sexta-feira, 20 de junho de 2008

Nilto Maciel (Panorama do Conto Cearense – Parte VII)

Fran Martins, nascido Francisco Martins, é natural de Iguatu (13 de junho de 1913) e faleceu em Fortaleza (1996). Filho de Antônio Martins de Jesus e Antônia Leite Martins. Uma das principais figuras do grupo e da revista Clã, cujo número inaugural saiu sob a sua direção. Formou-se em Direito, lecionou na Faculdade de Direito e na de Ciências Econômicas da UFC e escreveu inúmeras obras jurídicas. Colaborou em jornais e revistas de diversos Estados. Redator de A Esquerda e O Estado. Sua obra literária é vasta. No gênero conto estreou com Manipueira (1934), seguindo-se Noite Feliz (1946), Mar Oceano (1948), O Amigo de Infância (1960) e Análise (1989). Escreveu alguns romances: Ponta de Rua (1937), Poço dos Paus (1938), Mundo Perdido (1940), Estrela do Pastor (1942), O Cruzeiro Tem Cinco Estrelas ((1950) e A Rua e o Mundo (1962). É autor também da novela Dois de Ouros (1966), considerada sua melhor obra.

Na opinião de Montenegro, “o atributo dominante da obra de Fran Martins é a lógica.” Mais adiante acrescenta: “A sua atitude literária é sempre infensa à tendência moderna de erguer e sublimar os fenômenos artísticos a um plano essencialmente teórico ou intelectual, o que muita vez implica na efetiva negação da veracidade de certas leis da vida, mas, ao mesmo tempo, eleva o pensamento criador a evidente plenitude de domínio e eficácia. O mundo em que o escritor coloca a ação de seus romances e de seus contos é um mundo de observação, mais que de concepção; de imagem, mais que de símbolo; de percepção, mais que de intuição”. Em outro parágrafo, o crítico faz a seguinte análise: “Se nos contos de Manipueira (1934), seu livro de estréia, encontramo-lo preocupado com assuntos regionais, com os aspectos anedóticos do fanatismo e do cangaço, vemo-lo agora atento aos temas poéticos, palpitantes de vida e humanidade (...)”

No ensaio “Diálogo Intratextual: A Ruptura da Normativa”, (AAA, págs. 159/164), F. S. Nascimento assim se refere a Fran: “Possuindo boa leitura da moderna prosa de ficção em língua inglesa, conhecendo no original Sherwood Anderson, John dos Passos, Ernest Hemingway e outros, presume-se que Fran Martins tenha se inspirado nas lições dos mestres estrangeiros para realizar a experiência que seu novo livro de contos encerra.” Mais adiante comenta”: “Ao escrever “Cão Vadio” (Noite Feliz, 1946), Fran Martins já demonstrava seguro domínio dos elementos fundamentais da moderna ficção, tais como o fluxo da consciência, a voz ou reflexão solitária, o flash-back etc.” O crítico apresenta mais argumentos a favor do conceito de modernidade na obra de Fran Martins: “O que se admite por mais ousado no diálogo de alguns dos novos contos de Fran Martins está, de fato, na ruptura extrema da normativa, sendo rejeitada até a aspa simples”.

Analisando-se as narrativas curtas de Fran Martins, percebe-se o quanto a utilização de determinada técnica de narração pode fazer com que uma obra literária seja desviada do caminho da vulgaridade ou da mediocridade e chegar ao leitor envolta numa aura muitas das vezes de sublimidade. Assim, veja-se “O Amigo de Infância”, primeiro do livro de título homônimo. Dois homens (Chico e Gustavo) se encontram numa rua, relembram a infância, dirigem-se a um café, continuam falando do passado e, finalmente, se despedem. Apenas isto. Seria uma história insossa, menor, não tivesse Fran dado à forma de narrar um tratamento refinado. Até o desenlace seria trivial, com a última fala, a do garçom, de feitio anedótico. Mesmo sendo o desfecho da história, o arremate moral, a dar à narrativa um tom realista, próximo do naturalismo – o retrato do caráter de um dos personagens.

Em “Ventania” muda novamente o contista o rumo de sua arte de narrar. Aqui o protagonista é o narrador, sem nenhuma dúvida. E por que o nome do cavalo como título? O cavalo seria o elo de ligação de dois mundos: o do narrador e o das outras duas personagens (o pai e a mãe). Ventania seria também a causa do alvoroço do narrador, um vento forte a lhe varrer a inocência.

O conflito vai sendo apresentado de forma sutil, na visão do narrador, um menino. E tudo é presente, isto é, não há passado anterior. O drama é narrado linearmente, embora na voz pretérita, porém sem flashback. Tudo se passa em poucos dias, de forma acelerada, como numa corrida. Apesar disso, a narração é lenta, comedida, sem atropelos, correrias. Nas obras anteriormente citadas, as personagens se deslocavam pela rua, pela escola, pelas margens de um rio, pela cidade. Nesta, o narrador vai ao quintal, volta ao quarto, gira ao redor de si mesmo, até quando vai à escola. Faz voltas ao redor de sua dor, embora seu pai saia a cavalo, em busca de outra mulher, e sua mãe chore pela casa.

Caio Porfírio Carneiro escreveu: “Fica a impressão – mais que isto: a certeza – de que a força narrativa do romancista sempre lhe deu sinais, como uma pilha que se não apaga, de que o conto sempre o chamou de volta, e para ele sempre voltou. Não com o ímpeto do romancista, mas com o carinho do cinzelador. Eis porque deixou páginas preciosas de ficção curta”.
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(Manuel) Eduardo (Pinheiro) Campos nasceu em 1923, em Guaiúba, então distrito de Pacatuba. Estreou em 1943, com a coleção Águas Mortas. Seguiram-se, neste gênero, em 1946 Face Iluminada, em 1949 A Viagem Definitiva, em 1965 Os Grandes Espantos, em 1967 As Danações, em 1968 O Abutre e Outras Estórias (constituído por uma seleção dos presumíveis melhores contos), em 1970 O Tropel das Coisas, em 1980 Dia da Caça, em 1993 O Escrivão das Malfeitorias, em 1998 A Borboleta Acorrentada e em 1999 O Pranto Insólito. Tem também peças de teatro, livros de folclore, romances, ensaios, biografias, memórias, além de grande número de produções especiais para o rádio e televisão. Seus principais romances são O Chão dos Mortos e A Véspera do Dilúvio. Durante dez anos dirigiu a Academia Cearense de Letras; foi Secretário de Cultura do Estado, Presidente do Conselho Estadual de Cultura, e é Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Ceará. Figura em antologias nacionais e internacionais de contos. É bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. Iniciou-se nas letras escrevendo, dirigindo e representando peças de teatro. Sua peça O Morro do Ouro foi representada 350 vezes; A Rosa do Lagamar, mais de 500. Sua obra teatral foi reunida em dois volumes, contendo O Demônio e a Rosa, O Anjo, Os Deserdados, A Máscara e a Face, Nós, as Testemunhas, no primeiro, A Donzela Desprezada, O Julgamento dos Animais, O Andarilho, além das já mencionadas. Tem pequenas histórias incluídas em dez antologias, das quais duas no Uruguai e uma na Alemanha.

Embora não tenha alcançado notoriedade no resto do Brasil, no restrito espaço da crítica literária, Eduardo Campos tem seu nome gravado em alguns importantes compêndios de História da Literatura. Assim, está presente em A Literatura no Brasil, de Afrânio Coutinho, pelo menos no ensaio de Herman Lima: (...) “folclorista de altos méritos, tem, naqueles livros (refere-se aos três primeiros da bibliografia do contista), alguns contos regionais e psicológicos da melhor marca, a exemplo de “Os Abutres” e “O casamento”, o último, principalmente, na sua força bem da terra cearense, dos mais belos da atualidade brasileira”.

Eduardo Campos é um mestre do conto psicológico. Em “O Afogado”, do livro As Danações, o drama parece ir se deslocando não de lugar, mas de personagem, sob a óptica do narrador onisciente. O protagonista seria o afogado? Ou seria a podridão moral dos homens? No final, com o surgimento do cadáver, o narrador arremata a narrativa com uma frase moralista: “Foi quando os homens, amesquinhados, começaram a pensar que não era o afogado que malcheirava, mas eles, que haviam apodrecido em vida”.

No livro Três Momentos da Ficção Menor, F. S. Nascimento analisa “O Abutre”, no “Momento III”, e defende a tese de que “já em 1946 esta concepção de “new short story” era praticada no Ceará, efetivando-se na criação de “O Abutre”, de Eduardo Campos.” A seu ver, “O Abutre” se impõe como um modelo da “new short story”, sendo tão atual quanto “Cão Vadio” de Fran Martins, “Os Sete Sonhos” de Samuel Rawet, “A Coisa” de Garcia de Paiva” e qualquer uma das unidades narrativas de O Casarão, de Caio Porfírio Carneiro.”

Eduardo Campos, no entanto, não se repete nas formas de narrar. Assim, em “A Viúva Enganada”, do mesmo livro As Danações, o desenlace se esboça não no começo, mas no título, o que não deixa de ser curioso, se não for original.

Na peça que dá título ao livro o contista também não muda o ponto de vista, e a narração vem recheada de falas curtas e diálogos breves, acrescentado o discurso indireto livre, embora ainda sem muita ousadia.

Na opinião de Braga Montenegro, em “Eduardo Campos, Contista”, apresentação de O Abutre e Outras Estórias (1968), “é no conto onde melhor se manifestam suas qualidades de talento”. E acrescenta que se manifesta, “com maior freqüência, em Eduardo Campos o feitio de um escritor regionalista, no que não lhe vai qualquer restrição”.

Em O Abutre e Outras Estórias, possivelmente escrito logo após As Danações, Eduardo Campos utiliza outros focos narrativos. Assim, em “O Casamento” se vale do ponto de vista do escritor onisciente, que dá voz às personagens em breves diálogos diretos e também em um monólogo interior.

Em “O Ficcionista Eduardo Campos” (Exercícios de Literatura, págs. 135/138), Francisco Carvalho analisa o volume Dia da Caça assim: “São contos de estrutura relativamente simples, em que se evidencia a familiaridade do Autor na abordagem de certas manifestações do lirismo popular, ao lado de uma particular sensibilidade pelos termos ligados à terra e ao homem”.

Passando dos primeiros livros para os mais recentes, como A Borboleta Acorrentada, observa-se que a linguagem do contista em nada mudou, consciente de que os modismos passam e o mais valioso na obra literária não está na aparente transgressão de normas.

Apesar desse apego à narração, o contista não esqueceu as outras linguagens, como o discurso indireto livre. Percebe-se também a presença, embora não muito freqüente, do monólogo interior indireto. E nada de explicações, volteios circenses, excesso de figurantes e cenários.

Na opinião de Herman Lima, “`O Abutre`, de Eduardo Campos, e ‘Lama e Folhas’, de Moreira Campos, por exemplo, são dos mais belos e originais, que já se escreveram entre nós, em qualquer tempo”.

Braga Montenegro (1907-1979), mais conhecido como “crítico de primeira plana, ensaísta agudo e sensível”, no dizer de Herman Lima, o contista e novelista estreou com Uma Chama ao Vento (contos, 1946), reeditado em 1980 pelas Edições UFC, seguindo-se, em 1976, As Viagens e Outras Ficções, (novelas e contos), mais uma seleção dos Contos Derradeiros, até então inéditos em livro. Em Uma Antologia do Conto Cearense esteve presente com “Os Demônios”, editado pela primeira vez em 1959, na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras. Sânzio de Azevedo analisa as histórias do autor de Correio Retardado em “Braga Montenegro, Crítica e Ficção” (Aspectos da Literatura Cearense, págs. 265/276).

Francisco Carvalho estuda a obra de Braga em “A Inquieta Modernidade de Braga Montenegro”, incluído na 2a. edição de Uma Chama ao Vento e em Exercícios de Literatura. E elucida: “um dos aspectos a destacar em Braga Montenegro é o permanente sentido de universalidade que caracteriza os seus trabalhos de ficção. Universalidade nascida da convicção de que o homem é tudo o que importa. Não o têm seduzido, por isso mesmo, os regionalismos tipificadores, com o seu conhecido cortejo de deformações. Muito embora as raízes espirituais do ficcionista mergulhem fundo nas fontes da literatura européia, importa assinalar que isso em nada lhe compromete a originalidade, nem lhe desfigura as matrizes do impulso criador. Não menos digna de nota é a verticalidade com que o ficcionista engendra situações no contexto das suas narrativas e com que tece a teia do acaso em que se envolvem os seus personagens. Em nenhuma das novelas e contos do presente volume a atmosfera ficcional vem a ser comprometida pelo simples devaneio formal ou pelo discurso literário inconseqüente”. Ao se referir às histórias curtas, o crítico vê nelas “peças de extraordinária expressividade e de considerável beleza literária. A austera poesia dessas páginas como que nos fere a sensibilidade com a sua pungência avassaladora. ‘Os Demônios’, ‘O Hóspede’, ‘O Potrinho Pampa’, ‘Agonia’ e ‘Ansiedade’ são, inquestionavelmente, documentos que se impõem pela autenticidade e grande beleza literária com que foram realizados”. Destaca também “O Tesouro”.

Segundo Pedro Paulo Montenegro, na análise crítica de trecho de uma obra de Braga, constante da Antologia Terra da Luz – Prosadores, de 1998, o autor de Uma Chama ao Vento é “cultor de um estilo elegante, culto, que se poderia dizer clássico, na linhagem machadiana”.
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Entretanto, de todos os nomes aqui citados, desde Juvenal Galeno e José de Alencar, passando por outros expoentes da literatura cearense, até hoje (2004), somente um pode ser chamado de contista por excelência ou por natureza – Moreira Campos. Os outros foram mais poetas ou mais romancistas. E isto não é apenas uma opinião, é uma constatação. Vejam-se os estudos, as teses, as monografias, as histórias, as enciclopédias – em todos eles, quando o assunto é conto, o primeiro nome cearense é o de Moreira Campos. São também citados com freqüência os nomes de Caio Porfírio Carneiro e Juarez Barroso. No entanto, ainda há uma imensa lacuna nessas publicações, uma grande omissão, porque estes e outros contistas cearenses têm tanta importância quanto muitos contistas de outros Estados que aparecem em livros de pesquisa e análise editados principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Alfredo Bosi, ao se referir ao Ceará, menciona poucos nomes, omitindo pelo menos três dos mais importantes: Gustavo Barroso, Herman Lima (lembrado apenas como ensaísta) e Moreira Campos. Está escrito na página 482 de sua História Concisa: “O Ceará conta com prosadores que honram a tradição do romance naturalista que lá conheceu o alto exemplo de Oliveira Paiva e Domingos Olímpio, sem falar nos pais da literatura regional brasileira, Alencar e Franklin Távora”. Afirma que depois de Raquel de Queiroz lembra apenas Fran Martins, Braga Montenegro e João Clímaco Bezerra, dos quais cita alguns livros.

Antonio Hohlfeldt, em Conto Brasileiro Contemporâneo, não olvidou o nome de Moreira Campos e fez breves referências a outros contistas cearenses, como Holdemar Menezes, que se radicou no Sul do Brasil e lá escreveu livros, Juarez Barroso, Mario Pontes, Paulo Véras, que nasceu no Piauí mas viveu e escreveu no Ceará, e Socorro Trindad. O crítico gaúcho se dedicou a pesquisas mais amplas e, sem má vontade, escreveu duas páginas a respeito de Moreira Campos, no capítulo V, intitulado “O Conto Rural”, no qual são analisadas também as obras de Guimarães Rosa, Bernardo Élis, Jorge Medauar, Caio Porfírio Carneiro, Guido Wilmar Sassi e José J. Veiga. Para comentar as composições de Moreira Campos, faz constantes transcrições de estudos assinados por Antônio Houaiss, Temístocles Linhares, Hélio Pólvora e Francisco Carvalho.

Temístocles Linhares, em 22 Diálogos Sobre o Conto Brasileiro Atual, trata apenas de Moreira Campos, no capítulo 11, onde também estuda o baiano Cyro de Mattos e Bárbara de Araújo, e Juarez Barroso, no capítulo 19.

Assis Brasil, em A Nova Literatura – O Conto, comete um enorme erro, ao deixar de lado Moreira Campos. Ou para o crítico piauiense o escritor cearense estaria entre os “velhos contistas”? Ora, a estréia do autor de As Vozes do Morto se deu em 1949, enquanto a de Murilo Rubião é de 1947. Portanto, ignorância ou má vontade. Em outra oportunidade, no entanto, o crítico se redimiu. Pois no Dicionário Prático de Literatura Brasileira não olvidou o nome de Moreira Campos. Incluiu-o no rol dos modernistas, isto é, daqueles que escreveram entre 1922 e 1955.

Hélio Pólvora dedicou um capítulo, “A Espingarda na Parede”, de Itinerário do Conto, a Moreira Campos. Como em outros livros, o único contista cearense estudado no ensaio, se considerarmos Holdemar Menezes um contista catarinense.
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Moreira Campos (José Maria), nascido em Senador Pompeu (6 de janeiro de 1914), é filho do português Francisco Gonçalves Campos e Adélia Moreira Campos. Ingressou na Faculdade de Direito do Ceará, bacharelando-se em 1946. Licenciou-se em Letras Neolatinas em 1967, na antiga Faculdade Católica de Filosofia do Ceará. Na área do magistério iniciou-se como professor de Português, Literatura e Geografia em colégios. Exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará, Curso de Letras, como titular de Literatura Portuguesa. Integrante do Grupo Clã. Pertenceu à Academia Cearense de Letras. Faleceu em Fortaleza, no dia 7 de maio de 1994. Deixou as seguintes coleções: Vidas Marginais (1949), Portas Fechadas (1957), distinguido com o Prêmio Artur de Azevedo, do Instituto Nacional do Livro, As Vozes do Morto (1963), O Puxador de Terço (1969), Os Doze Parafusos (1978), A Grande Mosca no Copo de Leite (1985) e Dizem que os Cães Vêem Coisas (1987). Seus Contos Escolhidos tiveram três edições, Contos foram editados em 1978 e Contos – Obra Completa se publicaram, em dois volumes, em 1996, pela Editora Maltese, São Paulo, com organização de Natércia Campos. Tem também um livro de poemas, Momentos (1976). Participou de diversas antologias nacionais. Algumas de suas peças ficcionais foram traduzidas para o inglês, o francês, o italiano, o espanhol, o alemão.

Sua obra está estudada em importantes livros, como o de José Lemos Monteiro, intitulado O Discurso Literário de Moreira Campos, o de Batista de Lima, Moreira Campos: A Escritura da Ordem e da Desordem, e outros mais abrangentes, como Situações da Ficção Brasileira, de Fausto Cunha; 22 Diálogos Sobre o Conto Brasileiro Atual, de Temístocles Linhares; e A Força da Ficção, de Hélio Pólvora. Em jornais e revistas se estamparam quase uma centena de artigos e ensaios sobre os seus livros.

Temístocles Linhares classifica o contista de Portas Fechadas de “um de nossos maiores contistas atuais”. E comenta: “Lê-lo, para mim, é reviver, em certos aspectos, transpostos para o ambiente de seu Ceará, os velhos mestres do naturalismo. Como eles, o autor também desconfia das grandes palavras e dos grandes gestos, preferindo tentar substituir os julgamentos de valor pelos julgamentos de existência”.

Assis Brasil escreveu: “Moreira Campos faz, no Ceará, a ligação entre o conto de história, ainda vigente nos primeiros anos do Modernismo, e o conto de flagrante, sugestivo, que as novas gerações, a partir de 1956, desenvolveriam em muitos aspectos criativos”.

Hélio Pólvora opina: Moreira Campos, “embora não sendo um tchekhoviano perfeito, dele (Tchekhov) se aproxima quando livra o conto de uma sobrecarga excessiva e procura atingir logo o alvo, localizar logo o nervo exposto”. E acrescenta: “Moreira Campos seleciona e filtra fatos que às vezes se resumem a instantes, e nesse processo informa ou sugere o conflito vivido pela personagem, mostrando, afinal, o que ela faz para resolver o conflito ou sucumbir”.

Segundo Herman Lima, no ensaio citado na primeira parte, Moreira Campos: (...) “é um mestre do conto moderno, desde o aparecimento do seu primeiro livro, Vidas Marginais (1949), no qual há pelo menos uma obra-prima do conto universal desta hora, “Lama e Folhas”. Diz mais: “As pequenas ou grandes tragédias, as comédias ocultas do cotidiano burguês, fixadas por ele, ganham, em sua mão experiente, uma especificidade que o aproxima dos maiores nomes do conto psicológico de todos os tempos, de Machado de Assis para cá, inclusive e principalmente Tchecov, de sua íntima e fiel convivência, ou, mais perto de nós, de um Joyce dos Dubliners ou um Sherwood Anderson, de Winesburg Ohio”.

Montenegro argumenta: “Moreira Campos será talvez não apenas o contista de maior projeção nas letras cearenses contemporâneas, porém, ainda, juntamente com Osman Lins, Dalton Trevisan e poucos outros, terá ele realizado o que de mais significativo existe no conto moderno brasileiro”.

Sânzio de Azevedo, principalmente no ensaio “Moreira Campos e a Arte do Conto” (Novos Ensaios de Literatura Cearense) faz algumas observações: “Na linhagem de Machado de Assis e por conseguinte na de Tchecov é que se entronca a obra ficcional de Moreira Campos” (...). Segunda: “apesar de haver optado pela narrativa sintética, extremamente despojada, com que tem enriquecido a nossa literatura através de não poucas obras-primas, não renegou os longos contos de seu primeiro livro” (...). Terceira observação: “Em Moreira Campos o que mais importa são os dramas da alma humana, e não a presença da terra, ostensivamente retratada nas páginas de Afonso Arinos e Gustavo Barroso”.

Batista de Lima, no ensaio mencionado linhas atrás, fala da corrosão física dos personagens, dos agentes dessa corrosão, dos defeitos congênitos, da decrepitude, da doença e da morte. A seguir analisa o oposto disso, ou seja, a ordem: “A nova ordem começa a ser instaurada no momento em que o narrador doma a morte, colocando-a no convívio familiar dos personagens.” E, passando da ordem narrada para a ordem vocabular, constata a constante evolução da arte do contista.

Em “As Características da Escritura de Moreira Campos” (O Fio e a Meada: Ensaios de Literatura Cearense, págs. 155/158), Batista é de opinião que o contista “transita com mestria entre momentos impressionistas, neo-realistas e neonaturalistas, sempre conservando uma estrutura linear para suas narrativas, com princípio, meio e fim bem delineados.” Especifica: “As principais características da narrativa de Moreira Campos são: uma tendência para o uso de elementos descritivos em paralelo aos narrativos; os vazios deixados para serem preenchidos pelo leitor; a eliminação de comentários e interpretações paralelas; a quase ausência de diálogos; a atuação do tempo como elemento corrosivo sobre os personagens; o uso das repetições como forma de superação das dificuldades de relacionamento entre as diferentes classes de pessoas; a ironia; a luta pela concisão.”

José Alcides Pinto, em “Um Mundo de Coisas Miúdas” (Política da Arte–II, págs. 51/52), observa: “Moreira Campos, obstinado em sua procura do novo, do mundo brilhante das coisas obscuras, melhor direi de “vidas marginais”, reapanha, com O Puxador de Terço, o início de sua carreira literária, que ele torna cíclica num processo, quase mágico de depuração estilística”. Em “Moreira Campos e a Nova Ficção Brasileira” (PA-I), ao comentar Os Doze Parafusos, afirma: (...) “abrem um novo caminho na ficção de Moreira Campos, já esboçada sob o ponto de vista erótico em outras obras, mas sem a liberdade de como os assuntos são agora tratados, vistos de frente, com um realismo mágico e epidérmico, que se inscreve, com muita propriedade, no fescenino, num clima de autonomia individual e sem o prejuízo de uma linguagem estética – função inequívoca a toda obra de arte”.

Francisco Carvalho, em “A Transparência Formal na Ficção de Moreira Campos” (EL, págs. 124/127), vê nas peças ficcionais de A Grande Mosca no Copo de Leite que “em todas elas a excelência do artesanato literário destaca-se por uma rigorosa economia de palavras e por uma extraordinária transparência formal”. E mais adiante: “A prosa enxuta, a frase carregada de sentido, a noção de ritmo e de musicalidade, o poder de síntese, o rigor no emprego da palavra, a densidade psicológica e a expressividade – são esses alguns dos aspectos que se articulam no contexto ficcional do novo livro de Moreira Campos”. Em “Contos Escolhidos” (Textos e Contextos), analisa a evolução do contista: “Os contos da primeira fase, elaborados sem qualquer preocupação de fidelidade aos paradigmas da chamada “história curta”, já se apresentam numa evidente perspectiva de modernidade”. E mais adiante: “Já nos contos da segunda fase, Moreira Campos persegue obstinadamente os horizontes da síntese, da pura essencialidade”.
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Além dos quatro grandes nomes do conto cearense surgidos com o Grupo Clã, outros escritores se destacaram no cultivo da narrativa curta após 1960. Os mais importantes são Caio Porfírio Carneiro, talvez o escritor mais vocacionado para a composição ficcional curta no Ceará, depois de Moreira Campos; José Alcides Pinto, embora mais dedicado ao romance e ao poema; e Juarez Barroso, falecido muito cedo, mas que deixou dois volumes de contos e um romance.

Caio Porfírio (de Castro) Carneiro é natural de Fortaleza (1º de julho de 1928), tendo se radicado em São Paulo em 1955. Tem cultivado a prosa de ficção curta com regularidade. Sua estréia no gênero se deu em 1961, com o elogiadíssimo Trapiá. Seguiram-se Os Meninos e o Agreste (1969), O Casarão (1975), Chuva – Os Dez Cavaleiros (1977), O Contra-Espelho (1981), Viagem sem Volta (1985), Os Dedos e os Dados (1989), A Partida e a Chegada (1995) e Maiores e Menores (2003). Seus romances são O Sal da Terra (1965) e Uma Luz no Sertão (1973). Publicou as novelas Bala de Rifle (1965), Três Caminhos, Dias sem Sol e A Oportunidade, estas em 1988. É autor também de ensaios, como Do Cantochão à Bossa Nova (ensaio sobre música popular brasileira), literatura juvenil (Profissão: esperança, Quando o Sertão Virou Mar..., Da Terra Para o Mar, do Mar Para a Terra, Cajueiro Sem Sombra), poesia (Rastro Impreciso), reminiscências (Primeira Peregrinação, Mesa de Bar, Perfis de Memoráveis). Tem recebido diversos prêmios, como o Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, em 1975.

Chuva (Os Dez Cavaleiros) é quase um romance, se é possível isto. A chave para esta observação se encontra na última narrativa, quando o décimo cavaleiro, dirigindo-se ao seu interlocutor, fala: “Olhe aqui, homem: de toda a multidão que conheci, correndo a planície, a serra do Catolé e todos os lugares que cercam a Lagoa Grande, nove ficaram na minha cabeça. Nove. Todos cavaleiros como eu”. Como se dissesse ter conhecido as outras nove histórias do livro. Nas dez peças há sempre um cavaleiro vestido de capote e coberto de chapéu, e outra personagem, ambos sem nome. A paisagem é composta de chuva, um ambiente de campo, com um casebre ou choupana, com chão de barro batido, às vezes uma vila, com uma pracinha, uma igreja abandonada e gente desvalida, sofrida, com medo. De comum também o espaço apenas referido da serra do Catolé e da Lagoa Grande, sempre muito distantes. Quase uma miragem. Para completar a narrativa, um drama e um desenlace enigmático, de parábola. Os desfechos muitas vezes estão nos títulos das histórias. O fantástico se desenha em quase todas as obras, quer no desenrolar da trama, quer no epílogo. Seria, porém, um fantástico mais próximo da parábola, do simbólico, do enigmático. Outras vezes é apenas uma sugestão. Em todos os contos a narração se dá na terceira pessoa, mais para observador do que para narrador onisciente. Talvez apenas em um trecho de uma das histórias o narrador se faz onisciente. A narração é quebrada, aqui e ali, por breves e ásperos diálogos, em linguagem culta ou literária. Caio manipula a linguagem com sabedoria, valendo-se de muita imaginação e do conhecimento das melhores ferramentas da arte de narrar.

No comentário ao mesmo livro, o escritor Marcos Rey assim se expressou: “Com os mesmos instrumentos de trabalho, a simplicidade aludida, o trato quase bíblico dos personagens, ação e diálogos, a natureza como presença obrigatória, Caio Porfírio Carneiro excede à realidade cotidiana, realizando uma obra de síntese literária envolta em poesia, sobriedade e enigmas”.

Em Os Dedos e os Dados, o contista parte por caminhos menos espinhosos, lamacentos, embora retrate também graves conflitos humanos. E se serve de formas variadas para compor as histórias. “A Promessa” é quase todo um só diálogo, de frases curtas. “A Confissão”, como o título sugere, é um diálogo. Em “A Missão” não ocorre uma só fala e a narração é composta de um longo parágrafo e uma frase curta: “A outro qualquer caberia terminar a tarefa”. É a busca da crucificação, novo Cristo sem algozes. Alguns contos tratam do relacionamento amoroso e podem ser tidos como eróticos.

Caio é um especialista da história curta, breve. No entanto, é capaz de se alongar, como em “Um Segundo”. E aí mora o mistério. Em um segundo ele consegue ser mais expansivo do que em histórias que duram horas.

F. S. Nascimento inicia assim o ensaio “Caio Porfírio Carneiro: O Novo Degrau da Ficção” (AAA, págs. 187/189): “Ao firmar posição entre os melhores contistas brasileiros deste último mear de século, Caio Porfírio Carneiro não se rendeu ao empolgamento dessa conquista, intensificando as suas experiências formais e sutilizando os processos de reconstituição de momentos culminantes ou memoráveis da existência. Essa fase de metafiguração laboratorial se inaugurava com o lançamento de O Casarão (1975), estendendo-se ascencionalmente a Os Dedos e os Dados (SP, Pontes Editores, 1989)”. Em outro parágrafo, o crítico esclarece esse argumento: “O jogo sutil dos enunciados implícitos, que Braga Montenegro admitia como refinamento do estilo na prosa de ficção, é o recurso de que mais se utiliza Caio Porfírio Carneiro para gerar o imponderável em cada fração de vida flagrada pela sua ultra-sensível máquina processadora de imagens e emoções”. Ao se voltar para o modo como o contista apresenta os diálogos, o crítico assinala: “Sucintíssimo no diálogo ou na exteriorização solitária, num ou noutro caso as unidades de sentido assim construídas se reduzem a fragmentos de mínima duração acústica, tornando mais prolongado o silêncio das personagens enquadradas pela objetiva do narrador”.

A Partida e a Chegada é outro livro de construção inusitada, a lembrar uma casa composta de fachada rococó, paredes barrocas, colunatas romanas. Como Chuva, deve ser lido como um todo, conto a conto. Leiam-se os diálogos de abertura do volume, como se fosse um prólogo ou, em termos de arquitetura, o átrio de uma casa romana ou o alpendre de antigas casas sertanejas. Duas personagens, sem nome, conversam, como se resumissem os contos que virão a seguir. A descrição do ambiente é mínima: a lua, as nuvens, as estrelas, o céu. São como cenário singelo de um palco pequeno, onde dois personagens encenassem cinco brevíssimas peças. Tudo muito contido.

Ao contrário de Chuva, todo ambientado no campo, as narrativas deste são, na maioria, de inspiração urbana. No primeiro, “A Carícia”, é narrado assalto a um banco. O contista utiliza alguns procedimentos formais mais ousados, embora não mais de vanguarda (hoje), como o cruzamento de narrações na terceira e na primeira pessoa, além do diálogo indireto e da linguagem oral. “Saparanga” e “Zecapinto” ocorrem num lapso de tempo bem mais longo do que na maioria das histórias de Caio. A contrastar com a tensão da primeira, nestas perpassa um humor circense. Os protagonistas são um tanto picarescos. Há, no entanto, uma variedade de enfoques no livro. Assim, “O Crime” é quase a reconstituição de um fato histórico, em Caucaia, Ceará.
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José Alcides Pinto, nascido em São Francisco do Estreito, distrito de Santana do Acaraú (1923), tem sido muito mais poeta e romancista do que contista. Apesar disso, é também nome fundamental do conto cearense. Seu primeiro livro no gênero é de 1965, Editor de Insônia, seguido de Reflexões. Terror. Sobrenatural. Outras estórias, de 1984. Em 1997 ambos foram reeditados, sob o título Editor de Insônia e outros contos, e, como informa Pedro Salgueiro, organizador da reedição, “muitos outros contos foram resgatados do ineditismo na presente edição”. Seus poemas estão nos livros Noções de poesia & arte (1952), Pequeno caderno de palavras (1953), Cantos de Lúcifer (1954), As pontes (1955), Concreto: estrutura-visual-gráfica (1956), Ilha dos patrupachas (1960), Ciclo único (1964), Os catadores de siri (1966), As águas novas (1975), Os amantes (1979), O Acaraú – biografia do rio (1979), Ordem e desordem (1982), 20 sonetos do amor romântico e outros poemas (1982), Relicário pornô (1982), Guerreiros da fome (1984), Fúria (1986), Águas premonitórias (1986), Nascimento de Brasília – a saga do planalto (1987), O sol nasce no Acre (Chico Mendes) (1992), Poeta fui (Ora direis) (1993), Os cantos tristes da morte (1994), Silêncio branco (1998) e As tágides (2001). Tem dez romances, uma novela, uma peça teatral e três livros de artigos e ensaios.

A obra literária de Alcides Pinto está estudada em dois importantes livros: O Universo Mí(s)tico de José Alcides Pinto, de José Lemos Monteiro, e O Espaço Alucinante de José Alcides Pinto, de Paulo de Tarso (Pardal).

Editor de Insônia é dividido em “livro primeiro” e “livro segundo”. A presença de Edgar Allan Poe é visível em alguns contos: a maldade, a obsessão pelo mau, a impiedade de algumas personagens. E também o mistério, o terror. O “livro segundo” é constituído de contos e peças literárias de gêneros variados ou indefinidos. Daí a impropriedade do título geral do livro, assim como do próprio “livro segundo”.

No geral, as histórias curtas de José Alcides Pinto se afastam das principais características do conto tradicional ou clássico. Assim, ao lado de peças sem nenhum diálogo, apresenta até dois contos em forma de teatro – “Caducos” e “Granjeiros”. Em “Domingão” há apenas dois diálogos. Porém não se libertou das formas tradicionais nos diálogos: “disse”, “exclamou”, “comentou”, “gritou” etc.

José Alcides Pinto é um escritor singular na Literatura Brasileira. Não pode ser visto como um adepto do realismo fantástico ou posto ao lado de contistas como Murilo Rubião e José J. Veiga. Seus contos também não são regionalistas, assim como não o são os de Moreira Campos. Há mistérios nos contos de ambos, embora entre eles não se possa vislumbrar nenhuma semelhança. Mesmo quando os conflitos são do tipo policial, como em “O Fogo das Paixões”, não se trata de conto policial ou realista, como os de Rubem Fonseca.

Como escreveu Francisco Carvalho, na ficção de José Alcides Pinto “não há lugar para os devaneios da retórica nem para as quimeras do lirismo cordial.”
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Juarez (Távora) Barroso (de Albuquerque Ferreira) nasceu em Pernambuquinho, Serra de Baturité, no dia 19 de outubro de 1934. Filho de José Carlos Ferreira e Clélia Albuquerque Ferreira. Apesar de se ter formado em Ciências Jurídicas e Sociais, cedo ingressou no radialismo. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde estudou jornalismo e publicidade. Por diversas vezes voltou a residir em Fortaleza, porém em 1966 se radicou na velha capital da República, onde faleceu em agosto de 1976. Premiado num concurso permanente do antigo Boletim Bibliográfico Brasileiro, em 1958, foi incluído no Panorama do Novo Conto Brasileiro (Editora Júpiter, 1964), organizado por Esdras do Nascimento, e em Uma Antologia do Conto Cearense (Imprensa Universitária do Ceará, 1965). Anunciou um estudo intitulado Estácio – Os Professores do Samba, “pretensiosa pesquisa músico-sociológica sobre o samba nos anos de 20”, segundo o próprio Juarez.

Deixou as narrativas de Mundinha Panchico e o Resto do Pessoal (1969), ganhador do Prêmio José Lins do Rêgo, do ano anterior, e Joaquinho Gato (1976). Tem também um romance, Doutora Isa (Editora Civilização Brasileira, 1978), publicação póstuma. Na “Nota Prévia” do livro, Mario Pontes esclareceu: “Na véspera de viajar, em minha companhia, à capital paulista para lá autografar seu livro (Joaquinho Gato), Juarez adoeceu e foi hospitalizado. Uma semana depois estava morto. Recebi, então, das pessoas mais íntimas do escritor, a incumbência de pôr em ordem os seus papéis. Com algumas interrupções, ocupei-me deles de setembro de 1976 até agora. A história de Margô, felizmente, pôde ser reconstituída”. A Nota é de 5 de fevereiro de 1977.

Uma das primeiras críticas à ainda principiante obra de Juarez é de Braga Montenegro, no estudo diversas vezes aqui mencionado. Comparando-o a José Maia, escreveu o crítico: “é mais espontâneo, telúrico, dono de um estilo original, mas nem sempre correto de forma. Suas estórias, engendradas à maneira tradicional de narração, expressam, entretanto, uma dimensão nova, que as isenta à contingência da realidade elementar e as transfigura em arte. É ele, antes de tudo, um impressionista poderoso, mas com um jeito todo próprio de comunicar suas impressões. Ou, antes: seu impressionismo, por assim dizer, nada tem de visual, e se define em motivos quando não imaginados pelo menos recolhidos de uma realidade subjacente que sugere símbolo”.

Com Mundinha Panchico e o Resto do Pessoal, Juarez Barroso ganhou o Prêmio José Lins do Rego, em 1968. A primeira edição deste livro traz nas dobras da capa um texto de avaliação, sem assinatura. Na primeira parte, intitulada “Sagrada Família”, os contos são ambientados na Serra de Baturité e estão voltados para o “erotismo patriarcal”, “o orgulho idem” e “o culto à macheza”. Na segunda, intitulada “Os Hereges”, os personagens são os descendentes dos primeiros e o ambiente é Fortaleza.

João Antônio, em “A Geografia do Homem”, estampado nas dobras do segundo livro, faz o seguinte comentário: “Joaquinho Gato, cujos contos situam-se geograficamente numa área específica do Ceará, sem o clima trágico do Sul do Estado, é um livro marcado pela violência, reflete um estado de humor pesado, carregado de tensões, vida, angústia de um povo vivendo entre a repressão, a rudeza e as necessidades primárias”. Acrescenta: “Dificilmente se poderá destacar, neste seu novo livro, um conto como ponto mais alto. Todos os trabalhos têm força e garra dignos de representar o flagrante de um momento de previsões negras dentro de nossas realidades. Cururu, para dar um exemplo, é página inesquecível, de fôlego e pulso, só encontrável na grande literatura de Graciliano Ramos”.

Continua... Na próxima parte, Anos 70

Fonte:
Nilto Maciel. Panorama do Conto Cearense. Disponível em http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=986

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Heloísa Seixas (Assombração)

Clara deu uma risada nervosa quando ouviu a insistência de Clarice ao telefone:

— Eles fazem questão de que você vá. Querem que você conheça o sítio mal-assombrado.

— Mas... você tem certeza de que vai ter lugar para todo mundo? — indagou. Sabia que Clarice iria com os dois filhos. Ela mesma teria de levar seu menino, pois o ex-marido estaria viajando no fim de semana. Contando com os donos do sítio e mais um casal convidado, que ia com o filho adolescente, seriam ao todo dez pessoas. — Talvez fosse melhor nós irmos num fim de semana em que eles não tenham outros convidados — argumentou.

— Não seja boba, Clara. Tem lugar, sim. Senão eles não teriam insistido tanto. Não adianta vir com desculpas. O que há? Está com medo?

— Claro que não! Você sabe muito bem que eu não acredito nessas coisas — retrucou.

Não, não era medo. Sentia uma inquietação. Sim, estava inquieta, tinha de admitir. Como se pressentisse a aproximação de um perigo. Mas sabia que isso era uma bobagem. O que poderia haver, afinal? Seu filho, Pedro, de sete anos, estava louco para ir. E ela própria ficara curiosa com as histórias de fantasmas.

Vinha ouvindo as tais histórias havia meses, desde que conhecera Clarice. Os olhos castanhos da amiga brilhavam de excitação quando ela as contava.

Clarice. Era engraçado pensar que só a conhecia havia... quantos meses? Junho, julho, agosto, setembro. Quatro. Só quatro meses. Sentia como se fossem amigas de infância. As crianças também. Pedro e os dois meninos se entendiam e desentendiam como irmãos. E de certa forma o eram. Pelo menos Pedro e Paulo. Os dois, o filho de Clara e o filho mais novo de Clarice, haviam nascido na mesma época, com uma diferença de apenas dois dias. Nada demais, não fosse por um detalhe, descoberto por acaso: um dia em que Clarice aparecera com a certidão de nascimento de Paulo, as duas viram, com grande surpresa, que o nome da testemunha no documento era do ex-marido de Clara, pai de Pedrinho. Como é de praxe em cartórios, os pais que estão na fila do registro assinam como testemunhas uns dos outros. A coincidência engraçada era que os ex-maridos de Clara e Clarice tivessem ido ao mesmo cartório, no mesmo dia e na mesma hora para registrar os filhos, sete anos antes de elas duas se conhecerem.

Clara sorri, lembrando-se do espanto de Clarice ao fazer a descoberta. Sempre tão engraçada, tão alegre, Clarice prendia a atenção de todos onde chegava. Era uma mulher bonita, de cabelos. muito negros, pele morena aveludada como a superfície de um pêssego, olhos de um castanho líquido que pareciam a todo momento umedecer seus longos cHios. Uma pessoa tão doce... Pena que se metesse em tantas loucuras. A própria Clarice lhe contava suas aventuras, suas noites de bebedeiras e drogas, a sucessão interminável de namorados, como se quisesse se vingar dos dez anos de casamento que tanto a haviam atormentado. Errava pelos bares à noite em companhia de pessoas que pareciam dispostas apenas a sugá-la, aproveitando-se de sua bondade, gravitando em torno dela como vampiros sedentos. Bebia demais e quanto mais se misturava àquela gente mais compulsiva se tornava. Drogava-se com freqüência, às vezes mesmo subindo morros com os companheiros de noitada, em busca de droga. Clara temia por ela, pelas crianças. Procurava dar-lhe conselhos, mas de nada adiantava. Havia nela, naquela mulher tão delicada, uma poderosa sede de autodestruição, que a subjugava. O tal casal dono do sítio mal-assombrado era talvez um dos poucos de seu círculo de amigos, além da própria Clara, que não vivia metido em loucuras.

O sítio. O sítio mal-assombrado. Ia afinal conhecê-lo. Clarice falava tanto nele... Clara não podia negar que estava curiosa. Outro dia, num jantar em casa de amigos comuns, o sítio mal-assombrado fora o assunto da noite. Clara lembrava-se bem. Todos falavam com naturalidade dos fantasmas, parecendo mesmo divertir-se com a situação. Ninguém tinha medo. Clara tampouco. Na verdade ouvia aquilo com grande dose de incredulidade. Mas sentira uma sensação desagradável ao ouvir dos donos do sítio a explicação para tanta assombração: segundo eles, o antigo dono do lugar se suicidara lá, enforcando-se junto a uma bela cachoeira existente dentro da propriedade.

Clara arrepiara-se ao ouvir aquilo. Tinha horror a enforcamentos. Desde muito pequena, quando ouvia na escola as histórias de Tiradentes, fixava na professora os olhinhos muito abertos, sentindo um nó na garganta, como se uma invisível corda ali lhe apertasse. Perguntara ao casal como eles tinham ficado sabendo daquilo. Por intermédio dos próprios herdeiros, de quem haviam comprado a propriedade, disseram. Clara engolira em seco.

Eram muitas, as histórias. Todos ou quase todos os amigos do casal que já haviam passado dias no sítio tinham um caso para contar. Um rapaz, de nome Caio, relatara que certa vez vira uma mulher agachada chorando num canto da sala. Ia passando distraído quando dera com ela. Voltara-se para olhar uma segunda vez, a fim de se certificar do que estava vendo, e ela já havia desaparecido. Alguém perguntou se ele não tinha bebido muito naquela noite e ele teve de admitir que sim. Todos riram.

Outra amiga relatara sua experiência, dizendo ter acordado no meio da noite com um infernal barulho de pratos e panelas na cozinha. Como muitas pessoas estavam hospedadas no sítio naquele fim de semana, levantara-se furiosa pensando em reclamar com a turma que fazia o barulhento lanche da madrugada — e ao chegar ao fim do corredor se deparara com a cozinha silenciosa e vazia.

Havia também o caso do suspiro. Este se dera com Pablito, rapaz solteiro e mulherengo que era velho freqüentador dos fins de semana assombrados. Na ocasião, ainda se vangloriava de ser um dos poucos que jamais tinham visto uma alma penada na casa. Certa noite, já estava deitado sozinho no quarto, com as luzes apagadas, quando ouvira, a seu lado na cama de casal, um suspiro. Um suspiro profundo e sentido, um suspiro de mulher. Logo imaginara que alguma das moças hospedadas na casa fora refugiar-se a seu lado. Levantara-se, intrigado. Fora, às apalpadelas, até a parede junto à porta em busca do interruptor, já que o abajur estava sem lâmpada. Acendera a luz. A cama estava vazia. E no mesmo instante ele se lembrara, sentindo-se gelar da cabeça aos pés, de que havia trancado a porta por dentro antes de se deitar. Desde então nunca mais duvidara das histórias de assombração.

Clara ouvira aquelas histórias com curiosidade mas, por um motivo ou por outro, fora adiando a ida ao sítio. Agora, ao que parecia, chegara a hora. Tempo de enfrentar os fantasmas, pensou, com um sorriso de incredulidade. Dali a três dias.


Já lhe tinham dito que o sítio era um local belíssimo, encravado num vale em meio a montanhas, mas Clara se surpreendeu. Que lugar! Assim que os carros deixaram a Rio-Petrópolis, tomando à direita um caminhozinho de terra, todo esburacado, ela sentiu como se penetrassem um mundo intocado pelo homem. O caminho de terra, que só dava passagem para um carro de cada vez, cortava a mata fechada, com cipós pendurados. Nas margens, tapetes de marias-sem-vergonha e no ar um cheiro penetrante de folhas apodrecidas.

Era úmido ali. A mata quase se fechava sobre a estradinha e, como ainda havia muita névoa, o caminho se tornava mais sombrio. Fazia frio, muito frio. Fecharam as janelas. Vidros embaçados, mal se enxergava o caminho à frente e os três carros seguiam devagar, pelo chão de barro escorregadio. Risadas nervosas cortavam o silêncio.

De repente, Clara viu surgir o vale à sua frente, deslumbrante. Era um descampado cheio de sol, cercado de montanhas sombrias por todos os lados. A trilha úmida terminava de repente, desembocando em toda aquela luminosidade que quase cegou.

Saltaram. A casa, daquelas antigas, com varandões em arco e janelas pintadas de azul colonial, ficava a um canto, junto a um imenso flamboyant. À frente, estendia-se o gramado, salpicado por troncos com bromélias e alguns arbustos. Era um vale descarnado em meio às montanhas cobertas por mata fechada, num lindo contraste.

— Não parece uma casa mal-assombrada — comentou Clara.

Clarice sorriu, sem nada dizer. E a amiga do casal, mãe do adolescente, dando de ombros:

— De noite é que vamos saber.

A primeira coisa que fizeram, depois de deixar a bagagem nos quartos, foi sair para conhecer a cachoeira, o lugar mais bonito do sítio, pelo que todos diziam.

Do lado esquerdo da casa, havia uma pequena trilha na mata que levava até lá. Um caminho menos sombreado do que a estrada de carro. Ali, a luminosidade penetrava pelo trançado das folhas. Junto à trilha, grandes touceiras de colônias, lírios e xaxins formavam a vegetação.

À medida que caminhavam, Clara sentia como se a mata os envolvesse, com seus cheiros de flores e terra úmida, seus murmúrios e zumbidos que se fundiam em uníssono, como uma respiração. Caminharam assim durante algum tempo, até que começaram a ouvir o som das águas. Chegavam ao fim da trilha. A pequena clareira, ornada pelas pedras do regato, foi o ponto onde todos pararam, hipnotizados pela beleza do lugar. A cachoeira era um santuário. Um fio d'água se despejando sobre um laguinho verde-escuro, pequeno e gelado, como um cenário de cinema. Era tudo tão perfeito, tão harmônico e bonito, que o primeiro pensamento de Clara foi que era difícil entender como alguém podia se matar num lugar assim. Arrepiou-se ao pensar nisso.

Ficou por um tempo sentada sobre uma pedra limosa, olhando toda aquela beleza. Depois tomou coragem e mergulhou na água cor de esmeralda. Tão gelada que sentiu vontade de rir e chorar. Começou a nadar para se aquecer. Nadou em direção à queda-d'água. Quando já sentia os respingos gelados sobre sua cabeça, parou de nadar e olhou para cima. A água parecia fumaça de gelo seco. E os respingos que lhe caíam no rosto produziam uma sensação de choque na pele. Ficou assim por uns segundos, tentando manter os olhos abertos apesar da água que caía com força.

Foi quando sentiu a tontura. Uma tontura tão forte que precisou se segurar na parede de pedra para não afundar. Agarrou-se a ela, respirando fundo, os olhos arregalados, com a sensação de que ia desmaiar. Procurou acalmar-se. Sabia que não havia perigo, já estava passando. E depois todos estavam ali, nada de mal lhe poderia acontecer. Com o coração batendo forte, nadou de volta para a parte rasa.

Chegou ofegante.

— Está fora de forma, hein? — brincou alguém.

Clara deu um sorriso sem graça:

— Foi o frio.

Quando a água ia ficando cada vez mais gelada e as crianças já começavam a reclamar de fome, decidiram que era hora de voltar. Tomaram outra vez a trilha estreita, um atrás do outro, por entre as árvores. Clarice ia bem à frente de Clara, sempre brigando com o filho, Paulo, que ameaçava embrenhar-se no mato a cada instante.

De repente Clara sentiu o cheiro. Um cheiro doce e inconfundível de caju. Caju maduro, já meio pisado, quando dele escorre líquido, fazendo juntar mosquitos. Cheiro forte e gostoso, quente, que destoava da paisagem fria da montanha.

— Que engraçado... que cheiro de caju! — disse para Clarice, à sua frente.

Ouviu com nitidez a resposta dela, embora Clarice não chegasse a se virar para trás.

— É ele. Ele gostava muito de cajus.

Clara bateu no ombro da amiga.

— Ele quem?

Clarice virou-se e olhou para ela.

— O quê?

— De quem você estava falando? — insistiu Clara.

Clarice franziu a testa, com ar debochado.

— Ficou maluca, é? Do que você está falando?

— Eu estava falando sobre o cheiro de caju. E você respondeu alguma coisa sobre alguém que gosta de cajus...

Clarice olhou para ela, espantada.

— Eu? Eu não abri a boca! — disse.

E depois de uma pausa:

— ... e além do mais com o frio que faz nestas montanhas, não sei como você pode estar sentindo cheiro de caju. Um pé de caju aqui morreria congelado...

A noite chegou muito fria, mas nada assombrada. Clara sorriu ao pensar nisto. Estivera inquieta todo o dia, por causa dos acontecimentos estranhos na cachoeira, mas já quase se recuperara. A tonteira, claro, fora conseqüência do frio. Ou estômago vazio, talvez. E o comentário de Clarice... bem, com certeza se enganara, ouvira errado. Ou talvez fosse molecagem de Clarice, para testar seu medo. Sorriu. Respirou fundo. Precisava livrar-se daquele aperto no peito. O lugar era tão bonito, tudo tão agradável. Não havia razão para se sentir inquieta.

Assim que a noite caiu completamente, todos foram até a varanda olhar o céu. Um céu de planetário. Fundo negro e estrelas, estrelas, estrelas, como só é possível ver num lugar assim. E em torno das montanhas, suas sombras imensas, silenciosas. Nenhum ponto de luz na mata, nada. Nenhum vestígio do ser humano.

Depois do jantar, aquecidos por vários copos de vinho tinto, foram todos lá para fora. As crianças também, muito bem agasalhadas, pois o frio era cada vez mais cortante. Iam, por sugestão dos donos da casa, brincar de se pendurar no céu.

Estenderam cobertores no gramado em frente à casa e se deitaram, depois de apagar todas as luzes. A brincadeira consistia no seguinte: cada um devia ficar deitado, de olhos fixos no céu, e tentar imaginar que estava em cima dele, pregado em uma abóbada e vendo o infinito a seus pés. Preso ali na crosta terrestre pela força da gravidade, como no brinquedo rotor dos parques de diversão.

Clara sorria com excitação. Depois de alguns minutos imóvel ali, a sensação começou. Logo já era perfeitamente nítida. Sentia mesmo como se estivesse no alto, pendurada, grudada, com o céu lá embaixo. Era uma sensação deliciosa e surpreendente.

Até as crianças pareciam hipnotizadas pela ilusão da brincadeira. Logo descobriram que quando alguém falava a sensação se perdia. E ficaram em silêncio.

Ouviam apenas os grilos, os murmúrios da mata. Clara estremeceu com o frio, mas esforçou-se para se manter imóvel, sabendo que do contrário quebraria o encanto, perderia a sensação de euforia e domínio, de estar acima do céu, senhora do infinito.

Era impressionante o silêncio. Parecia fechar-se cada vez mais em torno dela, denso, quase palpável. Ouvia os zumbidos da mata mais e mais fortes, de novo como uma respiração, como lhe parecera na cachoeira.

Teve de repente a sensação de estar só ali, apenas ela e as estrelas na noite silenciosa. E ao redor a mata, com seu zumbido que crescia, crescia, como se... a espreitasse. Abriu muito os olhos, assaltada por um medo súbito, a nítida impressão de que ia cair. A vertigem outra vez! Isto não pode acontecer agora, não agora que está ali sozinha, pendurada na crosta da terra. Se não se agarrar com força, vai se desgrudar e despencar no infinito!

— Não!!! — Senta-se, assustada.

Todos se levantam e olham para ela.

— Ah, você estragou a brincadeira! — reclama uma das crianças.

Clara se desculpa.

— Acho que cochilei e tive um pesadelo...


Pouco depois entram. O frio já se tornara insuportável. Comentam a beleza do espetáculo, excitados ainda, como meninos saindo de um circo. Apenas Clara está quieta.

Acendem as luzes a contragosto, com pena de macular com sua presença humana aquela noite primitiva e bela. Depois, sentam-se ao redor da mesa tosca, para jogar buraco. O frio os faz beber sem parar, sorvendo em grandes goles o vinho tinto de garrafão, acre, rascante. As crianças se divertem assando na lareira batatas-doces envoltas em papel laminado, que depois comem com melado, entre gritinhos e sopros.

O tempo passa. O jogo de buraco se arrasta, entre bocejos e esfregar de olhos vermelhos. Logo as crianças começam a cochilar nos sofás ao redor da lareira. No silêncio, ouve-se o crepitar da lenha, enquanto as chamas fazem dançar as sombras projeta das na parede. O velho cuco de madeira faz seu tique-taque seco, em meio ao lento arrastar das correntes que sustentam os pesos do relógio.

Súbito, ouvem passos lá fora.

Passos de alguém correndo em volta da casa, passadas rápidas e pesadas no cimento do passeio que circunda a construção. Entreolham-se, sem nada dizer. Clara franze o rosto. Levanta-se e já se prepara para abrir a por­ ta quando a dona do sítio a retém.

— Aonde você vai?

— Ver quem está lá fora. Quem pode ser, com este frio? — indaga.

— É melhor deixar para lá, Clara. Já ouvimos isto muitas vezes. Procuramos simplesmente não dar importância. É isto. É melhor pensar que não ouvimos nada. E depois, não sei... talvez sejam os cachorros — diz a amiga.

Clara senta-se, sentindo voltar o aperto no peito, na garganta. Cachorros... Tem certeza de que eram passos humanos. Não é possível! Devem estar querendo pregar-lhe alguma peça. Olha em torno. Onde está Clarice? Teria sido ela? Clarice não estava na sala. Fora lá para dentro havia pouco e não mais voltara. Clara anuncia que está cansada, que não tem mais vontade de jogar. Levanta-se outra vez. Vai até o corredor, mas logo se detém. As portas entreabertas lhe revelam a escuridão dos quartos e um frio de medo lhe percorre a espinha. Decide entrar no banheiro, o grande banheiro de azulejos pintados, que fica à esquerda, logo no início do corredor.

Acende a luz. Olha-se no espelho que toma quase toda a parede do banheiro. Chega mais perto, olhando-se. Decide retocar o batom, pois vê que seus lábios estão cada vez mais ressequidos pelo frio. Tira do bolso o batom que traz sempre consigo e começa lentamente a fazer o desenho dos lábios. É quando vê Clarice surgir às suas costas. Sorri para ela através do espelho. Mas Clarice está séria. Tem os olhos avermelhados, olhos de quem bebeu demais. Fica ali alguns segundos, em silêncio junto à porta. Clara a encara com ar interrogativo, o bastão do batom parado no ar.

— Onde você estava?

Silêncio.

— O que houve? — insiste.

Clarice a olha com seus olhos líquidos.

— Você já sabe, não é?

Clara franze o rosto, como quem não compreende.

— Sei o quê?

Clarice sorri e leva aos lábios o copo de vinho que tem nas mãos.

— Sabe, sim — diz. E desaparece na penumbra do corredor.

Clara entra na cozinha em busca de um copo d'água, a boca subitamente seca. Encontra a dona da casa, guardando pratos. Ela percebe a inquietação de Clara e sorri com doçura:

— Você já sabe, não é?

— Já sei o quê? — Clara recua.

— A história dos cajus. Clarice não lhe contou? Ela me disse que lhe contaria.

— Ah... não, ela não me contou — Clara retruca, confusa. — Qual é a história dos... cajus?

— Clarice me falou do cheiro que você sentiu na cachoeira — diz a dona do sítio. — Não é a primeira vez que acontece, sabia? Houve outros casos. Um dia comentei com a neta dele, a que nos vendeu o sítio, e ela me disse que ele tinha verdadeira loucura por cajus. Era sua fruta preferida. Talvez seja por isso que...

— Pra mim chega! — corta Clara, com a voz alterada.

— Estou farta dessas histórias ridículas!

E sai da cozinha, batendo com força a porta atrás de si.

Na divisão dos quartos, Clara havia ficado com Pedro no cômodo ao lado de Clarice, que dormiria com os dois filhos. Só que, na hora de deitar, Pedro preferiu dormir com os outros meninos. E Clara acabou ficando com um quarto só para ela.

Não se importou. Talvez fosse até melhor, pensou, pois assim conseguiria dormir até mais tarde. Já havia recuperado seu bom humor e até pedira desculpas à dona da casa por sua irritação na cozinha. Afinal, tudo aquilo não passava de uma grande bobagem, não havia mesmo razão para se irritar.

Olhou o quarto à sua volta. Era aconchegante. Tinha cortinas de babadinhos feitas em tecido xadrez azul e branco, igual ao forro da cama. Móveis pesados, de madeira escura, assoalho de parquê desenhado, tapete de corda no chão. Sobre a penteadeira, um escovão antigo e um arranjo de flores secas, com pinhões. O abajur também tinha a cúpula quadriculada, mas logo percebeu, desapontada, que não tinha lâmpada.

Vendo a cama de casal, lembrou-se da história. Ouvira quando Pablito, o amigo dos donos do sítio, descrevera o quarto. Com certeza fora ali. Era aquele o quarto. O quarto dos suspiros. Seus olhos examinaram a cama vazia e pousaram nos travesseiros, primeiro um depois o outro, como se procurando adivinhar onde se deitara o fantasma. Mal conteve o riso nervoso ao pensar nisto. Devo ser muito impressionável mesmo, concluiu. Outra vez pensando bobagens. Encolheu os ombros e voltou a concentrar-se no abajur sem lâmpada, em dúvida sobre se valeria a pena ler com a luz de cima e depois ser obrigada a levantar-se para apagá-la. Decidiu afinal que não leria. Estava com tanto sono que não conseguiria ler mais do que duas páginas do livro.

Encostou a porta, apagou a luz e deitou-se. Logo seus olhos acostumaram-se à escuridão e ela percebeu a luminosidade que penetrava pela fresta embaixo da porta. Era a luzinha vermelha que a dona do sítio deixava acesa no corredor, para que as pessoas não se perdessem a caminho do banheiro. Sentiu um doce torpor envolvê-la. Vertigem? Suave vertigem de sonho, enredando-a pouco a pouco, como um novelo de lã, macio e quente.

Bruma, névoa. Vertigem. Suave vertigem de sonho, enredando-a pouco a pouco, como um novelo de lã, macio e quente.

Agora tudo é silêncio. Clara não se move, não pode fazê-lo. É um ser sem vontade própria, envolto pela escuridão que o acolhe. Nada vê. Mas todo seu corpo está à espreita, aguardando, pressentindo. Súbito o silêncio é rompido por um rangido de porta e Clara sente seu corpo ser golpeado pelo sopro do ar frio. Está chegando. Seu coração pára ao perceber a aproximação da presença assombrada. Ouve os passos imateriais, murmúrios, suspiros. Continua imóvel, como se a noite a atasse.

De repente, sente o toque das mãos, primeiro em seu rosto, depois descendo lentamente pelo pescoço, pelos ombros. Nos vapores da noite, o hálito espectral se aproxima, buscando-a. Continua inerte. É um sonho estranho, feito apenas de tato e cheiro. Arrepia-se, estremece. Pensa que é preciso abrir os olhos e encarar a presença assombrada, mas não o faz. Apenas se mantém à espera, imóvel e silenciosa, para que ela a possua, envolvendo-a no ectoplasma daquele amor proibido. Assombração, fantasma, espectro, fino tecido translúcido vindo de outro mundo, emergindo das sombras, para tomá-la. Tremendo de pavor e desejo, Clara se entrega.

Está agora presa na teia mágica de longos fios, cabelos de seda com cheiro de almíscar que a encobrem e rodeiam, formando a doce tenda que abrigará o beijo, afinal. Sim, o beijo. Lábios carnudos e molhados que tocam os seus, primeiro suavemente, depois com mais e mais ardor, molhando, sugando, buscando, explorando-lhe a boca, sorvendo-lhe a língua, bebendo-lhes a saliva com louca paixão.

O beijo vai agora tomando posse de todo seu corpo, sanguessuga que a percorre inteira, vencendo as formas, subjugando a matéria, acendendo-lhe, com seu sopro, imaterial, o fogo do mais louco desejo. Cada parte de seu corpo é uma cidadela que cai ante a fúria daquele beijo úmido e quente, que transforma tudo por onde passa em chama acesa. Seus seios se entregam e, mal são tomados, já seu ventre se arqueia na busca do contato com aqueles lábios que a devoram como animais selvagens. Logo toda ela é uma flor que se abre para revelar seu mais secreto perfume, essência da fenda misteriosa onde o beijo vai penetrar para sorver-lhe a alma. Aroma, néctar, pólen, mágicas poções do amor, todas as delícias que ali se escondem já não são suas, perderam-se na morna mistura de saliva que lhe inundou o ventre, torrente caudalosa que a arrebata, arrastando-a por mares e rios, arrancando as folhas das margens, tomando tudo, tudo dominando, para atirá-la no louco redemoinho do prazer, vertigem que a faz cair no infinito, tendo o céu a seus pés, como se mergulhasse num sonho dentro de um sonho.

Não, não está sonhando. Clara sabe. Sabe que já não precisa fugir, que é tudo real. E no entanto o medo cessou. Já não sente pavor ou inquietação. O cheiro doce do prazer impregnou o ar com suas essências eternas, que através dos séculos encharcam o leito dos amantes.

Clara abre os olhos.

Em meio à penumbra rosada que penetra pela porta entreaberta, ela vê o brilho dos olhos, derramando-se liquefeitos. Olhos vermelhos, como vermelha é a luz que as envolve. Olhos de Clarice. Sim, Clara sabe que não foi um sonho. Sabe que está presa na teia daquele amor de mulher, doce e proibido. Pressentira-o há tempos, lutara contra ele, fingira não vê-lo, mas agora já não pode fugir.

Está frente a frente com sua assombração.
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Sobre a autora
Heloisa Seixas (1952) é carioca. Tradutora, romancista e cronista, cursou jornalismo na Universidade Federal Fluminense. Foi diretora da Rio-Gráfica editora e trabalhou na Agência de Notícias UPI. De 1990 a 1997, foi assessora de comunicação da representação da ONU no Rio de Janeiro (RJ). Sua coluna, "Contos Mínimos", mantida na revista "Domingo", do Jornal do Brasil, faz sucesso entre seus inúmeros leitores. Alguns de seus livros publicados:

Pente de Vênus - Histórias do amor assombrado (contos) 1995
A porta (romance) - 1966
Diário de Perséfone (romance) - 1998
Contos mínimos (contos) - 2001
Através do vidro (novela) - 2001
Pérolas absolutas (romance) - 2003
Sete vidas - Sete contos mínimos de gatos (contos) - 2003

Participa de diversas coletâneas, como "25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira", "Boa companhia" e "13 maneiras de amar", além da abaixo citada. Dentre os livros por ela traduzidos, destacamos "A casa do passado - Dez grandes contos de terror", "Visões da noite - Histórias de terror sarcástico" e "Depois - Sete histórias de terror e horror.
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Fonte:
"Contos de Escritoras Brasileiras", Editora Martins Fontes - São Paulo, 2003, seleção e organização de Lúcia Helena Vianna e Márcia Lígia Guidin. Disponível em
http://www.releituras.com

Educação no Mundo (1a. Parte)


ECCO, ABIAMO ARTE!
Nas escolas italianas, falar, estudar, viver a arte é muito mais do cumprir o currículo

As crianças italianas têm o privilégio de ver e tocar o que a maior parte das outras crianças do mundo só podem apreciar por meio das páginas físicas e virtuais de livros e sites. Pertinho dessa garotada estão museus, exposições, praças e monumentos que mostram as grandes obras primas dos maiores nomes da arte mundial, como Leonardo da Vinci e Michelangelo. Tudo ali, ao alcance dos olhos. Basta uma curta viagem, e pronto! No início do ano letivo as escolas recebem dos museus a programação do ano, assim podemos escolher a qual queremos levar os alunos, explica a educadora Bianca Montevecchio, da escola de Ensino Fundamental Dante Alighieri, em Forli, região da Emilia-Romagna, nordeste da Itália.

E, como a arte na Itália pode ser vista em cada prédio, casa, jardim, praça... Enfim, dapertutto, todos os artistas - e não somente os mais famosos - entram no programa de estudo da criançada. Cada escola enfoca os principais artistas da região. Por exemplo, os estudantes de Florença, na Toscana, estudam os artistas daquela região, salienta Bianca. Pode parecer bairrismo, mas nao é. Acontece que cada parte da Itália tem uma história e um dialeto particular, o que muitas vezes dá a impressão que são vários países dentro de um só. Daí a importância de valorizar os artistas regionais.

Os professores têm também por interesse fazer os alunos lerem o contexto social, cultural e até econômico do período de cada obra - o que pode mudar muito de acordo com a região. Sem dizer que existe uma infinidade de grandes e maravilhosas obras espalhadas pelo país, feitas por artistas desconhecidos aos olhos do mundo, mas muito importantes para a Itália.

Uma aula especial

Na escola Dante Alighieri, a professora Silvia Bartolletti fez uma verdadeira viagem no tempo com os alunos da 2ª série. O artista escolhido foi pintor Silvestro Lega. Para fazer a turma conhecer e entender a época em que ele vivia, Silvia iniciou uma viagem ao ano de 1840, período em que o artista começou a desenvolver seus trabalhos. As crianças pesquisaram em bibliotecas e na internet quais eram os costumes das pessoas, o que vestiam, o que comiam. O enfoque da pesquisa voltou-se às mulheres e crianças, freqüentemente relatadas nas obras de Lega. Silvia também se preocupou em explicar a técnica usada por Lega e apresentou à turma aspectos da vida pessoal do artista. Quando os alunos já estavam bem familiarizados com o autor, a professora marcou o dia da visita ao museu.

As crianças gostam não somente por ser uma excursão afinal, são crianças e adoram passear - mas dá para perceber a curiosidade em cada uma. É como se elas estivessem indo encontrar Silvestro Lega em pessoa, relembra Silvia. No dia marcado, os alunos chegaram entusiasmados ao museu. Para a surpresa deles, logo na entrada, a guia que os acompanharia estava vestida como as mulheres da época de Lega - outra invenção de Silvia para tornar ainda mais atrativa a exposição.

Conforme caminhavam, a guia explicava o contexto histórico e perguntava aos alunos o que sabiam daquela época. Conversava com eles sobre a técnica e as cores mais evidentes em cada quadro. Por que Lega teria feito cada uma dessas escolhas? À frente de algumas obras, a guia pedia para que as crianças fechassem os olhos. Então, descrevia o quadro e pedia que imaginassem as danças, os sons, os cheiros e as vozes ali retratadas. É impressionante ver até onde pode ir a criatividade deles, ressalta Silvia.

O desfecho não poderia ser outro: a turma foi apresentada ao autoretrato do autor. Em seguida, a guia pediu a todos que descrevessem, por meio daquela pintura, a personalidade de Lega. As respostas foram as mais diversas e inesperadas: Bravo! Carrancudo! Um homem sério! Muito sério! Ele não teve filhos, né! Um homem fechado! Perfeccionista! Triste!.

E ali terminava a visita ao museu, mas não as atividades. De volta à escola, hora de colocar a mão na massa! Ou, mais precisamente, no pincel! Cada aluno escolheu o quadro de que mais gostou e fez sua releitura. Não uma simples reprodução, mas uma aplicação de tudo o que haviam aprendido até o momento sobre a história e a arte de Lega. Façam de conta que vocês são Lega e imaginem o que ele queria transmitir no momento em que pintava essa obra!, pediu Silvia. Segundo a professora, é notável a diferença entre a produção dos alunos antes e depois da visita ao museu.

O trabalho com a arte não é exclusivo de Silvia. A escola Dante Alighieri é arte pura. Ao entrar no pátio, é possível ver em todas as paredes as obras dos pequenos artistas. É grande a variedade de técnicas trabalhadas e as exposições são permanentes.

A REVOLUÇÃO NA SALA DE AULA
Ponto chave da Batalha de Idéias proposta por Fidel Castro, a educação é um dos pilares de sustentação da Revolução em Cuba, país que se dá ao luxo de declarar-se território livre de analfabetismo há 45 anos

Em 22 de dezembro de 1961, diante de milhares de pessoas que lotavam a Praça da Revolução, em Havana, Fidel Castro agradeceu aos 282334 voluntários cubanos responsáveis pela redução do analfabetismo na ilha a quase zero. Em um ano e dois meses, a Campanha Nacional de Alfabetização fez o índice cair de 23,6% para 3,9%, o que levou o governo da Ilha a declarar Cuba um território livre do analfabetismo.

Sem educação não há revolução nem socialismo possível, alegou Fidel na ocasião. Mais agradecidos ficaram os 707212 cidadãos que, ao final desse período, aprenderam a ler e a escrever.

Passados 45 anos, os índices cubanos mostram que, ao menos no campo da Educação, a Batalha de Idéias continua vitoriosa. Em 1981, os analfabetos em Cuba somavam 1,9% e, no início dos anos 2000, o governo local garantia que 98% das crianças freqüentavam regularmente a escola - gratuita e obrigatória até que se complete o ensino secundário, de nove anos. Um outdoor fixado numa das estradas que levam à capital escancara esse orgulho e é, certamente, objeto de inveja para visitantes: Anualmente 100 milhões de crianças no mundo precisam trabalhar para viver. Nenhuma delas é cubana.

Um ideal

Gratuito para todos os níveis desde o pré-escolar até cursos de pós-graduação -, o sistema educacional em Cuba tem seu primeiro degrau nos chamados Círculos Infantis. Esses centros abrigam as crianças com idade entre 1 e 6 anos, que têm ali o primeiro contato com a Educação formal.

Quando chega à escola, a criança deve ter recebido, além dos elementos emocionais de educação, conhecimentos preparatórios para o primeiro ano como cores, figuras geométricas e relações espaciais. O pré-escolar traz ainda conhecimento de algumas letras, explica a vice-diretora de uma escola primária em Havana, Olidia Diaz Raveiro.

Alguns entram na primeira série já sabendo ler, ainda que não saibam desenhar os traçados das letras. No ensino primário, aprendem elementos como numeração e todas as letras e terminam o ano lendo e escrevendo corretamente.

Na escola de Olidia, no bairro de Centro Havana, estudam 236 crianças entre a 1ª e a 6ª série, atendidas por 22 professores. A média de 10 alunos para cada mestre é outro número que os cubanos fazem questão de exaltar. O país conta com 250 mil professores espalhados por todos os cantos da ilha, o que lhe confere a menor densidade em sala de aula da América Latina, mais Estados Unidos.

Aqui, por mais distante que seja o lugar, há ali um mestre. Podem ser escolinhas de madeira nas montanhas, mas todas têm computadores e televisão. Nos locais onde não há corrente elétrica, painéis solares geram energia, afirma a professora Olidia, que trabalhou na escola da minúscula San Cristóbal (província de Pinar del Rio), onde costumam estudar não mais que três a quatro alunos.

Se parece um exagero, o que dizer das 164 escolas em todo o território cubano que funcionam única e exclusivamente para atender a um só aluno? O lema é: se há uma criança por perto, obrigatoriamente haverá uma escola.

Espanhol, geografia e política

Na escola de Olidia, a abertura dos portões acontece às seis da manhã. O expediente termina só depois que o último aluno sai, não importa a hora. Geralmente os pais vêm buscar entre 17h e 19h, mas sempre há alguns que têm problemas no trabalho, entende a professora.

Como a atividade docente começa às 7h50 e termina às 16h30, os professores fazem uma escala semanal para ajudar os assistentes educativos na recreação. Nessa escola de Havana, são três responsáveis pelos horários extra-classe, encarregadas da entrega dessas crianças aos pais. Enquanto não chegam, os filhos ficam brincando e fazendo atividades. Fazendo atividades significa, entre uma brincadeira de pega-pega ou um jogo de beisebol, por exemplo, disputar uma partida de xadrez ou a ler a biografia de um líder político importante, como Che Guevara ou Jose Martí, cujos bustos enfeitam a fachada do prédio.

O conhecimento político é, em Cuba, uma disciplina tão importante como Matemática ou Espanhol. Todos os dias os alunos do país inteiro repetem o mesmo ritual quando chegam à escola. O Matutino como é chamado o período de dez minutos que antecede as classes tradicionais inicia às 7h50 em ponto, com todos reunidos no pátio, em fila. Quatro ou cinco monitores alunos mais destacados de cada série percorrem as filas para verificar as presenças. A chamada não é feita individualmente, mas por turma: um ranking premia as classes com maior numero de freqüências.

Em seguida, um anúncio evidencia o regime socialista da ilha e a exaltação constante à pátria: Coletivo da escola primaria, atenção para a nossa bandeira. Um pequeno grupo marcha com o estandarte nas mãos enquanto o resto dos alunos permanece em posição de sentido e silêncio absoluto. O hasteamento acontece ao som do Hino Nacional de Cuba. Na primeira nota todos postam as mãos na cabeça numa típica saudação militar e cantam os versos com furor. Duas professoras são advertidas pelos próprios alunos por estarem conversando durante a execução de La Bayamesa homenagem à cidade de Bayamo, marco da primeira vitória das tropas mayombes que lutaram pela independência na Guerra dos Dez Anos (1868 1878).

Semanalmente, as turmas se revezam na condução da leitura e na discussão das efemérides. É uma via de caráter informativo, onde se trabalha o acontecido. O nascimento de algum mártir, alguma figura importante ou os destaques do noticiário, por exemplo. Podem compor a pauta a criação de um partido único na Venezuela, uma nova fábrica de canos nas proximidades de Havana ou os resultados da liga nacional de beisebol. O que se quer é que as próprias crianças desenvolvam as temáticas, não os professores. Assim vemos seu protagonismo, seu desempenho como cidadãos, explica Olídia.

Uma vez dentro da sala de aula, os alunos ainda têm mais dez minutos da disciplina de Informação Política, também abordando temas relevantes no cenário mundial e local.

Matemática

Às 8h começam as aulas das demais disciplinas, com duração de 45 minutos, até às 12h40, quando as crianças seguem para o refeitório. O almoço (em geral, arroz, feijão, carne e salada) é fornecido pelo governo. Entre 13h30 e 14h30, há um novo período de recreação e depois, até às 16h30, aula novamente. Para as crianças em fase de alfabetização, depois do almoço é hora de dormir.

Assim como nas Escolas Rurais, o trabalho também é incentivado na área urbana. As crianças se revezam no preparo dos alimentos, assistidos por funcionários do governo e na limpeza do refeitório, após o almoço. Uns retiram os pratos, outros limpam as mesas e os terceiros, lavam a louça.

O ano letivo em Cuba vai de setembro a julho, quando todos tiram férias de um mês. No resto do tempo, a sistemática é de uma semana de descanso para cada quatro de trabalho. Assim o curso se divide em quatro períodos, com três semanas de recesso mais as férias em julho, anota a diretora Olga Posada Fuentes.

Além da educação tradicional e do Matutino, os alunos cubanos assistem a teleclasses (aulas em vídeo complementares ao conteúdo presencial) e das atividades realizadas nos computadores, que abrangem todas as disciplinas.

A presença de especialistas em Educação Física e Computação nas escolas abre precedente para a única queixa da vice-diretora. Uma coisa que ajudaria seria contar também com músicos e artistas plásticos. Ainda que tenhamos instrutores de arte que supervisionam o conteúdo, o trabalho na aula é feito pelos professores das turmas.

Segundo Olga Posada Fuentes, a aprovação é quase total, em todos os anos, graças às aulas de apoio que os próprios professores ministram aos alunos que apresentam alguma dificuldade.

Pais e mestres

A cerimônia diária de hasteamento da bandeira é espiada pelos pais, por trás dos muros da escola. Mas a relação família-escola se fortalece nas reuniões mensais entre pais e professores. O encontro não serve tanto para abordar o comportamento das crianças em sala de aula, mas para saber de que maneira a família está interferindo na educação dos pequenos. Nos últimos encontros, por exemplo, tratou-se do tema pontualidade, algo que, se negligenciado, atrapalha a rotina escolar.

O conteúdo programático das escolas cubanas está determinado no chamado Livro Reitor, que norteia a Educação na ilha. É um programa ministerial: para todas as escolas do país, o ensino é o mesmo. Além de objetivos a serem atingidos por série, o Livro contém orientações metodológicas, não obrigatórias. Cada mestre tem sua própria maneira de ensinar, que depende da sua experiência em sala de aula, afirma Olga.

Ainda que na escola de Olidia existam professores com mais de 20 anos em sala de aula, também é função da vice-diretora monitorar as práticas didáticas que estão utilizando. Para saber como vai o processo de ensino e aprendizagem, Olidia percorre diariamente as classes, observa o comportamento de alunos e mestres. Além disso, acompanha o desempenho escolar dos estudantes, conversa com os pais e realiza reuniões com os professores. Também prepara aulas de metodologia, ministradas à noite na própria escola e freqüentadas por todo o corpo docente.

A luta continua
Encarnando o ideal Martiniano de que ser culto é o único modo de ser livre, Cuba persegue a meta de ter 100% de sua população alfabetizada. Desde 1961, quando começou a Campanha de Alfabetização, o governo se dedica especialmente a manter as taxas de escolaridade cada vez mais próximas do ideal. Para isso, em 2006, por exemplo, 19,4% do PIB foram investidos na área da Educação.

Outro projeto que completou cinco anos de atividades é a formação de Maestros Emergentes. Não satisfeito com a formação acadêmica tradicional de professores e com intuito de levar escolas a pontos cada vez mais distantes, Fidel criou grupos de estudo onde se formam docentes em menos de um ano. Qualquer pessoa que tenha segundo grau completo pode desempenhar a função.

O interessado começa a freqüentar cursos teóricos que incluem disciplinas tradicionais como Espanhol, Matemática, Historia e Geografia. Também são apresentados à metodologia de ensino e, aproximadamente em um ano, os novos docentes já estão aptos a ministrar classes. Essa fase culmina na própria escola, onde são preparados para a sala de aula. Mesmo depois que já estão inseridos no cotidiano escolar, seguem nessa atividade teórica e metodológica, para se desenvolverem ainda mais, destaca Olidia.

Olga Puentes faz questão de sublinhar a importância dessa colaboração. Na escola que dirige, dos 15 professores excluindo os especialistas três são emergentes. Mas há algumas escolas onde quase todos são dessa categoria. Nas secundárias, lembra a mestra que acumula 30 anos de experiência, a maioria tem licenciatura. Segundo a diretora, não existe discriminação entre os licenciados e os emergentes, além da evidente diferença de experiência. Esses três que tenho aqui são muito bons.

A política de formar professores emergenciais foi criada por necessidade, já que, na visão do governo cubano, o número de licenciados não alcançava a demanda. Para reverter o quadro, as escolas estão trabalhando com os próprios alunos, para que se interessem por carreiras pedagógicas. Além de um sistema parecido com o magistério brasileiro, onde estudantes do 12º ano podem optar pela licenciatura, os pequenos também são estimulados a descobrir essa vocação.

Já a partir da 4ª série, os professores estimulam na garotada o gosto pelo ensino. Em cada grau são eleitos monitores, os mais destacados em cada disciplina e a eles cabe responsabilidades como revisar tarefas e auxiliar os colegas na compreensão de algum tema. Uma vez ao mês, eles têm a oportunidade de ministrar uma aula previamente planejada com o mestre, conta Olidia. Nas séries iniciais a atividade não é obrigatória, mas se há interesse por parte do aluno, desenvolvem atividades semelhantes.

O magistério é minha vida

Sentada tranqüilamente em uma carteira ao lado do portão da escola, Sila Corona Torres cumprimenta cada aluno que chega. Atualmente está aposentada, depois de 38 anos de sala de aula. A paixão pela escola, no entanto, a fez procurar a administração, que lhe concedeu o cargo de recepcionista, para não se afastar das crianças.

Os dentes faltando indicam que a idade já avançou para a senhora, nascida em 1944, mas o tempo transcorrido não apaga de sua memória aquele ano. Em 1961, Sila Corona Torres freqüentava a escola secundaria e tinha 17 anos de idade. Não fazia parte de nenhum movimento revolucionário até então, mas conta que quando ouviu o chamado de Fidel Castro para a Campanha Nacional de Alfabetização, a vocação para a docência se despertou. Acompanhe seu depoimento:
O governo anterior não se preocupava com isso, havia muito analfabetismo, as pessoas não sabiam ler nem escrever. E graças ao Triunfo da Revolução, começamos essa campanha. A partir da chamada de Fidel Castro, muitos alfabetizadores se mobilizaram e entre eles, eu. Eu estava estudando secundário e quando veio o chamamento, me incorporei à campanha. Houve também muitos companheiros que ainda eram alunos, gente que tinha 14, 15 anos.
Muitos foram às montanhas, e os que não puderam, ficaram nos seus povoados mesmo. Porque na cidade também tinha problema de analfabetismo. Eu trabalhei com dois companheiros de um povoado chamado El Caino, no município de Havana. Marieta Pinhal, era uma mulher de 40 e poucos anos que aprendeu muito bem e Alfredo Goncalves, que tinha uns 60. Em menos de um ano, estavam alfabetizados. Eu os ensinei.

Ministrava minhas aulas nas suas casas, e vivia aqui na cidade. Porque não pude ir ao campo, por problema de saúde. Continuo vendo eles, todos os anos. O companheiro já faleceu, porque tinha 62 anos na época. Mas a companheira vive ali em Carlos III (Avenida de Centro Havana).

Conheci muita gente que foi para o campo, para a Sierra Maestra, que levaram a cabo a campanha se movendo pelas montanhas. Esses companheiros viviam na casa dos campesinos, repartiam a pouca comida que havia e dormiam em colchões no chão. Eram casinhas muito pobres e as aulas eram ministradas ali mesmo, no seio da família.

As boas lembranças são dos avanços comemorados pelos campesinos, quando já eram capazes de identificar algumas letras. Depois, as algumas palavras soltas, seus nomes. Por fim, já eram capazes de compor pequenas frases, saudações, recorda.

Senti-me muito orgulhosa depois que vi que estavam lendo e escrevendo, quando antes não sabiam nada. Esse foi o momento mais marcante. Isso foi o que me incentivou, continuei a estudar e me tornei professora, para ensinar também as crianças. Passei muito tempo dando aulas em uma escola primária durante o dia, e, pela noite, dava aulas aos campesinos que já sabiam ler e escrever algo. Quando recebi minha medalha me senti muito orgulhosa. A cerimônia foi lindíssima, num lugar muito bonito, as escadarias do Teatro Nacional de Havana, em 22 de dezembro de 61. Sinto me orgulhosa, por mim e por meus filhos, que são dois e vivem felizes por sua mãe.

Por outro lado, Sila fala das negras marcas deixadas pela perseguição aos alfabetizadores. Em um ano, muitos morreram, depois de brutalmente torturados.

Houve problemas porque havia muitos contra-revolucionários. No primeiro caso que me lembro, foram a casa de um campesino onde havia um alfabetizador, e mataram aos campesinos e ao jovem alfabetizador. Queriam interferir na campanha, mas não puderam porque todos os cubanos defenderam essa Revolução e estamos defendemos até hoje. Porque aqui em Cuba, nunca um campesino havia vivido como vive agora, eram muito mais pobres, muito mais necessitados¨.

A primeira batalha vencida, Sila segue na luta pela Educação. Acredita que hoje, os meios de aprendizagem são mais modernos, o que facilita a assimilação dos conteúdos. O próprio desenvolvimento da escolaridade contribui para a alfabetização no século XXI e para a formação cidadã.

Agora é distinto, antes a gente era analfabeta, não sabia nada. Quem sabe ler e escrever entende melhor tudo, se dá conta dos males da sociedade, sabe como ir adiante, resume.

A escola de Che

O professor Miguel de La Rosa Perez tem 48 anos de idade e há 29 vive no povoado de Manaca Ranzola, no município de Fomento, província de Sancti Spiritus. No pátio de sua casa exibe um privilégio raro entre os cubanos: a estátua em tamanho natural do argentino Che Guevara, doada por mexicanos. No mesmo lugar onde Miguel vive hoje com sua esposa, em 1958, Che instalou seu posto de comando, de onde emitiu as ordens que resultaram na rendição definitiva das tropas do ditador Fulgêncio Batista, na célebre batalha de Santa Clara a cerca de 40 km.

O casebre de alvenaria tem paredes brancas, janelas e portas em tom azul escuro. Um amplo jardim recebe os eventuais visitantes levados ao local pela curiosa homenagem a Che. Quase ninguém freqüenta aquelas ruelas de chão batido, com exceção dos 11 alunos de Miguel. No marco da porta principal da casa, pode-se ler Escuela Primaria Rural Silverio Blanco.

Auxiliado por uma jovem professora, que está concluindo o curso de docência, Miguel leciona para quatro turmas. Na 1ª série, apenas um aluno; quatro na 2ª, seis na 3ª e outros dois na 4ª. São duas salas de aula equipadas com televisão e videocassete e ainda três computadores, nos quais se fazem lições repassadas semanalmente por um técnico em informática que se desloca até o povoado. O mesmo acontece com as professoras de Educação Física e de Arte, por dois períodos semanais.

Na Escuela Silvério Blanco não há refeitório. Três dos 11 alunos sentam-se à mesa do mestre e comem a refeição preparada por sua esposa, que também é auxiliar de serviços gerais do local. Os demais alunos vão até suas casas para almoçar e retornam em seguida para o turno inverso, quando trocam os cadernos e lápis por ferramentas de jardinagem. A horta fornece legumes para o almoço e frutas para o lanche das crianças. A idéia de conhecimento aliado ao trabalho surgiu em 1966, com a criação das Escolas Rurais, onde os alunos dividem seu tempo entre os estudos e a agricultura.

Dados da Educação em Cuba
População total
11.245.000
Entre 0 e 14 anos: 2.024.100 (18%)
Entre 15 e 64 anos: 7.871.000 (70%)
Mais de 65 anos: 1.124.000 (10%)

População em idade escolar
845.922
Educação Infantil
100% matriculados
Ensino Fundamental
95% de meninas e 97% de meninos matriculados
Ensino Médio
87% de meninas e 86% de meninos matriculados

Total de escolas
Públicas
9029 primárias (6 a 11 anos)
1005 secundárias (12 a 14 anos)
Privadas
Não existem

Total de professores
90.867 em primárias
250 mil pedagogos

Alunos por sala de aula
10 (Unesco)
20 (Ministério da Educação)

Concluintes do Ensino Fundamental na idade correta 99%

Taxa de reprovação 0,1%

Taxa de evasão 0

Índice de analfabetismo
Jovens: 0
Adultos: 0,2%

Jornada diária
99,1% das crianças tem aulas em dois turnos (oito horas diárias). Nas escolas do campo, um dos turnos é destinado à tarefas da agricultura.

Formação dos professores
Cursos de licenciatura estão espalhados em todas as universidades do país. Há também os chamados Maestros Emergentes, categoria de estudantes egressos do ensino médio que realizam preparação intensiva em seis meses para lecionar. Nesse caso, os professores seguem recebendo lições dos mais experientes durante cerca de um ano. Na Educação Infantil, 16.619 são emergentes.

Piso dos professores de 1ª série
240 pesos (aproximadamente 10 dólares, valor do salário mínimo).

Investimento do Estado em Educação
19,4% do PIB

DE VOLTA ÀS TRADIÇÕES
No ano do centenário da Imigração Japonesa ao Brasil, é uma escola que recebe brasileiros no oriente que dá uma aula de respeito à diferença

A escola municipal Ishihamanishi, em Higashiura, província de Aichi, é a única em território nipônico a participar oficialmente da comemoração do Centenário da Imigração Japonesa ao Brasil. Para seus 90 alunos brasileiros (de um total de 300), isso tem um significado bem especial. Descendentes diretos do chamado “Fenômeno Dekassegui” – que desde a década de 90 levou 300 mil descendentes de japoneses e seus familiares “de volta” ao oriente – os pequenos não precisaram dos livros para aprender o significado da palavra imigrar.

Alguns não estiveram no Brasil mais do que uma ou duas vezes. Outros alternam a vida entre os dois países. De um jeito ou de outro, assim como seus avós, tiveram de aprender a viver no meio de duas culturas. Boa parte das escolas do arquipélago não dá bola para as diferenças culturais dos estrangeiros. Atua dentro das regras próprias da educação japonesa e espera que haja uma adaptação rápida aos hábitos locais. Os que não conseguem, são deixados de lado. Vítimas de preconceito dos colegas, muitos passam a ter vergonha das origens e tentam fingir que são japoneses. Se negam a falar em português e rejeitam os pais, que são motivo de constrangimento para os filhos, por não dominar o idioma local.

Na Ishihamanishi, que oferece do 1º ao 6º ano do Ensino Fundamental (chamado em japonês de shoogakkoo), a história era parecida. Localizada numa área de plantações e fábricas e vizinha de um danchi (moradia do governo muito procurada por estrangeiros pelo preço acessível), o número de estudantes de outros países, sobretudo do Brasil, só aumentou desde a década de 90. Não se sabia o que fazer com eles.

Foi então que, há cinco anos, o então recém-assumido diretor Yoshiaki Koyama percebeu que era era preciso tomar uma atitude – esperava-se que os não-japoneses voltassem logo a seus países, mas a realidade se mostrava diferente. Muitos, como Luis Guilherme Higa Katayama, de aluno do 5º ano, passaram a maior parte da vida no novo país e mal sabiam como é o Brasil. “Eu só morei lá até os dois anos, não me lembro de mais nada”, diz Luís.

A primeira decisão: tratar a todos com a mesma dedicação, independentemente da origem. O novo lema foi o ponto de partida para uma série de implementações, que mudaram o cotidiano da Ishihamanishi. Duas intépretes foram contratadas, além de uma assistente de classe que fala português. Criaram-se as salas de JSL (Japanese as Second Language), com três professores de língua japonesa para ajudar quem tem dificuldades em entender o conteúdo de classe. Percebendo que muitos faltavam na aula por motivos banais – como o frio e a chuva – os professores começaram a buscar os ausentes na porta de casa, um costume que até então só era aplicado aos nativos, além de ligar para saber de notícias em caso de ausências seguidas. E todos iniciaram um trabalho conjunto para dar um basta no preconceito.

Para aproveitar o conhecimento dos brasileirinhos nos conteúdos de sala de aula e melhorar a integração com os colegas japoneses, foi elaborada uma série de atividades multiculturais para serem feitas dentro e fora de aula.

Por exemplo, na disciplina de Tarefas Domésticas, a criançada foi para a cozinha preparar comidas dos dois países. Com ajuda das mães, todos aprenderam a tradicional receita japonesa de udon – macarrão de trigo ensopado – e a nossa irresistível coxinha.

Para resgatar a história dos antepassados, os brasileiros do 6ª ano tiveram uma atividade especial. Quando a aula de Estudos Sociais abordou a Era Meiji (1868-1912), abriu-se um espaço especial para falar de Imigração. Uma avó japonesa, que tinha partido para a América do Sul e depois retornou às origens como dekassegui, contou sua história. Com base no depoimento, os alunos procuraram fotos antigas na internet e escreveram textos nas duas línguas para explicar o material. Assim, eles entenderam um pouco mais sobre a própria história e o percurso que sua família seguiu até retornar ao Japão.

Lição para os pais

“Mas só isso não adianta, pois, muitas vezes, a influência vem de casa. Se os país brasileiros têm preconceito e não gostam de japoneses – e vice-versa –, as crianças repetem o comportamento na escola”, afirma Lucia Ikenami, assistente de classe. O jeito foi pôr os adultos para aprender também. Em junho do ano passado, a escola transformou uma reunião obrigatória do ensino nipônico – em que os pais acompanham um dia dos filhos na escola – numa tremenda festa multicultural. Normalmente realizado de dia, o encontro mudou para o sábado à noite, de modo que os pais brasileiros – que trabalham até 12 horas por dia e dificilmente têm folga – pudessem participar. Depois de ver os filhos na aula, famílias das duas nacionalidades assistiram a apresentações de música verde-amarela tocada com instrumentos orientais, capoeira e taiko (tambor nipônico). Tudo com o apoio de membros da comunidade local.

As crianças parecem aprovar os esforços. “Eu gosto de tudo aqui”, diz Beatriz Komaru, da 6ª série, que só esteve duas vezes no Brasil e fala com fluência as duas línguas. Mas os desafios ainda são grandes. Escolas como a Ishihamanishi se deparam freqüentemente com problemas como o aprendizado incompleto dos dois idiomas, as mudanças excessivas de colégio por conta da troca constante de emprego dos pais, a dificuldade em se adaptar aos hábitos locais e o temido ijime, palavra em japonês para os maus-tratos sofridos dos colegas, chamado em inglês de bullying.

Neste ano, o diretor Koyama quer ampliar as atividades de integração, aproveitando que o Centenário da Imigração se aproxima. Uma delas vai levar dez alunos do colégio – entre brasileiros e japoneses – a uma cerimônia oficial em Tokyo, na qual poderão declamar uma mensagem sobre a convivência multicultural ao primeiro-ministro japonês Yasuo Fukuda e a uma comitiva do governo do Brasil. Foram as próprias crianças que se candidataram para participar – o pré-requisito era escrever uma redação sobre o Centenário (a mensagem foi feita com partes das composições). “O Brasil aceitou os japoneses há cem anos, então chegou a hora de nós mostrarmos nossa gratidão. Por isso, acho que essa data não é apenas para festividades. Os brasileiros precisam ter seus direitos como moradores do Japão, entre eles o de poder estudar e ir para a faculdade, assim como qualquer japonês”, afirma o diretor.
Dados da Educação no Japão
População total do país: 127.053.000
População em idade escolar
Educação Infantil (0 a 5 no Brasil) 1.738.766
Ensino Fundamental (6 a 14 no Brasil)10.823.873
Ensino Médio (15 a 17 no Brasil)3.605.242

Número total de escolas no país
Educação Infantil (0 a 5 no Brasil) 13.949
Ensino Fundamental (6 a 14 no Brasil) 34.158
Ensino Médio (15 a 17 no Brasil) 5.418
Públicas 5.595 (Infantil) 33.252 (Fundamental) 4.917 (Médio)
Privadas 8.354 (Infantil) 915 (Fundamental) 1.321 (Médio)
Total de professores
Educação Infantil (0 a 5 no Brasil) 110.393
Ensino Fundamental (6 a 14 no Brasil)665.527
Ensino Médio (15 a 17 no Brasil)251.408
Média de alunos por sala de aula 27
Porcentagem de crianças que freqüentam a Educação Infantil. 58,4%
Porcentagem de alunos que concluem o Ensino Fundamental na idade correta 100%, pois não existe reprovação no Ensino Fundamental.
Taxa de reprovação Zero.
Taxa de evasão 2,4%
Índice de analfabetismo do país 0,02%
Quantas horas as crianças ficam por dia na escola 6 horas
Formação dos professores Nível superior.
Piso dos professores de 1ª série Cerca de 3.500 reais.
Investimento do Estado em Educação 3,5% do PIB

Dados de 2005 fornecidos pelo Ministério de Educação, Cultura, Esportes, Ciência e Tecnologia do Japão

Fontes:
Thiago Minami (Higashiura, Japão). De volta às tradições.
Naira Hofmeister (Havana, Cuba). A Revolução na sala de aula
Vanessa Moura. Ecco, abiamo arte!
Revista Nova Escola.
http://revistaescola.abril.com.br/