terça-feira, 13 de maio de 2008

Conto do Tibete (A soberba da árvore)

Há muitíssimos anos no cume mais alto do Himalaia se erguia uma árvore gigantesca, de extraordinária frondosidade, em cuja sombra iam se proteger os habitantes daquelas regiões.

Ocorreu que certo dia um santo monge budista chamado Shinram, extenuado pelo calor e fadiga de uma longa caminhada, foi sentar-se à sombra acolhedora da grande árvore. E dirigiu ao esplêndido vegetal palavras de agradecimento e admiração.

- É evidente -disse- que deves gozar da proteção de algum poderoso deus, posto que nem o furacão nem as nevascas - que tão violentas são no Tibete- conseguiram desbaratar tua magnífica cabeleira, nem abater seu soberbo tronco no curso dos séculos. É por acaso o deus do Vento quem te protege?

- Nada disso! –contestou a árvore com altivez, sacudindo seus ramos com um ruído semelhante ao trovão. Engana-te, ancião. Nunca me protegeu nenhuma divindade, e menos ainda o maligno Vento, que não tem amigos nem perdoa a nada.

– Então ... – disse o monge.

– O que sucede, - interrompeu a árvore – é que nada nem ninguém pode contra mim, por forte e poderoso que seja. Quando o vento se desata furioso e sopra com seu ímpeto as demais árvore, se detém esgotado ante minha potência e se retira, mudo e temeroso, desejando em seu coração que eu não me encolerize contra ele e o castigue severamente.

Tais palavras cheias de soberba e de orgulho néscio, indignaram ao bom Shinram. Olhando fixamente à soberba árvore, o monge budista exclamou indignado:

- Não te envergonhas? Como te atreves, miserável vegetal, a usar este tom de desprezo para com um dos deuses mais poderosos, que é um terror do universo?

E pondo-se em pé, decidiu abandonar aquele lugar, dizendo:

- Vou daqui. Ainda que cansado e desejoso de sombra e frescor, não posso deter-me nem um minuto mais a falar com um ser tão indigno e tolo como tu.


E seguiu, apoiando-se em seu grosso cajado, murmurando palavras de indignação contra a árvore.

Mas ainda não havia desaparecido no horizonte quando o céu escureceu e a terra se pôs a tremer e apresentou-se o Vento em pessoa, com um espantoso sibilo, agitando ameaçadoramente sobre a árvore seus potentes braços feitos de nuvens.


Quando a árvore viu o poderoso deus junto a ela, estremeceu até o mais profundo de suas raízes, e no íntimo desejou jamais ter pronunciado aquelas insensatas palavras.

- Que tal arvorezinha – falou o Vento – Achas que não sou bastante potente para ti! Hahahaha!

E ao rir todas as árvores do bosque se dobraram aterrorizadas até o solo. O Vento prosseguiu, dizendo mal-humorado:

- Muito bem! Quer dizer que tenho medo de ti. Não sabes que se eu quisesse te derrubaria num instante como ao menor dos arbustos? Se agora te perdôo a vida, ingrato, e te conservei intacto durante séculos, é porque na noite dos tempos, quando o mundo era em grande parte um caos, o deus Brama, cansado do trabalho da criação do mundo, repousou na tua sombra. Não sabias, acaso?

- Não, não sabia – conseguiu murmurar a árvore.
- E é precisamente a memória daquele feito – completou o Vento – que te concedi a vida até hoje. Mas tu me insultaste, me ultrajaste e por isso mereces o castigo mais atroz. Mas não o aplicarei agora, mas sim amanhã.
- Perdão! – suplicou a árvore – Te prometo não voltar a fazê-lo.

Mas o Vento, sem fazer caso desta súplica, prosseguiu em tom ameaçador:

- Quero castigar-te à luz do sol, para que todos possam ver como o Vento trata aos ingratos e soberbos. Até amanhã!


E lançando um ultimo sibilo que abateu às árvores da selva e fez as feras irem ao fundo de suas tocas, desapareceu tão rapidamente como tinha vindo.

Pouco depois veio a noite e o silêncio envolveu o mundo. Todas as plantas adormeceram cansadas e temerosas. Só a árvore do Himalaia velava em sua angústia. E dizia para si:
"Com que gosto desdiria tudo que falei ao monge budista e me retrataria de tudo! Agora, quem sabe o que me espera! Provavelmente serei arrancado, feito em pedaços e triturado; meu tronco e ramos serão espalhados pela selva e só serão úteis para arder numa fogueira... Depois de tantos séculos de vida e reinado, serei cinzas na terra...!"

Mas, à medida que ia meditando essas coisas, ocorreu que talvez existisse um remédio heróico, uma última esperança de sobreviver: resistindo à fúria do Vento.

– Sim – murmurou – despojado de todos meus ramos e folhas, poderei resistir melhor aos embates do meu inimigo.

Num momento, se despojou de todos os ramos e arrancou até a última folha e a madrugada encontrou um tronco mutilado e desnudo.

Momentos depois se apresentou o Vento. Vinha cheio de cólera e desejoso de vingar-se. Mas então ocorreu algo surpreendente.

Quando o deus estava junto a árvore e a viu sem folhas, sua cólera se desvaneceu instantaneamente. E começou a rir, primeiro com um riso breve e logo uma gargalhada forte e sonora, que invadiu toda a terra. Por fim, uma vez recobrado o alento, disse com ironia:

- É verdade que não te conheço, árvore soberba! O castigo que tu mesmo te infligiu foi muito mais atroz do que eu podia te aplicar com toda a força de minha cólera. Agora és um espetáculo realmente grotesco, porque todos se riem de ti: os animais e plantas, os homens e também os deuses. Que maior vingança contra uma soberba e néscia como tu? Hahahah!

E proferindo sonoras gargalhadas, voltou à áurea morada dos deuses, deixando a árvore triste e humilhada.

Fonte:
http://victorian.fortunecity.com/postmodern/135/tibete.htm

Beowulf

Epopéia inglesa (provavelmente ano 1000).

Por doze anos o reino de Hrothgar era atormentado pelo monstro Grendel, que atacava seus súditos, destruí a aldeias e atacava quem quer se colocasse no caminho. Grendel era uma criatura mágica, a qual nenhuma arma forjada pelo homem poderia fazer dano, tornando-o quase invencível. Ninguém sabia de onde vinha, simplesmente apareceu e começou a destruir aldeias e devorar pessoas. Vivia nos pântanos próximos ao reino, onde ninguém se aventurava por medo de encontrá-lo. Só saía à noite, e muitas vezes entrava no palácio real e devorava quem encontrasse.

As histórias das desgraças do rei Hrothgar da Dinamarca viajavam por toda a Europa, até chegarem finalmente aos ouvidos de um guerreiro, chamado Beowulf. Ele vivia na Finlândia, chamada "A Grande Terra", onde inclusive lhe tinham oferecido o trono do país, por suas façanhas contra os inimigos. Mas Beowulf recusava em favor do filho da rainha, que era apenas uma criança, e concordou reinar junto com ele até que tivesse idade e experiência para reinar só.

Mas ao ouvir sobre o infortúnio que se abatia na Dinamarca, Beowulf zarpou da Finlândia com destino a Dinamarca com firme propósito de libertar a terra do monstro Grendel. Junto com ele iam 14 guerreiros para colaborar. Assim que chegaram às costas da Dinamarca foram recebidos pelos servidores do rei. Beowulf foi levado ao castelo, sendo recebido com honras e teve um banquete em sua homenagem.

Hrothgar contou a Beowulf todas as desgraças que Grendel os fazia passar: campos incendiados e destruídos, colheita aniquilada, até seu castelo era presa da cólera do ser; muitos haviam desaparecido sem deixar rastro. Era provável que o mostro os levasse à sua toca para lá devorá-los. Quando Beowulf perguntou qual o aspecto do monstro, Hrothgar não teve como explicar, porque todos os que o tinham visto, estavam mortos ou desaparecidos.

Alguns acreditavam que estava coberto por uma grossa camada de pêlo negro, quase como um urso, com poderosas garras capazes de despedaçar até met al e dentes enormes, que quebravam até os ossos de suas vítimas. Terminado o banquete, todos foram dormir. Beowulf e seus companheiros, mesmo com o oferecimento do rei de alojá-los devidamente em quartos, ficaram na sala do trono, vigiando.

A noite estava alta e todos, menos Beowulf, dormiam. Era tudo tranquilidade e silêncio. Só se escutava o vento que agitava suavemente as folhas das árvores. De repente, sem prévio aviso, entrou o monstro Grendel no local. Rapidamente Beowulf se levantou e quis dar aviso a seus companheiros; mas a entrada de surpresa de Grendel os tinha tomado desprevenidos, e o mais próximo ao monstro foi feito em pedaços por suas enormes e fortes garras.

Beowulf se jogou sobre o monstro e lutou sem armas, utilizando unicamente sua força. Era de fato uma criatura muito peluda, maior que um homem, porém devido à escuridão, Beowulf não podia ver seu rosto. Lutou corpo a corpo contra a grande besta; sua força era excepcional. Mas Beowulf também era forte e, graças a isso, pôde contê-lo. Finalmente conseguiu prensar o bicho entre seus braços e, agarrando a criatura, usando todas suas forças e toda sua coragem, agarrou um dos braços do monstro Grendel e o arrancou, separando-o do corpo da grande besta.

Grendel caiu ferido e lançou os mais terríveis gritos que se escutou em toda história do reino. Estava mortalmente ferido. Os companheiros de Beowulf se jogaram também sobre o monstro para aniquilá -lo, mas Grendel conseguiu se recompor e correu espavorido. Quiseram persegui-lo, mas desapareceu entre a entre a névoa e a vegetação. Estava mortalmente ferido e tinha deixado um rastro de sangue desde a sala do palácio até sua toca. O rei, feliz, cumprimentou Beowulf pela façanha e, certo de que o perigo havia passado, providenciou confortáveis aposentos para os guerreiros descansarem o resto da noite.

Mas deu que nem toda a ameaça havia desaparecido, e enquanto Beowulf e companheiros descansavam, longe de poder ajudar os guardas dinamarqueses, veio a mãe de Grendel, uma criatura completamente desconhecida para todos, furiosa e louca para vingar o filho, fazendo um massacre na sala do trono. Além disso, pegou o braço que Beowulf tinha arrancado do filho e o levou, junto com um nobre da casa do rei. Desapareceu com o braço de Grendel.

Na manhã, quando o rei Hrothgar viu o sucedido, chamou Beowulf e o levou ao local, pedindo-lhe que os livrasse deste novo mal. Assim Beowulf decidiu acabar com tudo aquilo de uma vez por todas. Equipado apenas com sua espada, viajou seguindo rastro de sangue que havia deixado Grendel em sua fuga.

Finalmente, depois de muito caminhar, chegou à margem de um rio. Ali terminava o rastro de sangue de Grendel. Sem saber exatamente até onde se tinha dirigido, Beowulf concluiu que o único caminho que poderia ter tomado sem deixar rastro era o rio. Assim decidiu lançar-se nas águas e buscar por ali. Uma vez submerso nas águas, Beowulf descobriu uma greta nas profundidades do rio. Sendo um nadador experiente, não teve problema em seguir o caminho sob a água. Nadou através de uma gruta até finalmente emergir numa caverna subterrânea.

Justamente ali, diante dele, estava a mãe de Grendel, urrando e sustentando em seus enormes braços o corpo inerte do filho. Beowulf saiu da água e desembainhou a espada. A mãe de Grendel, percebendo o perigo, pôs o filho no chão e se jogou sobre o intruso. Beowulf lutou valentemente com a feroz criatura. Armado com sua espada, pode vencê-la, cravando-a na besta. A mãe de Grendel caiu no chão e, dando os últimos grunidos, morreu.

Beowulf, vendo que finalmente os dinamarqueses poderiam gozar de paz e prosperidade, aproximou-se de Grendel e com um golpe, cortou-lhe a cabeça. Tomou-a e a levou ao rei Hrothgar, como prova que a época de desgraça e tristeza estava para traz. O rei Hrothgar recebeu Beowulf e ofereceu um banquete. Todos os habitantes da Dinamarca acudiram para agradecer pessoalmente a Beowulf por livrá-los do mal que havia se abatido sobre eles.

Com muita tristeza, chegou a hora de partir para Beowulf. O rei Hrothgar o encheu de riquezas em agradecimento pela ajuda. Finalmente zarpou de volta a Finlândia, onde foi recebido como grande herói. O jovem rei lhe concedeu altas honras e lhe deu uma vasta extensão de terra. Porém ocorreu que pouco tempo depois do regresso de Beowulf, o jovem rei caiu doente e, ao cabo de alguns dias, morreu. O povo foi ter com Beowulf para que os reinasse e, vendo que era seu dever, se converteu em rei da Finlândia, onde governou durante mais de cinqüenta anos, e a paz reinou em todo o país durante esse tempo.

Porém, de repente, já sendo Beowulf um ancião, apareceu um dragão que iniciou a destruição em suas terras. O dragão dizia estar furioso porque seu tesouro, que escondia numa caverna sob uma montanha, havia sido roubado. Como Grendel, esta criatura só saia à noite de sua guarida, e destruía as aldeias e devorava seus habitantes. Beowulf resolveu sair para lutar contra o dragão. Assim buscou sua toca e a encontrou. Da única entrada saía fumaça ardente.

Valente, sem mostrar medo algum, Beowulf se pôs frente à saída e gritou seu desafio. O drag ão saiu furioso de sua toca, cuspindo fogo de sua boca e nariz, e atacou Beowulf. Já este primeiro ataque quase o aniquila, pois Beowulf já era velho. Mesmo assim pôde se manter e dar luta ao dragão. A batalha foi tão devastadora que só um dos homens do rei Beowulf se manteve por perto; todos os demais fugiram.

Uma rajada de fogo eliminou a espada de Beowulf, e o jogou ao chão. O monstro se lançou sobre ele e cravou suas presas em seu pescoço, mas não percebeu que Wiglaf, o único dos homens do rei que havia permanecido para ajudar monarca, se lançou sobre ele e cravou sua espada na cabeça. O dragão caiu morto imediatamente. Porém o dano estava feito.Wiglaf tratou de ajudar Beowulf a levantar-se e levou-o de volta para que fosse socorrido, mas já era inútil. As feridas provocadas pelo dragão eram muito profundas. Beowulf nomeou neste momento Wiglaf como seu sucessor ao trono da Finlândia. Depois morreu. Wiglaf carregou seu corpo de volta à cidade. Ali fizeram um grande funeral em sua honra.

Fontes:
http://victorian.fortunecity.com/postmodern/135/beowulf.html
http://estradapop.blogspot.com/ (imagem)

Hans Christian Andersen (A menina dos fósforos)

Era véspera de Ano Bom. Fazia um frio intenso; já estava escurecendo e caía neve. Mas a despeito de todo o frio, e da neve, e da noite, que caía rapidamente, uma criança, uma menina, descalça e de cabeça descoberta, vagava pelas ruas. É certo que estava calçada quando saiu de casa; mas as chinelas eram muito grandes, pois que a mãe as usara, e escaparam-lhe dos pezinhos gelados, quando atravessava correndo uma rua, para fugir de dois carros que vinham a toda a brida. Não pôde achar um dos chinelos e o outro apanhou-o um rapazinho, que saiu correndo e declarando que aquilo ia servir de berço aos seus filhos, quando os tivesse. Continuou, pois, a menina a andar, agora com os pés nus e gelados. Levava no avental velhinho uma porção de pacotes de fósforos e tinha na mão uma caixinha: não conseguira vender uma só em todo o dia, e ninguém lhe dera esmola - nem um só vintém.

Assim, morta de fome e frio, ia se arrastando penosamente, vencida pelo cansaço e o desânimo - a estátua viva da miséria. Os flocos de neve caíam pesados, sobre os lindos cachos louros que lhe emolduravam graciosamente o rosto; mas a menina nem dava por isso. Via, pelas janelas das casas, as luzes que brilhavam lá dentro; vagava na rua um cheiro bom de pato assado - era a véspera do Ano Bom - isso sim, não o esquecia ela.

Achou um canto, formado pela saliência de uma casa, e acocorou-se ali, com os pés encolhidos para abrigá-los ao calor do corpo; mas cada vez sentia mais frio. Não se animava a voltar para casa, porque não tinha vendido uma única caixinha de fósforos, e não ganhara um vintém; era certo que levaria algumas lambadas. Além disso, lá fazia tanto frio como na rua, pois só havia o abrigo do telhado, e por ele entrava uivando o vento, apesar dos trapos e das palhas que lhe tinham vedado as enormes frestas. Tinha as mãozinhas tão geladas... estavam duras de frio. Quem sabe se acendendo um daqueles fósforos pequeninos, sentiria algum calor? Se se animasse a tirar um ao menos da caixinha, e riscá-lo na parece para acendê-lo... Ritch!... Como estalou, e faiscou, antes de pegar fogo!

Deu uma chama quente, bem clara, e parecia mesmo uma vela, quando ela o abrigou com a mão. E era uma vela esquisita, aquela! Pareceu-lhe logo que estava sentada diante de uma grande estufa, de pés e maçanetas de bronze polido. Ardia nela um fogo magnífico, que espalhava suave calor. E a meninazinha ia estendendo os pés enregelados para aquecê-los e... crac! Apagou-se o clarão! Sumiu-se a estufa, tão quentinha, e ali ficou ela, no seu canto gelado, com um fósforo apagado na mão. Só via agora a parede escura e fria.

Riscou outro. Onde batia a sua luz, a parede tornava-se transparente como a gaze, e ela via tudo lá dentro da sala. Estava posta a mesa, e sobre a toalha alvíssima via-se, fumegando entre toda aquela porcelana tão fina, um belo pato assado, recheado de maçãs e ameixas. Mas o melhor de tudo foi que o pato saltou do prato e, com a faca ainda cravada nas costas, foi indo pelo soalho direto à menina que estava com tanta fome, e... Mas - que foi aquilo? No mesmo instante acabou-se o fósforo, e ela tornou a ver somente a parede nua e fria, na noite escura. Riscou outro fósforo, e àquela luz resplandecente, viu-se sentada debaixo de uma linda árvore de Natal. Oh! Era muito maior, e mais ricamente decorada do que aquela que vira, naquele Natal, ao espiar pela porta de vidro da casa do negociante rico. Entre os galhos brilhavam milhares de velinhas; e estampas coloridas, como as que via nas vitrinas das lojas, olhavam para ela. A criança estendeu os braços, diante de tantos esplendores, e então, então... apagou-se o fósforo. Todas as luzinhas de natal foram subindo, subindo, mais alto, cada vez mais alto, e de repente ela viu que eram estrelas, que cintilavam no céu. Mas uma caiu lá de cima, deixando uma esteira de poeira luminosa no caminho.

- Morreu alguém - disse a criança.

Porque sua avó, a única pessoa que a amara no mundo, e que estava morta, lhe dizia sempre que quando uma estrela desce, é que uma alma subiu para o céu. Agora ela acedeu outro fósforo; e desta vez foi a avó que lhe apareceu, a sua boa vovó, sorridente e luminosa, no esplendor da luz.

- Vovó! - gritou a pobre menina - Leva-me contigo... Já sei que quando o fósforo se apagar, tu vais desaparecer, como se sumiram a estufa quente, e o rico pato assado, e a linda árvore de Natal!

E a coitadinha pôs-se a riscar na parede todos os fósforos da caixa, para que a avó não se desvanecesse. E eles ardiam com tamanho brilho, que parecia dia, e nunca ela vira a vovó tão alta, nem tão bela! E ela tomou a neta nos braços, e voaram ambas, em um halo de luz e de alegria, mais altoo, e mais alto, e mais longe... longe da terra, para um lugar lá em cima onde não há mais frio, nem fome, nem sede, nem dor, nem medo, porque elas estavam agora com Deus.

A luz fria da madrugada achou a menina sentada no canto, entre as casas, com as faces coradas e um sorriso de beatitude. Morta. Morta de frio, na última noite do ano velho. A luz do Ano Bom iluminou o pequenino corpo, ainda sentado no canto, com a mão cheia de fósforos queimados.

- Sem dúvida ela quis aquecer-se - diziam.

Mas... ninguém soube das lindas visões, que visões maravilhosas lhe povoaram os últimos momentos, nem em que halo tinha entrado com a avó nas glórias do Ano Novo.

Fontes:
Cursos e Livros. Digerati (CD-Rom).
http://www.aefa.edu.pt/ (imagem)

Enciclopédia

A Encyclopédie de Diderot e D'Alembert, publicada no século XVIII, serviu de modelo para todas as enciclopédias elaboradas desde então. Essa obra, muito além de sintetizar o saber da época, constituiu a base da renovação do pensamento filosófico e científico.

Os gregos, ao que parece, entenderam o termo enciclopédia como sistema completo de instrução, ou círculo (enkyklos) de aprendizagem (paideia), expressão que corresponde ao que modernamente se denomina cultura geral. O termo enciclopédia foi usado pela primeira vez em língua inglesa por Sir Thomas Elyot, em The Governour (1531), e em língua francesa por Rabelais, em Pantagruel (1532). Não se conhece seu emprego em título de livro na antiguidade ou da Idade Média.

Primeiras enciclopédias

Os filósofos gregos lançaram as bases das classificações mais tarde usadas nas enciclopédias, mas os romanos foram os primeiros a organizar obras que continham informações referentes a todas as áreas do conhecimento. Em quatro obras -- Antiguidades das coisas humanas e divinas, Disciplinas, Retratos e Sobre a agricultura -- Varrão (século I a.C.) empregou a organização em quatro sistemas que seria adotada pelos enciclopedistas posteriores: história, artes, biografias e palavras. Os 37 livros da História natural, de Plínio o Velho, completada no ano 77 e tida como a mais antiga enciclopédia ocidental, contêm 2.493 capítulos organizados por assunto.

Sobre o casamento da Filologia com Mercúrio, de Martianus Capella, trata das artes liberais e, como a obra de Plínio, foi de grande influência na Idade Média, cujos primeiros enciclopedistas foram são Jerônimo, Cassiodoro e Isidoro de Sevilha. A partir do século XII apareceram diversas obras enciclopédicas, a maior parte delas organizada por assunto.

No mundo bizantino, duas obras se destacaram: a Bibliotheca (c. 857), de Fócio, e De omnifaria doctrina, de Psellos. Os sábios muçulmanos, que inicialmente enfrentaram o problema de conciliar a filosofia grega com o islamismo, manifestaram tendência para o enfoque enciclopédico. Particularmente importantes são o Catálogo das ciências, de al-Farabi; Chaves da ciência, de al-Khwarizmi; Kitab al-shifa, enciclopédia filosófica de Avicena, e Colliget, enciclopédia médica de Averroés.

As enciclopédias chinesas, como algumas compilações ocidentais, consistiam em extratos de obras. As mais conhecidas são a Tai-ping yulan, de Wu Chu e Li Fang, do século X, composta de mil livros, e Grande padrão, compilada do século XV sob a direção do imperador Yung-lo, que compreendia 22.937 livros. A literatura hindu não possui enciclopédias no estilo das que existiam na Europa, no mundo muçulmano e na China, mas pode-se considerar as puranas, do século II ao VI, como compilações desse tipo.

Entre o século XIV e fins do XVI, quatro filósofos exerceram influência determinante sobre o conceito de enciclopédia: Raimundo Lúlio, que desenvolveu uma "arte" dividida em três partes: linguagem, gramática e uma enciclopédia do conhecimento; Petrus Ramus, que reorganizou as artes liberais e a filosofia; Francis Bacon, que dedicou seu gênio à organização e ao avanço do conhecimento, e Comenius, que propôs uma reforma da educação, segundo a qual a "luz universal" seria difundida por meio de livros, escolas e linguagem universais.

Enciclopédias modernas

Entre as enciclopédias do século XVII destacaram-se, por sua extensão e organização: Anatomia ingeniorum et scientiarum, de Antônio Zara; Encyclopaedia septem tomis distincta, de Johann Heinrich Alsted; e Le Grand Dictionnaire historique, ou le Mélange curieux de l'histoire sacrée et profane, alfabeticamente estruturado, que foi traduzido para o inglês, alemão, holandês e espanhol.

No século XVIII, o frade franciscano Vincenzo Maria Coronelli trabalhou numa enciclopédia alfabética, Biblioteca universale sacro-profana, prevista para 45 volumes, dos quais apenas sete foram publicados (1701-1706). Seguiram-se o Lexicon technicum, or Dictionary of the Arts and Sciences (1704), de John Harris, a primeira enciclopédia alfabética em língua inglesa. Em 1728, Ephraim Chambers publicou sua Cyclopaedia; or An Universal Dictionary of Arts and Sciences, cuja edição ampliada e revista foi publicada por Abraham Rees, em 1779-1788, e serviu de base para a Cyclopaedia de Rees, em 45 volumes. Johann Heinrich Zedler, livreiro de Leipzig, publicou, entre 1732 e 1750, seu Grosses vollständiges universal Lexicon, em 64 volumes, a mais abrangente e completa enciclopédia até então editada.

Encyclopédie

O empreendimento literário e filosófico que maior influência exerceu sobre a vida política, social e intelectual da Europa do século XVIII foi a Encyclopédie francesa. Programada para oito volumes de texto e dois de estampas impressas, contou com o concurso de 160 colaboradores e despertou enorme interesse, mas custou duras lutas contra resistências políticas e religiosas, só superadas pela perseverança de seu editor, Denis Diderot.

A história da Encyclopédie começou quando os direitos de publicação de uma tradução francesa da Cyclopaedia, de Chambers, foram oferecidos, em 1745, pelo inglês John Mills ao editor André Le Breton. Depois de um desentendimento com Mills, Le Breton rompeu o contrato, ampliou seus planos para uma obra em dez volumes e procurou a colaboração de três outros editores. Em 1745, D'Alembert e o abade Jean-Paul de Guade Malves associaram-se ao empreendimento e dois anos mais tarde Diderot assumiu a direção geral da Encyclopédie, exceto da parte de matemática, editada por Jean le Rond D'Alembert.

As traduções dos verbetes de Chambers foram abandonadas por sua má qualidade, erros e omissões. O primeiro volume apareceu em 1751, o segundo em 1752 e o terceiro em 1753, seguindo-se a publicação de um volume por ano até 1757. Certos verbetes suscitaram críticas de católicos e protestantes, o que levou D'Alembert a renunciar ao cargo de editor em 1758. No ano seguinte, a Encyclopédie foi incluída na lista das obras perigosas. Os últimos dez volumes de texto foram concluídos em 1765 e os 11 volumes de lâminas se completaram em 1772.

Com exceção de Rousseau e do barão d'Holbach, o grupo de escritores reunido por Diderot e D'Alembert para colaborar na obra era inicialmente quase desconhecido, mas a fama da Encyclopédie e os ataques de que foi objeto atraíram diversos colaboradores de peso. Após a morte do último editor original, Charles Joseph Panckoucke lançou um Supplément da Encyclopédie em quatro volumes de texto e um de lâminas, aos quais, mais tarde, adicionou dois volumes de índice preparados por Pierre Mouchon. Estes sete volumes, juntamente com os 28 elaborados sob a supervisão de Diderot, constituem a primeira edição da Encyclopédie, com 35 volumes in folio.

Em 1780, Panckoucke obteve os direitos de publicação de uma nova edição da obra reorganizada em forma de dicionários separados, sob o título de Encyclopédie méthodique ou par ordre de matières. Em 1788 o projeto inicial foi reformulado e se adotou um novo plano de divisão dos assuntos em 44 partes e 51 dicionários. Os trabalhos prosseguiram durante os anos da revolução francesa e foram concluídos em 1832, com o lançamento do volume 166.

Encyclopaedia Britannica

Outra das mais importantes enciclopédias do século XVIII foi a Encyclopaedia Britannica; or, a Dictionary of Arts and Sciences, editada em Edimburgo por Andrew Bell e Colin Macfarquhar, entre 1768 e 1771, com três volumes, 2.689 páginas e 160 lâminas, compilada de acordo com um novo plano em que as ciências e as artes eram sintetizadas em tratados ou sistemas. Para a segunda edição, o plano da obra foi ampliado com a inclusão de histórias e biografias: saiu em dez volumes e também em fascículos.

As sucessivas edições constituíram um êxito de vendas nos Estados Unidos, a tal ponto que, em 1901, uma empresa americana organizada para comercializar a Encyclopaedia Britannica em todo o mundo adquiriu os direitos da obra. Em 1920 esses direitos foram comprados pela Sears, Roebuck and Co. E. H. Powell, que em 1932 se tornou presidente da Encyclopaedia Britannica, Inc. formulou o plano de revisão contínua, segundo o qual novas impressões corrigidas e ampliadas passaram a ser lançadas anualmente; um anuário, o Britannica Book of the Year, passou a atualizar as informações contidas na obra.

Em 1941, William Benton, vice-presidente da Universidade de Chicago, convenceu a Sears a doar a Encyclopaedia Britannica à universidade, que, no entanto, recusou-se a assumir os riscos financeiros da operação. Benton tornou-se então presidente do conselho de diretores da empresa e seu maior acionista.

Século XIX

Três tendências assinalaram o desenvolvimento das enciclopédias no século XIX: (1) a combinação dos verbetes sobre artes e ciências com verbetes biográficos, geográficos e históricos; (2) o desenvolvimento de enciclopédias de verbetes curtos, enciclopédias sistemáticas de verbetes longos e enciclopédias de verbetes longos e curtos; e (3) equilíbrio da ordem alfabética com as disposições tópicas ou sistemáticas.

A primeira enciclopédia importante do século XIX foi a alemã Brockhaus Konversations-Lexikon, lançada em 1796 por Gotthelf Renatus Löbel com o título de Frauenzimmer-Lexicon e adquirida por Friedrich Arnold Brockhaus em 1808. Obra que trazia informações sumárias sobre todos os assuntos, a Brockhaus exerceu influência sobre enciclopédias de diversos países, especialmente da Dinamarca, Suécia, Noruega, Países Baixos, Hungria, Rússia, França, Itália e Espanha. Outras destacadas enciclopédias alemãs foram a Meyers Grosses Konversations-Lexikon, em 46 volumes, e a Allgemeine Enzyklopädie der Wissenschaften und Künste, em 167 volumes, caracterizada por suas longas monografias.

Entre as enciclopédias inglesas, as principais foram a Cyclopaedia, de Rees, em 45 volumes; a Encyclopaedia Metropolitana, em 25 volumes, e a British Cyclopaedia, em dez volumes. Nos Estados Unidos destacaram-se a New American Cyclopaedia, em 16 volumes, e a New Universal Cyclopaedia, em quatro volumes, reeditada em oito volumes sob o título de Johnson's Universal Cyclopaedia.

Na França são importantes o Grand dictionnaire universel du XIX siècle, em 15 volumes, de Pierre Larrousse, considerado obra de vulgarização, misto de dicionário e enciclopédia; e a Grande encyclopédie, inventaire raisonné des sciencies, des lettres e des arts, em 31 volumes, de organização alfabética, considerada uma das melhores enciclopédias do mundo.

Século XX

As facilidades de comunicações, os novos métodos de comercialização de livros e os modernos conceitos de educação generalizaram o uso de enciclopédias gerais, especializadas e dicionários enciclopédicos. Nos Estados Unidos, além das obras gerais, como a Grolier's Universal Encyclopedia (dez volumes) e The Encyclopedia Americana (trinta volumes), apareceram diversas pequenas enciclopédias destinadas ao público juvenil.

As principais enciclopédias francesas do século XX são a Larousse du XX siècle (seis volumes), Grand Larousse (dez volumes), Encyclopédie française (vinte volumes), Encyclopédie de la Pléiade, planejada para quarenta volumes e a Encyclopaedia Universalis (23 volumes). Na Itália, apareceram, além da grande Enciclopedia italiana di scienze, lettere ed arti, em 36 volumes, dirigida por Giovanni Treccani, o Dizionario enciclopedico italiano, em 12 volumes, e a Enciclopedia cattolica, publicada pelo Vaticano, também em 12 volumes.

Das enciclopédias alemãs, merecem referência as novas edições da Der Grosse Brockhaus, do Meyers Grosses Konversations-Lexikon e a Der Grosse Herder. Na antiga União Soviética, o preparo da primeira edição da Bolshaia sovetskaia entsiklopedia, em 65 volumes, prolongou-se de 1926 a 1947. Nos países de língua castelhana, além das obras editadas pela Encyclopaedia Britannica, Inc -- Barsa e Hispánica --, cabe mencionar a monumental Enciclopedia universal ilustrada europeo-americana, editada entre 1905 e 1953 pela Espasa-Calpe, que com o acréscimo de suplementos superou os cem volumes.

Um fato novo na última década do século foi o lançamento de enciclopédias em suporte eletrônico, ou seja, CD-ROM. Normalmente, essas enciclopédias incorporam, além de textos e fotografias, jogos educacionais ou recreativos, sons e imagens em movimento, que caracterizam a chamada multimídia.

Enciclopédia no Brasil

A primeira enciclopédia a dar alguma ênfase aos assuntos brasileiros foi a Encyclopedia e Diccionario Internacional (Lisboa, 1919, em vinte volumes), de organização alfabética, escrita por colaboradores portugueses e brasileiros. Igualmente publicada em Lisboa e, nominalmente, no Rio de Janeiro, a Grande enciclopédia portuguesa e brasileira (1935-1960), em quarenta volumes, dedica-se a assuntos portugueses mas inclui um suplemento, em quatro volumes, referente ao Brasil. Possui disposição alfabética.

A Enciclopédia brasileira Mérito (Rio de Janeiro, 1958-1964, vinte volumes) também possui organização alfabética; tem características de dicionário enciclopédico. A primeira enciclopédia brasileira estruturada por assunto, a Enciclopédia Delta-Larousse (Rio de Janeiro, 1960, 15 volumes), teve as matérias de interesse universal traduzidas da Encyclopédie Larousse méthodique. Outra coleção da empresa foi a Grande enciclopédia Delta-Larousse (Rio de Janeiro, 1970, 15 volumes) também alfabética e ilustrada a cores. Os temas universais foram traduzidos do Larousse trois volumes.

Com ênfase nos assuntos nacionais e inteiramente escrita por colaboradores brasileiros, foi lançada em 1964 a Enciclopédia Barsa, em 16 volumes, com organização alfabética e atualizada por um Livro do ano.

Em 1975 a Encyclopaedia Britannica do Brasil lançou a maior das enciclopédias brasileiras, a Enciclopédia Mirador internacional. Com direção editorial do filólogo Antônio Houaiss, foi publicada em vinte volumes e mais de 12.000 páginas.

Em 1997, depois de inúmeras revisões anuais, a Enciclopédia Barsa teve publicada a presente edição, inteiramente reformulada e ilustrada em cores. Dividida em quatro partes, compreende 18 volumes: 14 da Macropédia, com textos longos; dois da Micropédia, para consulta rápida; um da Datapédia, que reúne dados estatísticos ou perecíveis; e um da Temapédia, um amplo guia de estudos.

Fontes:
E-Learning. Digerati. EL 010 (CD-Rom)
http://www.arcadovelho.com.br (imagem)

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Érico Veríssimo (Ana Terra)

Ana Terra era uma moça que morava com sua família em um sítio muito longe da cidade e tinha uma vida sofrida, e a única coisa que Ana e sua família faziam era trabalhar. Embora Ana tinha o desejo de abraçar e beijar algum homem.

O princípio de seu desejo veio com a chegada do índio Pedro Missioneiro, e que lentamente foi crescendo na sua condição de macho: uma cara moça e trigueira, de maçãs salientes. Ana, quando o via sentia uma coisa que não podia explicar: um mal-estar sem nome, mistura de acanhamento, nojo e fascinação. Em sua singeleza, atraía-se pelo estranho, confirmando-se como aquela mulher desejável que enxergara no fundo das águas. Entregar-se àquele desconhecido foi um passo tão natural como o suceder das estações naqueles ermos. Antes, arriscou um jogo delicioso de avanços e recuos, sabendo que, quisesse ou não quisesse, agindo a favor ou contra a lei paterna, seria daquele homem. E, numa tarde, considerou-se pronta, e o desejo palpitava em todas as sua artérias; encaminhou-se para a barraca do índio, o reino de Pedro Missioneiro. E lá aconteceu algo que Ana queria.

Os dias seguintes foram de medo, pânico misturado à vergonha e depois disso, logo soube que estava grávida, e o isso tornou-se um espaço de lágrimas. Carregou o segredo o quanto pôde, mas um dia, não se contendo mais, revelou tudo à mãe. Dona Henriqueta nem teve tempo de consolá-la: e o pai declarou já saber de tudo e foi como se um trovão cortasse os céus. Nada mais poderia ser feito: cumprindo um código ancestral, ele convocou os dois filhos, e esses mataram Pedro Missioneiro. Sabia que sua vida naquela casa dali por diante seria um inferno.

De um instante para outro tornou-se invisível aos olhos do Pai, transfigurando-se numa entidade pecadora. Simbolicamente expulsa de sua casa, procurou fazer-se pequena, para que sua pequenez diminuísse a dor da culpa; tratava-se, porém, de uma culpa mais aceita do que entendida. Logo aconteceu o nascimento do filho de Ana Terra e, Dona Henriqueta assistiu-a, cortando o cordão umbilical do menino Pedro. Mesmo assim, os pais e irmãos não tomaram conhecimento do novo ser que habitaria o rancho.

Contra toda as possibilidades, Pedrinho cresceu, e a vida seguiu seu rumo. Os irmãos casaram-se, e, para Ana, cada dia era a repetição do dia anterior. Depois disso, sua mãe morreu, de nó nas tripas, mas esta morte não abalou muito à Ana. Então vieram vários castelhanos, assassinando, incendiando, violando. Ana mandou a esposa de seu irmão e as duas crianças irem se esconder no mato, e fingindo ser a única mulher da casa, imola-se voluntariamente à sanha dos bandidos. Foi estuprada várias vezes, e ao acordar de seu desfalecimento, encontrou um quadro de horrores: o pai, o irmão Antônio, os escravos, todos estavam mortos no meio da casa já destruída.

Ana entendia naquele momento que estava liberta de sua mancha original, e pela forma mais bárbara e purificadora. Nada lhe fora poupado em sofrimento, e pelo sofrimento reconciliava-se com a vida. Numa exaltação próxima a uma feroz alegria, aceitou o convite de um forasteiro para ir formar o núcleo inicial de uma nova vida, e uma longa viagem a levou para um planalto. Lá ela construiu uma casa, morando com seu filho, que logo teve que ir para uma guerra contra os castelhanos. Voltando da guerra vivo, casou-se com uma moça, teve um filho e logo teve que voltar para a guerra, com o compromisso de voltar vivo, pois agora ele tinha uma mulher e um filho para cuidar.

FONTE:
Concursos Públicos. Digerati. CEC 0004. (CR-ROM)
http://minerva.ufpel.edu.br (imagem)

Sergius Gonzaga (A Importância da Literatura)

No Brasil, até o início dos anos de 1960, a leitura de textos literários era considerada uma obrigação natural por parte de professores e de alunos, não havendo quem questionasse o sentido do ato de ler. Há que se entender que, em nosso país,, o livro exercia desde o século XIX inúmeras funções, particularmente para os grupos sociais privilegiados:
A) era a mais perfeita forma de lazer;
B) era uma insubstituível fonte de conhecimento humano;
C) era o próprio espelho da nação, no qual a pequena elite letrada se reconhecia;
D) era o modelo supremo de correção e elegância do idioma pátrio.

A década de 60 trouxe uma importante universalização e democratização do ensino, permitindo que outras classes - que não apenas as privilegiadas - tivessem acesso ao saber. Estes novos atores sociais, no entanto, provinham de um mundo sem livros e com referências culturais muito pobres. E antes que a tradição de leitura se incorporasse às suas existências, foram atraídos pela poderosa indústria cultural que se implementava na mesma época. Esta indústria, centrada na tevê e no disco, conquistou, de imediato, consideráveis parcelas da população recém-alfabetizada. As necessidades de lazer, entretenimento e informação - que todo indivíduo escolarizado possui - foram preenchidas por estes meios audiovisuais. E a leitura perdeu a guerra pela audiência, convertendo-se numa espécie de atividade refinada de alguns poucos nostálgicos.

Até mesmo as elites, abandonaram parcialmente o seu antigo amor - que lhes oferecia uma constelação de imagens e de visões de mundo -, trocando-o por uma sub-arte digestiva e fácil, produzida pelos meios de comunicação de massa. Contudo, esta situação não deve ser considerada como a emergência do apocalipse. Primeiro, porque nunca foram produzidos tantos livros como atualmente. Segundo, porque nunca se exigiu tanta qualificação intelectual dos jovens para vencer no mercado de trabalho. Terceiro, porque os professores - passado um período de desencanto e ceticismo - perceberam que podiam reinventar a leitura com seus alunos, desde que agindo com criatividade e persuasão.

Livros a granel e relativamente acessíveis; alunos que precisam se preparar do ponto de vista lingüístico e cognitivo para uma sociedade globalizada, onde apenas os altamente capazes do ponto de vista cultural irão triunfar; e professores preparados para provocar e seduzir seus discípulos com leituras vibrantes, prazerosas e vitais; eis os três elementos que sustentam o contínuo renascimento do gosto pela leitura nas escolas brasileiras.

José Hildebrando Dacanal assinala a importância da literatura em nossos dias:

É indiscutível que, mesmo na era das imagens e dos meios de comunicação de massa, a literatura preservará, como toda a arte, sua função de símbolo e documento do passado e desempenhará - enquanto a humanidade for a mesma - o papel pedagógico que sempre a caracterizou. Não apenas no sentido restrito da sala de aula, mas principalmente no sentido amplo e universal de instrumento de aquisição de conhecimento e diferenciação da elite em relação à massa, mantendo-se, pois, como relicário* da língua e como um espelho monumental da nação.
* Relicário: objeto onde se guardam relíquias

Em depoimento magnífico, o peruano Mario Vargas Llosa insiste no valor da literatura em comparação com outras atividades:

Em nossa época se escrevem e publicam muitos livros, mas já ninguém acredita que a literatura sirva para alguma coisa, a não ser para evitar que as pessoas se aborreçam muito nos ônibus ou no metrô, e para que, adaptada para o cinema e a televisão - se for sobre marcianos, horror, vampirismo ou crimes sadomasoquistas -, se torne televisiva ou cinematográfica. Para sobreviver, a literatura tornou-se light. É um erro traduzir essa noção por "leve" porque, na verdade, ela significa" irresponsável" e, muitas vezes, "idiota".

Se o objetivo é apenas o de entreter e fazer com que os seres humanos passem momentos agradáveis, perdidos na irrealidade, emancipados do inferno doméstico ou da angústia econômica, em descontraída indolência intelectual, as ficções da literatura não podem competir com as oferecidas pelas telas de cinema ou tevê. As ilusões forjadas com a palavra exigem a participação ativa do leitor, um esforço de imaginação e, às vezes - quando se trata da literatura moderna -, complicadas operações de memória, associação e recriação, algo de que as imagens do cinema e da tevê dispensam os espectadores. E, por isso, os espectadores se tornam cada vez mais preguiçosos, mais alérgicos a um entretenimento que requeira esforço intelectual.

Digo isso sem a menor intenção beligerante contra os meios audiovisuais, e a partir da minha condição de apreciador de cinema - vejo dois ou três filmes por semana - e que também gosta de um bom programa de tevê (essa raridade). Mas, justamente por isso, afirmo que nenhum dos filmes que vi me ajudou a compreender o labirinto da psicologia humana como os romances de Dostoievski. Ou os mecanismos da vida social, como os livros de Tolstói e de Balzac, ou os abismos e os pontos altos que podem coexistir no ser humano, como me ensinaram as obras de um Thomas Mann, um Faulkner, um Kafka, um Joyce ou um Proust.

As ficções apresentadas nas telas são intensas por seu imediatismo e efêmeras por seus resultados. Prendem-nos e nos liberam quase de imediato. Das ficções literárias, nos tornamos prisioneiros da vida toda, porque o resultado de uma boa literatura é sempre posterior à leitura - um efeito deflagrado na memória e no tempo.

Fonte:
http://educaterra.terra.com.br/

domingo, 11 de maio de 2008

Literatura Grega

Primeira a surgir na Europa, a literatura grega lançou, no curso de sua evolução, os alicerces de quase todos os gêneros literários. Assimilados pelos romanos, os grandes escritores gregos da antiguidade, junto com os clássicos latinos, passaram a ser considerados modelos universais, e deles provém certamente toda a tradição literária ocidental.

Distribuída em três grandes períodos -- o da antiguidade, o bizantino e o moderno -- a literatura grega abordou, no teatro e na poesia, na filosofia e no texto religioso, todos os grandes mitos e temas cruciais da humanidade. Serviu de referência não apenas à literatura universal como a atividades e correntes científicas e artísticas modernas, como o cinema, a psicanálise e a educação.

Antiguidade

A literatura grega da antiguidade é a que se desenvolveu desde que começou a difundir-se o emprego da escrita, por volta do século VIII a.C. Período da maior importância para a história das letras ocidentais, divide-se nas épocas arcaica (até o fim do século VI a.C.), clássica (séculos V e IV a.C.), e helenística e greco-romana (a partir do século III a.C.).

Época arcaica.
Antes mesmo de utilizarem a escrita para fins literários, os gregos já faziam poesia para ser cantada ou recitada. Seus temas eram os mitos, em parte lendários, baseados na memória difusa de eventos históricos, além de um pouco de folclore e de especulação religiosa primitiva. Os mitos, porém, não se vinculavam a qualquer dogma religioso e, embora muitos fossem deuses ou grandes heróis mortais, não eram autoritários e podiam ter seu perfil alterado por um poeta que desejasse expressar novos conceitos.

Assim, bem cedo o pensamento grego começou a progredir, na medida em que os poetas reelaboravam suas fontes. A esse estágio inicial, denominado época arcaica, pertencem os épicos atribuídos a Homero, a Ilíada e a Odisséia, que recontam histórias entremeadas de mitos da época micênica. A poesia didática de Hesíodo (c. 700 a.C.), provavelmente posterior aos épicos de Homero, embora com diferentes tema e tratamento, deu continuidade à tradição épica.

Os vários tipos de poesia lírica grega surgiram no período arcaico entre os poetas das ilhas do mar Egeu e da Jônia, no litoral da Anatólia. Arquíloco de Paros, do século VII a.C., foi o primeiro poeta grego a usar a elegia de uma forma mais pessoal. Suas formas e padrões métricos foram imitados por uma sucessão de poetas jônicos. No começo do século VI, Alceu e Safo criaram seus poemas no dialeto eólico da ilha de Lesbos e foram mais tarde adaptados por Horácio para a poesia latina. A eles se seguiu Anacreonte de Teos, na Jônia, que também compôs em dialeto jônico. A lírica coral, com acompanhamento musical, pertencia à tradição dórica.

A tragédia e a comédia se originaram na Grécia. Acredita-se que havia coros "trágicos" na Grécia dórica por volta de 600 a.C.. Também a comédia se originou na Grécia dórica e se desenvolveu na Ática.

Códigos legais surgidos no fim do século VII foram a primeira forma de prosa. Não se conhece autor de prosa anterior a Ferécides (c. 550 a.C.) de Siros, que escreveu sobre o começo do mundo. Mas o primeiro autor considerável, Hecateu de Mileto, escreveu sobre o passado mítico e a geografia do Mediterrâneo e terras próximas. Atribui-se a Esopo, personagem lendário de meados do século VI, a autoria das fábulas de sentido moral copiadas por escritores de épocas posteriores.

Época clássica.
Quase todos os gêneros literários atingiram seu ponto máximo no período clássico, com as tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, a comédia de Aristófanes e a lírica coral de Píndaro. O clássico também foi um período áureo para a retórica e a oratória, cujo estudo levantou questões sobre verdade e moralidade na argumentação, e, dessa maneira, era objeto de estudo tanto do filósofo quanto do advogado e do político. A prosa histórica grega atingiu a maturidade nesse período.

As obras de Platão e Aristóteles, que datam do século IV, são os mais importantes produtos da cultura grega na história intelectual do Ocidente. Esses pensadores firmaram as bases da filosofia ocidental e determinaram a evolução do pensamento europeu ao longo de séculos.

Épocas helenística e greco-romana.
No imenso império de Alexandre o Grande, macedônios e gregos compunham a classe dominante e, assim, o grego tornou-se a língua da administração, um novo dialeto baseado em parte no ático e chamado koine, ou língua comum. Em todos os lugares, a cidade-estado estava em declínio. A criação artística passou ao patrocínio privado e, exceto pela comédia ateniense, as composições visavam um público pequeno e seleto, apreciador da erudição e da sutileza.

O período helenístico foi do fim do século IV ao fim do século I a.C. Pelos três séculos seguintes, até Constantinopla tornar-se a capital do império bizantino, os escritores gregos tinham consciência de viverem num mundo do qual Roma era o centro.

Gêneros

Poesia épica.
No início da literatura grega se situam duas grandes epopéias, a Ilíada e a Odisséia. Algumas fontes desses poemas são da época micênica, talvez de 1500 a.C., mas a obra escrita, atribuída a Homero, é datada de cerca do século VIII a.C. Ilíada e Odisséia são os primeiros exemplos de poema épico -- na antiguidade, era um longo poema narrativo, de estilo nobre, que celebrava conquistas heróicas.

Apesar de serem os poemas europeus mais antigos, Ilíada e Odisséia não podem ser considerados, de nenhum ponto de vista, primitivos. Mais que o começo, eles marcam o ponto mais alto dessa forma literária. Eram essencialmente poemas transmitidos de forma oral, desenvolvidos e aumentados ao longo de um extenso período de tempo, sobre cujo tema vários e sucessivos poetas anônimos livremente improvisaram. No mundo antigo, ocupavam uma classe especial entre os poemas épicos. De fato, conservam-se restos de um ciclo épico, com numerosos poemas que complementam a história das guerras de Tebas e Tróia e outros mitos.

A poesia didática não era tida pelos gregos como uma forma diferente da épica, mas o mundo do poeta Hesíodo, que viveu na Beócia por volta de 700 a.C., era completamente diferente do de Homero. Além de Os trabalhos e os dias, que descreve a vida de um simples agricultor beócio atormentado pela seca e pela opressão da aristocracia, deixou também o poema Teogonia, que narra a genealogia dos deuses e dos mitos associados à criação do universo, com clara influência da mitologia do Oriente Médio.

Poesia lírica.
A palavra "lírica" abrange muitos tipos de poemas. Aqueles cantados por indivíduos ou coros acompanhados de lira, ou às vezes flauta, eram chamados mélicos. As elegias -- nas quais o hexâmetro épico, ou verso de seis sílabas, se alternava com um verso mais curto -- eram associadas com a lamentação e acompanhadas de flauta. Mas os poemas também eram usados para poesia monódica, falada e cantada. Os poemas jâmbicos (de versos jâmbicos, ou unidades métricas de quatro sílabas longas e breves alternadas), forma versificada da sátira, em geral não eram cantados. A lírica coral, geralmente acompanhada de lira e flauta, não usava os versos ou estrofes tradicionais; seu metro era criado para cada poema e nunca utilizado novamente da mesma forma. Além de Alcmeão de Esparta e Estesícoro, destacam-se no gênero Simônides de Ceos, Píndaro e, já no declínio do gênero, Baquílides (século V a.C.).

Tragédia e comédia.
Em suas duas vertentes -- tragédia e comédia -- chegou nessa época à plenitude estética o teatro grego. Suas origens permanecem obscuras, mas parece claro que ambas foram tiradas dos rituais religiosos em honra do deus Dioniso.

O principal interesse de Ésquilo, cujas tragédias são geralmente agrupadas em trilogias, não é a ação dramática, nem a composição dos personagens, mas a subordinação da vida humana aos insondáveis desígnios dos deuses. Com Sófocles, seu sucessor, a tragédia alcançou ainda maior perfeição formal. O tema central de suas grandes obras, como Édipo rei, Electra e Antígona, é a exaltação da grandeza do homem que, embora submetido ao destino e à vontade dos deuses, mantém a integridade moral e cumpre seu dever.

Eurípides, contemporâneo dos sofistas, pertenceu a uma fase de questionamento de todas as crenças tradicionais. Ainda que partisse do mito, como os trágicos anteriores, seu interesse centrou-se no estudo da paixão humana -- Medéia, Hipólito -- e na crítica às idéias convencionais sobre religião, política e moral. Depois de Eurípides, que morreu em 406, a tragédia deixou de ser cultivada.

Paralelamente à tragédia, desenvolveu-se a comédia, que era sua contrapartida. Surgiu nas cidades dóricas, onde se destacou a figura de Epicarmo, mas adquiriu forma em Atenas, na primeira metade do século V. Na época inicial (comédia antiga) foi fundamentalmente sátira social e política. Aristófanes, um dos maiores gênios cômicos da literatura universal, ironizou, em obras como As rãs e As nuvens, as figuras políticas e intelectuais de seu tempo. A fase intermediária da comédia, na qual sobressaíram Antífanes e Aléxis, centrou-se na sátira e na paródia. Na comédia nova, cujo principal representante foi Menandro, no final do século IV, o tema principal foram os conflitos domésticos.

Prosa.
O primeiro grande historiador foi Heródoto de Halicarnasso, também grande geógrafo e antropólogo. Seu tema central é o confronto entre Ásia e Europa, que culminou com as guerras greco-pérsicas. Não menos importante foi Tucídides, que viveu na segunda metade do século V e escreveu a História da guerra do Peloponeso. Tucídides, diferentemente de Heródoto, exclui por completo a intervenção divina nos acontecimentos em que os homens intervêm. Costuma-se considerá-lo o verdadeiro criador da história como ciência, pelo rigor documental, sentido crítico e objetividade narrativa. Sua obra, que ficou inconclusa, foi completada por Xenofonte, que também escreveu Anábase, relato da retirada de dez mil gregos, depois do assassínio de seus líderes pelos persas de Ciro, desde as proximidades da Babilônia até a costa do mar Negro. Depois desses autores, o gênero histórico declinou até transformar-se em pouco mais que um exercício de retórica.

Retórica e oratória.
Em poucas sociedades terá sido mais valorizado o poder da oratória do que na Grécia. Foi sobretudo o surgimento das formas democráticas de governo que incentivou o estudo e o ensino da arte da persuasão.

Entre os oradores gregos do século IV, merecem particular atenção: Isócrates, que se distinguiu pelo cuidado do estilo e defendeu um ideal pan-helênico que pusesse fim às guerras internas entre os gregos, e sobretudo Demóstenes, o maior dos oradores gregos da antiguidade. Muito ativo na política, Demóstenes personificou a reação do velho ideal da pólis independente, frente ao nascente pan-helenismo. Depois de sua morte, com o declínio da democracia, a oratória entrou em decadência.

Prosa filosófica.
A prosa como um veículo para a filosofia começou a ser desenvolvida a partir do século VI a.C. Entre os primeiros filósofos se incluem Tales de Mileto, Anaximandro, Demócrito e Heráclito. A prosa filosófica foi a principal realização literária da época, muito influenciada por Sócrates (que não possui obra escrita) e seu método característico de ensino, por meio de perguntas e respostas, que evoluiu para o diálogo.

O discípulo mais célebre de Sócrates foi Platão, que começou a escrever pouco após a morte do mestre (399 a.C.) e, como escritor, deu forma insuperável a um novo gênero literário, o diálogo. Seu discípulo Aristóteles possuía um estilo admirado em seu tempo, mas suas obras conservadas são fundamentalmente didáticas e sem preocupação estilística.

Literatura bizantina

A literatura bizantina pode ser definida, de maneira geral, como a literatura grega da Idade Média, tanto a que se produziu no território do império bizantino quanto fora de suas fronteiras.

No fim da antiguidade, vários gêneros clássicos gregos, como o teatro e a poesia lírica coral, já tinham há muito se tornado obsoletos, e toda a literatura grega exibia de alguma forma a linguagem e o estilo arcaizantes, perpetuados por um sistema conservador de educação em que a retórica era a matéria mais importante. Os doutores gregos da igreja, produtos dessa educação, compartilhavam os valores literários de seus contemporâneos pagãos. Conseqüentemente, a vasta e dominante literatura cristã dos séculos III ao VI, que criou uma síntese do pensamento helênico e cristão, foi em grande parte escrita numa língua que há muito tempo não era mais falada por todas as classes em sua vida cotidiana. A utilização de duas formas muito diferentes da mesma língua para propósitos diversos caracterizou a cultura bizantina durante um milênio. A relação entre as duas formas, porém, se modificou com o tempo.

O prestígio da língua literária classicizante manteve sua força até o fim do século VI, e apenas algumas histórias populares das vidas dos santos e crônicas escaparam de sua influência. Nos dois séculos e meio que se seguiram, quando a própria existência do império bizantino estava ameaçada, a vida urbana e a educação entraram em declínio, e com elas o uso da língua e do estilo classicizantes. Com a recuperação política dos séculos IX e X teve início um renascimento literário, no qual se fez uma tentativa consciente de recriar a cultura helênico-cristã do fim da antiguidade. Desprezou-se a língua popular e a hagiografia (biografias de santos) foi reescrita em língua e estilo arcaizantes.

Por volta do século XII, a autoconfiança dos bizantinos lhes permitiu desenvolver novos gêneros literários, inclusive o romance de ficção, em que aventura e amor são os principais temas, e a sátira, que eventualmente usava citações do grego falado. O período entre a quarta cruzada (1204) e a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos (1453) assistiu a um vigoroso ressurgimento da literatura classicizante -- na medida em que os bizantinos buscavam afirmar sua superioridade cultural sobre o Ocidente, mais poderoso militar e economicamente -- e, ao mesmo tempo, ao início de uma florescente literatura que se aproximava do grego vernacular. Essa literatura vernacular, porém, limitava-se a romances poéticos, textos de devoção popular e outros afins. Toda a literatura séria continuou a usar a prestigiada língua arcaizante da tradição aprendida.

Didática no tom, e quase sempre também no contéudo, grande parte da literatura bizantina foi escrita para um grupo limitado de leitores cultos, capazes de compreender as alusões clássicas e bíblicas e apreciar as figuras de retórica. Alguns gêneros bizantinos não seriam considerados de interesse literário hoje. Ao contrário, parecem pertencer ao campo da literatura técnica, como é o caso dos volumosos textos dos doutores da igreja, como Atanásio, Gregório Nazianzeno, João Crisóstomo, Cirilo de Alexandria e Máximo o Confessor.

Poesia não litúrgica.
A poesia bizantina continou a ser escrita em métrica e estilo clássicos. Mas o senso de adequação da forma ao conteúdo estava perdido. Um exemplo disso é o trabalho de transição de Nonos de Panópolis, grego de origem egípcia do século V, que se converteu ao cristianismo. Seu longo poema Dionysiaká (Os dionisíacos) foi composto em linguagem e métrica homéricas, mas é muito mais aceito como um longo panegírico sobre Dioniso que como um épico. Contemporâneos de Nonos deixaram poemas narrativos curtos em verso homérico, de conteúdo mitológico.

Um clérigo, Jorge o Pisidiano, escreveu longos poemas narrativos sobre as guerras do imperador Heráclio (610-641), bem como um poema sobre os seis dias da criação do mundo, em trímetros jâmbicos (versos de 12 sílabas, em princípio de três pés jâmbicos, cada um com uma sílaba curta seguida por uma longa). Teodósio seguiu seu exemplo no épico sobre a retomada de Creta dos árabes, no século X.

O verso de 12 sílabas tornou-se a métrica mais utilizada em meados e no fim do império bizantino e serviu de veículo para narrativas, epigramas, romances, sátiras e instruções religiosas e morais. A partir do século XI encontrou um rival no verso de 15 sílabas -- usado pelo monge Simeon de Paflagônia em seus hinos místicos -- que se tornou um veículo para a poesia da corte no século XII. A nova forma também foi usada pelo metropolita Konstantinos Manasses em sua crônica do mundo e por um redator anônimo do romance épico Digenis Akritas, do século XIII.

Nessa métrica, que não seguiu modelos clássicos, foram escritos os primeiros poemas vernáculos, assim como o romance Calímaco e Crisorroe, entre outros que se incluem entre as mais significativas obras de ficção genuína na literatura bizantina. Muitos desses poemas eram adaptações ou imitações de modelos medievais ocidentais. Essa abertura ao Ocidente latino era nova. Mas mesmo quando se baseavam nos padrões ocidentais, os poemas bizantinos diferiam em tom e expressão de seus modelos.

A poesia bizantina é pouco original, cansativa e entediante. Mas alguns poetas revelam grande inspiração, como João Geometres (século X) e João Mauropo (século XI), ou extraordinário brilhantismo técnico, como Teodoro Pródomo (século XII) e Manuel II Paleólogo (século XIV). A habilidade para escrever versos era generalizada na sociedade bizantina letrada, e se apreciava muito a poesia.

Poesia litúrgica.
Desde os primórdios, a canção -- e pequenas estrofes rítmicas (troparia) em particular -- fazia parte da liturgia da igreja. Poemas em métrica e estilo clássicos foram criados por escritores cristãos desde Clemente de Alexandria e Gregório Nazianzeno. Mas as associações pagãs de gêneros, assim como as dificuldades da métrica, tornaram-nos inaceitáveis para o uso litúrgico geral.

No século VI, poemas rítmicos elaborados (kontakia) substituíram a troparia, mais simples. A nova forma devia muito à poesia litúrgica siríaca. O kontakion era uma série de até 22 estrofes, todas construídas com o mesmo padrão rítmico e terminando com um refrão curto. Em conteúdo, era uma homilia narrativa sobre um evento bíblico ou um episódio da vida de um santo. Quase sempre apresentava um forte elemento dramático. O maior compositor de kontakia foi Romanos Melodos (do início do século VI), um sírio provavelmente de origem judaica.

No fim do século VII o kontakion foi substituído por um poema litúrgico mais longo, o kanon, que consistia de oito ou nove odes, cada uma com muitas estrofes, além de ritmo e forma melódica diferentes. O kanon era um hino de louvor mais que uma homilia. Os mais notáveis compositores de kanones foram Andreas de Creta, João Damasceno, Theodoros Studita, Josephos Hymnógraphos e João Mauropo. A música original dos kontakia e kanones se perderam.

Historiografia.
Até o início do século VII uma série de historiadores recontou os eventos de seu próprio tempo em estilo classicizante, com falas fictícias e trechos descritivos do ambiente. Procópio de Cesaréia e outros historiadores que se seguiram partiram do ponto em que pararam seus antecessores. Posteriormente, esse veio permaneceu virtualmente extinto durante mais de 250 anos.

O renascimento da confiança na cultura e do poder político no fim do século IX assistiu ao ressurgimento da história classicizante, com interesse no personagem humano -- Plutarco era freqüentemente o modelo -- e nas causas dos eventos. O grupo de historiadores conhecidos coletivamente como os "Continuadores de Teófanes" registrou, não sem parcialidade, a origem e os primeiros dias da dinastia macedônica. Desde então até o fim do século XIV não houve uma só geração sem seu historiador. Os mais notáveis foram Simeon de Paflagônia (século X); Miguel Pselo (século XI); Ana Comnena (século XII); Georgios Akropolita (século XIII); e Nikephoros Gregoras e o imperador Johannes Cantacuzenos (século XIV). Os últimos dias do império bizantino foram recontados de vários pontos de vista por George Sphrantzes, o escritor conhecido simplesmente como Ducas (que era um membro da antiga casa imperial bizantina homônima), Laonicus Chalcocondyles e Michael Critobulus na segunda metade do século XV.

Outro tipo de interesse no passado era satisfeito pelas crônicas do mundo. Com freqüência ingenuamente teológicas em sua explanação das causas, simplistas na descrição dos personagens, e populares na linguagem, elas ajudaram o bizantino comum a se localizar num esquema de história mundial que era também uma história de salvação. As Chronographia de John Malalas, no século VI, e a Crônica de Pascal (Chronicon Paschale) no século VIII foram sucedidas pelas de Teófanes o Confessor, no início do século IX, e Jorge o Sincelo, no fim do século IX. Tais crônicas continuaram a ser escritas nos séculos seguintes, às vezes com pretensões críticas e literárias, como em John Zonaras, ou numa romantizada forma de verso, como em Konstantinos Manasses.

A importância que os governantes bizantinos deram à história se comprova na vasta enciclopédia histórica compilada por ordem de Constantino VII (913-959), em 53 volumes, dos quais somente poucos fragmentos permanecem.

Retórica.
Embora não houvesse oportunidade para oratória forense ou política no mundo bizantino, manteve-se o gosto pela retórica e pela linguagem bem-estruturada, pela escolha e pelo uso de figuras de linguagem e de pensamento. Do século X em diante sobrevive um vasto corpo de elogios, orações funerais, palestras inaugurais, discursos memoriais e de boas-vindas, celebrações de vitória e panegíricos variados. Essa profusão de retórica elaborada desempenhou um importante papel na formação e no controle da opinião pública nos círculos fechados e influentes, e ocasionalmente serviu de veículo para uma controvérsia genuinamente política.

Literatura grega moderna

Após a queda de Constantinopla, em 1453, a produção literária grega continuou quase exclusivamente nas áreas do mundo grego sob domínio de Veneza. Assim, Chipre, até ser capturada pelos turcos em 1571, produziu obras literárias no dialeto local, entre elas a crônica local, escrita por Leóntius Machairás. Em Creta, sob domínio de Veneza até 1669, assistiu-se a um importante florescimento literário, escrito em dialeto cretense. Escreveram-se tragédias, comédias, uma tragicomédia pastoral e uma peça religiosa baseada nos modelos italianos. Georgios Chortátsis era o escritor mais importante. Na primeira metade do século XVII, Vitséntsos Kornáros escreveu seu poema narrativo Erotókritos.

No território grego dominado pelos otomanos, as canções populares agradavam à população e se tornaram praticamente a única forma de expressão literária. Ao aproximar-se o fim do século XVIII, no entanto, vários intelectuais, sob a influência das idéias européias, procuraram elevar o nível da educação e da cultura gregas e lançaram as bases de um movimento em prol da independência. Os participantes desse "iluminismo grego" também abordaram o problema da língua, e cada um deles promovia uma forma diferente do grego para ser usada na educação. O principal intelectual do início do século XIX foi o acadêmico clássico Adamántios Koraïs, que em textos sobre a língua e a educação gregas, defendeu um grego moderno "corrigido" com base nas antigas regras.

Período pós-independência.
O grande renascer da literatura grega ocorreu a partir da independência, no final da década de 1820. Ao longo do século XIX houve uma discussão sobre qual das modalidades deveria ser adotada na língua literária: o katharevusa, variedade culta e deliberadamente arcaica; ou o demótico, baseado na língua falada. A princípio, foi mais empregado o katharevusa, mas no final do século triunfou na poesia o demótico, adotado em todos os gêneros literários a partir do início do século seguinte.

A literatura grega do século XIX esteve sob o signo do romantismo, ainda que nas últimas décadas tenha seguido novas tendências. Foram duas as mais importantes escolas de poesia: a ateniense e a jônica. Os poetas da primeira, que teve como fundador o líder Alexandros Soútsos, distinguiram-se pelo extremo sentimento patriótico e exacerbado romantismo. Além de Soútsos e de seu irmão Panayótis, introdutores do romance na Grécia, as figuras mais importantes foram Aléxandros Rízos Rangavís, em poesia narrativa e lírica, teatro e romance; Emmanuel Roídis, autor do romance satírico I Pápissa Ioánna (1866; A papisa Joana), um pastiche do romance histórico; e Pávlos Kalligás e Dimítrios Vikélas, que trataram de temas contemporâneos.

O representante máximo da escola jônica foi Dhionísios Solomós, poeta de grande profundidade filosófica e precursor do grupo de poetas atenienses que a partir de 1880 reagiu contra os exageros do romantismo e do formalismo do katharevusa. O movimento vulgarista defendeu o demótico como língua mais apropriada para a criação literária. Antónios Mátesis escreveu um drama histórico que foi a primeira obra em prosa em demótico. Aristotélis Valaorítis deu continuidade à tradição jônica com longos poemas patrióticos inspirados nas guerras nacionais gregas.

O movimento vulgarista na literatura, cujo principal ideólogo foi Yánnis Psicháris (Jean Psichari), inspirou poetas a enriquecerem a tradição popular grega com influências externas. Dentro dessa tendência, Kostís Palamás dominou a cena literária por várias décadas, com uma vasta produção de ensaios e artigos, e publicou sua melhor poesia entre 1900 e 1910. Angelos Sikelianós seguiu a mesma tendência em sua poesia lírica de natureza profundamente mística.

Na prosa, o culto folclórico fortaleceu o desenvolvimento do conto, inicialmente escrito em katharevusa, mas o demótico gradualmente ocupou maior espaço a partir da década de 1890. Esses contos, assim como os romances do período, descreviam cenas da vida tradicional rural, em parte idealizada, em parte vista de maneira crítica por seus autores.

Geórgios Vizyenós foi o primeiro contista grego, e o mais famoso e prolífico no gênero foi Aléxandros Papadiamándis. O romance O zitiános (1896; O mendigo), de Andréas Karkavítsas, satiriza a miséria econômica e cultural da população rural. A partir de 1910, essa visão crítica se refletiu na prosa de Konstantinos Chatzópoulos e Konstantinos Theotókis. Na mesma época, Grigórios Xenópoulos escreveu romances urbanos e trabalhou especialmente em teatro, gênero que recebeu um impulso substancial do movimento vulgarista.

A perda da Anatólia em 1922, quando os anseios expansionistas da Grécia na Turquia foram finalmente frustrados, trouxe uma mudança radical à orientação da literatura grega. Antes de cometer suicídio, Kóstas Kariotákis escreveu poemas sarcásticos sobre a lacuna entre os antigos ideais e a nova realidade.

A reação contra o derrotismo de 1922 veio com a geração de 1930, grupo de escritores que revigorou a literatura grega. Abandonaram as antigas formas poéticas e produziram romances ambiciosos que pretendiam corporificar o espírito da época. Os poetas Georgios Seféris, que também escreveu ensaios, e Odysseus Elytis ganharam o Prêmio Nobel de literatura em 1963 e 1979, respectivamente. Yánnis Rítsos foi outro importante poeta da época.

A geração de 1930 produziu romances notáveis. Entre eles, destacam-se I zoí en tafo (1930; A vida no túmulo), relato da vida nas trincheiras da primeira guerra mundial escrito por Strátis Myrivílis; Argo (1933-1936), obra em dois volumes de Yórgas Theotokás, sobre um grupo de estudantes durante a turbulenta década de 1920; e Eroica (1937), de Kosmás Polítis, que trata do impacto do amor e da morte sobre um grupo de estudantes.

Após a segunda guerra mundial, a prosa foi dominada por romances sobre as experiências dos gregos durante os oito anos da guerra (1941-1949). Iánnis Berátis escreveu To Platy Potami (1946; O rio largo) e, entre 1960 e 1965, Stratís Tsírkas publicou uma trilogia em que, com maestria, faz a recriação da atmosfera do Oriente Médio na segunda guerra mundial. No conto, Dimítris Chatzís retratou de forma irônica o período antes e durante o conflito.

O romancista mais famoso do período foi o cretense Níkos Kazantzákis, sobrevivente de uma geração anterior. Numa série de romances que teve início com Víos ke politía tou Aléxi Zorbá (1946; Zorba o grego) e prosseguiu com sua obra-prima O Christos xanastavronete (1954; O Cristo recrucificado), corporificou uma síntese das idéias de várias filosofias e religiões em personagens que enfrentam problemas imensos, como a existência de Deus e o propósito da vida humana. Antes disso, Kazantzákis já havia publicado Odésia (1938; Odisséia), poema épico de 33.333 versos que conta a história de Ulisses moderno, insatisfeito, em busca de uma vida superior. Pandelís Prevelákis publicou vários romances filosóficos ambientados na sua terra natal, Creta, entre os quais o de maior sucesso foi O ílios tou thanátou (1959; O sol da morte), que mostra um menino que aprende a lidar com a morte.

Durante a década de 1960, os prosadores tentaram explorar os fatores históricos que se encontravam na base da situação social e política. No romance To tríto stefáni (1962; O terceiro casamento), de Kóstas Tachtsís, o narrador feminino conta a história de sua vida e expõe a natureza opressora da família grega. A prosa curta, em parte ficcional, em parte autobiográfica, de Yórgos Ioánnou apresenta um retrato vívido de Tessalonica e Atenas entre as décadas de 1930 e 1980.

Nenhum poeta se destaca individualmente nas gerações pós-guerra na Grécia, mas Tákis Sinópoulos, Míltos Sachtoúris e Manólis Anagnostákis, todos marcados por sua vivência na guerra durante a década de 1940, estão entre os mais respeitados.

Fonte:
Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda. (CD-ROM)
http://www.wielkaencyklopedia.com (imagem)

sábado, 10 de maio de 2008

FERNANDO SABINO (A Chave do Enigma) trechos

Minas

O TURISTA perguntou ao mineiro por que o Estado de Minas Gerais é conhecido como "As Alterosas".
— Sei não — foi a resposta. — Vai ver que é por causa das mulheres mineiras, que são muito alterosas. Basta uma para dar logo alteração.

CAMINHANDO pelas ruas de São João del Rey. Uma dor de cabeça renitente pede com urgência um comprimido. Se fosse dor de dente, pediria Cera Dr. Lustosa. Ainda há em São João quem se lembre do próprio Dr. Lustosa, criador da milagrosa cera, cujo cheiro característico me vem da infância. Não encontro nenhuma farmácia aberta. Abordo um passante, que me informa polidamente haver uma de plantão perto da Estação Rodoviária.
— E é muito longe a Rodoviária? — pergunto.
— É — responde ele apenas, e prossegue o seu caminho.

SABARÁ é a terra da jabuticaba. De repente, em certa época do ano, Belo Horizonte se esvaziava: todo mundo vinha a Sabará chupar jabuticabas, que eram vendidas no pé. O freguês chupava quantas quisesse, até cair do galho. Só não podia levar nenhuma.
Há algum tempo um velho coronel mineiro, intrigado, perguntava:
- Todo mundo agora está indo para a Europa: o Juca já foi, o seu Chiquinho também, o Zé da Sá Rita está de mala pronta... É tempo de jabuticaba lá?

NO QUE eu depender de informações desses meus conterrâneos, acabo indo parar na casa da mãe Joana. Pergunto a este outro, no posto de gasolina, a distância dali até Diamantina.
— Não é muito perto não. Mas também não é longe — informa ele, sério.
— Quanto tempo vou levar daqui até lá?
— É conforme, uai. Se correr muito, leva pouco, se correr pouco, leva muito.

OS BECOS em Diamantina conservam os nomes da época do ouro e dos diamantes: Beco das Caveiras, das Gaivotas, da Tasca, do Rapacuia, da Paciência, do Pinta-Ratos. Cada um com sua motivação histórica: o do Pinta-Ratos, por exemplo, é homenagem a um pintor que, para se vingar da Irmandade que lhe devia um dinheiro, trancou-se na sacristia da igreja e pintou dezenas de ratos em suas paredes; o da Paciência era usado para despejo do lixo e pelos tropeiros, que ali satisfaziam suas necessidades — paciência houvesse para passar por ali.

— SE sou mineiro? Bem, é conforme.
Tudo é conforme: sabe-se lá por que estão perguntando? ? O que é ser mineiro, afinal? Basta ter nascido em Minas? Manhoso, ladino, cauteloso, desconfiado — tudo isso junto. Experimente perguntar-lhe com delicadeza:
— Como é mesmo o seu nome todo?
Ele responderá, também delicado:
— Fale a parte que você sabe.
Se por sua vez não perguntar:
— Por que você quer saber?

TUDO que me ocorre dizer sobre o mineiro já foi dito, contado e recontado. Só mesmo me valendo mineiramente do que já escrevi sobre o enigma de Minas:
"Dentro de mim uma corrente de nomes e evocações fluindo desde as minhas origens, como o Rio das Velhas no seu leito de pedras, entre cidades imemoriais... Prefiro estancá-la no tempo, a exaurir-me em impressões arrancadas aos pedaços e que aos poucos descobririam o que resta de precioso em mim - o mistério de minha terra, desafiando-me como a esfinge com seu enigma: decifra-me ou devoro-te.
Prefiro ser devorado."

Fonte:
Trechos extraídos de "A Chave do Enigma", Editora Record - Rio de Janeiro, 1999.
http://www.releituras.com

José de Santa Rita Durão (Caramuru)

Caramuru - Poema Épico do Descobrimento da Bahia é composto de dez cantos e, de acordo com o gênero, divide-se em cinco partes: proposição, invocação, dedicação, narração e epílogo.

Canto I

Na primeira estrofe, o poeta introduz a terra a ser cantada e o herói - Filho do Trovão -, propondo narrar seus feitos (proposição). Na estrofe seguinte, pede a Deus que o auxilie na realização do intento (invocação), e da terceira à oitava estrofes, dedica o poema a D. José I, pedindo atenção para o Brasil, principalmente a seus habitantes primitivos, dignos e capazes de serem integrados à civilização cristã. Se isso for feito, prevê Portugal renascendo no Brasil.

Da nona estrofe em diante, tem-se a narração. A caminho do Brasil, o navio de Diogo Álvares Correia naufraga. Ele e mais sete companheiros conseguem se salvar. Na praia, são acolhidos pelos nativos que ficam temerosos e desconfiados. Os náufragos, por sua vez, também temem aquelas criaturas antropófagas, vermelhas que, sem pudor, andam nuas. Assim que um dos marinheiros morre, retalham-no e comem-lhe, cruas mesmo, todas as partes.

Sem saber o futuro, os sete são presos em uma gruta, perto do mar, e, para que engordem, são bem alimentados. Notando que os índios nada sabem de armas, Diogo, durante os passeios na praia, retira, do barco destroçado, toda pólvora e munições, guardando-as na gruta. Desde então, como vagaroso enfermo, passa a se utilizar de uma espingarda como cajado.

Para entreter os amigos, Fernando, um dos náufragos, ao som da cítara, canta a lenda de uma estátua profética que, no ponto mais alto da ilha açoriana, aponta para o Brasil, indicando a futuros missionários o caminho a seguir. Um dia, excetuando-se Diogo, que ainda estava enfermo e fraco, os outros seis são encaminhados para os fossos em brasa. Todavia, quando iam matar os náufragos, a tribo do Tupinambá Gupeva é ferozmente atacada por Sergipe. Após sangrenta luta, muitos morrem ou fogem; outros se rendem ao vencedor que liberta os pobres homens que desaparecem, no meio da mata, sem deixar rastro.

Canto II

Enquanto a luta se desenvolve, Diogo, magro e enfermo para a gula dos canibais, veste a armadura e, munido de fuzil e pólvora, sai para ajudar os seis companheiros que serão comidos. Na fuga, muitos índios buscam esconderijo na gruta, inclusive Gupeva que, ao se deparar com o lusitano, saindo daquele jeito, cai prostrado, tremendo; os que o seguiam fazem o mesmo; todos acham que o demônio habita o fantasma-armadura.

Álvares Correia, que já conhecia um pouco a língua dos índios, espera amansá-los com horror e arte. Levantando a viseira, convida Gupeva a tocar a armadura e o capacete. Observa, amigavelmente, que tudo aquilo o protege, afastando o inimigo, desde que não se coma carne humana. Ainda aterrorizado, o chefe indígena segue-o para dentro da gruta, onde Diogo acende a candeia, levando-o a crer que o náufrago tem poder nas mãos.

Sob a luz, vê, sem interesse, tudo que o branco retirara da nau. Aqui, o poeta, louva a ausência de cobiça dessa gente. Entre os objetos guardados pelos náufragos, Gupeva encanta-se com a beleza da virgem em uma gravura.Tão bela assim não seria a esposa de Tupã? Ou a mãe de Tupã? Nesse momento, encantado pela intuição do bárbaro, Diogo o catequiza, ganhando-lhe, assim a dedicação.

Saindo da gruta, o índio, agora manso e diferente, fala a seu povo Tupinambá, ao redor da gruta. Conta-lhes sobre o feito do emboaba, Diogo, e que Tupã o mandara para protegê-los. Para banquetear o amigo, saem para caçar. Durante o trajeto, Álvares Correia usa a espingarda, aterrorizando a todos que exclamam e gritam: Tupã Caramuru! Desde esse dia, o herói passa a ser o respeitado Caramuru - Filho do Trovão. Querendo terror e não culto, Diogo afirma-lhes que, como eles, é filho de Tupã e a este, também, se humilha. Mas que como filho do trovão, (dispara outro tiro) queimará aquele que negar obediência ao grande Gupeva.

Nas estrofes seguintes, o poeta descreve os costumes da selva. Caramuru instala-se na aldeia, onde imensas cabanas abrigam muitas famílias, que vivem em harmonia. Muitos índios querem vê-lo, tocá-lo. Outros, em sinal de hospitalidade, despem-no e colocam-no sobre a rede, deixando-o tranqüilo. Paraguaçu é uma índia, de pele branca e traços finos e suaves. Apesar de não amar Gupeva, está na tribo por ter-lhe sido prometida. Como sabe a língua portuguesa, Diogo quer vê-la. Após o encontro os dois estão apaixonados.

Canto III

À noite, Gupeva e Diogo conversam sob a tradução feita por Paraguaçu. O lusitano fica pasmo ao saber que, para o chefe da tribo, existe um princípio eterno; há alguém, Tupã, ser possante que rege o mundo; aquele que vence o nada, criando o universo. O espírito de Deus, de alguma maneira, comunica-se com essa gente. Gupeva eloqüente fala acerca da concepção dos selvagens sobre o tempo, o Céu, o Inferno. Abordam a lenda da pregação de S. Tomé em terras americanas. Concluindo a conversa, o cacique diz que estão para ser atacados pelos inimigos; Caramuru aconselha-o a ter calma. De repente, chegam os ferozes índios Caetés que, ao primeiro estrondo do mosquete, batem em retirada, correndo, caindo; achando, enfim, que o céu todo lhes cai em cima.

Canto IV

O temido invasor noturno é o Caeté, Jararaca, que ama Paraguaçu perdidamente. Ao saber que ela esta destinada a Gupeva, declara guerra. Após o ataque estrondoso do Filho do Trovão, Jararaca convoca outras nações indígenas com as quais tinha aliança: Ovecates, Petiguares, Carijós, Agirapirangas, Itatis. Conta-lhes que Gupeva prostrou-se aos pés de um emboaba pelo pouco fogo que acendera, oferecendo-lhe até a própria noiva. O cacique alerta-os que se todos agirem assim, correm o risco de serem desterrados e escravizados em sua própria terra, enchendo de emboabas a Bahia. Apela para a coragem dos nativos, dizendo que apesar do raio do Caramuru ser verdadeiro, ele nada teme, porque não vem de Deus. Não há forças fabricadas que a eles destruam. A guerra tem início e Paraguaçu também luta heroicamente e, num momento de perigo, é salva pelo amado lusitano.

Canto V

Depois da batalha, os amantes discorrem sobre o mal que habita o ser humano e qual a razão de Deus para permiti-lo. Em seguida, em Itaparica, o herói faz com que todos os índios se submetam a ele, destruindo as canoas com as quais Jararaca pretendia liquidá-lo.

Canto VI

As filhas dos chefes indígenas são oferecidas ao destemido Diogo, para que este os honre com o seu parentesco. Como ama Paraguaçu, aceita o parentesco, mas declina as filhas. Na mata, o herói encontra uma gruta com tamanho e forma de igreja e percebe ali a possibilidade dos nativos aceitarem a Fé Cristã, e se dispõe a doutriná-los. Mais tarde, salva a tripulação de um navio espanhol naufragado e, saudoso da Europa, parte com Paraguaçu em um barco francês.

Quando a nau ganha o mar, várias índias, interessadas em Álvares Correia, lançam-se nas águas para acompanhá-lo. Moema, a mais bela de todas, consegue chegar perto do navio Agarrada ao leme, brada todo seu amor não correspondido ao esquivo e cruel Caramuru. Implora para que ele dispare sobre ela seu raio. Ao dizer isso, desmaia e é sorvida pela água. As outras, que a acompanhavam, retornam tristes à praia. Nas demais estrofes do canto, a história do descobrimento do Brasil é contada ao comandante do barco francês.

Canto VII

Na França, o casal é recebido na corte e Paraguaçu é batizada com o nome da rainha Catarina de Médicis, mulher de Henrique II, que lhe serve de madrinha. Diogo lhes descreve tudo o que sabe a respeito da flora e fauna brasileira.

Canto VIII

Henrique II se predispõe a ajudar Diogo Álvares na tarefa de doutrinamento e assimilação dos índios, oferecendo-lhe tropa e recompensa. Fiel à monarquia portuguesa, o valente lusitano recusa tal proposta. Na viagem de volta ao Brasil, Catarina-Paraguaçu profetiza, prospectivamente, o futuro da nação. Descreve as terras da Bahia, suas povoações, igrejas, engenhos, fortalezas. Fala sobre seus governadores, a luta contra os franceses de Villegaignon, aliados aos Tamoios. Discorre sobre o ataque de Mem de Sá aos franceses no forte da enseada de Niterói e sobre a vitória de Estácio de Sá contra as mesmas forças.

Canto XIX

Prosseguindo em seu vaticínio, Catarina-Paraguaçu descreve a luta contra os holandeses que termina com a restauração de Pernambuco.

Canto X

A visão profética de Catarina-Paraguaçu acaba se transformando na da Virgem sobre a criação do universo. Ao chegar, o casal é recebido pela caravela de Carlos V que agradece a Diogo o socorro aos náufragos espanhóis. A história de Pereira Coutinho é narrada, enfatizando-se o apoio dos Tupinambás na dominação dos campos da Bahia e no povoamento do Recôncavo baiano.

Na cerimônia realizada na Casa da Torre, o casal revestido na realeza da nação espanhola, transfere-a para D. João III, representado na pessoa do primeiro Governador Geral, Tomé de Souza. A penúltima estrofe canta a preservação da liberdade do índio e a responsabilidade do reino para com a divulgação da religião cristã entre eles. Na última (epílogo), Diogo e Catarina, por decreto real, recebem as honras da colônia lusitana.

FONTES:
Concursos Públicos. Digerati. CEC 0004. (CR-ROM)
http://www.webboom.pt/ (imagem)

Jorge Amado (Terras do sem Fim)

A exploração do cacau trouxe para a região de Ilhéus, no sul da Bahia, o desenvolvimento e com este os mais diversos tipos humanos que ali aportavam, atraídos pelas histórias de terras férteis e dinheiro em abundância. Para todos, que chegavam, Ilhéus era a primeira ou a última esperança.

Dentre as pessoas vindas de longe, iludidas por essa febre, encontravam-se, no mesmo navio, o lavrador Antônio Vítor que sonhava com uma roça de cacau só sua, o aventureiro João Magalhães, jogador de cartas trapaceiro e falso engenheiro militar, que se via ganhando muito dinheiro no carteado, graças ao "azar" dos velhos coronéis milionários, e a prostituta Margot que deixara Salvador para encontrar o amante, o advogado Dr.Virgílio que, na esperança de riqueza fácil, já se encontrava em Ilhéus, esperando colocar seu conhecimento de leis a serviço da ambição dos coronéis.

Após o desembarque, encontraram em Ilhéus e vilarejos adjacentes: Ferradas e Taboca, sociedades em formação, conturbadas pela ganância dos poderosos, onde a lei era a dos mais fortes e corajosos, tornando-se por isso selvagens e violentas. Depararam-se com o conflito entre dois grandes latifundiários: o Coronel Horácio e a família Badaró que, em busca de expansão do patrimônio e força política, lutavam pela posse das matas do Sequeiro Grande, que ficavam entre as duas propriedades.

Coronel Horácio, ex-tropeiro e empregado de uma roça no Rio-do-Braço, enriquecera plantando cacau. Como próspero fazendeiro, ajudara a construir a capela de Ferrada e a igreja de Taboca, mantendo assim sua força política no local. Viúvo, casara-se novamente com a bela e jovem Ester, que lhe deu um filho, seu orgulho. Tudo o que fazia era em nome de um futuro brilhante para esse menino. Seu grande amor era a esposa, mulher fina, inteligente e culta; falava o francês e adorava música. Era feliz pelo que ela representava. Ester, no entanto, não o amava. Para ela, a vida na fazenda era um tédio, um martírio; vivia apavorada com medo de insetos e cobras. Isso se refletia no frio relacionamento sexual com o marido, que tudo relevava, em nome da paixão.

Os advogados eram bem vindos em Ilhéus, onde faziam fortunas. Os grandes latifundiários, quando queriam se apossar de um roçado vizinho, para, gananciosamente, aumentar seu patrimônio, solicitavam de um advogado um "caxixe", documento falso de propriedade, que expulsava, o pequeno lavrador de seu roçado. Assim, de um dia para outro, este se via forçado a deixar sua lavoura, conquistada, na maioria das vezes, com muito sacrifício. Se, no entanto, punha resistência, era morto pelos jagunços do coronel que, em "tocaia", esperavam-no passar por uma das estradas solitárias do sertão.

Virgílio e Margot viviam em casas separadas para evitar comentários do preconceituoso povoado de Tabocas. Apesar disso, ele passava a maior parte do dia em companhia da amante. Pareciam felizes. Ao contratar os serviços de Virgílio para regularizar a medição e os documentos de posse das terras de Sequeiro Grande, o coronel Horácio convida-o para um jantar em sua casa. Durante esse evento, Virgílio conhece Maneca Dantas, compadre e amigo de Horácio, e Ester que, ao final, aceitara tocar piano para eles. Fica fascinado por ela que, por sua vez, encantara-se com a voz, a cabeleira loira, o olhar lânguido e as maneiras finas do jovem doutor. Nessa noite, Horácio se surpreendeu com a mudança da mulher na cama; mais calorosa e receptiva, entregava-se com paixão; achou que ela ainda o amava.

Na madrugada dessa mesma noite, quando todos já dormiam, Firmo chegou à fazenda. Após ter acordado todos, contou-lhes sobre o atentado que havia sofrido. O negro Damião, o melhor matador dos Badaró, esperava-o em uma tocaia, mas felizmente errara o tiro. O pequeno sítio de Firmo localizava-se entre a mata e a propriedade dos Badaró, que já haviam proposto a sua compra. Ofereceram até mais do que a roça valia, mas Firmo, aconselhado por Horácio, não a vendeu.

Para Horácio, aquela tentativa de assassinato comprovava que eles estavam decididos entrar na mata de qualquer jeito e que a luta pela posse de Sequeiro Grande iria começar. Pede a Damião e Maneca Dantas para percorrerem todos os pequenos sítios que ficavam entre as duas propriedades e explicitarem sua proposta: todos que o ajudassem, não só manteriam suas terras como também teriam uma porção de Sequeiro Grande. As terras na outra margem do rio, que cortava a mata, seriam divididas entre os que o ajudassem. Além disso, como a fazenda não seria uma lugar seguro, aconselha Ester a passar com o filho uns tempos no palacete de Ilhéus. No caminho para Ilhéus, esperando Horácio resolver uns negócios, Ester passou quatro dias em Tabocas, onde conversou muito com Virgílio. Cada vez mais apaixonada, via no jovem advogado uma maneira de sair daquele lugar horrível, e este, por sua vez, não via a hora de poder se encontrar com ela a sós.

Os Badaró eram uma das famílias mais ricas e poderosas da região. Don'Ana, filha de Sinhô Badaró, era conhecida em Ilhéus como moça séria e enraizada à terra; raramente deixava a fazenda e pouco ligava para as festas da igreja e conversas de comadres. Enquanto Sinhô Badaró era pela paz, matando somente em caso de extrema necessidade, Juca Badaró, seu irmão, resolvia tudo a tiro e morte. Juca era casado, sem filhos. Olga, sua esposa, passava, a maior parte do tempo, aos cochichos em Ilhéus e ele, por sua vez, nas lavouras de cacau, ou com as amantes. Quando ela vinha para a fazenda, era para reclamar da vida e do marido. Don'Ana tinha pouco tempo e motivo para se condoer com ela. Como Badaró, não era contra as aventuras extraconjugais dos homens da família. Cumpriam com sua obrigação e não deixavam faltar nada, assim fora seu pai e assim deveriam ser todos os homens. Para ela, Olga era uma estranha na família.

Antônio Vítor, que, no navio, sonhava com sua volta para o Ceará, rico e bem vestido, abandonou essa ilusão, quando notou que jagunços e lavradores deixavam todo dinheiro ganho em contas no próprio armazém da fazenda e que, no final do mês, recebiam um saldo miserável, quando havia saldo. Contratado para a lavoura, tornou-se capanga de Juca Badaró, após ter-lhe salvo a vida. A sua coragem o promoveu: trocou a foice pela espingarda; acompanhava Juca a todos os lugares. A namorada, deixada em sua cidade, estava muito longe; não existia mais. Sonhava com Raimunda, mulata de nariz chato, irmã de leite de Don'Ana e afilhada do Sinhô Badaró; estava se apaixonando por ela.

Após medição da mata, Virgílio registrou-a no cartório de Venâncio. A posse foi feita em nome de Horácio, Maneca Dantas, Braz, viúva Merenda, Firmo, Jarde e de Dr. Jessé Freitas. Os felizes proprietários não se regozijaram por muito tempo. Numa tarde, os homens de Badaró atearam fogo no cartório, perdendo-se, assim, todos os documentos.

Juca Badaró agora tinha que medir a mata com urgência para dar entrada nos papéis de posse. Como seu engenheiro viajara, contratou João Magalhães para executar a tarefa. Este que não era militar e muito menos engenheiro e que, naquele fim de mundo, não estava em busca apenas do dinheiro que lhe deixavam as mesas de pôquer, achou a oferta de Juca irrecusável; não só fez o serviço, como também passou a se interessar por Don'Ana. O olhar afetuoso da moça sobre ele fez com que se colocasse à disposição dos Badaró, passando a discutir sobre as terras como um Badaró, sentia-se um parente.

Como Virgílio estava apaixonadíssimo por Ester, acabou brigando com Margot que, em seguida, caiu nos braços de Juca Badaró. Este se interessou por ela, desde que a vira no navio para Ilhéus. Nessa cidade, a força dos coronéis era medida pelas casas que possuíam. Cada qual levantava uma melhor e, aos poucos, as famílias iam se acostumando e demorar mais tempo na cidade do que nas fazendas. O palacete de Horácio era maravilhoso e, ali, Ester recebia Virgílio; amavam-se e planejavam fugas às escondidas. Apesar disso, toda cidade já comentava o caso, rindo-se do coronel Horácio.

As emboscadas continuaram acontecendo. Numa noite, o irmão Merenda com três cabras de Horácio, atacaram Sinhô Badaró no atalho. Nessa mesma noite, Juca e seus homens cometeram uma série de violências na região. Mataram os irmãos Merenda, entraram na roça de Firmo e queimaram tudo, não o mataram porque ele não se encontrava em casa naquele momento. Nas cidades distantes falavam-se das lutas em Sequeiro Grande. Diariamente chegavam jagunços de outras regiões que logo eram recrutados por alguém de um dos lados. O preço das armas e munições aumentavam; a luta exigia muito dinheiro.

Uma noite, como Horácio estava na cidade, Virgílio, impossibilitado de se encontrar com Ester, convidou Maneca Dantas para saírem. No cabaré, encontrou Margot e com ela dançou uma valsa. Quando Juca, que estava na sala de carteado, soube, entrou no salão a tempo de impedir o bis. Ao passar por Virgílio, puxando a mulher, insultou-o. Maneca Dantas, prudentemente, impediu-o de reagir.

Juca espalhou pela cidade que arrancara a mulher dos braços de Virgílio e que este nada fizera; era um cagão. Ao saber disso, Horácio explica a Virgílio que, diante daquela ofensa, se ele quisesse continuar advogando e ser respeitado na cidade, teria de mandar matar Juca. O coronel já decidira, iria mandar matá-lo de qualquer jeito, pois este já tinha ido longe demais, acabando com quatro de seus homens. Apenas queria que fosse Virgílio a dar a ordem ao jagunço. Depois de relutar muito, o advogado concordou. Horácio ficou muito feliz; sabia então que seu amigo entraria para o rol dos homens valentes de Ilhéus.

A emboscada armada para Juca Badaró não foi bem sucedida. O homem na tocaia ficou morto em seu lugar e Antônio Vítor fora ferido para salvar o patrão. Outra infelicidade assolou a vida de Horácio; febre, que matara Sílvio, infectara-lhe também. Indiferentes aos comentários maldosos da cidade, Ester voltou para Tabocas em companhia de Virgílio. Ali, desdobrando-se em cuidados, ficou ao lado da cabeceira do marido os sete dias em que esteve entre a vida e a morte. Dr. Jessé fez o mesmo, parou tudo, para socorrer o patrão. Graças, talvez, ao corpo forte de homem sem vícios e enfermidades, coronel Horácio não morreu. Entretanto, logo em seguida, Ester caiu doente. Febre altíssima e delírios comeram-lhe toda a beleza. Como a febre não cedia, transportaram-na para Ilhéus, mas foi tudo em vão; Ester não agüentou, morreu.

A luta progredia, numa corrida para ver quem chegava primeiro. De um lado estavam os Badaró derrubando a mata e de outro os homens de Horácio, o barulho recomeçaria quando os dois grupos se encontrassem. Nesse período, uma festa de casamento agitou Ilhéus. Don'Ana casou com João Magalhães que se mostrara suficientemente corajoso e envolvido com a família para continuar o trabalho dos Badaró. Raimunda e Antônio Vítor se casaram também. Todavia, durante a lua de mel de Don'Ana, uma tragédia se abateu sobre os Badaró. Quando passava um fim de semana com Margot em Ilhéus, Juca foi assassinado. Eles sabiam quem tinha sido o mandante e sabiam também que um simples processo não resolveria a questão; Horácio deveria ser morto, mas também sabiam que isso não seria fácil.

Com a intervenção do governo federal no estado da Bahia, o governador teve de renunciar e a oposição tomou o poder. Nessa esteira, em Ilhéus, o interventor demitiu o prefeito e nomeou o Dr. Jessé para o cargo; o juiz também foi transferido, viria outro em seu lugar. Naquele momento, Sinhô Badaró tornara-se oposição e Horácio, que era governo, já imaginava Virgílio como deputado federal. Nesse ínterim a luta pela mata continuava, com muitos mortos e roças de cacau em chamas. O cerco da casa Grande dos Badaró pelos homens de Horácio pôs fim na luta. Sinhô Badaró ainda resistiu por quatro dias e noites. Quando este caiu ferido, Don'Ana mandou-o para Ilhéus. Excetuando Don'Ana, Capitão Magalhães fez com que as outras mulheres, Olga e Raimunda, fossem também com o Sinhô. No final todos fugiram e o cerco culminou com o incêndio da casa grande.

Meses depois, Horácio foi levado a julgamento e, por unanimidade de votos, foi considerado inocente. Alguns dias mais tarde, bastante acabrunhado, procurou o compadre Maneca Dantas para lhe dizer que mandaria matar Virgílio. Encontrara, entre os papéis de Ester, algumas cartas de Virgílio, que comprovavam que tinham sido amantes. Deu-se conta, atordoadamente, que toda mudança ocorrida no seu relacionamento com a esposa era por causa do advogado; os dois o haviam traído.

No final daquele mesmo dia, Maneca Dantas encontrou-se com Virgílio que estava de partida para Ferradas. Sem sucesso, Maneca, que gostava muito do advogado, tentou convencê-lo a não viajar naquela noite. Diante de tanta teimosia, contou-lhe os planos do compadre. Virgílio agradeceu, mas confirmou que não voltaria atrás. Explicando-se, disse que ficara com Horácio, porque ali tudo ainda era Ester. Quando ela ainda vivia, tinha a esperança de ir embora, mas nada mais fazia sentido. Para ele, o triste era viver sem Ester; iria morrer corajosamente, segundo as leis do lugar. Despediu-se de Maneca e partiu. Naquela mesma noite foi morto em uma emboscada, a caminho de Ferradas.

A nomeação de um bispo para Ilhéus também era sinal de progresso e dentre os que saíram às ruas para saudá-lo estavam Horácio, Maneca Dantas, Sinhô Badaró, que ainda coxeava um pouco, e Don'Ana e esposo. Após as eleições, Dr. Jésse foi levado à Câmara Federal como deputado do governo. Graças a ele, um decreto criou o município de Itabuna - ex Tabocas -, desmembrando-o de Ilhéus. Horácio elegeu Maneca Dantas para prefeito de Ilhéus e o Sr. Azevedo para prefeito de Itabuna.

FONTE:
Concursos Públicos. Digerati. CEC 0004. (CR-ROM)
http://www.rsraridades.com.br/ (imagem)