, dizendo que eu era um fox-terrier da Pomerânia - hambletoniano - irlandês roxo - Conchinchina - Stoke - Pogis.

A dama gorducha esgravatou entre amostras de moleton que levava em sua bolsa até que encontrou uma nota de cinco, e entregou-lha. Desde aquele momento fui o favorito mimado da dama gorducha. Diga-me, gentil leitor: alguma vez em tua vida, uma gorducha de 200 libras de peso, de hálito misto de queijo Camembert e couro te levantou no ar e bamboleou, enquanto esfregava teu corpo com o nariz, dizendo ao mesmo tempo palavrinhas como: Amor! Encanto! Riqueza! etc.?

De cachorrinho amarelo de raça fui crescendo até me converter num cão amarelo vira-latas, parecendo descender do cruzamento de gato angorá com caixa de limões. Porém, minha dona jamais hesitou: sempre imaginou que os dois primitivos cães que Noé meteu na arca pertenciam a um ramo colateral de meus antecessores. Fiz com que dois guardas impedissem que minha proprietária me apresentasse no jardim do Madison Square para que eu concorresse ao prêmio dos podengos siberianos.

Vou contar algo a respeito daquele pavimento. A casa era como o são ordinariamente em NY: de mármore no porão e seixos nos pavimentos superiores. Ao nosso, era preciso trepar ao invés de ascender. Minha dona o alugou desmobiliado, e instalou nele uma antiga sala de estar estofada, de 1903, umas oleo gravuras com gueixas numa casa de chá, plantas artificiais e o marido.

Eis um bipede que me causava tristeza! Era um homem pequeno, de cabelos amarelados como os meus. Era um dominado, um boneco que enxugava a louça e escutava a mulher falar mal da vizinha do segundo, de quem dizia que usava capa de peles de esquilo mas que a roupa interior era barata e esfarrapada e tinha a ousadia de exibi-la, pendurando-a a secar. E todas as noites, enquanto ela ceava, fazia com que o esposo me levasse a passeio, amarrado à ponta de uma corda.

Se os homens soubessem como passam o tempo as mulheres quando estão sozinhas em casa, nunca se casariam! Laura não fazia mais do que comer bombons e tomar sorvetes de amêndoa, falar com o orchateiro durante meia hora, ler um maço de cartas antigas, comer uns quantos picles, beber duas garrafas de cerveja maltada e passar as horas mortas olhando para o andar da frente através de um buraco feito na cortina. Vinte minutos antes da hora em que o marido devia regressar do trabalho, começava ela a pôr tudo em ordem, inclusive sua dentadura postiça, e tirava uma porção de roupa a fim de passá-la em dez minutos.

Eu, naquela casa, levava uma vida de cachorro. A maior parte do dia passava deitado no meu canto, observando como a gorducha matava o tempo. Algumas vezes dormia, e sonhava que perseguia gatos até fazê-los desaparecer nos portões, e que rosnava a todas as velhas que usavam luvas negras com os dedos de fora: coisas próprias de um cachorro. Depois, a dona me dava palmadinhas com melosa bajulação e me beijava no focinho. Porém, que podia eu fazer? Um cachorro não pode comer pedra.

Comecei a compadecer-me de Hubby, o marido; pareciamo-nos tanto, que a gente o manifestava quando saíamos juntos. Em amável companhia visitávamos as ruas que percorre o carro de Morgan, e pisávamos as últimas neves que dezembro deixava nas vielas habitadas pela gente pobre.

Uma noite, quando passeávamos assim, enquanto procurava adotar a aparência de um são - bernardo premiado e meu amo tratava de parecer um homem incapaz de assassinar o primeiro organista que executou a marcha nupcial de Mendelssohn, levantei para ele a cabeça e disse-lhe, a meu modo:

- Por que tendes esse gesto de amargura? Ela não vos beija. Não tendes que sentar-vos sobre seu regaço nem escutar sua tagarelice, essa tagarelice capaz de fazer que a letra duma opereta pareça o livro de máximas de Epíteto. Deveis agradecer por não seres um cachorro. Dai o fora na melancolia.

Aquela infelicidade conjugal desceu até mim os olhos, quase com inteligência canina em seu semblante.

- Que há, cachorrinho? Olha-me como se fosses capaz de falar. Que é que há? Gatos?

E claro que não podia compreender-me. Aos humanos é vedada a linguagem dos animais. O único terreno comum de comunicações em que homens e cachorros estão de acordo é o da ficção.

No andar em frente ao nosso morava uma dona que tinha um fox-terrier com manchas negras e marrons. O marido daquela senhora punha-lhe a corrente e levava-o a passear também todas as noites, mas sempre regressava a casa satisfeito e assobiando. Um dia juntei meu focinho com o do fox-terrier malhado e pedi-lhe que fizesse um esclarecimento.

- Escuta - disse-lhe eu - já sabes que é coisa imprópria de verdadeiros homens fazer o papel de ama-seca com um cachorro em público. Eu nunca vi um que, indo com o cachorro, não pareça senão querer bater em quantos olham para ele. Porém teu amo volta a casa todos os dias tão galhardo e bem posto como um prestidigitador diletante que fizesse o truque do ovo. Como faz isso? Não me venhas dizer que lhe agrada.

- Ele - respondeu o fox-terrier - usa o Próprio Remédio da Natureza. Quando saímos de casa é tímido como um coelho. Mas depois de termos passado por umas oito tavernas, tanto se lhe dá que o que leva na extremidade da corrente seja um cachorro ou um peixe. Já perdi duas polegadas de cauda entre as portas de vaivém desses estabelecimentos.

Pus-me a meditar sobre o que me disse o fox-terrier.

Uma tarde, lá pelas seis horas, minha ama ordenou ao seu marido que desse banho em seu Amante. Ocultei até agora meu nome, porém era assim que eu me chamava. Aquele nome era para mim uma espécie de lata amarrada ao rabo do meu próprio respeito.

Num lugar tranqüilo de certa rua, soltei a corda de meu guardião em frente a uma atraente e refinada taberna. Empurrei com a cabeça as portas, ladrando como um cão que avisa urgentemente à família que a pequena Alice caiu ao arroio quando estava colhendo flores.

- Ou estou cego, disse meu amo, fazendo um muxoxo - ou este bicho me está dizendo que tome um gole. Há quanto tempo não gasto as solas dos meus sapatos pisando o chão destes estabelecimentos! Se...

Vi que era meu. Tomou assento a uma mesa e serviram-lhe uísque quente. Ali esteve uma hora tomando goles. Permaneci ao seu lado, batendo com a cauda para que o empregado acudisse, comendo uma rica merenda, jamais igualada pelos condimentos caseiros que mamãe Hubbard comprava numa tendinha oito minutos antes de papai chegar em casa.

Quando se esgotaram os produtos da Escócia, exceto o pão de centeio, o velho me desamarrou da perna da mesa e tirou-me dali como um pescador tira os salmões. Já fora da casa, arrancou-me a coleira e atirou-a a rua.

- Pobre cachorrinho! Já não te beijará mais essa sem-vergonha! Vai-te, cachorrinho! Corre, e sê feliz!

Não quis abandoná-lo e comecei a traquinar e pular em volta dele, contente como um luluzinho sobre um tapete.

- Mas não vês, cabeça de bobo, imbecil, que não quero deixar-te? Não compreendes que ambos somos os meninos perdidos no bosque e que tua mulher é o tio cruel, que nos persegue, a ti, com o pano de cozinha e a mim, com a pomada para matar pulgas e a fita encarnada para me enfeitar a cauda? Por que não cortas de uma vez essas coisas pela raiz e seremos camaradas toda a vida?

Direis talvez que não me compreenderia; talvez assim fosse. Mas ficou pensativo um pouco, ereto, apesar dos goles que levava no corpo, e disse-me:

- Cachorrinho, nesta vida ninguém vive mais de uma dúzia de vidas. Eu não quero voltar para casa, e se tu o quiseres, apesar do muito que te aborrece minha mulher, mereces que a carrocinha te leve.

Eu não estava amarrado; mas continuei junto do meu amo, saltando, até a estação ferroviária. E os gatos que achei no trajeto viram que tinham razão para agradecer por terem sido dotados de unhas afiadas.

Ao chegar à janelinha, meu amo disse a um desconhecido que estava comendo bolo com passas de Corinto:

- Meu cachorro e eu vamos para as Montanhas Rochosas.

Porém, o que mais me agradou foi que o velho, puxando-me as orelhas até me fazer gritar, disse:

- Oh, cachorrinho vulgar, cabeça de macaco, rabo de rato e cor de enxofre. Qual é teu nome?

Eu, pensando no nome Amante, soltei um triste lamento.

- Vou chamar-te Pedro - disse meu amo; e ao ouvir aquilo, ainda que tivesse cinco caudas, ter-me-iam parecido poucas para agitá-las em ação de graças, fazendo justiça ao acontecimento.

Fontes:
http://www.gargantadaserpente.com/coral/contos/oh_cachorro.shtml

Isaac Asimov (1920 - 1992)



Isaac Asimov, (Petrovichi, 2 de Janeiro de 1920 — Nova Iorque, 6 de abril de 1992) foi um escritor e bioquímico famoso como popularizador da ciência e como autor de ficção científica, sendo suas séries mais populares Fundação e Robôs. Nesta última criou as famosas Três Leis da Robótica.

Asimov é autor de livros de divulgação sobre praticamente todos os campos do conhecimento e foi um dos homens mais cultos do século XX. Seu QI foi estimado em cerca de 175. Sabe-se que obteve um escore 135 no teste Eisenck, mas resolveu o teste inteiro na metade do tempo. Foi presidente honorário da Mensa, uma associação para pessoas superdotadas que conta com membros de 100 países.

Sua obra de ficção destaca-se por introduzir ao leitor leigo conhecimentos científicos e a idéia do método científico.

Biografia

Asimov nasceu entre 4 de Outubro de 1919 e 2 de Janeiro de 1920 em Petrovichi shtetl ou Óblast de Smolensk, RSFSR (agora Província de Mahilyow, Bielorrússia). A mãe foi Anna Rachel Berman Asimov e o pai Judah Asimov, um moleiro de uma família de Judeus. A sua data de nascimento não pode ser precisada por causa das diferenças entre o Calendário Gregoriano e o Calendário hebraico e por causa da falta de registros. Asimov celebrou sempre o seu aniversário a 2 de Janeiro. A família deriva o nome de ?????? (ozimiye), uma palavra da língua Russa que significa um cereal de inverno em que o seu bisavô negociava, ao qual o sufixo paterno foi adicionado. A sua família emigrou para os EUA quando ele tinha só 3 anos de idade. Como os seus pais falavam sempre hebraico e Inglês com ele, ele nunca aprendeu russo. Enquanto crescia em Brooklyn, New York, Asimov aprendeu por si próprio a ler quando tinha cinco anos, e permaneceu fluente em ídiche assim como em Inglês. Os seus pais tinham uma loja de doces, e toda a gente da família tinha de lá trabalhar. Revistas baratas de banda desenhada sobre ficção científica eram vendidas em lojas, e ele começou a lê-las. Por volta dos onze anos ele começou a escrever histórias próprias, e por volta dos dezenove anos, tendo-se tornado fã de ficção científica, ele começou a vender a vender as suas histórias a revistas. John W. Campbell, o editor de Astounding Science Fiction, foi uma forte influência formativa e tornou-se um amigo.

Asimov foi aluno das New York City Public Schools, inclusive a Boys' High School, em Brooklyn, New York. A partir daí ele foi para a Universidade de Columbia, da onde se graduou em 1939, depois tirando um Ph. D. em bioquímica em 1948. Entretanto, passou três anos durante a Segunda Guerra Mundial a trabalhar como civil na Naval Air Experimental Station do porto da Marinha em Philadelphia. Quando a guerra acabou, ele foi destacado para o U.S. Army, tendo só servido nove meses antes de ser honrosamente retirado. Durante a sua breve carreira militar, ele ascendeu ao posto de cabo baseado na sua habilidade para escrever à máquina, e escapou por pouco de participar nos testes da bomba atômica em 1946 no atol de Bikini.

Depois de completar o seu doutoramento, Asimov entrou na faculdade de Medicina da universidade de Boston, com que permaneceu associado a partir daí. Depois de 1958, isto foi sem ensinar, já que se virou para a escrita full-time (as suas receitas da escrita já excediam as do salário acadêmico). Pertencer ao quadro permanente significou que ele manteve o título de professor associado, e em 1979 a universidade honrou a sua escrita promovendo-o a professor catedrático de bioquímica. Os arquivos pessoais de Asimov a partir de 1965 estão arquivados na Mugar Memorial Library da universidade, à qual ele os doou a pedido do curador Howard Gottlieb. A coleção preenche 464 caixas em setenta e um metros de prateleira.

Asimov casou com Gertrude Blugerman (1917, Canadá–1990, Boston) em 26 de Julho de 1942. Tiveram duas crianças, David (n. 1951) e Robyn Joan (n. 1955). Depois da separação em 1970, ele e Gertrude divorciaram-se em 1973, e Asimov casou com Janet O. Jeppson mais tarde no mesmo ano.

Asimov era um claustrofilo; ele gostava de espaços pequenos fechados. No primeiro volume da sua autobiografia, ele conta um desejo infantil de possuir uma banca de jornal numa estação de metro no New York City Subway, dentro da qual ele se fecharia e escutaria o ruído das carruagens enquanto lia.

Asimov tinha aviophobia, só o tendo feito duas vezes na vida inteira (uma vez durante o seu trabalho na Naval Air Experimental Station, e uma vez na volta para casa da base militar em Oahu in 1946). Ele raramente viajava grandes distâncias, em parte por causa da sua aversão a voar adicionada as dificuldades logísticas de viajar longas distâncias. Esta fobia influenciou varias das suas obras de ficção, como as historias misteriosas de Wendell Urth e as novelas sobre Robôs em que entrava Elijah Baley. Nos seus últimos anos, ele gostava de viajar em navios de cruzeiro, e em varias ocasiões ele fez parte do "entretenimento" no cruzeiro, dando palestras baseadas em ciência em navios como os RMS Queen Elizabeth 2. Asimov era sabia entreter muitíssimo bem, prolífico, e procurado como discursador. O seu sentido de tempo era fantástico; ele nunca olhou para um relógio, mas falava invariavelmente precisamente o tempo acordado.

Asimov era um participador habitual em convenções de ficção cientifica, onde ficava amável e disponível para a conversa. Ele respondia pacientemente a dezenas de milhares de perguntas e outro tipo de correio com postais, e gostava de dar autógrafos. Embora ele gostasse de mostrar o seu talento, ele raramente parecia levar-se a si próprio demasiado serio.

Ele era de altura mediana, forte, com bigode e um obvio sotaque Brooklyn-Hebreu. A sua motricidade física era bastante limitada. Ele nunca aprendeu a nadar ou andar de bicicleta; no entanto, ele aprendeu a conduzir um carro depois de se mudar para Boston. No seu livro de humor Asimov Laughs Again, ele descreve a condução em Boston como "anarquia sobre rodas". Ele demonstrou o seu amor por conduzir na sua short story de ficção cientifica, 'Sally', sobre carros robô. Um leitor atento reparara que ele faz uma descrição detalhada de um dos carros a que chama 'Giuseppe', de Milan - o que significa que Giuseppe era um Alfa Romeo. Asimov não especificou nenhum outro tipo de veiculo em nenhuma das suas historias, o que levou muitos fãs a considerara que ele foi empregue por aquela marca de automóvel.

Os interesses variados de Asimov incluíram, nos seus anos tardios, a sua participação em organizações devotadas à opereta de Gilbert and Sullivan e em The Wolfe Pack, um grupo de seguidores dos mistérios de Nero Wolfe escritos por Rex Stout. Ele era um membro proeminente da Baker Street Irregulars, a mais importante sociedade a volta de Sherlock Holmes. De 1985 ate a sua morte em 1992, ele foi presidente da American Humanist Association; o seu sucessor foi o amigo e congênere escritor Kurt Vonnegut. Ele também era um amigo próximo do criador de Star Trek, Gene Roddenberry, e foram-lhe dados créditos em Star Trek: The Motion Picture pelos conselhos que deu durante a produção (dando a Paramount Pictures a impressão que as idéias de Roddenberry eram legitima especulação de ficção cientifica).

Asimov morreu em 6 de Abril de 1992. Ele deixou a sua segunda mulher, Janet, e as crianças do primeiro casamento. Dez anos depois da sua morte, a edição da autobiografia de Asimov, It's Been a Good Life, revelou que a sua morte foi causada por SIDA; ele contraiu o vírus HIV através de uma transfusão de sangue recebida durante a operação de bypass em Dezembro de 1983. [1] A causa especifica de morte foi falha cardíaca e renal como complicações da infecção com o vírus da SIDA. Janet Asimov escreveu no epílogo de It's Been a Good Life que Asimov o teria querido fazer publico, mas os seus médicos convenceram-no a permanecer em silencio, avisando que o preconceito anti-SIDA, se estenderia aos seus familiares. A família de Asimov considerou divulgar a sua doença antes de ele morrer, mas a controvérsia que ocorreu quando Arthur Ashe divulgou que ele tinha SIDA convenceu-os do contrario. Dez anos mais tarde, depois da morte dos médicos de Asimov, Janet e Robyn concordaram que a situação em relação à SIDA podia ser levada a publico.

No livro Escolha a Catástrofe, Asimov disserta sobre os futuros problemas que poderiam levar a humanidade à extinção e como a tecnologia poderia salvá-la. Em certa parte do livro, ele fala sobre a educação e como ela poderia funcionar no futuro.

"Haverá uma tendência para centralizar informações, de modo que uma requisição de determinados itens pode usufruir dos recursos de todas as bibliotecas de uma região, ou de uma nação e, quem sabe, do mundo. Finalmente, haverá o equivalente de uma Biblioteca Computada Global, na qual todo o conhecimento da humanidade será armazenado e de onde qualquer item desse total poderá ser retirado por requisição."

"...Certamente cada vez mais pessoas seguiriam esse caminho fácil e natural de satisfazer suas curiosidades e necessidades de saber. E cada pessoa, à medida que fosse educada segundo seus próprios interesses, poderia então começar a fazer suas contribuições. Aquele que tivesse um novo pensamento ou observação de qualquer tipo sobre qualquer campo, poderia apresentá-lo, e se ele ainda não constasse na biblioteca, seria mantido à espera de confirmação e, possivelmente, acabaria sendo incorporado. Cada pessoa seria simultaneamente um professor e um aprendiz."
Isaac Asimov - 1979

Asimov pretendia escrever 500 livros e, por pouco, não atingiu essa marca; escreveu 463 obras. Mas somando todos os livros, desenhos e coleções editadas totalizam-se 509 itens em sua bibliografia completa. Asimov pode ter escrito Opus 400, que seria uma comemoração de 400 publicações; contudo a lista de comemorativos da bibliografia vai apenas até o Opus 300.

Memórias de Asimov

"À Gertrude, com a qual estive casado, muito satisfatoriamente, durante oito anos, um mês, duas semanas, um dia, duas horas, 45 minutos e alguns segundos".

A dedicatória que abre uma de suas obras parece mais a afirmação do divórcio de Isaac Asimov. Asimov deu fim a sua vida matrimonial com Gertrude em suas Memórias, atrevendo-se por fim a expressar algumas opiniões não tão positivas e triunfantes como tinha por costume. Para Janet, sua segunda esposa, a quem dedica um livro, tem em troca, umas belas palavras: "minha companheira de vida e pensamento". Confessou que lhe foi infiel e de seus dois filhos tidos com ela, Robyn era sua preferida. Adorava-a e sentia-se muito mal porque ele morreria e Robyn sofreria com isso. De seu outro filho, David, apenas umas linhas. De forma estranha confessa que seu matrimônio com Gertrude durou doze anos porque tinha dois filhos. É interessante somar-se à sua vida familiar a sinceridade com que Isaac trata este assunto e porque está muito longe da imagem de triunfador nato e otimista da que tanto lhe gostava se ostentar.

Asimov havia escrito outros dois livros de memórias. Terminou em 1990 e Janet teve que se encarregar de sua edição, que ocorreu dois anos depois, mesmo que Isaac nunca o tenha visto publicado. Seu último livro, escrito em 1991, foi “Asimov sorri de novo”, e depois apenas teve forças para realizar algum outro artículo periódico. Desde agosto de 1991, até a sua morte, em 6 de abril de 1992, sofreu um grande declive físico e teve constantes hospitalizações. De acordo com o que relata Janet, pelo menos, morreu em paz, em companhia de Robyn e dela mesma.

Alguns dos aspectos mais insuspeitos de Isaac Asimov se somam em suas memórias. Acostumado com seu excelente humor, sua megalomania simpática e sua hiperatividade contagiosa, neste último texto, o escritor reconhece que algumas matérias como a economia eram-lhe indigeríveis - Pág.54: "Não seria de nada escutar o professor nem estudar o tema. Pela primeira vez em minha vida tropecei com uma barreira mental, algo que não podia fazer entrar na minha cabeça" - e que seus estudos de licenciatura foram um fracasso: escolheu a química para doutorar-se por simples eliminação. Pág.83: "Eliminada a zoologia tive que escolher entre química ou física. Eliminei a física porque era muito matemática. Depois de muitos anos resolvendo a matemática facilmente, cheguei finalmente ao cálculo integral e me choquei contra uma barreira. Dei-me conta de que havia chegado o mais longe possível, e até hoje nunca pude ir mais além".

Entre outros aspectos, tinha vertigem, odiava viajar, era um adicto ao trabalho e eludia qualquer situação incômoda (quando Janet esteve internada para ser operada de um câncer de mama, ele estava viajando!). Tudo isso foi compensado, como qualquer admirador sabe, com uma fé em si mesmo inquebrável e um conhecimento claro de quais eram seus talismãs. Pág. 84: "Começava a dar-me conta de que eu não era um especialista, de que em qualquer campo do conhecimento haveriam muitos que saberiam muito mais do que eu e que, talvez, poderiam ganhar vida e alcançar a fama nesse campo, enquanto eu não. Eu era um generalista, tinha conhecimentos consideráveis sobre quase tudo. Haviam muitos especialistas de cem ou de mil classes diferentes, mas, eu disse a mim mesmo, só haveria um Isaac Asimov". E assim foi. É o escritor mais popular de ficção científica e de divulgação científica, até o ponto de seu nome ser garantia de vendas para qualquer livro do gênero. As editoras sabem e exploram isso. O escritor se perpetua assim, interminavelmente.

O grande orador que gostava de falar em público, era um amigo fiel e grato, que nunca deixou desamparados seus amigos.

Asimov estava apaixonado por si mesmo e encerrou estas Memórias com uma das frases mais tristes que só um homem que sabe que vai morrer pode confessar: "Não espero viver para sempre, não me aflijo por isso, mas sou fraco e gostaria de ser recordado eternamente".


OBRAS

Série Fundação
Os romances dessas três séries foram publicados como histórias independentes. Mais tarde, Asimov sintetizou-os em uma simples e coerente 'história' que apareceu na extensão da série fundação.

Série Robô:
Caça aos Robôs (1954) (primeiro romance de ficção científica com Elijah Baley)
Os Robôs (1957) (segundo romance de ficção científica com Elijah Baley)
Os Robôs do Amanhecer (1983) (terceiro romance de ficção científica com Elijah Baley)
Os Robôs e o Império (1985) (seqüência da trilogia Elijah Baley)
O Homem Positrônico (1993) (com Robert Silverberg, um romance baseado no antigo conto de Asimov "The Bicentennial Man")

Série Império Galáctico:
827 Era Galática (1950)
Poeira de Estrelas (1951)
As Correntes do Espaço (1952)

Trilogia Fundação:
Fundação (1951)
Fundação e Império (1952)
Segunda Fundação (1953)

Extensão da série Fundação:
Fundação II (em Portugal "No Limiar da Fundação") (1982)
Fundação e a Terra (1986)
Prelúdio à Fundação (1988)
Crônicas da Fundação (em Portugal "Notas Para um Império Futuro") (1993)

Romances que não fazem parte de séries
Fim da Eternidade (1955)
Viagem Fantástica (1966) (uma novelização do filme apresentando uma equipe de cientistas viajando dentro do corpo humano)
Despertar dos Deuses (1972)
Viagem Fantástica: Rumo ao cérebro (1987) (não é uma seqüência do primeiro Fantastic Voyage, mas sim uma história independente).
Nemesis (1989)
O Cair da Noite (1990) (com Robert Silverberg, um romance baseado em um conto mais antigo).
The Ugly Little Boy (1992) (com Robert Silverberg, um romance baseado em um conto mais antigo).
(Ainda que essencialmente independentes, alguns desses romances têm relações mínimas com a série "Fundação".)

Coletâneas de pequenas histórias
Lista de pequenas histórias de Isaac Asimov
I, Robot - Eu, Robô (1950)
The Martian Way and Other Stories (1955)
Earth Is Room Enough (1957)
Nine Tomorrows (1959)
The Rest of the Robots (1964)
Nightfall and Other Stories (1969)
The Early Asimov (1972)
The Best of Isaac Asimov (1973)
Buy Jupiter and Other Stories (1975)
The Bicentennial Man and Other Stories (1976)
The Complete Robot (1982)
The Winds of Change and Other Stories (1983)
Robot Dreams (1986)
Azazel (1988)
Gold (1990)
Robot Visions (1990)
Magic (1995)

Mistérios
Romances
The Death Dealers (1958) (republicado mais tarde como A Whiff of Death)
Murder at the ABA (1976) (republicado mais tarde como Authorized Murder)

Coletâneas de pequenas histórias
Black Widowers and others
Asimov's Mysteries (1968)
Tales of the Black Widowers (1974)
More Tales of the Black Widowers (1976)
Casebook of the Black Widowers (1980)
Banquets of the Black Widowers (1984)
The Best Mysteries of Isaac Asimov (1986)
Puzzles of the Black Widowers (1990)
Return of the Black Widowers (2003) contains stories uncollected at the time of Asimov's death, in addition to contributions by Charles Ardai and Harlan Ellison

Não-ficção
Ciência popular
Adding a Dimension (1964)
Asimov on Numbers (1959)
Asimov's Chronology of Science and Discovery (1989, second edition extends to 1993)
Asimov's Chronology of the World (1991)
The Chemicals of Life (1954)
Choice of Catastrophes (1979)
The Clock We Live On (1959)
The Collapsing Universe (1977) ISBN 0-671-81738-8
The Earth (2004, revised by Richard Hantula)
Exploring the Earth and the Cosmos (1982)
The Human Brain (1964)
Inside the Atom (1956)
Isaac Asimov's Guide to Earth and Space (1991)
The Intelligent Man's Guide to Science (1965)
Jupiter (2004, revised by Richard Hantula)
Life and Energy (1962)
The Neutrino (1966)
Our World in Space (1974)
Quasar, Quasar, Burning Bright (1977)
Science, Numbers and I (1968)
The Secret of The Universe (1990)
The Solar System and Back (1970)
The Sun (2003, revised by Richard Hantula)
The Sun Shines Bright (1981)
The Universe: From Flat Earth to Quasar (1966)
Venus (2004, revised by Richard Hantula)
Views of the Universe (1981)
Words of Science and the History Behind Them (1959)
The World of Carbon (1958)
The World of Nitrogen (1958)

Guias
Asimov's Guide to the Bible, vols I and II (1981)
Asimov's Guide to Shakespeare
Outros
Opus 100 (1969)
The Sensuous Dirty Old Man (1971)
Asimov's Biographical Encyclopedia of Science and Technology (1972)
Opus 200 (1979)
Isaac Asimov's Book of Facts (1979)
The Roving Mind (1983) (collection of essays). Nova edição publicada por Prometheus Books(1997)

Conferência de Isaac Asimov na Universidade do Estado de Michigan (MSU) em 1974

“Quando eu publiquei meu primeiro livro, me fizeram muitas perguntas, como: ‘Bem, é bom? ’ - e eu realmente não sabia o que dizer. ‘O que dizem os corretores? ’ - e haviam muito mais perguntas.
E muito rápido me dei conta, que só havia uma maneira de solucionar aquilo. Eu rapidamente me sentei, e escrevi mais de 145 livros, e agora ninguém pergunta os nomes, ninguém pergunta se são bons, ninguém me pergunta... ninguém me pergunta nada!

Eles só dizem: '146 livros, uau! ’. Porque... porque você sabe, se você se detém pensando nisso. ‘Que diferença há se são bons ou ruins? Você já tentou escrever 146 livros ruins? ’.
Então a pergunta: ‘Bem, como você faz... como você faz para escrever tanto? ’.
Eu constantemente me pergunto. ‘Como faço para escrever todos esses livros? ’.
E a resposta é muito simples. Eu jogo fora os pensamentos, as dúvidas.
Você diz que você não acredita em mim, verdade? Mas é a verdade.
Você compreende quantos livros não são escritos por pensar-se?
Isto é, você escreve a primeira frase: ‘Era uma noite escura e chuvosa? ’.
E isso está bem! E você deveria seguir em frente, mas você não o faz.
Você comete o erro fatal de pensar e diz: ‘Não é suficientemente dramático’.

E você escreve... corrige, e volta a escrever de novo: ‘Uma noite escura e chuvosa, isso é o que era’.
E então você pensa: ‘Não, é muito dramático’.
Talvez você queira abrir um ar de incerteza: ‘Era uma noite escura e chuvosa? ’

E então você pensa um pouco mais, e você diz: ‘Não, não, eu... eu estou estropiando-o, isto é o anticlímax’. E você diz: ‘Era uma noite chuvosa e escura! ’. Bem, isto continua assim sempre, e você nunca escreve o livro?

Agora, bem, eu não faço isto. Eu começo com a promessa de que a maneira que eu escrevo na primeira vez é a certa. Como resultado, eu odeio os críticos literários. Eles podem observar, estudar e analisar, mas eles não podem fazê-lo.”

Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Isaac_Asimov