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domingo, 21 de julho de 2013

André Telucazu Kondo (As Curvas do Trabalho)

Pintura de Anita Malfatti
André é de Caraguatatuba – SP
(Cronica Vencedora do VI Concurso Literário “Cidade de Maringá” 2013)

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    Como muitos descendentes de japoneses de minha geração, refiz o caminho inverso àquele trilhado pela geração anterior. Se meus pais haviam emigrado do Japão ao Brasil, para aqui trabalhar, eu buscava o Sol Nascente para iluminar o meu labor. Só que raramente via o sol nascer ou se pôr. Saía para o trabalho antes que o sol semeasse a luz nas planícies e chegava em casa muito tempo após ele ter sido colhido pelas montanhas.

    Nas poucas folgas que tinha, gostava de pedalar por entre as plantações, sentindo o sol na pele. Morava em uma pequena localidade, um pouco afastada da fábrica em que trabalhava e, principalmente, do frenético pulsar dos apressados trabalhadores das grandes cidades. Porém, mesmo naquele ambiente bucólico, o labor se fazia presente.

    Não pude deixar de reparar em algumas velhinhas trabalhando na lavoura. Suas costas arqueadas mostravam o peso do trabalho que carregavam por toda a vida. A primeira vez que vi aquilo, senti uma ponta de tristeza. Pobres senhoras, tendo que trabalhar em idade tão avançada...

    Vi as velhinhas preparando e semeando a terra. Vi a paisagem se transformar, como se o verde brotasse das mãos daquelas senhoras. Vi a plantação crescendo, ficando cada vez mais bonita. Mas nada aliviava a visão daquelas corcundas tão curvadas. Sentia pena daquelas senhoras, ao mesmo tempo em que me questionava se teria que trabalhar pelo resto da vida, até que a idade me curvasse também.

    Após um longo tempo pedalando por entre as plantações, chegou o dia da colheita... Por todos os cantos, as velhinhas se curvavam ainda mais para buscar na terra o fruto de seus labores. Quando elas se levantaram, mesmo com as costas ainda encurvadas, é que eu finalmente enxerguei a beleza das curvas.

    Não eram mais as curvas das costas que eu via, mas as curvas em suas faces. A curva do sorriso do trabalho bem feito, o sorriso de satisfação de poder colher os frutos do labor. Então, eu sorri também. Senti alegria por aquelas idosas trabalhadoras. E desejei ter a saúde necessária, para que mesmo que o tempo me curve as costas, eu ainda possa trabalhar também. E, claro, que esse labor me curve o rosto, em um sorriso como aqueles que colhi, na terra de meus trabalhadores avós.

Fonte:
Livro do VI Concurso Literário “Cidade de Maringá” 2013

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

A Crônica


Origem

A palavra crônica deriva do Latim chronica, que significava, no início da era cristã, o relato de acontecimentos em ordem cronológica (a narração de histórias segundo a ordem em que se sucedem no tempo). Era, portanto, um breve registro de eventos.

No século XIX, com o desenvolvimento da imprensa, a crônica passou a fazer parte dos jornais. Ela apareceu pela primeira vez em 1799, no Journal de Débats, publicado em Paris.

Esses textos comentavam, de forma crítica, acontecimentos que haviam ocorrido durante a semana. Tinham, portanto, um sentido histórico e serviam, assim como outros textos do jornal, para informar o leitor. Nesse período as crônicas eram publicados no rodapé dos jornais, os "folhetins".

Essa prática foi trazida para o Brasil na segunda metade do século XIX e era muito parecida com os textos publicados nos jornais franceses. Alencar foi um dos escritores brasileiros a produzir esse tipo de texto nesse período .

Com o passar do tempo, a crônica brasileira foi, gradualmente, distanciando-se daquela crônica com sentido documentário originada na França. Ela passou a ter um caráter mais literário, fazendo uso de linguagem mais leve e envolvendo poesia, lirismo e fantasia.

Diversos escritores brasileiros de renome escreveram crônicas: Machado de Assis, João do Rio, Rubem Braga, Rachel de Queiroz, Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Henrique Pongetti, Paulo Mendes Campos, Alcântara Machado, etc.

Ainda hoje há diversos escritores que desenvolvem esse gênero, publicando textos em jornais, revistas e sites.

CARACTERÍSTICAS

A crônica é, primordialmente, um texto escrito para ser publicado no jornal. Este, como se sabe, é um veículo de informação diário e, portanto, veicula textos efêmeros. Um texto publicado no jornal de ontem dificilmente receberá atenção por parte dos leitores hoje.

O mesmo tende a acontecer com a crônica. O fato de ser publicada no jornal já lhe determina vida curta, pois à crônica de hoje seguem-se muitas outras nas próximas edições.

Há semelhanças entre a crônica e o texto exclusivamente informativo. Assim como o repórter, o cronista se alimenta dos acontecimentos diários, que constituem a base da crônica.

Entretanto, há elementos que distinguem um texto do outro. Após cercar-se desses acontecimentos diários, o cronista dá-lhes um toque próprio, incluindo em seu texto elementos como ficção, fantasia e criticismo, elementos que o texto essencialmente informativo não contém.

Com base nisso, pode-se dizer que a crônica situa-se entre o Jornalismo e a Literatura, e o cronista pode ser considerado o poeta dos acontecimentos do dia-a-dia.

A crônica, na maioria dos casos, é um texto curto e narrado em primeira pessoa, ou seja, o próprio escritor está "dialogando" com o leitor. Isso faz com que a crônica apresente uma visão totalmente pessoal de um determinado assunto: a visão do cronista.

Ao desenvolver seu estilo e ao selecionar as palavras que utiliza em seu texto, o cronista está transmitindo ao leitor a sua visão de mundo. Ele está, na verdade, expondo a sua forma pessoal de compreender os acontecimentos que o cercam.

Geralmente, as crônicas apresentam linguagem simples, espontânea, situada entre a linguagem oral e a literária. Isso contribui também para que o leitor se identifique com o cronista, que acaba se tornando o porta-voz daquele que lê.

DESVENDANDO A CRÔNICA

Adiante, você verá algumas dicas para escrever sua própria crônica. Mas, caso você ainda não esteja muito confiante, aqui vai uma atividade que pode ajudá-lo a observar melhor esse gênero literário.

"Escândalos derrubam financista japonês"

Essa manchete foi publicada no jornal Folha de S. Paulo no dia 23 de julho de 1991. Com base nela, Ricardo Semler escreveu a crônica abaixo.

Crônica publicada no jornal Folha de S. Paulo, em 28 de julho de 1991.

É de puxar os olhos

E o camarão se mexeu. O danado estava vivo! Posso parecer um pouco caipira, já tinha comido peixe cru em restaurante japonês, mas cru e vivo, nunca! Foi só pegar no bicho com os tais pauzinhos e vuupt, o camarão deu um salto de samurai de volta para o prato. E assim progredia a visita ao Japão...

Descer no aeroporto de Narita leva à reflexão sobre o que incentiva milhares de nisseis a abandonarem o Brasil à procura de uma oportunidade no Japão. Logicamente, ganhar dinheiro verdadeiro é uma razão. Em vez de trocarem o seu esforço por uma moeda-piada do tipo cruzeiro, cruzado ou cruz-credo, o conforto de botar alguns iens no banco e saber que ainda estará lá quando for verificar o extrato. Até aí tudo bem. Mas fico pensando se o desespero é parte vital da decisão e se os nossos nisseis sabem no que estão se metendo.
Esta semana foi interessante aqui. A primeira-ministra da França, Edith "menina-veneno" Cresson, disse que os japoneses não sabem viver, que mais parecem umas formigas. O pessoalzinho daqui ficou uma vara. Passados alguns dias, bomba em cima de bomba com casos magistrais de corrupção nos mais altos níveis (ao leitor distraído reafirmo que estou em Tóquio e não em Brasília). Começou com o Marubeni, acusado de desvios de propinas para políticos. Aí, foi a vez da Nomura, a maior corretora de bolsa de valores do mundo, que andou desviando dinheiro e dando propina para políticos. E, para finalizar a novela da semana, a Itoman vê os seus executivos saírem algemados por envolvimento em - pasmem! - desvio de fundos e propinas para políticos. E foram três casos totalmente independentes um do outro...

Rumar para o Japão à procura do pote de ouro do fim do arco-íris é uma ingenuidade. O Japão é moderno, mas as suas tradições milenares desafiam qualquer análise ou compreensão superficial. É a meca da inovação, mas é também o país que mais copiou produtos na história industrial. Tem ares de liberdade de mercado, mas é uma das nações mais protecionistas e paternais do globo. É líder em tecnologia em diversas áreas, mas só deixa japoneses legítimos assumirem qualquer cargo de importância nas empresas. Fã do capitalismo livre, é mestre inigualável de intervenção estatal e poupança forçada. É nação orgulhosa de sua raça, mas os seus ídolos de comerciais não têm nem mesmo os olhos puxados, a exemplo de um comercial muito popular por aqui com o nosso "acerera A-i-roton"! Aos nisseis que pensam em vir para cá, cabe a mesma reflexão que vale para Nova Jersey ou Lisboa. Todas as nações têm muito a ensinar, mas também muito a aprender. Nivelar as expectativas com os pés no chão fará com que nossos imigrantes voltem algum dia ao Brasil para ajudar a desatolar o nosso país com o que vivenciaram fora. É bom colocar tudo no prato para evitar, como no caso do meu camarão rebelde, que se acabe comendo cru...

Texto extraído do livro
Embrulhando o Peixe - Crônicas de um Empresário do Sanatório Brasil. Ricardo Semler. Editora Best Seller. 2ª ed. São Paulo. 1992. p. 58 - 59.

Atividades com base na crônica

Com base na crônica e na manchete do jornal acima, tente realizar as atividades a seguir:

1) Quais são as idéias defendidas por Semler ao longo do texto? Tente fazer uma lista com essas idéias.

2) Será que você tem a mesma opinião sobre esse assunto? Faça uma lista com as suas idéias.

3) Em que parte do texto Semler menciona o acontecimento que dá origem à sua crônica? No início? Ao longo do texto?

4) Como Semler encerra sua crônica? Há alguma ligação entre a frase que encerra e a que inicia a crônica?

5) O escritor estabeleceu alguma relação entre o Brasil e o fato ocorrido no Japão?

6) Qual o "recado" central que Semler quer dar com esse texto? Existe, na crônica, alguma frase que sintetize essa idéia?

Muito bem! Você pode fazer exercícios como esse usando crônicas recentes, que são publicadas em jornais e revistas.

Ricardo Semler
O empresário Ricardo Frank Semler nasceu em São Paulo, em 1959. Ficou bastante conhecido graças ao seu livro Virando a própria mesa, no qual relata suas experiências ao propor uma gestão democrática em sua empresa. Foi eleito o empresário do ano em 1990 e em 1992. Mais tarde, passou a escrever crônicas para o jornal Folha de S. Paulo, abordando assuntos polêmicos de forma crítica e bem humorada.

FAÇA SUA CRONICA

Agora é a sua vez!

Ao ler crônicas, você conhece a visão de mundo daquela pessoa que escreveu o texto. Tão interessante quanto isso é você mesmo tentar encontrar a sua forma de ver e questionar o mundo ao seu redor. Como? Escrevendo sua própria crônica. Além de observar mais atentamente as pessoas e situações que fazem parte do seu dia-a-dia, você estará exercitado sua redação ao tentar construir textos claros e, ao mesmo tempo, criativos.
As etapas abaixo podem servir como um guia caso você esteja começando a se aventurar pelo mundo da crônica. Com o tempo, você desenvolverá seu próprio processo criativo e o texto surgirá de forma natural, sem que seja necessário seguir etapas definidas.

Etapas para escrever sua crônica:

1. Escolha algum acontecimento atual que lhe chame a atenção. Você pode procurá-lo em meios como jornais, revistas e noticiários. Outra boa forma de encontrar um tema é andar, abrir a janela, conversar com as pessoas, ou seja, entrar em contato com a infinidade de coisas que acontecem ao seu redor. Tudo pode ser assunto para uma crônica.
É importante que o tema escolhido desperte o seu interesse, cause em você alguma sensação interessante: entusiasmo, horror, desânimo, indignação, felicidade... Isso pode ajudá-lo a escrever uma crônica com maior facilidade.

2. Muito bem. Agora que você já selecionou um acontecimento interessante, tente formular algumas opiniões sobre esse fato. Você pode fazer uma lista com essas idéias antes de começar a crônica propriamente dita.
Frases como as que seguem abaixo podem ser um bom começo para você fazer a sua lista:

"Quando penso nesse fato, a primeira idéia que me vem à mente..."
"Na minha opinião esse fato é..."
"Se eu estivesse nessa situação, eu..."
"Ao saber desse fato eu me senti..."
"Sobre esse fato, as pessoas estão dizendo que..."
"A solução para isso..."
"Esse fato está relacionado com a minha realidade, pois..."

Como você deve ter notado, é muito importante que o seu ponto de vista, a sua forma de ver aquele fato fique evidente. Esse é um dos elementos que caracterizam a crônica: uma visão pessoal de um evento.

3. Agora que você já formou opiniões sobre o acontecimento escolhido, é hora de escrever sua crônica. Seu ponto de partida pode ser o próprio fato, mas esse também pode ser mencionado ao longo do texto, como ocorre na crônica exemplificativa de Ricardo Semler.

Escreva! Pratique! E procure usar a criatividade para criar seu próprio estilo, pois é isso que faz de um escritor um bom cronista.

Fontes:
http://www.tvcultura.com.br/

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Aluisio de Azevedo (O Japão Crônica) final

Pintura de Isis Lucena
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5.o Capítulo

A ABERTURA

O leonino arreganho não produziu porém o efeito que esperava o leão, e as ovelhas acabaram por lhe fazer amargar um bem mau quarto de hora. Contavam sem dúvida os britânicos que as coisas se passariam como pouco antes na sua brutal e desumana expedição de Changai. — Quia nominor leo! mas os japoneses não eram chineses, não tremeram de medo com as ameaças da Soberana dos Mares, ao contrário, mal o Micado teve notícia da atrevida reclamação, expediu ostensivamente o seguinte manifesto aos trinta e seis mais importantes dos duzentos e sessenta e dois principais daimos do Império, no qual transparece toda a singela fortaleza de sua alma:

"Meus príncipes. As gentes desses navios de guerra ingleses; que por teima estão aí fundeados em Yokohama, pedem-nos contas pela morte de alguns de seus compatriotas assassinados em nosso país, e como satisfação querem não sei quais e quantas coisas, de que nem vale a pena tratar, porque nenhuma delas sem dúvida lhes será concedida. Mas, como a formal e desprezível recusa há de dar em resultado a guerra imediata, preparai-vos para ela com ânimo seguro. De minha própria mão vos envio Eu, Micado, este aviso para que estejais prontos no primeiro momento. A campanha será aberta por mim em pessoa."

O que há de mais notável neste ato é o modo pelo qual o Imperador já se dirige diretamente aos daimos, a quem chama "Meus Príncipes", pondo assim inteiramente de lado a autoridade shogunal. E não pára aí a inesperada ação do ex-fantasma de Kioto: calculando este que o astucioso Shogun lhe poderia destruir a obra tão bem começada, trata de isolá-lo dos ministros estrangeiros e de evitar que entre eles se tramem novas maquinações contra os seus planos; manda chamá-lo com a máxima urgência, dizendo-lhe que lhe precisa fazer em segredo de Estado importantíssimas revelações. Iyemochi cai no laço e vai a Kioto. Declara-lhe o Micado, em confidência íntima, achar-se o país em crise, e que pois a capital do Imperador e os seus arredores devem ser defendidos pelas forças permanentes do Estado confiadas ao Shogun; e que decidida como está a expulsão dos estrangeiros, haverá guerra provavelmente e daí negociações e ajustes a fazer pelo competente Poder Executivo debaixo das vistas do Chefe da Nação; o que só pode ter lugar no porto de Osaka por ser o mais próximo da Corte Imperial (trinta e poucas milhas de distância); e mais que, declarada a guerra, competirá ao Shogun assumir o comando geral das forças e entrar logo em ação.

E, depois de uma pausa, em que o silêncio foi absoluto, o Micado acrescentou, franzindo levemente as sobrancelhas:

— Será essa ocasião, meu jovem Shogun, a de melhor patenteardes a lealdade devida ao vosso Imperador e de pordes em relevo a vossa dedicação pela causa pública, usando daquela mesma energia e veemência com que repelistes à mão armada o miserável bando de maltrapilhos e famintos que vos foi importunar em Yedo!

Iyemochi fingiu não compreender e disse com um meio sorriso:

— Mas... tenho então de abandonar o governo do país? ... Parece-me que...

- Não vos dê isso cuidado, príncipe, atalhou o Imperador, far-vos-ei substituir durante a guerra por pessoa competente. Cumpra cada qual o seu dever observando as minhas ordens e o resto ficará por minha conta, que também saberei cumprir com o meu. Na ocasião solene de assumirdes o comando das armas, confiar-vos-ei, de mão a mão, a mesma sacrossanta espada que o imortal fundador da vossa dinastia recebeu diretamente das divinas mãos do meu antepassado Goyo Zei, quando tiveram que repelir, em condições talvez piores que as de hoje, a primeira invasão ousada pelos bárbaros do Ocidente nesta nossa terra tão bem fechada dentro das "Cem Leis" por Tokugawa Ieiás, e a qual os descendentes deste pretendem agora abrir à cobiça e à sensualidade dos nossos inimigos! (Iyemochi tossiu sem levantar os olhos.) Aprontai-vos para a guerra seguro da vitória, Tokugawa Iyemochi! Hão de chegar-vos à boca o peixe e o sakê do triunfo! Com a espada de Goyo Zei não podereis sair senão vencedor; além de que, é minha intenção ajudar-vos pelo meu lado, suplicando ao poderoso espírito de meus avós que lá das sublimes alturas vos proteja diretamente na patriótica expedição. Confiai nisso! e ficareis satisfeito comigo, suponho eu, pois creio não ter regateado convosco as minhas graças.

Iyemochi curvou-se até poder olhar pela frente os seus próprios joelhos e respondeu:

— Satisfeitíssimo, Imperial Senhor! Longe de haverdes regateado as vossas mercês, confundistes o meu cabal imerecimento com tanta prodigalidade. Vou daqui, sem perda de um instante, dar todas as providências para que as vossas sagradas ordens sejam cumpridas à risca... Parto imediatamente para Yedo e...

— Não! contrapôs o Imperador. Convém aos interesses do Estado que vos quedeis em Kioto; dar-vos-ei parte quando for oportuno o tomardes à vossa capital. Por enquanto vos deterei amigavelmente ao meu lado e, para que nada vos falte aqui, vou mandar pôr à vosas disposição os domésticos de que houverdes mister e, além das gueichas e menestréis mais escolhidos do meu kókio (harém), uma guarda de honra na altura da vossa condição.

O Shogun baixou a cabeça sem responder palavra. Estava prisioneiro. O coração naturalmente lhe estalava de cólera, mas na sua fisionomia não transluziu dela o menor vislumbre, porque não era debalde que os chins durante muitos séculos tinham ensinado ao Japonês o segredo da inalterável compostura do gesto, a fria ciência búdica de governar com a vontade a expressão do rosto no meio das mais fortes comoções morais, anestesiando os nervos condutores e impedindo-lhes levarem ao semblante nem a menos lúcida centelha do oculto incêndio, tapando a tempestade interior com uma indecifrável máscara de cadáver; triste e amarela ciência que é bem da Ásia, e que só poderia ter sido refinada a tal extremo por uma raça velha, impassível e hipócrita como a raça chinesa.

Foi com o mais fino e perfeito sorriso nos lábios e com a mais airosa reverência que o galante chefe dos Tokugawas se afastou do seu carcereiro, a recolher aos principescos aposentos de papel de seda que lhe haviam destinado no chiro imperial.

E aqui tem o leitor como conseguiu o Micado fechar na mão a influência do Shogun. Produziu logo o fato grande escândalo nos paços de Sua Majestade; ninguém atinava como poderia funcionar daí em diante a administração pública, pois que o Imperador não haveria de ser ao mesmo tempo poder deliberativo e poder executivo. Qual então seria agora o seu intermediário para com os daimos, se o chefe dos príncipes ficava preso em Kioto? Iria o Monarca chamar à alçada do Trono as Cortes Shogunais de Yedo? Mas isso, — que lhes valesse Amateras! — daria uma balbúrdia de todos os diabos! rosnavam entre si, perplexos e formigantes os cortesãos imperiais, que nada entendiam de administração e viam periclitar muito a sério o seu doce e defumado ócio.

Entretanto Komei, sem consultar nenhum dos seus Conselhos, nomeia o prestigioso Owari para substituir em Yedo o Shogun durante a guerra; encarrega Nabeschima, daimo com direito à sua inteira confiança, de defender militarmente a vasta bacia de Kuanto, onde se acha aquela capital, e entrega ao príncipe de Hizen, de quem já conhece a lealdade, a direção das forças marítimas que devem proteger as duas baías de Suruga e Sagami e as costas da península de Izo. E a todos os daimos, cujos principados confinem com o litoral, ordena que se recolham às competentes províncias e que se provenham para a guerra.

Quanto à indenização inglesa, nada, nem a mais ligeira referência nos seus atos oficiais; apenas, entre as instruções secretas dadas a Owari, no momento da partida deste, recomenda-lhe que, a todas as perguntas do Ministro inglês sobre o caso, vá respondendo sempre que o Shogun, em razão de interesse público e ordem direta do Imperador, se acha, por tempo indeterminado, ausente da sua capital, e que só ele pessoalmente pode dizer qualquer coisa sobre o assunto, pois foi o Shogunato quem, lá por conta própria; engendrou essa pantominice dos tratados, da qual, como contrária que é às leis do pais, não cogita o Chefe da Nação, nem está disposto a cogitar; e mais que, se os ingleses impugnassem tais razões com ofensas graves, então prendesse o Ministro e todos os mais que pudesse da mesma nacionalidade, facultando-lhe todavia os meios de comunicarem à sua esquadra que serão irrevogavelmente enforcados na praia à primeira manifestação hostil partida de bordo para a terra.

Nada disso porém chegou a acontecer. Terminado o prazo dos vinte dias, quando a Nação, já disposta para a guerra, contava que o Almirante Kuper resolvesse lançar mão das tais medidas coercivas com que o Ministro a ameaçara, eis que este, à vista da ausência do Shogun, oferece um novo prazo de igual tamanho, e depois ainda outro, que naturalmente não seria o último, se um fato decisivo ocorrido em Yokohama, onde havia então o único settlement existente no Império, não viesse de modo imprevisto torcer o rumo da questão.

É que, enquanto no litoral se armavam as fortalezas e no interior as eminências das montanhas, e enquanto os Tokugawas, tendo à frente os príncipes Aidzu, Ongasawa e Joren In, recorriam a todos os meios para libertar o seu chefe das mãos do Imperador, começava em Yokohama a formar-se o vácuo em volta dos estrangeiros que aí residiam, em número maior do que era de esperar da má vontade dos donos da terra. Sem causa apreciável, sem nenhuma justificativa, nem o menor comentário, organizava-se, pela calada e metodicamente, a emigração do elemento indígena, de uma à outra ponta do settlement.

Que significaria isso?... Que novidade haveria?... Ninguém o explicava, e, um atrás do outro, lá se iam esgueirando os empregados do comércio e os serventes domésticos naturais do país, alguns até abandonando o saldo a receber, sem nenhum deles declarar ao patrão porque deixava o serviço, nem para onde se punha. Qual seria o motivo de tão estranha greve? Os operários largavam a obra ao meio, perdendo o que estava feito; desmanchavam-se ajustes vantajosos; retiravam-se compromissos e palavras; fechavam-se casas comerciais e particulares depois de absolutamente esvaziadas; cambistas, negociantes, corretores, bufarinheiros, kurumaias, kulis, todos enfim que constituíam o elemento nacional no settlement, desertavam silenciosamente, sem mostras de ressentimento, nem tristeza, carregados de trouxas e com a filharada às costas. Afinal, um ou outro retardatário, preso por interesses de alta monta, liquidava às pressas, sem olhar prejuízo, as últimas transações e, já com as bagagens e a carroça ou o barco à espera, despedia-se para sempre.

E então?

Os europeus, a olharem de boca aberta uns para os outros, sem atinar nenhum com a razão daquele súbito abandono, viram-se reduzidos aos seus recursos pessoais, porque já não havia quem os servisse; muito gentleman teve que escovar as próprias botas, e muita Iady que pôr o avental de cozinheira; e começaram logo a imaginar em iminência toda a sorte de perigos, acabando, como era natural, por apoderar-se deles o pânico, que ao fim de alguns dias tomava já as proporções de intolerável angústia.

E no meio desse sobressalto terrível, dessa expectação de uma desgraça que ninguém explicava, ou cada qual explicava a seu modo para maior ansiedade e desespero de todos, no meio dessa incógnita calamidade que ia rebentar sem se saber donde, nem quando, começaram a chegar, como um sopro de morte, as primeiras notícias de que as forças japonesas já se mobilizavam ganhando os litorais; que o Imperador havia marcado o dia definitivo para a expulsa-o dos estrangeiros, e que o "Bando dos Roninos", como chamavam eles aos agitados nativistas, já em fúria descia a estrada do Tokaido na direção de Yokohama para invadir e saquear.

Os ingleses, que eram os mais de perto ligados ao instante desastre e eram também os mais afligidos pelo terror, foram agarrar-se ao seu Ministro pedindo-lhe garantias de vida e de propriedade. Houve reunião de diplomatas, conselhos de autoridades navais, de chefes de corporação e companhias; trocaram-se notas entre as diversas legações presentes; e afinal o Ministro inglês comunica oficialmente aos seus compatriotas que "As forças reunidas nas águas japonesas sob o comando em chefe do Almirante Kuper não eram suficientes para proteger a colônia, garantir a existência e os bens dos súditos de Sua Majestade Britânica, residente no settlement de Yokohama, e que por conseguinte convidava os mesmos a tomarem até o dia 26 desse mês (julho de 1863) as medidas que lhes parecessem necessárias para se porem ao abrigo da guerra marcada para aquela data."

E esta?'

Foi pior que uma bomba explosiva tão inopinado ultimatum da Chancelaria inglesa, caindo em cheio sobre a ávida e orgulhosa colônia, cujos membros, justamente nesses dois últimos anos, tinham em grande número feito vir da Europa as competentes famílias para junto de si. E semelhante confissão de fraqueza por parte dos enviados oficiais da mais forte Potência marítima que ali se achava, punha, nem só os ingleses, mas todos os estrangeiros de Yokohama, em estreitíssimo apuro: se a Grã-Bretanha não podia proteger os seus súditos quanto mais os outros Estados!

E para onde diabo queria o Ministro inglês que fugissem os seus compatriotas? Para onde, se de um lado estavam as forças japonesas, aos milhares e assanhadas de ódio; e do outro o Oceano, sem um só navio que os abrigasse, pois os existentes eram todos indispensáveis para o combate? E como os ingleses, os mais se encheram de pavor; holandeses, russos, alemães, norte-americanos e franceses viam-se já encurralados no estreito setilement, com suas famílias e seus haveres, dentro de um círculo de fogo, exterminados até o último por uma guerra feroz e bárbara, feita a ponta de azagaia e bombas incendiárias como usavam os japoneses.

A agonia foi terrível. A cada momento contavam com o ataque do bando assolador. Então, nem era de esperar menos de tão superiores raças, acudiu ao alto espírito de todos os representantes estrangeiros as idéias filantrópicas e os deveres morais da civilização. Foram lembradas, na ardente eloqüência dos momentos críticos, todas as conquistas humanitárias feitas até esse ponto do nosso século de luz pelo Internacionalismo liberal e triunfante! "Para que a guerra? — pergunta oficialmente o Coronel Neale, em nome de todos os diplomatas residentes em Yokohama, no seu longo Manifesto de 19 de julho de 1863 dirigido ao Governador de Kanagawa e daquela cidade. — Para que a guerra, se o fim da Europa no formoso Oriente é a confraternização e a paz? Em vez de lutarmos, melhor será que nos entendamos e que nos amemos. O que por si impõe antes de mais nada, como indeclinável necessidade do progresso humano, é que o nobre, o corajoso Povo Japonês, a tantos títulos obrigado moralmente a compreender as nossas boas intenções, resolva por uma vez abandonar essa idéia de má vontade e resistência contra os povos amigos, contra os seus irmãos do Ocidente, que o procuram para a consorciação universal, e nos abra os braços e nos receba como nós outros em nossos países fazemos, nem só com os japoneses, mas com todo e qualquer indivíduo proveniente seja de que nação for."

O manifesto em que vinha este tópico de requentada ternura produziu o seu efeito, graças aos Tokugawas que trabalhavam ativamente contra a guerra. Desceu logo de Yedo uma Embaixada presidida pelo transator Sakai Ukio, ministro do Shogun e amigo dos estrangeiros, com o qual chegaram os ingleses à fala e logo entraram a negociar as pazes, ficando inteiramente de parte a pendência da indenização.

Entre os nativistas porém o efeito do manifesto foi bem diverso. Um deles chegou a litografar um violento libelo que fez espalhar por Yokohama e no qual, entre muitas coisas, dizia:

"Com que então esse Colosso Europeu, esse roncador atrevido, até aqui tão arrogante nas suas indevidas reclamações, encolhe-se agora diante do perigo, porque, diz ele, receia lhe matem a mulher e os filhos?! Mas não foi o perigo que os foi buscar à casa; foram eles que vieram buscar o perigo à casa alheia! Que se agüentem! se lhes é duro o transe, mais dura é a pedra em que a sua audácia nos converteu o coração! Tremem pela mulher, os filhos; e nós? nós acaso não teremos também família, que vivia feliz e tranqüila ao nosso lado, e agora se vê, talvez para sempre, privada do seu chefe que, em vez de cuidar dela; anda à aventura das armas para defender a outra sua família maior, que é a pátria?! Que é feito das tais medidas coercivas do famoso Almirante Kuper? Pois então, apesar de todo esse espetaculoso aparato de força; apesar dessas numerosas máquinas de guerra contra as quais só temos para opor o nosso brio nacional; apesar da tão celebrada ciência e tão decantada coragem desses orgulhos donos dos mares alheios; apesar dessas dragonas de ouro e desses chapéus de pluma que fizeram rebentar de medo o Imperador da China nas profundezas empedradas de Pekin; pois, apesar de tudo isso, nós, os japoneses, esparsos e mal disciplinados, sem outra arte na guerra mais do que a luta corpo a corpo e sem outra força além da própria coragem e da convicção patriótica, por tal modo os aterramos que, à primeira notícia de um ataque eventual, declaram-se impotentes para defender o território cinicamente ocupado contra a vontade do dono, e escondem-se atrás das saias da família, a pedir pazes com fementidas palavras de ternura?! Para que então gritaram tão alto?! Por que nos ofenderam, se não tinham coração para resistir?! Não! Nós, como o nosso Imperador, não queremos a paz, nem queremos amizade com estrangeiros! Guardem eles para si a sua civilização e os seus progressos e com eles se fartem para longe de que lhos não pediu! Resistiremos até o fim! Se os degenerados Tokugawas conseguirem reter os Daimos, não conseguirão jamais reter o nosso ódio mortal e a enorme sede de vingança que nos devora; e nós, que já não temos outro chefe, além dos deuses e do Micado, havemos de tapar com terra a boca que nos insultou!"

Quando subiu ao conhecimento do Imperador a proposta de paz, fez ele logo enviar, como resposta, a todos os representantes diplomáticos estrangeiros as seguintes singelíssimas palavras:

"Meu Povo não quer relações com estrangeiros. A cada momento a gente do país está matando ou está com vontade de matar ingleses, e a Inglaterra quer que se pague. O meu Governo fez já quanto pôde a ver se as coisas se acomodavam, nada porém conseguiu, nem conseguirá, em razão do entranhado ódio do meu Povo pelos estrangeiros; ódio que aperta de dia para dia que nem o sol do mês de agosto. Assim resolvi fechar definitivamente os portos e convidar por bem os estrangeiros a que se retirem do país para evitar novas questões."

Enquanto o Micado procedia deste modo, tão franco, tão superior e tão singelo, o Ministro inglês, de mãos dadas ao da França, obtinham ambos corresponder-se com o Shogun e, aproveitando a falsa posição política em que se achava este perante o Imperador e perante o povo, de um prisioneiro e do outro desprezado, propunham-lhe secretamente uma aliança ofensiva e defensiva, comprometendo-se a auxiliá-lo com as forças navais de que dispunham, caso ele quisesse readquirir o alto poder que lhe havia escapado das mãos.

Este fato não precisa comentários; basta dizer que é um caso histórico corrente em todas as crônicas japonesas, mas que nenhum europeu ou norte-americano o narra de modo claro e positivo nos seus livros.

Compreende-se que aos estrangeiros não conviesse de maneira alguma o aniquilamento do Shogun, principalmente depois que o Imperador declarara não cogitar dos tratados lá entre eles feitos; compreende-se ainda que, conhecendo aqueles um pouco melhor agora o mecanismo da política japonesa e reconhecendo ter pisado em falso, quisessem a todo custo salvar de modo airoso a própria situação; mas o que se não compreende é que essa gente civilizada não tivesse um pouco de consciência ou de escrúpulo em urdir o mal, que estava a tramar contra a paz e os direitos desse pobre povo, a quem pediam pazes em nome da filantropia e do amor universal. Positivamente tinham os japoneses razão em chamar-lhes bárbaros! E note-se que, se por um lado os diplomatas estrangeiros se mostravam desumanos, por outro se revelavam inábeis, porque pretender destronar o Micado era pisar muito mais em falso ainda do que ter tomado o Shogun pelo Imperador do Japão como fizeram na primeira descaída. Seria mais fácil arrasar o Fuji Yama ou transladar para a Califórnia o Daibutsu, como diligenciaram os yankees na sua impertinente megalomania, do que pôr abaixo o divino espectro de Kioto do místico pedestal em que havia dois mil e duzentos anos imperava. Tentando semelhante coisa, o que conseguiriam os estrangeiros havia de ser, e com efeito foi, ensangüentar a presa que acossavam e agravar a desgraça dos Tokugawas, a quem aliás deviam gratidão por serem esses no país a única força ativa que os não desprezava, nem odiava. Verá depois o leitor em que espécie pagou o Inglês aos descendentes de Ieiás essa excepcional proteção, sem a qual todavia não teriam penetrado no sedutor arquipélago, senão depois de arrasá-lo com a sua civilização de grande alcance forjada na universidade de Krupp.

O Shogun, coitado! acolheu com as duas mãos a proposta que solicitamente lhe levavam os dois civilizadores ministros; mas, ao aconchegá-la reconfortado ao peito, picou-se logo num espinho que ia dentro dissimulado no embrulho, era o ultimatum da indenização.

— Ah! isso era sagrado! explicou o inglês; antes de mais nada, convinha satisfazer Sua Majestade Britânica a respeito daquelas belas cento e tantas mil libritas reclamadas. Sem isso não havia negócio feito!

E o que a isto se seguiu é inacreditável. O Shogun que, apesar de tudo, dispunha ainda do Tesouro público e era por si mesmo e sua família imensamente rico, entrou com o Ministro inglês no seguinte acordo. Pagava as cento e cinqüenta e cinco mil libras esterlinas, mais que fossem, porque a questão não era de dinheiro; pagava, com uma condição porém — o Ministro inglês havia de comprometer-se, sob palavra de honra, a guardar segredo, de modo que o fato não transpirasse dentro do Japão e que jamais, em nenhuma hipótese, fosse sabido pelo Micado, nem pelo povo.

O Inglês aceitou. Pudera! E a indenização foi efetivamente paga em segredo, às quatro horas da madrugada do dia 24 de agosto de 1863. O dinheiro foi levado à Legação da Inglaterra em carretas de mão e dentro de cunhetas abarrotadas de muito boa moeda de prata e ouro.

Vergonhas de parte a parte. Ah! mas o Japão heróico e brioso não tinha morrido com a família Tokugawa. Enquanto essas baixezas se mercadejavam no balcão da Chancelaria londrina com um indigno descendente de Ieiás, o destemido Mori, o príncipe de Nagato, em cujas veias corria o mesmo sangue de Mito, ao saber do ocorrido,. corre às fortalezas do litoral, denuncia o revoltante caso e toca com os seus três frágeis navios para as águas de Chimonoseki na entrada do Mar Interior, onde se ostentavam vasos de guerra de todos os Estados ocidentais com pretensões no Japão, e aí, cercado de seus samurais intransigentes e protegido pelas baterias de terra, lavrou o protesto da honra nacional, cuspindo balas sobre aqueles, do primeiro ao último, ao mesmo tempo, sem medir forças, nem escolher bandeiras. Bombardeou o navio inglês Euryalus, os franceses Kien-Chan, Tancrêde, os norte-americanos Pembroke e Wyoming, o alemão Semiramis, e o holandês Medusa, que ficou incendiado, a arder no meio daquelas águas profanadas, com a triunfante pira do patriotismo, ali acesa por um raio vingador para iluminar a eterna desafronta.

Agora, que vencessem os estrangeiros! só venceriam já esbofeteados!
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segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Aluisio de Azevedo (O Japão Crônica = Capítulo 4)



Capitulo 1 - http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/10/aluisio-de-azevedo-o-japo-cronica.html
Capítulo 2 - http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/11/alusio-de-azevedo-o-japo-crnica-captulo.html
Capítulo 3 - http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/01/aluisio-de-azevedo-o-japo-cronica.html
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Eliminaram Ii Kammon, mas o grande fato estava consumado, bem ou mal os tratados concluídos, e o Japão aberto aos estrangeiros.

Em breve, à semelhança da América do Norte, os Estados europeus entravam de mandar os seus representantes diplomáticos, e atrás destes surgiam logo, de focinho arregaçado e palpitante, os primeiros furões comercias, os farejadores de negócios virgens de exploração, os avançados de Ashaverus que aí já vinha se arrastando azafamado de saco vazio às costas; enquanto do arquipélago muitos indígenas curiosos, estalando por gosto o ocidental fruto até aí proibido pelas "Cem Leis", muniam-se de ouro e tomavam as pressas o primeiro barco a sair para a China, com medo de que, uma vez morto o Regente, não fosse de novo trancada a autorização de viajar pelo estrangeiro. Esta leva tão espontânea, quase toda de gente moça e rica, na melhor parte inteligente e ávida de aprender coisas novas; haveria no futuro de influir também nos acontecimentos políticos do país.

Quanto ao que neste ia por dentro, agora a grande questão pública era apurar se valiam ou não valiam os tratados apenas com a assinatura do Shogun. O Imperador abanava as mãos e sacudia os ombros, declarando a quem lhe ia falar em credenciais e exequatur que não lhe constava haver nenhum compromisso formal entre o seu império e qualquer Potência estrangeira; e que de sua parte evidenciassem ao novo Regente a necessidade de desenganar semelhantes importunos antes de ser preciso lançar mão dos meios extremos. Ao mesmo tempo decreta a retirada de todo o forasteiro que se ache no território sem clara e positiva autorização do Micado, e delega a Mito essa incumbência, repetindo-lhe numa carta escrita de seu próprio punho, a frase da vassoura e da poeira com que ele havia ressuscitado do outro mundo para acudir ao momento crítico.

Visionário! Agora já não era uma simples esquadra que flutuava nas águas japonesas, era uma formidável armada constituída pelo contingente marítimo das principais potências do mundo. Dir-se-ia um congresso universal nas costas do Japão, porque, além das bandeiras que de tão longe vinham por defender os seus tratados, outras novas iam chegando desejosas de entrar também em fala com a sedutora esfinge do Extremo Oriente.

E os radicais elementos patrióticos do altaneiro Sul coração do Império, sequiosos por descarregar em alguém ou alguma coisa a raiva de cruel despeito em que ardiam, nada podendo fazer contra o verdadeiro objeto do seu impotente desespero, voltaram-se contra a instituição a que pertencera o causador de tio irreparável desastre nacional; tomando porém o Shogunato para alvo dos golpes que precisavam descarregar, forçoso era opor-lhe em campo de combate a bandeira de outro poder, pelo qual se batessem e pelo qual, no momento da vitória, substituíssem o do vencido, resolveram então, depois de muito bem discutir o caso, adotar o unitarismo do Trono como ideal político. Mito, consultado, aplaudiu-os e deu-lhes de conselho que procurassem pôr à sua frente os príncipes do extremo sul.

Foi desse modo que se formou, para logo se desenvolver maravilhosamente, o partido popular do Imperador, coisa que até aí nunca tinha existido no movimento político do país. Ora, como o pobre Soberano, no seu empírico patriotismo, punha antes de tudo a preocupação de expulsar os estrangeiros, o novo partido, por cair-lhe em graça, fez o seu lema com o grito de guerra "Honra ao Micado! Fora os bárbaros!", apesar de compreender perfeitamente a impossibilidade de levar a efeito nessa ocasião tão adorado sonho.

Assim pois vinha à luz o partido do Imperador já com um plano de mistificação urdido contra o seu próprio chefe, disposto a servir-se da mesma maromba que caíra das mãos fracas de Yeçada e que servira Ii Kammon para equilibrar os seus primeiros passos no governo, pois como esses iria dizendo ao Micado que se constituía e fortificava só com o fim de bater os estrangeiros, quando a sua real intenção era, pelo menos antes de cuidar doutra coisa, combater o Shogunato.

Os daimos do sul, ligando-se a esse elemento popular, não calculavam o alcance que contra eles próprios poderia ter a campanha empreendida, não previam que a unificação do poder do trono iria absorver também o dos principados; e contavam ingenuamente que, abolido o Shogunato, o Império voltaria sem dúvida ao regime feudal de antes de Yoritomo, quando os príncipes governavam ao lado do Imperador e não estavam sujeitos i alçada do Shogun. Quanto ao que pensava a Nobreza e Povo com respeito aos estrangeiros, era opinião corrente que qualquer ação decisiva seria impossível contra eles enquanto existissem a Corte e as forças shogunais para defendê-los dentro do país, desde porém que o Imperador concentrasse na mão todo o poder e comandasse diretamente os daimos, claro estava que a questão seria prontamente resolvida.

Eis aqui em que estado se achava o país nas vésperas da sua grande revolução. A terrível guerra civil que se ia abrir, isto é, a luta de parte dos príncipes e parte do povo contra a instituição do Shogunato ou contra a dinastia dos Tokugawas, era pois conseqüência direta dos atos de Ii Kammon e não tinham raízes em nenhum fator político precedente à chegada do Comodoro Perry, como pretendem os ocidentais nos seus livros sobre o Japão.

Alçando-se o partido do Imperador até a esfera dos príncipes do sul, que eram muito unidos e poderosos, converteu-se em força disciplinada capaz de fazer frente à do Shogun, contra a qual ninguém até aí se atreveria a levantar o braço. Para ter o leitor idéia justa da importância dessa campanha, convém lembrar-lhe quão extensa permanecia então a autoridade shogunal. Além das suas inveteradíssimas tradições, mantidas por enorme família e filtradas durante dois séculos e meio ininterruptamente até os íntimos refolhos da alma da nação, era mais que considerável a força material de que dispunha, graças à maravilhosa posição por Ieiás escolhida para sede do seu poder. O grande homem havia, nem só aproveitado admiravelmente as condições topográficas do Império, como a dos elementos militares que encontrou disseminados por todas as províncias, cujos castelos fortificados se acharam sempre nas mãos de príncipes por muitos laços jungidos à família Tokugawa e à instituição agora ameaçada. A zona Tokugawal propriamente dita era a enorme bacia de Kuanto na parte leste da grande ilha central do Japão, compreendendo oito províncias cercadas de montanhas abruptas que lhes serviam de natural defesa, com os seus despenhadeiros inacessíveis, não deixando ao inimigo outro ponto estratégico mais que a cidade de Hokone na província de Izo, entre as duas bacias de Suruga e de Sagami, lugar este precisamente onde Ieiás estabelecera as barreiras dos seus vastos domínios territoriais e em que lhe era fácil verificar uma a uma as pessoas que neles penetravam. Nessas oito províncias de Kuanto residiam os oitenta mil hattamotos, vassalos diretos dos Tokugawas, os quais por sua vez, como nobres, tinham nos samurais inferiores os seus vassalos próprios. Toda essa gente se levantaria em massa ao primeiro apelo do chefe suserano.

Yedo, capital do Shogun e centro das suas operações militares, está no fundo de um golfo, cuja boca estreita era defendida de um dos lados pela fortaleza de Futsu e do outro pela de Kannonzaki, e tinha como tem, as costas guardadas por uma anfractuosa cordilheira de montanhas que só dão uma garganta praticável, a de Akonê. Em volta, para além das penedias e quebradas, todos os príncipes fortificados, menos o de Mito em Hitachi e Chimoosa, eram simpáticos à causa dos Tokugawas; e para o norte até Hakodate em Yezo, e para o sudoeste, e na ilha de Sikok, até certo ponto da ilha de Kiuciu ao sul, não havia um daimo inimigo dela, podendo por conseguinte as forças do Shogun moverem-se por toda a parte, certas de que só poderiam encontrar auxílio e proteção. Os únicos pontos do Império que escaparam à imensa rede estendida por Ieiás eram, além de Hitachi e Chimoosa a noroeste, o extremo sul da ilha de Kiuciu, onde se acham as províncias de Ocumi e Satzuma, e o extremo oeste de Hondo em que existe a de Nagato. E foi precisamente destes pontos que rebentou a guerra.

Havia assumido a regência do Shogunato Ando Tsusima, como ministro sucessivo do príncipe de Hikone. É um comparsa sem feitio próprio, com quem não vale a pena gastar muitas palavras em descrevê-lo; sumir-se-á daqui a pouco nos bastidores, substituído pelo dono legítimo do papel, Iyemochi, que reclama o seu cargo e entra a exercê-lo antes mesmo da maioridade comum, no Japão fixada aos vinte anos; comum, disse eu, porque a dos membros da família imperial é privilegiadamente contada dos dezoito anos em diante, e a dos príncipes Tokugawas era a partir dos quinze.

Como esperavam todos, Ando Tsusima, galgando o poder, declarou logo sustentar os atos e a norma política do seu antecessor, mas ao mesmo tempo, para fazer crer que não persistiam divergências entre o Shogunato e o trono micadoal, abriu mão do príncipe de Mito, a quem Ii Kammon havia condenado ao exílio perpétuo e a quem o Imperador agora por último delegava a expulsão dos estrangeiros; e faz melhor: consegue a aliança do seu jovem chefe Iyemochi com uma princesa ainda mais jovem, irmã legitima do Micado; pomposo casamento que se realizou em 15 de dezembro de 1860.

Nada disto porém impediu que continuasse cavado o abismo entre as duas Cortes, como não impediu que se desse, para mais agravá-lo, o seguinte revoltante fato: precisando Mito recompor uma parte desmantelada das trincheiras do seu castelo e estando com toda a gente ocupada, mandou chamar de fora alguns pedreiros; apresentaram-se oito sujeitos com o traje característico daquele ofício e armados de picaretas, martelos e alavancas (no Japão cada artífice trazia sempre o seu uniforme próprio). Confiou-lhes o príncipe o trabalho e foi em pessoa mostrar o que havia de fazer. Os oito operários desceram com ele ao fundo das fortificações e lá, vibrando as ferramentas que levavam, o trucidaram e mais a dois pajens que o acompanhavam. Aos gritos destes últimos, acudiram as sentinelas, mas antes já os assassinos tinham galgado os fossos e mergulhado nas valas sem deixar rastros de si. Eram os oito samurais que em Yedo sobre o cadáver de Ii Kammon haviam jurado vingar-lhe a morte.

Semelhante crime, tão vil e traiçoeiro, tão contrário aos usos cavaleirescos do japonês do tempo, achou enorme repercussão na alma generosa do povo, a quem sem dúvida não desagradava um homem que só tinha coração para amar o seu imperador e odiar os estrangeiros; pelo menos todas as classes armadas, até mesmo as hostes do Shogun, viam em Mito a legítima e briosa expressão do velho sentimento nacional. A nódoa daquela covardia chegou para todos os samurais que foram de Ii Kammon; alguns rasgaram o ventre sentindo-se desonrados; e, sabendo-se que Iyemochi ao ouvir falar do monstruoso crime, tivera um mau sorriso e nenhuma providência dera para castigar os criminosos, nobreza e povo começaram a ver nele um Tokugawa degenerado e um dinasta perverso, apesar da sua extrema juventude e natural donaire que o faziam simpático aos olhos da nação. O Imperador, desde esse fato, começou a desdenhá-lo.

Com a morte do seu idolatrado chefe, os nativistas de Hitachi e Chimoosa sentem-se desamparados, ali tão cerca de Yedo, valhacoito do estrangeirismo, e tão longe do extremo sul, onde palpitava o coração da pátria. O sucessor natural de Mito era uma criança e no horizonte político da nação não havia ainda então apontado o vulto juvenil e petulante de Mori Daízen, príncipe de Nagato, parente do assassinado, e que foi quem o secundou no ardor da convicção e na audácia franca de sustentá-lo pelas armas.

À falta de sinceridade e firmeza nos chefes nativistas, ganhava terreno a causa dos estrangeiros, fortalecida agora pela veemência do novo Shogun; herdeiro de muito ódio e muita sede de vingança contra os inimigos da sua dinastia. Mas, enquanto com mil disfarces, e às pressas se levantavam em Yedo, no Coten Yama, terreno de propriedade particular dos Tokugawas, os edifícios destinados às legações ocidentais, ia minando o pais nas mais fundas camadas até aí indiferentes à agitação política, um surdo mal estar, uma angustiosa desesperança no futuro, um desses perigosos descontentamentos do povo, que são já principio de raiva e revolta contra os que governam. Entretanto, nem uma só parcela de tal repugnância pública visava a pessoa do Micado, porque o pobre povo, na sua instintiva vidência, compreendia, adivinhava, que contra os invasores da pátria, só havia agora em campo duas vontades sinceras — a dele próprio e a do Imperador, dois utopistas, dois ignorantes da vida nova, dois ludibriados pelas ambições dos outros, desses outros que só faziam política de intriga, tratando cada qual do seu particular interesse. O Shogun, a Corte Shogunal, a Corte Imperial, os príncipes do Sul, os príncipes do Norte, todos disputavam entre si o maior quinhão de domínio público sem cogitar nenhum deles da ferida que fazia gemer a pátria apunhalada.

Mas esse contínuo gemido sem socorro pode transformar-se em uivo de tempestade feroz; aquele surdo e recalcado desespero pode de súbito fazer-se aspiração nacional e rebentar com fúria, devorando todos os poderes constituídos para só deixar firme e de pé as duas expressões sinceras da nação — O Micado e o povo. Foi isto o que não souberam ver, o Shogun, nem os senhores feudais, nem a Corte do Imperador, nem o seu próprio partido. É fácil enganar diplomatas estrangeiros, mal conhecedores do verdadeiro mecanismo político do país que os engana; é fácil mistificar um monarca espiritual, sofismar-lhe as ordens e torcer-lhe a vontade ao sabor dos ministros que ele supõe governar; mas iludir um povo ferido no seu patriotismo, isso deixa de ser difícil para ser impossível e só pode ter conseqüências desastrosas para o temerário que o surpreender. E foi isso justamente o que aconteceu. Muitos soldados começam logo a abandonar entristecidos os seus nobres chefes, a quem de corpo e alma obedeciam, para se incorporarem à ventura, sem patentes nem garantias, aos grupos sediciosos que se vão formando entre os samurais do sul e os roninos de todo o Império. O recente partido do Imperador estala em pedaços, e cada cisão é mais uma nuvem sinistra que vai bandear-se com a tempestade iminente. Em breve de Hitachi e Chimoosa, as duas províncias viúvas do único príncipe com que contava o povo, surgem multidões armadas que chegam até às portas da capital do Imperador, soltando o mesmo grito de guerra do partido despedaçado, mas agora não como simples embuste para agradar ao chefe e sim fazendo dele o sincero programa do seu ideal político. "Honra ao Micado! Fora os bárbaros!" é agora um ardente grito d'alma e há de ecoar por todos os recantos do país até a explosão da mina.

E começam os saques e as pilhagens, porque toda essa gente que grita, de mãos arrancadas para o céu e olhos desvairados pelo ódio, já não trabalha nem ganha com que comer. O terror invade os campos abundantes e os centros populosos por onde voa essa multidão devastadora, mas ninguém, por medo ou espontânea cumplicidade, não se atreve a denunciar um deles. E das mãos do lavrador e do operário arrancam as ferramentas para as transformar em armas de combate.

Todavia, essa gente, que os alheios historiadores do Japão tratam com tão negro e desabrido rancor; essa gente que exerce a pilhagem para não morrer de fome, nada mais quer do que a deixem morrer gloriosamente defendendo a pátria ferida e sem socorro, a tenda em que vivem honrada e feliz e que agora, tão mesquinha! parece abandonada dos seus divinos príncipes e dos seus humanos deuses. Essa alucinada farândola, que lá vai, legião de espectros! — a correr, uivando através dos campos e das cidades, de província em província, de castelo em castelo, anda doida, como seu Imperador, à procura de uma espada que a conduza contra os malditos abutres que lhe invadem o ninho paterno. É morto porém o grande Mito, o homem que partiu o coração em duas conchas, para encher uma de amor nativo e com ela dar de beber à sua raça, e a outra de ódio envenenado reservada às que viessem lá de fora banquetear-se no inviolável e sagrado arquipélago de Amateras; é morto o grande Mito, e os príncipes que aí restam de pé, nem parecem descenderem dos preclaros daimos dos tempos heróicos — Satzuma negou-se a comandar o bando desamparado; negaram-se outros; negaram-se todos.

Então, como as primeiras bolhas de uma efervescência subterrânea, irrompem por aqui e por ali, em plena rua das duas capitais e das cidades imediatas, represálias cruéis já ensopadas em sangue: no dia 14 de janeiro de 1862 assassinam em Yedo a golpes de machado o Secretário da Legação norte-americana, Heusken, então interinamente encarregado de negócios, e que acabava de representar papel saliente nas pretensões internacionais do seu país; em 15 de julho do mesmo ano, o templo cedido pelo Shogun à Inglaterra para ai fazer funcionar provisoriamente a sua Legação, é atacado durante a noite e são estranguladas as duas sentinelas inglesas que o guardavam e detruídos todos os móveis, escudo d'armas, bandeiras, livros e papéis que havia dentro; em seguida é uma tentativa de morte contra Ando Tsusima, que escapou gravemente ferido e inutilizado para o resto da vida, tendo de abandonar por vez o Governo no qual persistia em atividade como ajudante d'ordens de Iyemochi; depois foi uma descarga de arcabuzes contra um grupo de cinco estrangeiros que passeavam no Tokaido e o assassínio do inglês Richardson; logo adiante o incêndio da nova Legação da Inglaterra, cujo edifício se acabava de construir no parque de Goten Yama em Kioto; e outros, e outros desforços se sucederam, e outros e outros terão de vir, e as provocações por parte dos nacionais se irão multiplicando cada vez mais cruas e destemidas. O bando impetuoso avulta e enrobustece de dia para dia; já não é a humilde farândola que suplicava um braço armado, é agora um indômito vulcão que rola de norte a sul, de leste a oeste, deixando atrás de si o arquipélago aceso na cólera por ele desencadeada; é um baluarte ambulante que à nação inteira se impõe pelo desespero da causa que o agita; é uma força tempestuosa, desordenada e cega, que depois de varrer a necrópole dos Tokugawa em Nikko, decepando as centenas de ídolos de granito celebrados dos shoguns passados, vai à Corte Imperial tomar-lhe contas pela infame lentidão e covarde cautela que estão pondo seus membros em cumprir as ordens do Chefe do Estado, e vai depois ao castelo do próprio Imperador para pedir-lhe que se não deixe ludibriar por mais tempo, que abandone a sua túnica celestial, envergue as armas dos seus antepassados de antes de Yoritomo e venha cá fora à rua, entre o seu povo, repelir à frente dele os bárbaros atrevidos.

O soberano não aceitou o alvitre, mas atendeu comovido aos que reclamavam; chegou a mandar, contra todas as fórmulas da etiqueta micadoal, descer as portas do chiro, abrir as portas do sagrado recinto e mostrar-se à multidão, envolto espectralmente da cabeça aos pés, num enorme véu todo negro, que lhe não deixava transparecer o menor vislumbre das suas formas de homem.

A multidão prosternou-se com um gemido de súplica, emborcando por terra, braços estendidos, rosto colado ao chão. E aquela imóvel sombra divina, daquele mistério todo negro, uma voz saiu e ressoou, amiga e humana, no meio do religioso silêncio, como um balbuciar de bênçãos enviadas pelo céu. A boca do santo falou pela segunda vez, para dizer:

- O espírito dos meus avós penetrou vossas entranhas e é convosco! A vossa vontade é a vontade do meu coração, e ela se fará verdade, se os Deuses a quem pertenço me não tomarem antes para junto de nossa mãe formosa e cheia de luz. Em nome de Amateras vos digo que tomeis ao vosso lar pelo caminho da satisfação: vou remeter ao Shogun ordem terminante para repelir os bárbaros. Ide vós, e que os olhos de Izananmi vos acompanhem pela estrada!

Cerrou-se o reposteiro do santuário e desapareceu o divino espectro. A multidão ergueu-se com um suspiro de consolo, e foi feliz e reconfortada de esperança que retirou do sagrado reduto, bradando o seu grito de guerra contra os estrangeiros e em honra do Micado.

Este, cumprindo o que acabava de prometer, expediu logo ao Shogun por cinco kugês uma ordem escrita de seu próprio punho, na qual, descobrindo-se de novo, fazia já sentir bem ao vivo a sua ascendência monárquica. Os emissários partiram a galope para Yedo e o bando de nativistas atirou-se a correr na mesma direção.

Eis o que dizia a carta do Imperador:

Desde a primeira vinda dos tais americanos, Eu Micado, dei ordem para varrê-los do meu Império. Não fui atendido. Meu coração vive agitado dia e noite, porque até hoje nada se decidiu com respeito à expulsão dos bárbaros. Entre as forças regulares do Estado e as forças vivas da Nação não existe a menor coerência; de sorte que, em vez de guerra com o inimigo exterior por mim determinada, é a guerra civil que ameaça agora devorar e país. Para evitar esta tão grande calamidade e outras que depois ainda sobrevenham, pois a desgraça é má e medrosa e nunca se apresenta desacompanhada, recomendo ao Shogun que delibere positivamente sobre a expulsão dos invasores, e leve quanto antes esta minha irrevogável ordem ao conhecimento de todos os príncipes fortes do Império. O Shogun, na qualidade de Comandante em Chefe dessas forças, há de achar meios estratégicos de pôr em execução as minhas ordens. Tal é o seu dever e tal é a minha vontade de Imperador.

"Vigésimo oitavo dia do quinto mês" (25 de junho de 1862).

Os nativistas não tardaram a surgir em Yedo, reclamando a execução da ordem imperial e declarando ao Shogun que se achavam prontos a expulsar os bárbaros, se lhes desse ele elementos para a luta. Por única resposta, Iyemochi, que se havia prevenido, mandou destroçá-los pelos seus oitenta mil hattamotos.

Seguiu-se uma infernal tragédia, porque os visionários tentaram resistir e assaltar o castelo e foram completamente esmagados, deixando mais de vinte mil mortos no campo da sua heróica temeridade. Os que conseguiram escapar à rápida carnificina despejaram-se como demônios pelas ruas de Yedo, a lançar fogo em quarteirões inteiros da vastíssima capital. Mas naquele mesmo decreto do Imperador estava implicitamente imposta a anistia dos implicados nos sucessos contra Ii Kammon, e o Shogun, para não desobedecer de frente ao Soberano, teve que desencadear por suas próprias mãos os príncipes inimigos do Shogunato, Owari, Echízen, Uwajima e os outros postos em liberdade vão apresentar-se logo ao Micado e passam, por ordem deste, a exercer altos cargos na Corte Imperial, ou são restabelecidos na posição oficial que dantes ocupavam; por outro lado, o Monarca resolve punir com a supressão parcial nas rendas os daimos que s~ tinham posto ao lado de Ii Kammon.

Como se vê, já em fatos se traduzem os sonhos do divino fantasma e a situação política começa a definir-se. Os príncipes de Satzuma e de Tosa, acompanhados pelo de Nagato, o jovem e ardente Mori que até então não tinha aparecido na cena política, vão também apresentar-se ao Imperador e oferecer-lhe os seus serviços na defesa do Trono. Esses três príncipes formavam o mais poderoso núcleo de resistência entre todos os daimos do Império. Komei recebeu-os nadando em júbilo e entregou-lhes logo a guarda e segurança da sua capital, agora a regurgitar de população com o enxurro fugitivo dos litorais; gente fraca e desarmada que, no momento do perigo, ia abrigar-se estarrecida de medo à protetora sombra do filho dos deuses. Volvia esse povo, como no principio da sua formação étnica a agremiar-se em torno do centro espiritual da sua raça.

Para a sagrada Kioto voltavam-se todas as vistas, e os fidalgos não ligados diretamente ao Shogun por interesses dinásticos de família, cargo público ou solidariedade política, entraram de abandonar Yedo que era nessa época, como ainda é hoje, a maior e mais importante cidade do Japão; nos rastros da nobreza seguem também os artistas e os obreiros, e afinal os mercadores, com a tenda às costas, arribam por sua vez. É o abandono palpável da capital do homem mau. O restante da população levanta-se em massa, e da noite para o dia a incomensurável Yedo despovoa-se de todo, não ficando lá senão os Tokugawas, os hattamotos, e a Corte de Iyemochi com as suas duas câmaras, e os seus samurais e funcionários permanentes

Por essa ocasião, a 15 de abril de 1863, o Ministro plenipotenciário da Inglaterra, em termos arrogantes, reclama uma indenização de cem mil libras esterlinas pelo assassínio de Richardson, desculpas formais pedidas pelo Governo Japonês ao Governo daquela Potência, e a execução dos criminosos diante de uma força naval da Marinha Britânica que iria à terra só para esse fim; e mais vinte e cinco mil libras pelos feridos em diversas ocasiões, e mais dez mil pelas duas sentinelas mortas no ataque à legação provisória, limitando em vinte dias o prazo para uma resposta categórica e declarando que, no caso de recusa ou negligência por parte do Governo Japonês, passaria a questão às mãos do Comandante em Chefe das forças navais de Sua Majestade Britânica nas águas do Extremo Oriente, o Almirante Kuper, para que tomasse este as medidas coercivas que lhe parecessem acertadas.

Bárbaros lhe chamavam os filhos do país, e com razão, porque bárbaro não é só o que comete barbarias, é também todo aquele que comete barbaridades.
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continua...
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Fontes:
http://www.biblio.com.br
Pintura =
http://meublocodeanotacoes.blogspot.com

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Aluisio de Azevedo (O Japão Cronica = Capitulo 3)

O Comodoro Perry Ii Kammon
Pintura de Isis Lucena
Foi sem dúvida o insólito advento dos estrangeiros no Japão, de 1853 em diante, o que, provocando a guerra civil em todo país, determinou a queda do Shogunato e a seqüente restauração do unitarismo imperial. Aqueles porém não conseguiriam penetrar e instalar-se no território, ou pelo menos muito mais caro lhes custaria o feito, se não fora a ardilosa política e traiçoeira audácia de um homem, cuja memória é ainda hoje execrada pelos japoneses da velha têmpera; e o qual de resto pagou com a vida nas mãos dos roninos semelhante ato, nem só contrário à vontade do Micado de então, Komei, pai do atual, como inteiramente oposto às aspirações da nação, que era nessa época profundamente nativista, desde a sua mais alta à mais baixa camada social.

Esse homem fatídico é o Daimo de Hikobe, Ii Kammon no Kami, que durante muito tempo exerceu o cargo de "Tairô", ou primeiro ministro, do Shogun Tokugawa Yeçada, e depois, com a morte deste, passou a ser o poderoso Regente do Shogunato durante a menoridade do sucessor, Tokugawa Iyemochi, príncipe de Kii, criança de treze anos.

Mas, para bem explicar como se deram os fatos, é preciso voltar atrás. O primeiro Ocidental que pôs pé no Japão, assinalando com obras a sua presença, foi um português, Mendes Pinto, em 1542. Antes deste, consta que no século XIII Marco Polo havia já desembarcado no arquipélago, se é com efeito o Japão o que ele nas suas famosas memórias chama "Zipangri" ou "Cipango"; tais revelações porém, verdadeiras ou fantasiosas, sem merecerem até hoje inteiro crédito nem dos próprios compatriotas do autor, não deixaram de si nenhum resultado positivo; podendo-se pois concluir que, a passagem do ilustre navegador veneziano pelo nipônico Império do Sol Nascente, é caso de efeito inteiramente nulo e que ninguém afirma com segurança.

Com Mendes Pinto a coisa muda de aspecto, não se contentou o investigador português com descrever as suas aventuras, muito mais desenvolvidas sobre o Japão e em nada menos interessantes que as do outro, foi a Macao e de lá conseguiu trazer para o arquipélago São Francisco Xavier e mais trinta jesuítas que, uma vez instalados em Kiuciu, atraíram novos, até formarem um núcleo forte e próspero de catechistas, ao qual não tardaram de incorporar-se os espanhóis e logo depois os holandeses, arrebatados estes últimos, não pela fé, mas pela cobiça.

Qual veio a ser nos primeiros trinta anos a boa fortuna dessa pacífica expedição já o leitor conhece, mas o que talvez ainda não saiba é que, à vista de tal êxito, os holandeses, a quem tanto faltava espírito evangélico quanto sobrava o de ganância, receando lhes viessem aqueles a fazer mais tarde concorrência comercial, principiaram a guerreá-los com a mais feia e intrigante deslealdade; como eram protestantes, afetaram pertencer a religião muito diversa da dos portugueses e, calcando aos pés o Crucifixo e fazendo toda a sorte de ridículas manifestações anticatólicas, perseguiram os missionários a ponto de fornecerem a Ieiâs a artilharia com que este exterminou os cristãos na célebre hecatombe de Chimabara.

Foi com esses e outros lances de igual jaez que os holandeses obtiveram, sob o governo de Tokugawa Iyemitsu, filho e sucessor de Ieiás, o privilégio de ficar no arquipélago, enquanto eram todos os mais estrangeiros enxotados e logo corridos a bala e ponta de azagaia. A despeito porém de tanta baixeza e tanta humilhação, permanecia latente no espírito do Shogun o desejo de varrê-los também pata fora do país, de sorte que os não deixava respirar com imposições e exigências cada vez mais cruéis. A um tal Francisco Caron, que em 1640 era o chefe da feitoria holandesa em Hirado, intimaram secamente para demolir todas as edificações por ele e seus patrícios construídas, porque dizia o mandado, se afastavam um pouco da forma arquitetônica nacional imposta pelas "Cem Leis", e os bons homens dos Países Baixos submeteram-se a isso sem o menor protesto e até com vivo e afetado empenho de bem cumprir as ordens do Governo, na esperança, já se vê, de que tais mostras de sujeição abrandassem os rigores oficiais e lhes facultassem a eles continuar a auferir os belos lucros que proporcionava o seu tráfico sem concorrência.

Maximiliano Lemaire, que, com a morte de Caron, o substituiu, obteve afinal do Governo, à força de súplicas e juramentos de solidariedade, concessão para construir uma ilha ao pé de Nagasaki, feita com a terra de uma colina próxima, para estabelecer nela a sua feitoria que não tinha onde abrigar-se. Essa ilha artificial, em hemiciclo, forma lisonjeira aos Tokugawa, cujo escudo era um leque de ouro com as rosas malvas do brasão de Ieiás no centro, chamou-se Dechima e foi o escasso recinto em que, durante trinta e dois anos, vegetaram os holandeses no Japão, sem família e sem direitos, privados de licença de arredar pé do presídio, a não ser com mil formalidades e só durante certas horas do dia, enchiqueirados lá dentro debaixo de uma fiscalização draconiana; não podendo receber da pátria por ano mais do que um navio, e sem vênia de entreter relações, fora das comerciais, com os japoneses e, ainda menos, com as japonesas, às quais era rigorosamente vedado o ingresso na ilha, como a toda e qualquer mulher estrangeira, menos a asiática, era defesa, sob pena de morte, a entrada no Império.

Semelhante reclusão teve, como era de prever, conseqüências ridículas. Nesse tempo não comiam ainda os japoneses outras viandas senão de aves e peixes; o boi era um animal sagrado, o porco desprezível e o carneiro inaclimável no território, apesar das d1-ligênncias nesse sentido tentadas pelos chineses e coreanos; ora, os holandeses, que não estavam dispostos a amargar, além do que já sofriam do Governo, os rigores da cozinha japonesa, faziam vir todos os anos da Europa um bom carregamento de gado ovelhum e caprino; quanto ao bife nem era bom falar nisso - animal consagrado! Assim, quando mais tarde, depois de muita lamúria, permitiu o Shogun que as "musmês" da mais baixa extração fossem ter à ilha Dechima e isso somente na ausência do sol, o povo começou de alcunhá-las de "Ovelhas" e "Cabras", qualificativo com que ainda agora grande parte dele estigmatiza a japonesa que partilha com qualquer ocidental o fruto do paraíso.

Mas o fato é que foram os holandeses os únicos europeus a permanecer no arquipélago desde 1625, época da expulsão definitiva dos estrangeiros, até 1853, quando um grito de alarma e de cólera ecoou por todo o país, arrancado pela arrogância do Comodoro norte-americano Perry, que se apresentara nas águas japonesas com uma esquadrilha composta de quatro navios de guerra, a reclamar o direito de ancorar, deter-se e traficar nos proibidos portos de Chimoda e Hakodate.

Dai Nipão já não era o mesmo quanto ao naturalismo espontâneo dos costumes. Duzentos e cinqüenta anos de profunda paz e desenvolvimento artístico, impostos pelos Tokugawas, tinham abafado o ardor bélico e turbulento dessa raça que agora se elevava já mais além de 40 milhões de indivíduos. Os acaroados arneses e as decorativas espadas de Massamore e da família Miotchim, os mais primorosos alfagemes da idade média japonesa, jaziam havia muito dependurados nos altares domésticos, como venerandas relíquias dos tempos heróicos e dos antepassados valentes. Os príncipes e daimos viviam então tranqüilos, a gerir as suas terras patriarcais, desistidos das antigas rivalidades de classe e descuidosos das armas; os respectivos samurais, dantes tão árdegos e revessos, eram agora os seus agentes de confiança na administração dos feudos.

Mas, se por um lado haviam a preguiça e a voluptuosidade invadido a aristocracia e a nobreza militar, por outro os artistas, os operários e a gente da gleba se tinham apurado pelo esforço inteligente ou pelo trabalho subalterno. Não se contava um só analfabeto no país.

E com efeito durante aquela extensão pacífica que atingiram a sua mais linda plenitude as artes e as indústrias japonesas, caindo depois vertiginosamente com a revolução e ameaçando hoje em dia desaparecerem para sempre, estioladas de todo pela macaqueação da arte européia e do industrialismo cosmopolita e banal. Os artistas japoneses, então diretamente protegidos pelos daimos senhoriais não faziam obra de afogadilho destinada ao comércio, que só em muito pequena escala existia no Japão.

Como tinham vida garantida pelo príncipe a que serviam, e absolutamente despreocupada de necessidades materiais ou de ambições burguesas, trabalhavam sem impaciência, sem pressa de acabar, e só cuidosos da perfeição e requintado esmero. Daí essas inverossímeis maravilhas de laca, de bronze, de esmalte, de mosaico, de porcelana, e todas as outras mil inapreciáveis coisas, das quais neste sincero livro muito tenho que vos referir; coisas que nunca mais se repetiram depois daquele tempo áureo e que, — infelizes dos olhos futuros! — nunca mais se farão em parte alguma do mundo.

E que o governo feudal dos daimos era, contido pelas sábias e humanas leis de Ieiás, nem só paternal para o povo, mas talhado de molde a favorecer a expansão do talento artístico. Com uma obra d'arte perfeita obtinham-se foros de nobreza, tença vitalícia e até hereditária, se acontecia neste caso, como era então muito comum, exercer a família do artista a mesma profissão que o chefe. Uma alçada, de imediata confiança do Governo Central, composta de cinco membros e dispondo de duzentos agentes de tradicional integridade, tinha a seu cargo a fiscalização da gerência dos principados, e, uma vez por ano, passava em revista todos os oitenta e quatro distritos do Império, recolhendo, uma por uma, as queixas e reclamações do povo; o protocolo de tudo isso seguia para Yedo a ser estudado e julgado pela Corte Shogunal, que punha em confronto essas partes populares com as contidas nos relatórios, também anuais, apresentados por cada um dos daimos governadores.

Em caso de denuncia de crime grave, o Shogun fazia vir à sua presença os interessados, acareava-os em plena audiência e, se o daimo tinha razão, entregavam-lhe o delinqüente para ser punido como de lei; mas, se ficava justificada a razão de queixa contra o príncipe, o Shogun anotava o depoimento das testemunhas com o seu parecer, e os autos subiam, pro forma, às mãos da Corte do Imperador que, imediatamente, em nome do Micado, convidava o daimo criminoso a abrir honradamente o ventre com a sua katana de fidalgo. E nunca se dava o caso de semelhante convite deixar de ser atendido com toda a solicitude, nem só porque ele significava áulica deferência prestada a um nobre do Império, corno também porque, se o criminoso não se prevalecia do privilégio, passava pelo negro vexame de acabar menosprezadamente decapitado, enforcado ou crucificado, conforme o dia da semana em que caísse a execução.

O produto de cada feudo era consumido pelo próprio feudo, não havia por bem dizer outra permuta fora da produção industrial e da produção agrícola; o mercador intermediário não estava classificado, porque também não existia ainda capital em giro de especulação. O organismo político do Estado, como a própria economia do povo, achavam-se na mais sinérgica integridade de equilíbrio e força; neles se não acusava nenhum dos vírus que na Europa perturbaram e destruíram o sistema congênere; não havia questão religiosa; não haviam rivalidades dinásticas em luta, nem reivindicações filosóficas e populares contra o direito divino do Trono ou contra a autonomia civil e militar do Shogun; não haviam tendências igualitárias transbordamento industrial dos limites que às competentes classes lhes traçavam as leis ieiasinas; a vida era fácil e simples, o país abundante; o clima em geral benigno, os patrões afáveis, o caráter do povo risonho e doce, como recomendou Ieiás, a fartura das terras e das águas afastava toda e qualquer insurreição de inferiores famintos contra superiores fartos; o patriarcalismo dos costumes, a sobriedade, o gosto da nudez; a ausência da moda, o enlevo amoroso pela natureza, punham a população ao abrigo dos apetites brutais e dos vícios caros e vaidosos de que se fazem os pronunciamentos e as plutocracias.

Não se acusava no corpo da nação o menor sinal dessa implacável moléstia oriunda dos Estados Unidos da América do Norte — a Febre do milhão, a cujo alucinador contágio nenhum 'país ocidental escapou até hoje; o dinheiro ainda servia só para ser gasto e não para ser multiplicado pela tabuada dos filhos de Israel; o capital ainda não era capital, era coisa secundária, não se tinha transformado em força viva e roda dentada que engrena, arrasta, mastiga e babuja a moral, o talento, o amor e o caráter da melhor porção do mundo moderno. Ninguém se azafamava correndo atrás dos galopantes cavalinhos de Dona Isabel, e não havia por conseguinte encontrões, nem choques, nem trambolhões; suicídios só por amor, por desafronta de honra ou em piedosa homenagem à morte de um amado chefe, militar ou doméstico, a quem por íntimo e espontâneo voto de lealdade se tivesse consagrado a vida. O Shogun era olhado pela população como um pai severo e bom, e o Micado como um taumaturgo padroeiro, compassivo e brando, em cuja influência divina contavam todos para obter entrada no céu.

A Nobreza, abençoada e quieta, desfrutava em respeitável paz os prazeres do espírito adubados com as delícias coreográficas que lhe davam entre sorrisos as maikos e as gueichas; livre e ainda forte para gozar, já impotente e manietada para levantar desordens. O povo pelo seu lado tinha tudo o que lhe desejava o coração ainda simples: as suas festas civis e religiosas, os seus espetáculos e justas de lutadores, os seus arraiais e os seus fogos de artifício. As relações sociais e as regalias públicas eram, como as relações e as regalias dos poderes constituídos, metodicamente e pontualmente exercidas e observadas. Enfim — a nação era feliz.

Durante esse largo período de bem-aventurança, as várias tentativas de quebrar o isolamento japonês, empreendidas pelos ingleses, pelos espanhóis e pelos russos, abortaram completamente. A disposição geográfica do terreno e as especiais condições meteorológicas do clima e da latitude eram vigilantes cúmplices do Tokugawa no seu apertado código das "Cem Leis"; eram a melhor garantia da estreita reclusão em que desejavam viver os donos do país, caprichoso arquipélago armado com mais de três mil e oitocentas ilhas perigosas, de costas escudadas por tufões e ciclones infernais. Qual seria o louco aventureiro que entestasse contra tais sinistros para ir lá dentro, em terra firme, dar talvez, por entre homens, com ainda mais duros rochedos e mais ferozes tempestades? Assim pois, o decreto de Iyemitsu, fechando positivamente o Japão em 1625 a todo e qualquer ocidental, depois de expelir, à exceção dos ostráceos holandeses, os poucos que lá restavam, não se via uma só vez desacatado até a revoltante chegada dos americanos.

E seja dito de passagem que, no modo de fazer respeitar essa lei, o Japonês foi sempre, assevera-o Georges Bousquet, tão lógico e firme quanto cortês e humano. Por ocasião de qualquer daquelas investidas européias, negou-se ele com boas razões e boas maneiras a franquear a pátria, sem jamais empregar inúteis violências; desde todavia que a pretensão saltava para o terreno da arrogância, como sucedeu com a Rússia, o Japonês arrancava da espada e não a recolhia de novo à bainha enquanto o perturbador da paz do seu Estado não desarvorasse das águas territoriais. O Tokugawa porém, dois séculos antes, não contara com a descoberta da aplicação do vapor que, no começo do nosso, veio neutralizar as defesas naturais do seu país, transformando os oceanos, de abismos isoladores que eram, em laços de união entre todos os continentes do velho e do novo mundo.

Com o vapor ao serviço da avidez, podiam os modernos fenícios abordar às costas japonesas e, sem risco de avaria, insinuar-se por entre esses sirtes e recifes com que contava Ieiás para guardar a sua frágil e humana obra contra as danosas ambições do resto do mundo cobiçoso, fechando-a naquela natural custódia que lhe parecia invulnerável por ser feitura das mãos de Deus.

Ora, a América do Norte em 1852 sonhava com uma nova e grande linha marítima que unisse pelo Oceano Pacífico a Califórnia à China, fazendo escala pelo Japão, e por isso queria que lhe franqueasse este, ao norte o porto de Hakodate em Yezo, e a leste o de Chimoda em Izo. Era esta a razão ostensiva e oficialmente declarada, mas a oculta e talvez mais palpitante, não passava da mesma que várias vezes movera as outras nações ocidentais a pôr, não os pés, mas as garras no Extremo Oriente; quer dizer: era, nada mais, nada menos, do que a curiosidade de verificar se no misterioso arquipélago havia de fato muitas riquezas, como constava; e, caso houvesse, fazer de conta que elas não tinham dono.

Bem sei que os europeus e norte-americanos, naturalmente por decoro, não contam deste modo nos seus livros sobre o Japão os fatos que aqui vou narrando; dizem todos os autores, pelo menos os meus conhecidos, que a revolução existia em estado latente no Império Japonês e que a chegada do Comodoro Perry nada mais fizera do que precipitar-lhe os efeitos.

E preciso muito má fé, ou não, ter sequer cheirado as crônicas japonesas, para sustentar semelhante falsidade histórica! nem sei como não afirmam logo que o pobre Japão se achava em viva guerra de extermínio e que eles, americanos, lá foram, impelidos pelos próprios sentimentos de humanidade. Seria desse modo a burla mais engenhosa e mais completa.

O país nunca tivera época de tão inteira paz e nunca vivera tão despreocupado de lutas. Esta é que é a verdade! Como se deram os sucessos vou eu dizê-lo francamente, porque entre o assaltante atrevido e a vítima sacrificada, claro está que me coloco ao lado desta.

Eis o caso. Não sendo o Comodoro Perry atendido na primeira vez, ameaçou que voltaria para o ano seguinte e que empregaria a força se as suas reclamações fossem de novo rejeitadas.

Pode-se facilmente calcular o efeito produzido por tal audácia no espírito desse povo, que para mais de dois séculos vivia tranqüilo e feliz, fechado no seu canto, sem nada pedir a ninguém, nem de ninguém precisar, tão indiferente e alheio ao resto do mundo que ignorava até que se houvesse descoberto do outro lado deste a navegação a vapor. O efeito foi fulminante; uma profunda perturbação logo abalou o país inteiro. A nação dividiu-se em dois partidos; um pequeno e tímido, outro enorme e forte; o dos curiosos, dos comodistas ou medrosos, que eram pela admissão dos estrangeiros; e o dos nativistas radicais, que clamavam energicamente a favor da repulsão pelas armas. Este último partido compreendia a nação quase inteira.

O Shogun hesitava, e compreende-se a sua hesitação, porque é fácil de compreender a responsabilidade; a resistência, sem visos de bom êxito, iria pôr de novo em pé de guerra, e logo de intriga e de ambição política, os daimos que administravam agora tranqüilamente os principados, e iria acordar nos samurais o instinto brigalhão e turbulento a tanto custo, e com tanto sacrifício de sangue, reprimido pelo fundador da sua dinastia; mas, por outro lado, se o mensageiro Americano fosse admitido e conseguisse do governo japonês tratados de paz, comércio e amizade; com o do seu país, não seria isto igualmente, por modos diversos, a destruição completa da obra de Ieiás, cuja garantia única de estabilidade tinha os seus alicerces no mais completo isolamento? Sem contar que, o fato de se não chamar oficialmente a nação às armas não queria dizer que ela se não levantasse amotinada e a guerra civil não rebentasse do mesmo modo e produzindo as mesmas funestas conseqüências.

Entretanto, o Shogun Yeçada no seu enleio descobria uma tangente para escapar ao dilema, era a contemporização, a meia promessa que não dá nada e ganha tempo na expectativa de uma solução aceitável. Foi a esse farrapo de esperança que se agarrou o desgraçado.

E já sobre a hesitação deste começavam os príncipes do sul a fazer carga política, quando o mais inesperado dos fatos veio decidir tudo e precipitar os acontecimentos: o hipotético Imperador, com quem ninguém contava, esqueceu-se de que o seu destino era ser o fantasma n.0 121 e rezar para aí de gatinhas defronte do espelho até que os céus para si de feita o arrebatassem, tira-se dos seus cuidados, interrompe os seus mistérios e intervém diretamente no Governo do país, pronunciando-se com firmeza sobre a endiabrada questão.

Era a primeira vez que tal coisa sucedia desde que os Tokugawas tinham hereditariamente a posse do poder executivo. E o fato, posto que extraordinário, vinha tão a propósito naquele momento, também único e muito angustioso para a vida nacional, que ninguém, a não ser o Shogun, pareceu estranhá-lo.

Espalhou-se logo no ambiente um profilático aroma de milagres. Sim! o filho dos altos deuses descia pelo seu pé à terra vil dos homens; a palavra inspirada baixava, como a luz dos astros, lá das místicas alturas, para vir inspirar o povo querido do peito de Amateras; e essa palavra bendita fazia estremecer a multidão como se fosse a voz de uma alma do outro mundo.

A boca do santo falou e disse

É preciso, quando esses bárbaros tornarem cá, varrê-los para longe, como se varre a poeira com a vassoura. O súdito que proceder de outro modo ofende a vontade do meu coração.

Esta simples ordem do divino fantasma de Kioto fez vibrar, com um arrepio aceso, a alma de todo aquele bom povo, que nesse tempo era ainda, como o foi até aos últimos instantes da revolução, ingênuo e casto. Àquelas poucas palavras do Imperador dissolveu-se logo por encanto a pequena facção política favorável aos estrangeiros. Mas o Shogun, em cujo espírito a indecisão cedera afinal abrindo pelo lado da impossibilidade da resistência, expediu imediatamente um poderoso emissário para junto da Corte Imperial, Hayachi, príncipe de sangue, que aliás não foi sequer atendido pelo Imperador; mandou um segundo, na aparência decisivo pelo seu grande prestígio naquela Corte, da qual havia sido já o mais belo ornamento, Hotta Bishu, que apesar de tudo porém, não conseguiu melhor resultado; então o Shogun correu em pessoa para lá. Era também a primeira vez que um Tokugawa ia ao lado do Trono curvar o joelho antes de decidir sobre os negócios do Estado. Definitivamente uma das conchas da balança política começava a pesar mais e a descer, procurando equilibrar-se com a outra. A posição do Imperador tinha sido até aí a mais alçada justamente por ser a mais leve.

O Shogun expôs ao Micado a verdadeira situação do país e falou-lhe com franqueza; mostrou-lhe o perigo interno de armar os mais poderosos príncipes e disse-lhe quais eram as probabilidades negativas da resistência. Os americanos viriam fortes, e atrás deles estava a Europa inteira, a espreitar a situação, esperando o resultado da empresa para dela tirar partido!

— É preciso varrê-los! exclamou sinteticamente o Monarca.

— O melhor, insistiu o outro, seria aceitar uma conferência com Perry, fazer cara alegre e, por meios hábeis, com boa diplomacia, tratar de mistificá-lo, prometendo pouco e não dando nada...

— Isso é um paliativo que a ninguém aproveita!

— Mas que ganha tempo, durante o qual nos prepararíamos para a resistência e para a vitória neste momento impossíveis.

— Não engoliriam semelhante isca!

- Os ocidentais não conhecem absolutamente o mecanismo político do Japão... nem sequer sabem ao certo qual é o verdadeiro chefe do Estado; seria fácil por conseguinte engodá-los durante muito tempo, sem nada lhes ceder de positivo.

— Mas cedendo sempre...

— Cedendo sombras de concessões... Que pode valer um simulacro de tratado, sem a assinatura do Imperador, e que...

Yeçada não conseguiu concluir a frase, porque Komei, ouvindo falar em tratado com os estrangeiros, teve um terrível assomo de cólera e bradou, com os lábios trêmulos e os olhos apopléticos:

— Um tratado?! Nunca! E preciso varrê-los! Se o Shogun, que é o Comandante das Forças, desobedecendo as minhas ordens, não der quanto antes providências para repelir os bárbaros, eu próprio chamarei às armas os príncipes japoneses e irei em pessoa comandá-los!

Pobre Imperador! Tarde voltava ele à vida. Estremunhava agora como a Bela adormecida no bosque, e com a agravante de que não levara apenas um século a dormir. As suas intenções eram as melhores, a sua vontade enérgica e leal, o seu patriotismo legítimo e puro; mas a complicada rede de fórmulas e etiquetas, que em volta do arbítrio lhe teceram durante o sono gerações inteiras de áulicas aranhas manhosas, torcia-lhe o gesto e quebrava-lhe a ação. Nenhuma das suas ordens foi cumprida, posto não deixasse nenhuma de ser acatada com a máxima reverência; as Cortes, os Ministros, os Daimos, ninguém, como o próprio Shogun; zombava dele, isso não! mas delas zombavam todos; ninguém o contradizia, cada qual porém, a dizer que sim, ia fazendo o que melhor lhe convinha, contemporizando, iludindo os decretos, e dando tempo a que a situação por si mesma abrisse brecha para qualquer lance decisivo ou para qualquer escapada.

O Shogun ainda hesitou, ainda roeu as unhas durante alguns dias, mas, percebendo que os insofridos príncipes do sul já por conta própria se proviam para a guerra, chamou a nação às armas, dando aos daimos liberdade de levantar exército e construir navios de combate. E o país inteiro, ao grito de "Morram os Bárbaros!" ferveu em apercebimentos vertiginosos para defesa do território. Principiaram febrilmente as obras de fortificação; construiu-se dentro de poucos meses o forte de Chinagawa, guarnecido logo com artilharia fabricada em Nagasaki, pelos aprendizes dos fundidores holandeses.

Os donativos choviam de todos os lados; o dinheiro desencadeou-se espontaneamente correu a rodo; o príncipe de Satsuma fez lançar n'água dois grandes navios de forma européia e ofereceu-os ao Estado; outros daimos o imitaram; o príncipe de Mito, então detido à ordem do Governo no seu próprio castelo desde 1841, por se ter, como intransigente nativista, contraposto ao forasteiro Budismo, foi absolvido e chamado para tomar o comando em chefe da defesa marítima do país. "Era este príncipe, diz a mais recente das crônicas japonesas, um homem de energia e coragem, com dois sentimentos únicos no coração — cego fanatismo pelo Imperador e ódio ainda mais pelos estrangeiros."

Yeçada, desiludido e sagaz, tinha para si, sem ânimo contudo de dizer palavra, que todo aquele apresto bélico ingenuamente improvisado pelo patriotismo, e todo aquele santo e brioso entusiasmo dos seus compatriotas nada valeriam contra o bombardeio de um só encouraçado moderno, cujas baterias de grande projeção e certeza de mira podiam de longe, fora do alcance de qualquer insulto, fazer à terra o dano que lhe aprouvesse; e em sobrecarga do seu desalento e da sua inconsolável tristeza, notou, sempre de si para si, que o pavilhão arvorado pelas novas milícias já não era o do leque de ouro encentrando as rosas malvas da casa dos Tokugawas, com o qual, depois de Ieiás, pelejaram sempre os japoneses; mas sim a bandeira branca de globo vermelho no centro, representando o sol oriental. Era já o pendão do Império que se levantava em desafronta da pátria comum. E viu nisto Yeçada um mau presságio para a sua dinastia.

Justo um ano depois da primeira investida, o Comodoro Perry, pela primavera de 1854, surgiu de novo nas águas japonesas, e agora com uma esquadra de oito vasos de guerra de alto bordo, duzentas bocas de fogo e quatro mil homens de abordagem. Era com estes argumentos diplomáticos que os Estados Unidos da América do Norte contavam entrar em relações de paz e amizade com o Shogun, única potência que os ocidentais conheciam no Japão e à qual davam o título de soberano.

A imponente esquadra bordejou orgulhosa todo o arquipélago, e foi fundear a leste em frente á barra de Yokohama. O povo miúdo, cuja curiosidade era muito maior que o terror, corria às praias a contemplar boquiaberto aqueles estranhos monstros que invadiam as suas águas virgens de vapor, vomitando fumo negro e atroando os ares com ameaçadores berros de fera infernal e faminta; faminta ainda se não sabia de que.

Afinal a cada ronco dos monstros, os indígenas quase nus saltavam a rir torciam-se em gargalhadas de prazer; alguns, concheando as mãos na boca, respondiam ao mugido feroz com um sibilante e zombeteiro silvo de garoto; e, enquanto o povinho se divertia com o caso, o Shogun, sem querer ferir de frente a vontade do Micado, que ao apontar da esquadra lhe dera aviso terminante de dispor as forças em ordem de batalha, e sem querer também produzir a irreparável ruína de sua pátria, assanhando os ograis monstros que rondavam para a devorar, reuniu conselho extraordinário e chamou em seu socorro parecer dos príncipes Gosankês e de outros de bom aviso; mas ninguém lhe valeu na aflição; uns, encolhendo os ombros, confessavam não encontrar saída para semelhante conjuntura outros entendiam que o melhor seria cumprir à risca a vontade suprema do Imperador, desse por onde desse, ainda mesmo com o sacrifício do país inteiro; e nenhum, ou por intransigente convicção ou pelo receio do estigma público, nem por sombras alvitrava a hipótese de travar acordo no que pretendiam os invasores. O Shogun, coitado! esse arfava cabisbaixo e tíbio, escondendo o rosto entre as duas mãos. Não sei se chorava.

Passam-se dias. Os americanos já não pedem, exigem, sob pena de começar o bombardeio, a resposta do memorandum que, em nome do Governo da República, enviaram por um oficial de patente superior á "Sua Majestade o Shogun do Japão". Marcam afinal um prazo de espera e, no dia precisamente em que terminava esse prazo fatal, Yeçada é encontrado morto, estendido de bruços sobre os degraus do seu trono shogunal.

Assassínio? suicídio? natural explosão do desespero? Ninguém o explica. Um romance japonês conta o episódio histórico muito dramaticamente e diz que o mísero sucumbiu estrangulado pela perplexidade.

Com este fato, resolveram os americanos suspender a intimação e esperar, de fogos apagados, que o Estado tivesse novo chefe.

Surge então à ribalta da história contemporânea do Japão a já anunciada figura de Ii Kammon no Kami, príncipe de Hikone, ao qual, na sua qualidade de primeiro ministro ou chefe de gabinete, competia tomar as rédeas do Governo até a sagração do novo Shogun. Ora, o sucessor de Yeçada, como já disse, era uma criança de doze anos, e o príncipe de Hikone trata logo de assumir a Regência do Shogunato, o que conseguiu, a despeito da forte oposição levantada por Mito e outros intransigentes daimos do sul.

Vai a situação mudar de aspecto. Ii Kammon dispunha de todas as qualidades políticas que faltavam ao seu perplexo antecessor, audácia, energia, resolução, astúcia e sangue frio; talento não sei se o tinha e espírito nativista posso afiançar que não. Inspirado de outro modo, esse homem de valor, havendo por si a nação inteira pronta a reagir com entusiasmo até a morte, pregaria uma boa peça aos americanos, que afinal poderiam sim arrasar o país de um extremo a outro, esmigalhá-lo, mas não poriam os pés lá dentro, ficando-lhes perante o resto do mundo a odiosa responsabilidade do vandalismo cometido. Era essa a vontade da Nação; vontade insustentável decerto para o futuro, mas sem dúvida reveladora do sábio instinto de uma raça que defende a sua hegemonia, a sua originalidade, o seu caráter nacional; como nos mostrara-o os fatos posteriores.

O primeiro ato público do Regente foi dar balanço às forças deixadas pelo falecido Shogun e logo providenciar para completá-las, formando um efetivo superior ao dos primeiros daimos. Ninguém se negou a ajudá-lo nesse empenho, todos convencidos de que Ii Kammon se fortificava para resistir aos estrangeiros, quando em verdade o fazia para impor à nação pelas armas o seu programa político. Depois, sem se preocupar absolutamente com a opinião do Micado, nem com a da Nobreza e ainda menos com a do povo, recebe em audiência privada o próprio Comodoro Perry, que o toma pelo verdadeiro Imperador do Japão e firma com ele um tratado, não provisório como queria o outro, mas decisivo, e cedendo mais do que pretendia o Americano, pois além de Chimoda em Izo e Hakodate em Yezo, lhe abriu mão também do porto de Nagasaki a oeste de Kiuciu. Como complemento desta medida, envia, por conta própria, uma embaixada à América do Norte, a qual saiu do Japão sem o público dar por isso; em seguida por decreto concede a todo o súdito japonês o direito de afastar-se das águas territoriais do país e quanto quisesse e pelo tempo que lhe parecesse. Este golpe nas "Cem Leis" foi ostensivo e forte.

O povo, sempre agarrado às praias, vê com alegre surpresa a esquadra americana começar a dispersar-se, a esgalhar por todos os lados do Pacífico e afinal sumir-se no horizonte, sem fazer para a terra sequer um bocejo de fogo; respira, inteiramente estranho ao que vai pelos misteriosos bastidores sbogunais, e deveras maravilhado pela habilidade desse Regente, cujo governo se abre assim aos olhos aflitos do público por um tão lindo milagre político; mas os verdadeiros nativistas, a quem no seu vigilante amor da pátria sobressaltavam tristes pressentimentos, esses franzem o sobrolho e não participam da confiança geral.

Outras potências estrangeiras, que espreitavam de perto a solução da cartada americana; mal fariscaram o bom êxito da expedição, acudiram logo nas águas dos Estados Unidos e surgem por sua vez nas costas do requestado arquipélago. Ii Kammon recebe-as todas de braços abertos e sucessivamente vai assinando novos tratados com a Inglaterra, com a Rússia, com a Holanda e mais tarde com a França que foi então a última a apresentar-se, concedendo-lhes, além da abertura dos portos já franqueados à América do Norte, a de mais um que valia por dois, o de Kanagawa, a cuja alçada se prendia Yokohama ainda nesse tempo sem maior importância.

Às honras e zumbaias oficiais prestadas ao Regente por esses gratos expedicionários da Europa, respondeu como Imperador magnânimo, fazendo salvar as fortalezas e hasteando o pavilhão nacional. O povo via tudo isto intrigado, sem nada poder compreender do que se passava. E a bordo dos próprios navios estrangeiros lá seguiam em segredo novos embaixadores japoneses destacados para diversos pontos do Ocidente.

Não tardou a chegar ao Japão Townsend Harris, enviado pela República Norte Americana como ministro residente para acompanhar de perto o bom desempenho do tratado concluído entre os dois países. Só então foi que, alcançando os ouvidos do Imperador e caindo no domínio público a notícia dos atos arbitrários do Regente e até onde subira a sua audácia, rebentou o descontentamento da nação e transformaram-se em desespero febril a desconfiança e a ansiedade que às ocultas ardiam no ânimo dos nativistas.

Traição! Traição! bradavam de toda parte. E Mito, pondo-se à frente dos revoltados, decidiu tomar contas ao pérfido governante. Ii Kammon, bem provido de forças, recebeu-os à bala e golpes de bacamarte, mandando decapitar no próprio teatro da ação os que pôde apanhar com vida.

Era a guerra civil que recomeçava depois de dois séculos e meio, como previra Yeçada; e ela agora seria inevitável e terrível, porque acabava de abrir-se a divergência entre a Corte do Imperador e a do Shogun. Contra esta se levantavam já, ao exemplo de Mito, todos os príncipes do sul, e a seu favor acudiriam logo os do norte, fiéis à dinastia dos Tokugawas que do norte provinha.

Ii Kammon, homem de ação por excelência e disposto a não partilhar o poder com quem quer que fosse, trata antes de mais nada de pôr Mito fora de combate e descobre meios de responsabilizá-lo como conspirador contra o Shogunato, cuja soberania devia ser por princípio fundamental do Império reconhecida e respeitada pelos daimos sob sua alçada. Para documentar a acusação obtém com muita astúcia e audácia da entibiada Corte do Micado a correspondência secreta dos príncipes do sul, feita ainda em tempo do seu frouxo antecessor; publica-a lardeada de negros comentários e acompanhada das mais injuriosas censuras, e acaba condenando Mito ao exílio perpétuo e os fidalgos de sua casa ao completo afastamento dos negócios públicos.

Depois, receoso de uma provável coligação sulana contra o seu predomínio, arroja-se incontinenti em fúria desabrida sobre os príncipes de Tosa, de Tozamma e de Uwajima e sobre os quatro daimos de Sikok, que eram os mais vivos correligionários de Mito e os mais intransigentes inimigos da expansão internacional; bate-os a todos, consegue fazê-los prisioneiros; manda executar na praça pública o intrépido Tatewahi com a centena de cúmplices do seu heróico nativismo, e passa pelas armas uma multidão de samurais e homens do povo.

Não se sentindo ainda bem seguro do perigo, ordena, como medida preventiva, a captura, com arresto de armas, dos príncipes de Owari, de Gazen e de Echizen, todos três membros da Casa Imperial e os quais até aí não se tinham absolutamente pronunciado a respeito dos atos do Governo.

Era demais! Um grupo de roninos, dezessete apenas, afiam as adagas, cobrem o corpo com um capucho de palha espetadiça à moda dos kulis do campo, e atiram-se firmes para Yedo. Escondem-se às portas de Sakurada, aguardando a passagem do déspota, que tem essa manhã de atravessar por aí para chegar ao inexpugnável chiro dos shoguns.

Esperam mais de três horas. Tempo nevoado e frio apesar de estarem já a 23 de março desse ano famoso na história do Japão, 1860. Afinal surge o lobo no seu palanquim de charão dourado, ao meio de uma refulgente escolta em que as galas brilham tanto quanto as armas. Saem-lhe os roninos pela frente e, fazendo da capa escudo, às cutiladas se atiram sobre eles. Desfeito o séquito, despedaçam a liteira e arrancam pelas pernas Ii Kammon, a quem cortam a cabeça, para ir no mesmo instante levá-la ao chefe dos nativistas.

O príncipe de Mito, rejubilando com a dádiva sangrenta, manda expô-la na ponte mais concorrida da capital com o seguinte letreiro, estampado em letras vermelhas sobre uma pele de hiena:

"Esta é a cabeça de um traidor, que violou as santas leis do Japão admitindo estrangeiros na pátria."

Os assassinos, seguindo a usança nobre entre os japoneses do tempo, foram solicitar da justiça a pena capita] que lhes cabia, apresentando por escrito as razões morais que os levaram a cometer o atentado. O memorial, depois de expor todos os atos reprováveis da vida pública do Regente, concluía assim:

"Esse monstro em suma, por medo ou por espírito de perfídia, e a pretexto de necessidade política, firmou com os bárbaros tratados feitos clandestinamente, contra a vontade do Imperador e contra a vontade do povo japonês; crimes tais que não encontram perdão nos deuses, nem nos homens. E nós pois, representantes da cólera nacional, deliberamos castigar o grande culpado com a morte, dando a nossa vida em holocausto à felicidade da pátria."

Um grupo de oito samurais de Ii Kammon, fiéis à memória do chefe, juraram sobre o seu cadáver ainda quente que em breve, para vingá-lo, poriam as mão sobre o príncipe de Mito.
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continua...