quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Dalton Trevisan (Maria Pintada de Prata)


Num estilo que parte dos lugares-comuns da linguagem urbana brasileira, recriados pela introdução de originalíssimas metáforas, Dalton Trevisan conseguiu criar uma marca própria como ficcionista.

Mas o que verdadeiramente fascina em seus contos é a construção de um cenário comum para os mesmos: Curitiba. Cidade feroz - símbolo de todas as grandes cidades brasileiras - em suas ruas mal-iluminadas as pessoas espreitam as outras, em busca de uma companhia para a noite.

Alguém já disse que na Curitiba de Dalton Trevisan as pessoas vivem apenas para o amor.Apenas que esse amor curitibano não tem nada a ver com aquele amor que pressupomos autêntico.

A humanidade gerada pelo ventre disforme de Curitiba não tem autenticidade: sua forma de amar é degradada, feita de erros, instinto bestial, medo, ressentimento, tédio, traição, vingança e crime.

MARIA PINTADA DE PRATA

Grandalhão, voz retumbante, é adorado pelos filhos. João não vive bem com Maria - ambiciosa, quer enfeitar a casa de brincos e tetéias. Ele ganha pouco, mal pode com os gastos mínimos.

Economiza um dinheirinho, lá se foi com a asma do guri, um dente de ouro da mulher. Ela não menos trabalhadeira: faz todo o serviço, engoma a roupinha dos meninos, costura as camisas do marido.

Inconformada porém da sorte, humilhando o homem na presença da sogra.Para não discutir ele apanha o chapéu, bate a porta, bebe no boteco. Um dos pequenos lhe agarra a ponta do paletó:

- Não vá, pai. Por favor, paizinho.

Comove-se de ser chamado de paizinho. Relutante, volta-se para a fulana: em cada olho um grito castanho de ódio.

- O paizinho vai dar uma volta.

Tão grande e forte, embriaga-se fácil com alguns cálices. Estado lastimável, atropelando as palavras, é o palhaço do botequim.

E, pior que tudo, sente-se desgraçado, quer aconchego do corpo gostoso da mulher.

Mais discutem, mais ele bebe e falta dinheiro em casa. Maria se emboneca, muito pintada e gasta pelos trabalhos caseiros.

Desespero de João e escândalo das famílias, a pobre senhora, feia e nariguda, canta no tanque e diante do espelho as mil marchinhas de carnaval.

Os filhos largados na rua, ocupada em depilar sobrancelhas e encurtar a saia - no braço o riso de pulseiras baratas.Com uma vizinha de má fama inscreve-se no programa de calouros:

- Sou artista exclusiva - ufana-se, com sotaque pernóstico. - A féria é gorda!

Aos colegas de rádio oferece salgadinhos e cerveja. João escapole pelos fundos, envergonhado da barba por fazer. Volta bêbado e Maria tranca a porta do quarto, obrigado a dormir no sofá da sala.

Noite de inverno, o filho mais velho, ao escutá-lo gemer, traz um cobertor.

- Durma, paizinho.

A cada sucesso de Maria - o quinto prêmio de marchinha, o retrato no jornal, a carta com pedido de autógrafo:

- Ela ainda recebe vaia - é o comentário de João. - Com uma boa vaia ela aprende!

Ó não - essa aí quem é de cabelo oxigenado? Acompanhada a casa, horas mortas, pelo parceiro de vida artística. Ora o cantor de tangos, ora o mágico de ciências ocultas.

Demora-se aos beijos na porta e as mães proíbem as crianças de brincar com os dois meninos. João sabe que é o fim - dona de casa que tinge o cabelo não é séria. Vai dormir puxado na lenha, encolhido na enxerga imunda, a garrafa na mão.

Dois dias fechado (assusta-lhe a própria força e jamais bate nos filhos), urra palavrão e desfere murro na parede. Maria faz as malas e, sem que os pequenos se despeçam de João, muda-se para casa dos pais.

Lá deixa os meninos e amiga-se com um pianista de clube noturno. Mais uma bailarina, que obriga os clientes a beber. O pianista, vicioso e tísico, toma-lhe o dinheiro e, se a féria não é gorda, ainda apanha.

Cansada de surra, volta à casa dos pais. Então a velha sai em busca de João e sugere as pazes.

- Ela que fique onde está. Não quero Maria nem pintada de prata.

Despedido da fábrica por embriaguez, sobrevive com biscates. Ao vestir o paletó, da manga surge uma cobra e, aos berros, lança-o no fogo.

Aranha cabeluda morde-lhe a nuca; inútil esmagá-la com o sapato, de uma nascem duas e três - enrodilha-se medroso a um canto e esconde nos joelhos a cabeça.

Domingo recebe a visita dos filhos, enviados pela sogra. Divertem-se no Passeio Público a espiar os macaquinhos. O pai compra amendoim e pipoca, que os três mastigam delicados.

Afasta-se de mansinho e, atrás de uma árvore, empina a garrafa saliente no bolso traseiro da calça - as mãos cessam de tremer. Os meninos desviam os olhos: sapato furado, calça rasgada, paletó sem botão. Alisando a mão gigantesca:

- Não, paizinho. Não beba mais, pai.

Lágrimas correm pelo narigão de cogumelo encarnado. Despede-se com sorriso sem dentes. Esquina gorgoleja a cachaça até a última gota.

Em delírio na sarjeta, recolhido três vezes ao hospício. A crise medonha da desintoxicação, solto quinze dias mais tarde. Mal cruza o portão, entra no primeiro boteco.

Maria cai nos braços do mágico de ciências ocultas e, proibida de cantar com voz tão horrorosa, consola-se no tanque de roupa.

Nem o amante nem os velhos querem saber dos piás, internados no asilo de órfãos.

Cada um aprende seu ofício e, no último domingo do mês, com permissão da freira, vão bem penteadinhos à casa do pai.

Ainda deitado, curte a ressaca; com alguns goles sente-se melhor. Os pequenos varrem a casa, acendem o fogo, olhinho irritado pela fumaça. No almoço apresentam café com pão e salame rosa.

Sentado na cama, o pai contenta-se em vê-los comer. Sorri em paz, um deles enxuga-lhe o suor frio da testa.

Sem coragem de abandoná-lo, os filhos a seu lado durante a noite: fala bobagem, treme da cabeça aos pés, bolhas de escuma espirram no canto da boca.

Os meninos adormecem, ouvindo o ronco feio do afogado. O maior acorda no meio da noite, vai espiar o pai em sossego, olho branco.

Fala com ele, não se mexe. Tem medo e chama o irmão:

- O paizinho morreu.

Sem chorar, encolhidos na beira da cama, à escuta dos pardais da manhã.

Fonte:
- Webvestibular
- 20 Contos Menores”, Editora Record – Rio de Janeiro, 1979, pág. 43.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 341)

Uma Trova Nacional
Uma Trova Potiguar

O contraste que amargura
a maioria indefesa
é uns, com tanta fartura,
e tantos sem pão na mesa!
–CLARINDO BATISTA/RN–

Uma Trova Premiada

2002 - “Rádio” Ouro Fino/MG
Tema: MENINO DA PORTEIRA - 1º Lugar.

Vi meu drama retratado
numa canção boiadeira;
se a saudade é o boi malvado,
sou "menino da porteira"!
–PEDRO ORNELLAS/SP–

Uma Trova de Ademar

No lamaçal da favela,
tomba a criança sem vida...
Era esse o destino dela
e o de uma bala perdida!...
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Com esse encanto expressivo,
que de modéstia se veste,
NATAL é um presépio vivo
que Deus armou no Nordeste !
–ÉLTON CARVALHO/RJ–

Simplesmente Poesia

Céu Peregrino
–BRASIGÓIS FELÍCIO/GO–

Quanto sonho
e quanta ilusão
hei empenhado
em perder para o futuro
o sopro dos dias
que tenho tido!

Tenho vivido
como Sísifo absurdo,
para tudo cair no olvido
em que tudo cai,
ao fim de tudo.

Hoje sou peregrino
do céu que posso ter
à luz de um sol que É.

Estrofe do Dia

O globo girando sobra
mas seu eixo continua,
e o homem se perpetua
pela dimensão da obra,
o banco da morte cobra
com juros e correção,
e essa terrível inflação
um só real não perdoa,
passa a vida o tempo voa
nas asas da ilusão.
–JOMACI DANTAS/PB–

Soneto do Dia

Confessional
–GLAUCO MATTOSO/SP–

Amar, amei. Não sei se fui amado,
pois declarei amor a quem odiara
e a quem amei jamais mostrei a cara,
de medo de me ver posto de lado.

Ainda odeio quem me tem odiado:
devolvo agora aquilo que declara.
Mas quem amei não volta, e a dor não sara.
Não sobra nem a crença no passado.

Palavra voa, escrito permanece,
garante o adágio vindo do latim.
Escrito é que nem ódio, só envelhece.

Se serve de consolo, seja assim:
amor nunca se esquece, é que nem prece.
Tomara, pois, que alguém reze por mim…

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Machado de Assis (O Alienista) XI – O Assombro de Itaguaí; XII – O final dos § 4º.


CAPÍTULO XI - O ASSOMBRO DE ITAGUAÍ

E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila ao saber um dia que os loucos da Casa Verde iam todos ser postos na rua.

—Todos?

—Todos.

—É impossível; alguns sim, mas todos...

—Todos. Assim o disse ele no ofício que mandou hoje de manhã à Câmara

De fato o alienista oficiara à Câmara expondo: — 1': que verificara das estatísticas da vila e da Casa Verde que quatro quintos da população estavam aposentados naquele estabelecimento; 2° que esta deslocação de população levara-o a examinar os fundamentos da sua teoria das moléstias cerebrais, teoria que excluía da razão todos os casos em que o equilíbrio das faculdades não fosse perfeito e absoluto; 3° que, desse exame e do fato estatístico, resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto, que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto; 4o que à vista disso declarava à Câmara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde e agasalhar nela as pessoas que se achassem nas condições agora expostas; 5° que, tratando de descobrir a verdade científica, não se pouparia a esforços de toda a natureza, esperando da Câmara igual dedicação; 6º que restituía à Câmara e aos particulares a soma do estipêndio recebido para alojamento dos supostos loucos, descontada a parte efetivamente gasta com a alimentação, roupa, etc.; o que a Câmara mandaria verificar nos livros e arcas da Casa Verde.

O assombro de Itaguaí foi grande; não foi menor a alegria dos parentes e amigos dos reclusos. Jantares, danças, luminárias, músicas, tudo houve para celebrar tão fausto acontecimento. Não descrevo as festas por não interessarem ao nosso propósito; mas foram esplêndidas, tocantes e prolongadas.

E vão assim as coisas humanas! No meio do regozijo produzido pelo ofício de Simão Bacamarte, ninguém advertia na frase final do § 4º, uma frase cheia de experiências futuras.

CAPÍTULO XII - O FINAL DO § 4º.

Apagaram-se as luminárias, reconstituíram-se as famílias, tudo parecia reposto nos antigos eixos. Reinava a ordem, a Câmara exercia outra vez o governo sem nenhuma pressão externa; o presidente e o vereador Freitas tornaram aos seus lugares. O barbeiro Porfírio, ensinado pelos acontecimentos, tendo "provado tudo", como o poeta disse de Napoleão, e mais alguma coisa, porque Napoleão não provou a Casa Verde, o barbeiro achou preferível a glória obscura da navalha e da tesoura às calam idades brilhantes do poder; foi, é certo, processado; mas a população da vila implorou a clemência de Sua Majestade; daí o perdão. João Pina foi absolvido, atendendo-se a que ele derrocara um rebelde. Os cronistas pensam que deste fato é que nasceu o nosso adágio:—ladrão que furta ladrão tem cem anos de perdão;—adágio imoral, é verdade, mas grandemente útil.

Não só findaram as queixas contra o alienista, mas até nenhum ressentimento ficou dos atos que ele praticara; acrescendo que os reclusos da Casa Verde, desde que ele os declarara plenamente ajuizados, sentiram-se tomados de profundo reconhecimento e férvido entusiasmo. Muitos entenderam que o alienista merecia uma especial manifestação e deram-lhe um baile, ao qual se seguiram outros bailes e jantares. Dizem as crônicas que D. Evarista a princípio tivera idéia de separar-se do consorte, mas a dor de perder a companhia de tão grande homem venceu qualquer ressentimento de amor-próprio e o casal veio a ser ainda mais feliz do que antes.

Não menos íntima ficou a amizade do alienista e do boticário. Este concluiu do ofício de Simão Bacamarte que a prudência é a primeira das virtudes em tempos de revolução e apreciou muito a magnanimidade do alienista, que ao dar-lhe a liberdade estendeu-lhe a mão de amigo velho.

—É um grande homem, disse ele à mulher, referindo aquela circunstância.

Não é preciso falar do albardeiro, do Costa, do Coelho, do Martim Brito e outros especialmente nomeados neste escrito; basta dizer que puderam exercer livremente os seus hábitos anteriores. O próprio Martim Brito, recluso por um discurso em que louvara enfaticamente D. Evarista, fez agora outro em honra do insigne médico—"cujo altíssimo gênio, elevando as asas muito acima do sol, deixou abaixo de si todos os demais espíritos da terra".

— Agradeço as suas palavras, retorquiu-lhe o alienista, e ainda me não arrependo de o haver restituído à liberdade.

Entretanto, a Câmara que respondera o ofício de Simão Bacamarte com a ressalva de que oportunamente estatuiria em relação ao final do § 4°, tratou enfim de legislar sobre ele. Foi adorada sem debate uma postura, autorizando o alienista a agasalhar na Casa Verde as pessoas que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. E porque a experiência da Câmara tivesse sido dolorosa, estabeleceu ela a cláusula de que a autorização era provisória, limitada a um ano, para o fim de ser experimentada a nova teoria psicológica, podendo a Câmara antes mesmo daquele prazo mandar fechar a Casa Verde, se a isso fosse aconselhada por motivos de ordem pública. O vereador Freitas propôs também a declaração de que, em nenhum caso, fossem os vereadores recolhidos ao asilo dos alienados: cláusula que foi aceita, votada e incluída na postura apesar das reclamações do vereador Galvão. O argumento principal deste magistrado é que a Câmara legislando sobre uma experiência científica, não podia excluir as pessoas dos seus membros das conseqüências da lei; a exceção era odiosa e ridícula. Mal proferira estas duas palavras, romperam os vereadores em altos brados contra a audácia e insensatez do colega; este, porem, ouviu-os e limitou-se a dizer que votava contra a exceção.

—A vereança, concluiu ele, não nos dá nenhum poder especial nem nos elimina do espírito humano.

Simão Bacamarte aceitou a postura com todas as restrições. Quanto à exclusão dos vereadores, declarou que teria profundo sentimento se fosse compelido a recolhê-los à Casa Verde; a cláusula, porém, era a melhor prova de que eles não padeciam do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. Não acontecia o mesmo ao vereador Galvão, cujo acerto na objeção feita, e cuja moderação na resposta dada às invectivas dos colegas mostravam da parte dele um cérebro bem organizado; pelo que rogava à Câmara que lho entregasse. A Câmara sentindo-se ainda agravada pelo proceder do vereador Galvão, estimou 0 pedido do alienista e votou unanimemente a entrega.

Compreende-se que, pela teoria nova, não bastava um fato ou um dito para recolher alguém à Casa Verde; era preciso um longo exame, um vasto inquérito do passado e do presente. O Padre Lopes, por exemplo, só foi capturado trinta dias depois da postura, a mulher do boticário quarenta dias. A reclusão desta senhora encheu o consorte de indignação. Crispim Soares saiu de casa espumando de cólera e declarando às pessoas a quem encontrava que ia arrancar as orelhas ao tirano. Um sujeito, adversário do alienista, ouvindo na rua essa noticia, esqueceu os motivos de dissidência, e correu à casa de Simão Bacamarte a participar-lhe o perigo que corria. Simão Bacamarte mostrou-se grato ao procedimento do adversário, e poucos minutos lhe bastaram para conhecer a retidão dos seus sentimentos, a boa-fé, o respeito humano, a generosidade; apertou-lhe muito as mãos, e recolheu-o à Casa Verde.

—Um caso destes é raro, disse ele à mulher pasmada. Agora esperemos o nosso Crispim.

Crispim Soares entrou. A dor vencera a raiva, o boticário não arrancou as orelhas ao alienista. Este consolou o seu privado, assegurando-lhe que não era caso perdido; talvez a mulher tivesse alguma lesão cerebral; ia examiná-la com muita atenção; mas antes disso não podia deixá-la na rua. E, parecendo-lhe vantajoso reuni-los, porque a astúcia e velhacaria do marido poderiam de certo modo curar a beleza moral que ele descobrira na esposa, disse Simão Bacamarte:

—O senhor trabalhará durante o dia na botica, mas almoçará e jantará com sua mulher, e cá passará as noites, e os domingos e dias santos.

A proposta colocou o pobre boticário na situação do asno de Buridan. Queria viver com a mulher, mas temia voltar à Casa Verde; e nessa luta esteve algum tempo, até que D. Evarista o tirou da dificuldade, prometendo que se incumbiria de ver a amiga e transmitiria os recados de um para outro. Crispim Soares beijou-lhe as mãos agradecido. Este último rasgo de egoísmo pusilânime pareceu sublime ao alienista.

Ao cabo de cinco meses estavam alojadas umas dezoito pessoas; mas Simão Bacamarte não afrouxava; ia de rua em rua, de casa em casa, espreitando, interrogando, estudando; e quando colhia um enfermo levava-o com a mesma alegria com que outrora os arrebanhava às dúzias. Essa mesma desproporção confirmava a teoria nova; achara-se enfim a verdadeira patologia cerebral. Um dia conseguiu meter na Casa Verde o juiz de fora; mas procedia com tanto escrúpulo que o não fez senão depois de estudar minuciosamente todos os seus atos e interrogar os principais da vila. Mais de uma vez esteve prestes a recolher pessoas perfeitamente desequilibradas; foi o que se deu com um advogado, em quem reconheceu um tal conjunto de qualidades morais e mentais que era perigoso deixá-lo na rua. Mandou prendê-lo; mas o agente, desconfiado, pediu-lhe para fazer uma experiência; foi ter com um compadre, demandado por um testamento falso, e deu-lhe de conselho que tomasse por advogado o Salustiano; era o nome da pessoa em questão.

—Então parece-lhe...?

—Sem dúvida: vá, confesse tudo, a verdade inteira, seja qual for, e confie-lhe a causa.

O homem foi ter com o advogado, confessou ter falsificado o testamento e acabou pedindo que lhe tomasse a causa. Não se negou o advogado; estudou os papéis, arrazoou longamente, e provou a todas as luzes que o testamento era mais que verdadeiro. A inocência do réu foi solenemente proclamada pelo juiz e a herança passou-lhe às mãos. O distinto jurisconsulto deveu a esta experiência a liberdade.

Mas nada escapa a um espírito original e penetrante. Simão Bacamarte, que desde algum tempo notava o zelo, a sagacidade, a paciência, a moderação daquele agente, reconheceu a habilidade e o tino com que ele levara a cabo uma experiência tão melindrosa e complicada, e determinou recolhê-lo imediatamente à Casa Verde; deu-lhe todavia um dos melhores cubículos.

Os alienados foram alojados por classes. Fez-se uma galeria de modestos; isto é, os loucos em quem predominava esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de verídicos, outra de símplices, outra de leais, outra de magnânimos, outra de sagazes, outra de sinceros, etc. Naturalmente as famílias e os amigos dos reclusos bradavam contra a teoria; e alguns tentaram compelir a Câmara a cassar a licença. A Câmara porém, não esquecera a linguagem do vereador Galvão, e, se cassasse a licença, vê-lo-ia na rua e restituído ao lugar; pelo que, recusou. Simão Bacamarte oficiou aos vereadores, não agradecendo, mas felicitando-os por esse ato de vingança pessoal.

Desenganados da legalidade, alguns principais da vila recorreram secretamente ao barbeiro Porfírio e afiançaram-lhe todo o apoio de gente, de dinheiro e influência na corte, se ele se pusesse à testa de outro movimento contra a Câmara e o alienista. O barbeiro respondeu-lhes que não; que a ambição o levara da primeira vez a transgredir as leis, mas que ele se emendara, reconhecendo o erro próprio e a pouca consistência da opinião dos seus mesmos sequazes; que a Câmara entendera autorizar a nova experiência do alienista, por um ano: cumpria, ou esperar o fim do prazo, ou requerer ao vice-rei, caso a mesma Câmara rejeitasse o pedido. Jamais aconselharia o emprego de um recurso que ele viu falhar em suas mãos e isso a troco de mortes e ferimentos que seriam o seu eterno remorso.

— O que é que me está dizendo? perguntou o alienista quando um agente secreto lhe contou a conversação do barbeiro com os principais da vila.

Dois dias depois o barbeiro era recolhido à Casa Verde.— Preso por ter cão, preso por não ter cão! exclamou o infeliz.

Chegou o fim do prazo, a Câmara autorizou um prazo suplementar de seis meses para ensaio dos meios terapêuticos. O desfecho deste episódio da crônica itaguaiense é de tal ordem e tão inesperado, que merecia nada menos de dez capítulos de exposição; mas contento-me com um, que será o remate da narrativa, e um dos mais belos exemplos de convicção científica e abnegação humana.
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continua… Capitulo XIII, final – Plus Ultra!
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Fonte:
ASSIS, Machado de. O Alienista.

Assis Brasil (Concerto Campestre)


Concerto Campestre, de Luís Antonio de Assis Brasil, é, numa definição redutora, uma alegoria sobre um tempo (meados do século passado) e um lugar (as fronteiras vazias dos pampas) do Rio Grande do Sul e que o autor apresenta em plena decadência moral, social e política.

Há os nascidos ali e os intrusos, e todos giram à volta do Major Antônio Eleutério de Fontes que, cansado de mandar e ser obedecido, delega na esposa, D. Brígida, a sua prepotência para se dedicar ao mecenato da música. Faz isso com tanta generosidade que não se conhece nas aldeias e cidades mais próximas quem possua orquestra própria (a Lira Santa Cecília) de melhor qualidade. Com dois filhos boçais e uma filha bonita, Clara Vitória, o Major transfere para a sua orquestra grande parte do seu afeto e do seu dinheiro, para desespero silencioso de D. Brígida, que não se resigna a que se gaste tanto dinheiro com a música, mas que não pode, por dever social, hostilizar publicamente o marido. Assim, tudo parece correr sobre as rodas: há dinheiro, a orquestra já toca afinada e até há um fazendeiro rico e de boa figura para casar com Clara Vitória; e há um padre que tudo abençoa: a música e a felicidade, o amor, o bem-viver, a boa comida. Há um senão: um maestro femeeiro arranjado pelo padre, que o Major instalou no quarto de hóspedes, ao lado do quarto da filha. O resultado desta vizinhança foi catastrófico. Curiosamente, é o Major quem reage de forma mais violenta: expulsa Clara Vitória grávida, dá cabo da Lira Santa Cecília e ia dando cabo do fazendeiro que julgou ser o responsável pela afronta, para sorte do Maestro, a quem só restou fugir.

É uma narrativa realista tradicional, do ponto de vista da linguagem e da estrutura da obra.

O que logo ressalta em Concerto Campestre é o conhecimento da história, na sua multiplicidade de envolvências. E é esse conhecimento que provoca no leitor a certeza que está revivendo a verdade de um tempo e de um lugar que, tratada sob a forma de ficção, toca as fronteiras mágicas do fantástico. Daí, o encantamento deste livro, apoiado por uma escrita de grande rigor formal, que respira, alegoricamente, ao ritmo musical, fraseado por andamentos que alternam, por oposição, entre o suave e o forte, entre o trágico e o cômico, entre o sossego lírico e a inquietação dos medos.

Com esse rigor narrativo, Assis Brasil define as personagens do seu romance, através de traços fortes, porventura caricaturais, tornando-as paradigmáticas das diversas classes sociais que povoam os pampas do Rio Grande do Sul de então e que o autor descreve de forma radiográfica. E assim, ele imbrica as personagens nas sucessivas situações a que estão sujeitas, sem nunca perder a sua colocação no tempo ou no lugar e não deixando que estes se sobreponham ao desenvolvimento dos conflitos. Para tanto utilizou "pinceladas" de envolvência discretas, mas suficientemente definidoras de um surpreendente sentido plástico.

Flui mansa a narrativa de Concerto campestre e nela se inserem informações, indicando que muitas outras haviam sido, até então, subtraídas. Anunciam, ao fim de capítulo, uma situação de crise que irá determinar a continuação do relato sem que, no entanto, ocorram mudanças no seu ritmo.

O primeiro capítulo narra a chegada do Maestro na fazenda e de seus progressos frente à orquestra; brevemente, de suas relações com a família do estancieiro. Nas últimas linhas, informa, e quase nada o fizera prever, da paixão de Clara Vitória por ele.

O segundo capítulo retoma o dia em que o Maestro chegou para narrar dos primeiros interesses de Clara Vitória: espiara pela fresta da cortina enquanto ele, sentado, esperava que o fazendeiro lesse a carta que trazia. Os repetidos encontros e as palavras trocadas e o perceber-lhe os movimentos no quarto ao lado vão arquitetando os sentimentos.

Nas últimas linhas do segundo capítulo, a inesperada revelação: o esgueirar-se de Clara Vitória fora de casa para entrar no quarto do Maestro e lá ficar até de madrugada. Então, novamente, a volta da narrativa para um momento anterior e, assim completar o que não fora dito e, outra vez, tratar dos sucessos da orquestra para terminar o terceiro capítulo com uma nova revelação.

São três momentos da narrativa em que, primeiramente é anunciado um fato inesperado, abruptamente como um relâmpago, levando a um retorno no tempo e a um relato linear que o irá completar, mostrando o quanto Concerto campestre é um romance de exímia construção. Também feita de alguma graça, de alguma crítica, do sábio dizer dessa música que se eleva nos campos, da sedução do personagem feminino, buscando seu destino para, então, aceitar-lhe os desígnios.

O que torna Concerto campestre um momento de extraordinária vitalidade, no conjunto notável da ficção de Luiz Antonio de Assis Brasil, é a transfiguração de duas vertentes, ambas presentes desde seus primeiros textos.

A primeira é a vertente crítica, que vem do desejo de revisar a História, com notado influxo social.

Em Concerto campestre, curiosamente, a vertente crítica não se mostra apenas como formulação discursiva, mas como forma de conceber o mundo. Ao invés de seguir apenas a racionalidade mimética da narrativa tradicional, Assis Brasil acolhe, na lógica do texto, mundos simultâneos que alteram as passagens entre o universo mimético e real e a insurgência do sonho, do alegórico e do espectral. A oposição real-imaginário, como captação de matéria ficcional determina, por sua vez, a articulação da novela como forma acabada e redonda, semelhante ao poema, onde cada elemento ocupa um determinado espaço, não podendo ser alterado ou substituído.

Se pela vertente irônica Concerto campestre pune a sociedade e os costumes com a ironia, o pastiche, a paródia, ao mesmo tempo que relata o debater-se inútil das vítimas, fantoches de um mundo decaído, pela segunda vertente, a obra instaura o grotesco como manifestação formal de uma ordem de mundo essencialmente barroca. As antíteses poderosas deslocam-se da forma tradicional e compõem a ordenação do universo novelesco, como se pode ler fartamente através das articulações das personagens e dos demais elementos narrativos. A seleção de episódios, por sua vez, manifestam as oposições desses mundos em que a chuva de sangue é o castigo bíblico: a ordem fora rompida. A fantasmagoria da videira, o caráter sepulcral da tapera onde Clara Vitória será confinada pelo pai, deixam claro tratar-se de texto que trabalha a alegoria barroca.

Mais uma vez, chama a atenção o modo hábil como Assis Brasil apresenta suas personagens, sempre justificadas pela ação que realizam. Não obstante, o narrador experiente dos romances anteriores surpreende o crítico ao deformá-las propositadamente, acentuando-lhes os traços definidores. Essa deformação caricaturesca, própria da sátira, transforma os entes humanos em marionetes rígidas, a moverem-se mecanicamente.

Note-se, porém, que na Estância de Fontes, o jogo das distorções grotescas não é gratuito. Pode-se entendê-lo como montagem parodística e, portanto, como paródia de uma literatura edificante que se mostra, no caso, pervertida. E essa é a sua qualidade. O cômico deformante impõe mais a reflexão do que o riso. E se, no início da narrativa, julga-se perceber no aguçamento caricatural das personagens o zelo de um crítico da sociedade, como ensina Kayser, os acontecimentos irão mostrar que o grotesco, como categoria da estética barroca, reside propriamente na mistura de coisas incompatíveis: de um lado, os dramas mais cruéis da vida; de outro, o riso contrafeito das máscaras.

Em Concerto campestre o autor ultrapassa a crítica à sociedade: farsa e tragédia, máscara e face não se deixam separar. Não obstante, a máscara deixa a face - e isso ocorre quando Clara Vitória e o Maestro encolhem-se diante das circunstâncias, reconhecendo seus limites e sua pequenez. Resistindo ao desespero, separam-se, embora mantendo um amor sem projetos, desejo epifânico de que tudo terminasse bem. A experiência dolorosa do Maestro, no decorrer dos concertos na Estância, fizera-o ver o fosso que separava os dois mundos, o dos pardos e dos pobres e o mundo dos brancos e ricos, cujos códigos ele jamais poderia atingir. Como na commedia del'arte, a fuga dos amantes para além da sociedade, dos amigos, da lei, de tudo converte-se em fuga do mundo. Os pressentimentos, as súbitas consciências da insânia cometida, a relação conflituosa entre o Vigário, Deus e os escravos, que mais sofriam do que pecavam, confirmam a alegoria dos mundos antagônicos.

Entretanto, a confusão entre aparência e realidade decorre também da própria concepção dos sentidos e de seus deslocamentos: se ouvir, isso não é com a orelha, é com a alma, e se ouve-se também com os olhos, como dizia o músico Rossini, certamente um alter-ego do escritor, Concerto campestre tem de ser lido como um poema. A frase melódica, a harmonia formal recobrem, paradoxalmente, o jogo de distorções grotescas nessa comédia moralizante contra a natureza cruel do homem.

Resumo

A história acontece numa fazenda do interior gaúcho, em meados do século XIX. O fazendeiro e charqueador é o Major Antônio Eleutério de Fontes, casado, dois filhos, uma filha, Clara Vitória.

O fazendeiro mantém em sua propriedade rural uma pequena orquestra, vista por alguns de seus vizinhos como uma extravagância absurda, um desperdício de dinheiro.

O livro explica que o Major acumulou recursos contrabandeando gado e vendendo aos dois lados da Guerra dos Farrapos.

Passando por sua fazenda, dois índios missioneiros, músicos, encantaram o Major com seus instrumentos. Interessado, a partir daí, cada vez mais, por música, o Major acaba montando a orquestra, tendo contratado como regente um mineiro conhecido por 'Maestro'. A escolha deste sujeito foi feita a partir da indicação do vigário de São Vicente, povoado próximo à fazenda: o vigário queria livrar o Maestro de complicações amorosas. A orquestra recebe o nome de Lira Santa Cecília e causa indignação em D. Brígida, esposa do Major.

Todavia, D. Brígida tem como grande preocupação encaminhar o casamento da filha Clara Vitória.

Na propriedade de Antônio Eleutério há um lugar com poderes místicos, o 'boqueirão': trata-se de uma tapera, local ermo e de difícil acesso, que, no entanto, dá excelentes uvas, onde ninguém costuma pisar.

Com o tempo, a Lira Santa Cecília vai ficando famosa: os concertos na fazenda são concorridos, a orquestra vai tocar em Rio Pardo. O Major compra novos uniformes e aumenta o salário dos músicos. Até aqui o livro é quase uma crônica, relatando amenidades e curiosidades.

Eis que aparece o nó da trama: Clara Vitória, a única filha, já encaminhada para o casamento com o Silvestre Pimentel, sobrinho e possível herdeiro de um fazendeiro vizinho que está doente, apaixona-se pelo Maestro. Em retrospectiva, a obra nos mostra Clara Vitória, enquanto posava, mesmo sem vontade, de futura esposa de Silvestre Pimentel, fazia visitas noturnas ao alojamento do Maestro, passava lá a noite, voltando para seu quarto pouco antes do amanhecer.

O segundo elemento em importância da orquestra, um músico velho e experiente, apelidado Rossini, sabe do caso e, amante de óperas, prevê um final operístico para a história.

A tensão da obra aumenta quando Clara se descobre grávida. Vai escondendo de todos enquanto é possível; ao visitar a parteira, vê que não é mais possível interromper a gravidez. Numa audição da orquestra, Clara passa mal. O vigário desconfia, pressiona a menina, ela confessa. O vigário já desconfiava de algo, mas não imaginava que a história envolvesse o Maestro. Chama Silvestre para antecipar o casamento. O noivo topa. Vai à fazenda com a mesma proposta, que é rechaçada de imediato pelo Major. Até que D. Brígida descobre: 'Você está grávida!'.

Segue-se uma consternação na família. D. Brígida dá uma surra em Clara que é protegida pelas criadas. O Major sai para fazer 'o que deve ser feito': justiça. Mas, todos eles - o Major, D. Brígida, os familiares - pensam que o pai da futura criança é o noivo Silvestre Pimentel. O Major vai à casa de Silvestre para matá-lo. Silvestre tenta dialogar, mas o major atira, atingindo o ex-noivo. Volta para casa e avisa D. Brígida que matou o sujeito. Mais tarde, descobre-se que Silvestre apenas ficara ferido. Antônio Eleutério toma as decisões: expulsa Clara Vitória de casa, obrigando-a a viver sozinha no boqueirão; proíbe qualquer pessoa, com exceção do capataz, de aproximar-se do local, mantendo inclusive vigilância armada; não mais permite a citação do nome de Clara na residência.

Em meio a este desenredo familiar, tudo em volta se transtornou. D.Brígida não sabe o que faz da vida; o Major passa os dias solitário, quieto, tendo inclusive desativado a orquestra Lira Santa Cecília. O Maestro, na impossibilidade de ver Clara, abandona a fazenda e vai para Porto Alegre. Seu amigo Rossini ainda faz previsões: 'Ainda não ocorreu o último ato desta ópera. E eu não quero perder'.

O Maestro e Rossini tentam sobreviver em Porto Alegre. Numa noite, abandonando uma ópera no meio do espetáculo, o Maestro pergunta a Rossini, que conhecia o final da história: 'Como termina?'. 'Em casamento', responde o amigo. Enquanto o Maestro angustiava-se em Porto Alegre, sofrendo pela separação de Clara, o Major Antônio Eleutério ia definhando, já perdendo a razão. E Clara vivia solitária, exilada na tapera abandonada, vivendo consigo mesma, com a natureza que a cercava e com imagens do passado, confusas em sua mente. Ajudada somente pela criada, Clara tem seu bebê: é uma menina.

Num momento mágico, o Maestro redescobre a partitura de uma música que compusera para Clara. Toca a peça na missa em Porto Alegre, horrorizando o Bispo, Despedido, retorna com Rossini e os outros músicos à estância do Major. A ressurreição da Lira Santa Cecília reanima o Major. Mas Antônio Eleutério já está definitivamente perturbado. Ordena um concerto no qual ele é o único assistente. Briga com a mulher, que resolve abandoná-lo. Em meio a uma chuva, na presença do vigário, vendo seu mundo desmoronado, suicida-se. O maestro dirige-se ao 'boqueirão'. Rossini aplaude, como se estivesse na platéia de uma ópera. Final feliz:

Ela foi até a margem, tirou a roupa e lavou-se. Estava assim, meio submersa, refrescando-se na delícia da tarde, quando sentiu que alguém vinha em sua direção, atravessando as águas. E logo soube quem era, sempre saberia dali por diante, pelos anos afora: não precisou cobrir-se, nem correr de vergonha, apenas abriu os braços e entregou-se ao primeiro beijo de todos os beijos de sua longa vida.

Fonte:
Passeiweb

terça-feira, 20 de setembro de 2011

A. A. de Assis (Trovas Ecológicas) - 19

Teófilo Braga (O Caldo de Pedra)


Um frade andava ao peditório; chegou à porta de um lavrador, mas não lhe quiseram aí dar nada. O frade estava a cair com fome, e disse:

– Vou ver se faço um caldinho de pedra. E pegou numa pedra do chão, sacudiu-lhe a terra e pôs-se a olhar para ela para ver se era boa para fazer um caldo. A gente da casa pôs-se a rir do frade e daquela lembrança. Diz o frade:

– Então nunca comeram caldo de pedra? Só lhes digo que é uma coisa muito boa.

Responderam-lhe:

– Sempre queremos ver isso.

Foi o que o frade quis ouvir. Depois de ter lavado a pedra, disse:

– Se me emprestassem aí um pucarinho.

Deram-lhe uma panela de barro. Ele encheu-a de água e deitou-lhe a pedra dentro.

– Agora se me deixassem estar a panelinha aí ao pé das brasas.

Deixaram. Assim que a panela começou a chiar, disse ele:

– Com um bocadinho de unto é que o caldo ficava de primor.

Foram-lhe buscar um pedaço de unto. Ferveu, ferveu, e a gente da casa pasmada para o que via. Diz o frade, provando o caldo:

– Está um bocadinho insosso; bem precisa de uma pedrinha de sal.

Também lhe deram o sal. Temperou, provou, e disse:

-Agora é que com uns olhinhos de couve ficava que os anjos o comeriam.

A dona da casa foi à horta e trouxe-lhe duas couves tenras. O frade limpou-as, e ripou-as com os dedos deitando as folhas na panela.

Quando os olhos já estavam aferventados disse o frade:

– Ai, um naquinho de chouriço é que lhe dava uma graça...

Trouxeram-lhe um pedaço de chouriço; ele botou-o à panela, e enquanto se cozia, tirou do alforge pão, e arranjou-se para comer com vagar. O caldo cheirava que era um regalo. Comeu e lambeu o beiço; depois de despejada a panela ficou a pedra no fundo; a gente da casa, que estava com os olhos nele, perguntou-lhe:

– Ó senhor frade, então a pedra?

Respondeu o frade:

– A pedra lavo-a e levo-a comigo para outra vez.

E assim comeu onde não lhe queriam dar nada.

Fontes:
Projeto Vercial
Imagem = http://www.cm-almeirim.pt/

Teófilo Braga (1843 – 1924)


Joaquim Teófilo Fernandes Braga (Ponta Delgada, 24 de Fevereiro de 1843 — Lisboa, 28 de Janeiro de 1924) foi um político, escritor e ensaísta português. Estreia na literatura em 1859 com Folhas Verdes. Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, fixa-se em Lisboa em 1872, onde leciona literatura no Curso Superior de Letras (atual Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa). Da sua carreira literária contam-se obras de história literária, etnografia (com especial destaque para as suas recolhas de contos e canções tradicionais), poesia, ficção e filosofia, tendo sido ele o introdutor do Positivismo em Portugal.

Teófilo Braga nasceu na cidade de Ponta Delgada, ilha de São Miguel, nos Açores, filho de Joaquim Manuel Fernandes Braga, oriundo de Braga, engenheiro militar e oficial do exército miguelista e posteriormente professor de Matemática e Filosofia no Liceu de Ponta Delgada, e de Maria José da Câmara Albuquerque, natural da ilha de Santa Maria. Os pais estavam ligadas a famílias da aristocracia. O pai fazia parte da expedição miguelista enviada para os Açores no início da Guerra Civil Portuguesa, tendo sido feito prisioneiro na tomada da ilha de São Miguel pelas forças liberais e desterrado para a ilha de Santa Maria, onde conheceu a futura esposa, originária da melhor aristocracia daquela ilha.

Foi o último dos sete filhos do primeiro casamento de seu pai, dos quais cinco faleceram na infância. A mãe também faleceu precocemente a 17 de Novembro de 1846, quando Teófilo tinha apenas 3 anos de idade. A sua morte, e a má relação que teria com a madrasta, com quem seu pai casou dois anos depois, marcaram decisivamente o seu temperamento fechado e agreste.

Iniciou muito cedo actividade profissional, empregando-se na tipografia do jornal A Ilha, de Ponta Delgada, no qual também colaborou como redator. Nesse período colaborou com outros periódicos da ilha de São Miguel, entre os quais os jornais O Meteoro e O Santelmo.

Frequentou o Liceu de Ponta Delgada e em 1861 partiu para Coimbra, cidade em cujo Liceu concluiu o ensino secundário. Apesar de ter saído de Ponta Delgada com a intenção de cursar Teologia e enveredar por uma carreira eclesiástica, em 1862 optou pela matrícula no curso de Direito da Universidade de Coimbra.

Enquanto estudante em Coimbra, face a uma ajuda paterna insuficiente, trabalhou como tradutor e recorreu a explicações e à publicação de artigos e poemas para financiar os seus estudos. Fortemente influenciado pelas teses sociológicas e políticas positivismo, cedo aderiu aos ideais republicanos.

Aluno brilhante, quando em 1867 terminou o curso foi convidado pela Faculdade de Direito a doutorar-se, o que fez defendendo em 26 de Julho de 1868 uma tese intitulada História do Direito Português: I: Os Forais. Contudo, a sua pública adesão aos ideais republicanos levaram a que fosse preterido quando em 1868 concorreu para professor da cadeira de Direito Comercial na Academia Politécnica do Porto. O mesmo sucedeu em 1871 quando concorreu para o cargo de lente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Fixou-se então em Lisboa, iniciando a sua actividade como advogado e, nesse mesmo ano de 1868, casou com Maria do Carmo Xavier, irmã de Júlio de Matos, de quem teve três filhos. Tanto a esposa como os filhos faleceram muito jovens, ela em 1911, os filhos antes dessa data, sendo pois já viúvo e sem filhos quando ascendeu ao cargo de Presidente da República.

A 18 de Maio de 1871 foi um dos doze signatários[8] do programa das Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, interrompidas por uma portaria do também açoriano António José de Ávila, ao tempo presidente do Governo.

Em 1872, concorreu a lente da cadeira de Literaturas Modernas do Curso Superior de Letras, sendo provido no lugar na sequência de um concurso onde teve como opositores Manuel Pinheiro Chagas e Luciano Cordeiro.

No Curso Superior de Letras dedica-se ao estudo da literatura europeia, com destaque para os autores franceses, e iniciou uma carreira académica que o levou a publicar uma extensa obra filosófica fortemente influenciada pelo positivismo de Auguste Comte. Essa influência positivista foi decisiva no seu pensamento, na sua obra literária e na sua atitude política, fazendo dele um dos mais destacados membros da geração doutrinária do republicanismo português.

Em 1878 fundou e passou a dirigir com Júlio de Matos a revista O Positivismo. Nesse mesmo ano iniciou a sua ação na política ativa portuguesa concorrendo a deputado às Cortes da Monarquia Constitucional Portuguesa integrado nas listas dos republicanos federalistas. A partir desse ano exerceu vários cargos de destaque nas estruturas do Partido Republicano Português.

Em 1880 passou a colaborar com a revista A Era Nova. Nesse mesmo ano, com Ramalho Ortigão, organizou as comemorações do Tricentenário de Camões, momento alto da articulação do Partido Republicano, de onde sai com grande prestígio. As comemorações camoneanas foram encaradas por Teófilo Braga como uma aplicação do projeto positivista de substituir o culto a Deus e aos santos pelo culto aos grandes homens.

A partir de 1884 passa a dirigir a Revista de Estudos Livres, em parceria com Teixeira Bastos, um seu antigo aluno no Curso Superior de Letras que se revelaria como um dos principais divulgadores do positivismo em Portugal.

Colaborou ainda no jornal humorístico A Comédia Portuguesa, começado a editar em 1888.

Em 1890 foi pela primeira vez eleito membro do diretório do Partido Republicano Português (PRP). Nessa condição, a 11 de Janeiro de 1891 foi um dos subscritores do Manifesto e Programa do PRP, em cuja elaboração colaborara. Este manifesto, e a sua apresentação pública, precederam em três semanas a Revolta de 31 de Janeiro de 1891, no Porto, à qual Teófilo Braga, como aliás a maioria dos republicanos lisboetas, se opôs.

Em 1 de Janeiro de 1910 torna-se membro efetivo do diretório político, conjuntamente com Basílio Teles, Eusébio Leão, José Cupertino Ribeiro e José Relvas.

A 28 de Agosto de 1910 é eleito deputado republicano por Lisboa às Cortes monárquicas, não chegando contudo a tomar posse por entretanto ocorrer a implantação da República Portuguesa.

Por decreto publicado no Diário do Governo de 6 de Outubro do mesmo ano é nomeado presidente do Governo Provisório da República Portuguesa saído da Revolução de 5 de Outubro de 1910. Naquelas funções foi de facto chefe de Estado, já que o primeiro Presidente da República Portuguesa, Manuel de Arriaga, apenas foi eleito a 24 de Agosto de 1911.

Quando Manuel de Arriaga foi obrigado a resignar do cargo de Presidente da República, na sequência da Revolta de 14 de Maio de 1915, Teófilo Braga foi eleito para o substituir pelo Congresso da República, a 29 de Maio de 1915, com 98 votos a favor, contra um voto de Duarte Leite Pereira da Silva e três votos em branco. Sendo um Presidente de transição, face à demissão de Manuel de Arriaga, cumpriu o mandato até ao dia 5 de Outubro do mesmo ano, sendo então substituído por Bernardino Machado. Foi a sua última participação na vida política ativa.

Já viúvo quando da sua eleição, após o mandato, Teófilo Braga, que desde que enviuvara passara a ser um misógino enfiado na sua biblioteca, isolou-se, dedicando-se-se quase em exclusivo à escrita. Faleceu só, no seu gabinete de trabalho, a 28 de Janeiro de 1924

Obras

A vasta obra de polígrafo de Teófilo Braga cobre áreas vastas, da poesia e da ficção à filosofia, à história da cultura e à historiografia crítico-literária, e excede os 360 títulos, não contando com os artigos dispersos pela imprensa da época. Abrange temas tão diversos como o da História Universal, História do Direito, da Universidade de Coimbra, do teatro português e da influência de Gil Vicente naquela forma de manifestação artística, da Literatura Portuguesa, das novelas portuguesas de cavalaria e do romantismo e das ideias republicanas em Portugal. Também inclui artigos de polémica literária e política e ensaios biográficos, como o referente a Filinto Elísio.

Como investigador das origens dos povos, seguiu a linha da análise dos elementos tradicionais desde os mitos, passando pelos costumes e terminando nos contos de tradição oral, que lhe permitiram escrever obras como Os Contos Tradicionais do Povo Português (1883), O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições (1885) e História da Poesia Portuguesa, obra em que levou anos a trabalhar, procurando as suas origens nas várias épocas e escolas.

A presença de Teófilo Braga no pensamento português é pautada pela forma como defendeu o ideal positivista, que alcançara considerável projeção da segunda metade do nosso século XIX. Todavia, na fase inicial da sua evolução intelectual, Teófilo foi um pensador romântico. Daí o seu interesse pelas manifestações espirituais do povo português, desde a literatura à religião, à arte, às tradições e aos costumes, aspecto que aliás nunca abandonaria a sua conformação intelectual, mesmo depois da adesão ao positivismo. A esta fase pertencem obras como História da Poesia Popular Portuguesa (1867); Romanceiro Geral (1867-69); Contos Populares do Arquipélago Açoriano (1869); História do Direito Português -- Os Forais (1868); História da Literatura Portuguesa - Introdução (1870).

Nesta fase, marcado por um intrínseco patriotismo, que nunca o abandonaria, partiu em busca do espírito do seu povo, que julgava poder encontrar no período anterior ao triunfo da monarquia absoluta e dos modelos de inspiração clássica, na linha de Michelet e de Vico. Em Vico, dissera Teófilo ter encontrado o interesse pelo estudo das tradições das raças, através dos símbolos com que a humanidade exprimia as suas aspirações, traduzidas nos contos populares, nos mitos, nas lendas, nas alegorias, nas fábulas.

Assim prosseguiu até à década de setenta em que, mergulhado o país na conjuntura política do fontismo, se deixou envolver pela dinâmica das ideias de Augusto Comte. Desde então, o universo das suas preocupações alarga-se com a atenção que passa a dedicar à sociologia e à organização política das sociedades, norteado pelo poderoso ideal republicano. Deixa-se então seduzir pelo triunfalismo positivista, defendendo que à segunda metade do século XIX estava destinada a realização plena da última fase do espírito, com a entrada final da consciência no estado positivo e com a consequente transformação pacífica das instituições políticas e sociais, que, a não operar-se, geraria fenómenos revolucionários de trágicas consequências . Entre as obras mais marcantes deste período contam-se:Traços Gerais de Filosofia Positiva (1877) e Sistema de Sociologia (1884).

Daí também o seu crescente interesse pela história das ideias -- neste caso das ideias republicanas -- e das instituições, com relevo para a sua monumental História da Universidade de Coimbra (1892-1902). À luz de uma concepção unilinear e universalizante, deitando o passado no leito precursor do estado positivo e do republicanismo, considerou, na sua História Universal-Esboço de Sociologia Descritiva (1879-82) que a história era uma «filosofia concreta, na qual a parte narrativa é a escolha dos factos e a filosofia é a conexão íntima que os explica», traçando as vias e os meios «por onde cada presente procede de cada passado». A confluência necessária entre a história e a filosofia radicava na necessidade de deduzir, através da multiplicidade dos factos «as leis gerais, e por assim dizer, orgânicas da vida», as quais, uma vez submetidas à grande síntese, permitiriam descortinar a realização do que chamava «a lei primária que dirige o movimento fatal».

Assim, atribuiu tanto à história universal como à história de Portugal um curriculum bem ordenado, da infância à maturidade, e num defendido paralelismo entre a filogénese e a ontogénese, rumo a um estado final em que o espírito humano renunciaria, definitivamente, à indagação do absoluto, tendência característica dos seus momentos de infância, aprendendo antes a circunscrever os factos, no domínio estrito da observação e da experimentação, com posterior coordenação geral que à filosofia positiva incumbiria. Curiosamente, essa história, a partir do estado positivo, atingira o seu cume, sendo então o progresso nada mais do que o desenvolvimento da ordem, e assim, a historicidade dos fenómenos sociais era admitida na medida em que sublinhava a perenidade desse último e definitivo degrau da evolução.

Deve notar-se, no entanto, que o positivismo de Teófilo, como de um modo geral o positivismo em Portugal, não acompanhou em tudo as ideias de Comte. Em primeiro lugar nunca nos deixámos seduzir pelo ideal conteano de um estado ditatorial e de um governo forte, inimigo do sufrágio. Sob este ponto de vista Teófilo bateu-se arduamente pelos ideais de uma democracia republicana.

Por outro lado, também não colheram entre nós as teses conteanas sobre a religião da humanidade, predominando antes um vincado anticlericalismo. Nestes dois aspectos, Teófilo seguiu mais as ideias de Littré que as do pai do positivismo.

Finalmente, é de sublinhar o esforço a que se entregou, nos Traços Gerais de Filosofia Positiva, para completar o sistema de Augusto Comte, chamando a atenção para a importância da psicologia, a que Comte não atendera.

No positivismo, na sua extraordinária base científica, na classificação ordenada e hierarquizada dos saberes, desde a matemática à sociologia encontrou, como ele próprio escreveu, a possibilidade de «dar disciplina a esse desalento, o fazer-nos compreender, através dos actos descoordenados das pessoas, a marcha evolutiva das coisas, livrando-nos da fascinação revolucionária que nos levaria à desgraça».

Por isso se orientou para a tarefa de colocar as instituições políticas de acordo com a nova consciência do século, liberto das tentações revolucionárias que animavam os socialistas seus companheiros da Geração de 70, com relevo para Antero e Oliveira Martins, marcando-o o primado da «questão política». Preocupava-o o facto de o estado da consciência moderna estar em manifesta dessincronia com as instituições políticas vigentes em Portugal, vendo o nascimento dessa mesma consciência no século XVII europeu, marcado pelo apogeu das ciências.

Esse foi o projeto que norteou a sua História das Ideias Republicanas em Portugal, e de um modo mais geral, toda a sua filosofia da história: «A história, determinando com clareza o advento das ideias democráticas, levará os espíritos dirigentes à previsão da marcha para uma formação política não remota; e dessa previsão resultará uma maior coordenação política do trabalho, e desse trabalho uma revivescência nacional».

Determinismo e previsibilidade, por um lado, ordem e progresso pelo outro, tais eram as balizas fundamentais com que enquadrava o movimento das sociedades.

Todavia, a questão que legitimamente se coloca a partir de um esquema desta natureza é a da liberdade de disposição dos indivíduos e dos grupos. A liberdade para Teófilo é directamente proporcional à capacidade de compreender e dar expressão às necessidades de evolução orgânica da humanidade, rematando em texto síntese da sua História Universal - Esboço de sociologia descritiva: «pela história se descobre o justo limite até onde o homem pode individualmente exercer ação sobre a sociedade; como um meio, a sociedade domina fatalmente o indivíduo nos costumes, nas noções usuais, pela forma das instituições, mas por seu turno, o homem reage sobre esse meio transformando-o, elevando-o, convertendo os seus movimentos empíricos em racionais».

Queria isto dizer que os fenómenos sociais podiam ser dirigidos nas mesmas condições em que a natureza submetia ao homem os fenómenos físicos e químicos. Por isso, o conhecimento era a primeira condição da liberdade e do combate social eficaz e progressivo, realçando a exigência de uma liberdade que se pratica e se exerce, seja pela liberdade de consciência que se expressa na liberdade dos cultos, seja pela liberdade de ensino, pela liberdade de imprensa, pela liberdade política e pela liberdade civil, facetas, cada uma a seu modo do que chamou «liberdade filosófica».

É interessante notar que a filosofia da história unilinear e universalizante que perfilhou, na esteira de Comte, não matou no seu espírito a antiga tendência romântica, continuando nesta fase o seu trabalho a pesquisa dos factores que individualizariam a nossa raça (A Pátria Portuguesa - O Território e a Raça, 1894; O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições, 1885), vindo a desenvolver a muito contestada teoria do moçarabismo, mediante a qual nos diferenciaríamos dos restantes povos da Península.

Aliás, a este respeito, deixou-se seduzir, na senda dos grandes espíritos portugueses da segunda metade do século XIX, pelo federalismo, mas, curiosamente, de «base étnica», ou «orgânica», relativa esta ao respeito pelas singulares características da raça portuguesa, nunca pondo em causa a soberania nacional, tema que desenvolve com mais pormenor na sua História das Ideias Republicanas.

Poesia

Visão dos Tempos (1864)
Tempestades Sonoras (1864)
Torrentes (1869)
Miragens Seculares (1884)

Ficção

Contos Fantásticos (1865) (eBook)
Viriato (1904) (eBook)

Ensaio

As Teocracias Literárias -­ Relance sobre o Estado Actual da Literatura Portuguesa (1865) (eBook)
História da Poesia Moderna em Portugal (1869)
História da Literatura Portuguesa [Introdução] (1870)
História do Teatro Português (1870 - 1871) - em 4 volumes
Teoria da História da Literatura Portuguesa (1872)
Manual da História da Literatura Portuguesa (1875)
Bocage, sua Vida e Época (1877)
Parnaso Português Moderno (1877)
Traços gerais da Filosofia Positiva (1877)
História do Romantismo em Portugal (1880)
Sistema de Sociologia (1884)
Camões e o Sentimento Nacional (1891)
História da Universidade de Coimbra (1891 - 1902) - em 4 volumes
História da Literatura Portuguesa (1909 - 1918) - em 4 volumes

Antologias e recolhas

Antologias: Cancioneiro Popular (1867)
Contos Tradicionais do Povo Português (1883)
O cancioneiro portuguez da Vaticana (eBook)
Floresta de vários romances (eBook)

Fontes:
wikipedia
Instituto Camões

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 340)

Uma Trova Nacional

–JEANETTE DE CNOP/PR–

Uma Trova Potiguar

Por mais, notória, a cultura,
que em versos, se vê, à prova,
é transformada em candura,
ante a ternura, da trova...
–FABIANO WANDERLEY/RN–

Uma Trova Premiada

2009 - Projeto-Vida Melhor/SP
Tema: PERDÃO - 2º Lugar.

Perdão é a esponja macia
que se passa numa ofensa
por se crer na luz do dia
contra a noite da descrença.
–NILTON MANOEL/SP–

Uma Trova de Ademar

Uma carícia envolvente,
quando no peito se inflama,
transforma-se em chama ardente
no coração de quem ama!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Diz ser amarga a fatia
do pão que come, e nem vê
que do seu pão, cada dia,
quem faz a massa é você.
–ALICE ALVES NUNES/DF–

Simplesmente Poesia

Paixão
–VIVI VIANA/RN–

“Penso em ti...
Sonhos e medos atormentam meu ser
sofro a condenação por te querer
choro, gosto, quero, não quero...
E assim vive minha pobre alma
tentando desvendar
o livro do teu ser.”

Estrofe do Dia

Num sopro de nostalgia
a tarde flameja tensa
por cumprir sua sentença
de morrer no fim do dia,
a noite medrava fria
trazendo um raro torpor,
e não querendo se opor
em soluços pranteava;
a noite escura chorava
obrigando o sol se por.
–HÉLIO CRISANTO/RN–

Soneto do Dia

A Rua dos Cataventos
–MARIO QUINTANA/RS–

Dorme, ruazinha... E tudo escuro...
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranquilos.

Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro...
Nem guardas para acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos...

O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme, ruazinha... Não há nada...

Só os meus passos... Mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração…

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Pedro Ornellas (Trovas: Saudade é…) Parte 3 e 4


Trovas que Definem Saudade

41
Que este consolo recolhas
da existência consumida:
saudades são verdes folhas
nos ramos secos da vida...
Luiz Rabelo - Natal RN

42
Vou definir a saudade
e não sei se estarei certo:
saudade é aquela vontade
de que o longe fique perto.
Luiz Carlos Abritta – Belo Horizonte MG

43
Dia e noite em algazarra,
depois que te viu partir,
a saudade é uma cigarra
que não me deixa dormir...
Izo Goldman – São Paulo SP

44
A saudade é como o espinho
que entra no peito da gente:
no início – dói um pouquinho,
depois... dói profundamente!
Edmilson Ferreira Macedo - BA

45
Saudade é a areia moída,
que, devagar, grão por grão,
cai da ampulheta da vida
e pousa no coração.
Amélia Tomaz - RJ

46
Saudade, lembrança acesa,
não de um amor que passou,
mas, sim, com toda certeza,
daquele amor que ficou! ...
Antônio Vanzella - São Bernardo do Campo-SP

47
Saudade!... Raio de lua,
suprindo o Sol que brilhou...
Tábua solta, que flutua,
depois que o amor naufragou!
Waldir Neves – Rio de Janeiro RJ

48
Meu amor foi-se acabando...
mas a saudade chegou:
– chuva boa refrescando
o chão que o sol causticou.
Lilinha Fernandes – Rio de Janeiro RJ

49
Saudade! Bendita mágoa,
que inesperada nos vem,
cristalina gota d’água
dos olhos tristes de alguém.
Antídio Azevedo - RN

50
Vi teu retrato, revivo
um velho amor que foi meu...
A saudade é um negativo
de foto que se perdeu...
J. G. de Araújo Jorge – Nova Friburgo RJ

51
Presença eterna do ausente,
perfume em frasco vazado,
saudade é sombra incoerente
num coracão apagado.
Dorothy Moretti – Sorocaba SP

52
Saudade – rede vazia
a balançar tristemente...
ninando a melancolia
que dorme dentro da gente.
Anis Murad – Rio de Janeiro RJ

53
Saudade, uma imensa conta,
com juro que sempre dobra.
Se chega um dia a tal monta
vem a solidão e cobra!
Francisco Macedo – Natal RN

54
A saudade é um bem guardado
que nos volta, de repente,
num presente do passado,
quando o passado é presente.
Maria Nascimento Carvalho – Rio de Janeiro RJ

55
Saudade é a incontida ânsia
que me faz, sem ser peão,
querer domar a distância
no dorso de uma paixão!
José Ouverney – Pinda SP

56
Saudade, quase se explica
nesta trova que te dou:
Saudade é tudo que fica
daquilo que não ficou.
Luiz Otávio - Rio de Janeiro RJ

57
Saudade palavra doce
que traduz tanto amargor;
saudade é como se fosse
espinho cheirando a flor...
Bastos Tigre – Recife PE

58
Saudade é tarde chorando
um tempo em que foi aurora,
ao ver a noite levando
o brilho do sol embora.
Adélia Victória Ferreira – São Paulo SP

59
Quando estás longe, querida,
na minha angstia sem fim,
saudade é o nome da vida
que morre dentro de mim...
J. G. de Araújo Jorge – Nova Friburgo RJ

60
Saudade, ninguém por certo
a definiu deste jeito:
– saudade é um mundo deserto
que temos dentro do peito!
Dulce Siqueira - PE

61
Saudade – lembrança triste
de tudo que já não sou...
Passado que tanto insiste
em fingir que não passou!
Edgard Barcelos Cerqueira – Rio de Janeiro RJ

62
Saudade, sombra querida
de um alguém que já se quis...
Felicidade perdida,
final de um sonho feliz.
Edna A. de Souza – Resende RJ

63
Saudade - palavra triste -
que nos remete à alegria,
pois essa dor só persiste
em quem foi feliz, um dia...
Andra Valladares - Portugal

64
Saudade... uma velha estrada...
um rancho que o mato invade...
uma porteira quebrada...
um lar sem fogo... Saudade...
Esther dos Santos – Rio de Janeiro RJ

65
Saudade... Divina essência...
É tudo quanto ficou
do bem que à nossa existência
a vida trouxe e levou.
Ana Rolão Preto – Benguela, Angola

66
Toda saudade consiste
neste contraste evidente:
uma alegria tão triste
numa ausência tão presente.
João Rangel Coelho – Rio de Janeiro RJ

67
Saudade – estranha ilusão
que a solidão recompensa;
presença no coração
maior que a própria presença!
J. G. de Araújo Jorge - Nova Friburgo RJ

68
Saudade... perfume triste
de uma flor que não se vê.
Culto que ainda persiste
num crente que já não crê.
Menotti Del Pichia – São Paulo SP

69
Saudade, coisinha atoa
com que tanto me comovo,
lembrança de coisa boa
que se deseja de novo.
Vicente Guimarães –Rio de Janeiro RJ

70
Saudade é chuva caída
na calha do coração;
é centelha revivida,
em noite de escuridão!
Carlos Cunha – São Luís MA

71
Ao mesmo tempo em que mata,
mata e faz viver também...
Saudade é dor que maltrata,
maltrata fazendo bem!
Pedro Emílio de Almeida e Silva - RJ

72
És, saudade, realmente,
artesã que em hábil lida,
encaderna, no presente,
páginas soltas da vida...
João Paulo Ouverney – Pinda SP

73
Do nosso amor acabado
não pode esquecer, a gente...
Porque a saudade é o passado
que nunca sai do presente.
Lilinha Fernandes – Rio de Janeiro RJ

74
Saudade, meu bem, existe
nessa distância sem fim!
- É tudo aquilo de triste
que te separa de mim...
Aparício Fernandes – Acari RN

75
Saudade é o tempo guardado
dentro do peito da gente...
nó, que se dá no passado
e se desfaz no presente.
Francisco Pessoa – Fortaleza CE

76
Saudade!... Foto em pedaços,
que eu colei, com mão tremida,
tentando compor os traços
de quem rasgou minha vida!...
Waldir Neves – Rio de Janeiro RJ

77
Vou definir a saudade
em claro e bom português:
A saudade é uma vontade
de fazer tudo outra vez...
Ana Cecília Ferri Soares – SP

78
Saudade, luz pequenina,
nas sombras da solidão.
No entanto, como ilumina
as trevas do coração!
Maria Izabel Miranda – Rio de Janeiro RJ

79
Percorrendo triste rota,
só quem amou é que sente...
- A Saudade é uma gaivota
planando dentro da gente...
Pedro Melo – São Paulo SP

80
A saudade, uma constância
nos trilhos da solidão,
é um trem que apita à distância,
mas nunca chega à estação!...
João Freire Filho – Rio de Janeiro RJ

Fonte:
Trovas enviadas por Pedro Ornellas

Lima Barreto (Porque não se Matava)


Esse meu amigo era o homem mais enigmático que conheci. Era a um tempo taciturno e expansivo, egoísta e generoso, bravo e covarde, trabalhador e vadio. Havia no seu temperamento uma desesperadora mistura de qualidades opostas e, na sua inteligência, um encontro curioso de lucidez e confusão, de agudeza e embotamento.

Nós nos dávamos desde muito tempo. Aí pelos doze anos, quando comecei a estudar os preparatórios, encontrei-o no colégio e fizemos relações. Gostei da sua fisionomia, da estranheza do seu caráter e mesmo ao descansarmos no recreio, após as aulas, a minha meninice contemplava maravilhada aquele seu longo olhar cismático, que se ia tão demoradamente pelas coisas e pelas pessoas.

Continuamos sempre juntos até à escola superior, onde andei conversando; e, aos poucos, fui verificando que as suas qualidades se acentuavam e os seus defeitos também.

Ele entendia maravilhosamente a mecânica, mas não havia jeito de estudar essas coisas de câmbio, de jogo de bolsa. Era assim: para umas coisas, muita penetração; para outras, incompreensão.

Formou-se, mas nunca fez uso da carta. Tinha um pequeno rendimento e sempre viveu dele, afastado dessa humilhante coisa que é a caça ao emprego.

Era sentimental, era emotivo; mas nunca lhe conheci amor. Isto eu consegui decifrar, e era fácil. A sua delicadeza e a sua timidez faziam a compartilha com outro, as coisas secretas de sua pessoa, dos seus sonhos, tudo o que havia de secreto e profundo na sua alma.

Há dias encontrei-o no chope, diante de uma alta pilha de rodelas de papelão, marcando com solenidade o número de copos bebidos.

Foi ali, no Adolfo, à Rua da Assembléia, onde aos poucos temos conseguido reunir uma roda de poetas, literatos, jornalistas, médicos, advogados, a viver na máxima harmonia, trocando idéias, conversando e bebendo sempre.

E uma casa por demais simpática, talvez a mais antiga no gênero, e que já conheceu duas gerações de poetas. Por ela, passaram o Gonzaga Duque, o saudoso Gonzaga Duque, o B. Lopes, o Mário Pederneiras, o Lima Campos, o Malagutti e outros pintores que completavam essa brilhante sociedade de homens inteligentes.

Escura e oculta à vista da rua, é um ninho e também uma academia. Mais do que uma academia. São duas ou três. Somos tantos e de feições mentais tão diferentes, que bem formamos uma modesta miniatura do Silogeu.

Não se fazem discursos à entrada: bebe-se e joga-se bagatela, lá ao fundo, cercado de uma platéia ansiosa por ver o Amorim Júnior fazer sucessivos dezoitos.

Fui encontrá-lo lá, mas o meu amigo se havia afastado do ruidoso cenáculo do fundo; e ficara só a uma mesa isolada.

Pareceu-me triste e a nossa conversa não foi logo abundantemente sustentada. Estivemos alguns minutos calados, sorvendo aos goles a cerveja consoladora.

O gasto de copos aumentou e ele então falou com mais abundância e calor. Em princípio, tratamos de coisas gerais de arte e letras. Ele não é literato, mas gosta das letras, e as acompanha com carinho e atenção. Ao fim de digressões a tal respeito, ele me disse de repente:

— Sabes por que não me mato?

Não me espantei, porque tenho por hábito não me espantar com as coisas que se passam no chope. Disse-lhe muito naturalmente:

—Não.

— Es contra o suicídio?

— Nem contra, nem a favor; aceito-o.

— Bem. Compreendes perfeitamente que não tenho mais motivo para viver. Estou sem destino, a minha vida não tem fim determinado. Não quero ser senador, não quero ser deputado, não quero ser nada. Não tenho ambições de riqueza, não tenho paixões nem desejos. A minha vida me aparece de uma inutilidade de trapo. Já descri de tudo, da arte, da religião e da ciência.

O Manuel serviu-nos mais dois chopes, com aquela delicadeza tão dele, e o meu amigo continuou:

— Tudo o que há na vida, o que lhe dá encanto, já não me atrai, e expulsei do meu coração. Não quero amantes, é coisa que sai sempre uma caceteação; não quero mulher, esposa, porque não quero ter filhos, continuar assim a longa cadeia de desgraças que herdei e está em mim em estado virtual para passar aos outros. Não quero viajar; enfada. Que hei de fazer?

Eu quis dar-lhe um conselho final, mas abstive-me, e respondi, em contestação:

— Matar-te.

— E isso que eu penso; mas...

A luz elétrica enfraqueceu um pouco e cri que uma nuvem lhe passava no olhar doce e tranqüilo.

— Não tens coragem?—perguntei eu.

— Um pouco; mas não é isso o que me afasta do fim natural da minha vida.

— Que é, então?

— E a falta de dinheiro!

—Como? Um revólver é barato.

— Eu me explico. Admito a piedade em mim, para os outros; mas não admito a piedade dos outros para mim. Compreendes bem que não vivo bem; o dinheiro que tenho é curto, mas dá para as minhas despesas, de forma que estou sempre com cobres curtos. Se eu ingerir aí qualquer droga, as autoridades vão dar com o meu cadáver miseravelmente privado de notas do Tesouro. Que comentários farão? Como vão explicar o meu suicídio? Por falta de dinheiro. Ora, o único ato lógico e alto da minha vida, ato de suprema justiça e profunda sinceridade, vai ser interpretado, através da piedade profissional dos jornais, como reles questão de dinheiro. Eu não quero isso...

Do fundo da sala, vinha a alegria dos jogadores de bagatela; mas aquele casquinar não diminuía em nada a exposição das palavras sinistras do meu amigo.

— Eu não quero isso—continuou ele. Quero que se de ao ato o seu justo valor e que nenhuma consideração subalterna lhe diminua a elevação.

— Mas escreve.

— Não sei escrever. A aversão que há na minha alma excede às forças do meu estilo. Eu não saberei dizer tudo o que de desespero vai nela; e, se tentar expor, ficarei na banalidade e as nuanças fugidias dos meus sentimentos não serão registradas. Eu queria mostrar a todos que fui traído; que me prometeram muito e nada me deram; que tudo isso é vão e sem sentido, estando no fundo dessas coisas pomposas, arte, ciência, religião, a impotência de todos nós diante de augusto mistério do mundo. Nada disso nos dá o sentido do nosso destino; nada disto nos dá uma regra exata de conduta, não nos leva à felicidade, nem tira as coisas hediondas da sociedade. Era isso...

— Mas vem cá: se tu morresses com dinheiro na algibeira, nem por tal...

— Há nisso uma causa: a causa da miséria ficaria arredada.

— Mas podia ser atribuído ao amor.

— Qual. Não recebo cartas de mulher, não namoro, não requesto mulher alguma; e não podiam, portanto, atribuir ao amor o meu desespero.

— Entretanto, a causa não viria à tona e o teu ato não seria aquilatado devidamente.

— De fato, é verdade; mas a causa-miséria não seria evidente. Queres saber de uma coisa? Uma vez, eu me dispus. Fiz uma transação, arranjei uns quinhentos mil-réis. Queria morrer em beleza; mandei fazer uma casaca; comprei camisas, etc. Quando contei o dinheiro, já era pouco. De outra, fiz o mesmo. Meti-me em uma grandeza e, ao amanhecer em casa, estava a níqueis.

— De forma que é ter dinheiro para matar-te, zás, tens vontade de divertir-te.

— Tem me acontecido isso; mas não julgues que estou prosando. Falo sério e franco.

Nós nos calamos um pouco, bebemos um pouco de cerveja, e depois eu observei:

— O teu modo de matar-te não é violento, é suave. Estás a afogar-te em cerveja e é pena que não tenhas quinhentos contos, porque nunca te matarias.

— Não. Quando o dinheiro acabasse, era fatal.

— Zás, para o necrotério na miséria; e então?

— E verdade... Continuava a viver.

Rimo-nos um pouco do encaminhamento que a nossa palestra tomava.

Pagamos a despesa, apertamos a mão ao Adolfo, dissemos duas pilhérias ao Quincas e saímos.

Na rua, os bondes passavam com estrépido; homens e mulheres se agitavam nas calçadas; carros e automóveis iam e vinham...

A vida continuava sem esmorecimentos, indiferente que houvesse tristes e alegres, felizes e desgraçados, aproveitando a todos eles para o seu drama e a sua complexidade.

Fonte:
BARRETO, Lima. A Nova Califórnia - Contos. São Paulo: Brasiliense, 1979. Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro

Carlos Lúcio Gontijo (Outono dos Homens)

Fonte:
Poema e imagem enviadas pelo autor. Montagem por José Feldman.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 339)


Uma Trova Nacional

Forra com jornal o chão,
sob o toldo do armazém,
e dorme, abraçado a um cão,
– toda a família que tem...
–DARLY O. BARROS/SP–

Uma Trova Potiguar

O cão é mais um parente
na família da pessoa,
é um amigo paciente,
não deixa seu dono à-toa.
–ZÉLIA FIGUEIREDO/RN–

Uma Trova Premiada

1985 - Tambaú/SP
Tema: CONFIANÇA - M/H

Quisera ter e não nego,
entre amigos sempre à mão,
a confiança que um cego
deposita no seu cão.
–JOÃO FIGUEIREDO/RJ–

Uma Trova de Ademar

Tem cão que mora num morro
e outro morando em mansão...
Porque nem todo cachorro
leva uma vida de cão!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Embora invertendo o nome
do que lhes dás por almoço,
teu cão não ilude a fome,
pois osso invertido é osso.
–APRYGIO NOGUEIRA/MG–

Simplesmente Poesia

Órion
–EDLA FEITOSA/PE–

Não está escuro !
Existe um jogo de luz e sombra
E um certo silêncio.
Órion muda de lugar
E me confunde ….
Um cão ladra ao longe
Um gato ágil escala telhados
A taça enche e esvazia
Como a maré que sussurra ao longe.
As nuvens cobrem as estrelas ….
E dói a solidão.

Estrofe do Dia

O mendigo que sofre só reclama
pede a bênção de Deus, nossa senhora
quando entra na loja vão embora
quando passa na rua ninguém chama
uma calça que veste é cor de lama
a camisa que usa é cor do chão
ele é mais humilhado que um cão
sem família, sem pão e sem abrigo
os fiapos das roupas do mendigo
são visíveis sinais de humilhação.
NONATO COSTA/CE–

Soneto do Dia

Migalhas
–HUMBERTO RODRIGUES NETO/SP–

Que mais desejas, afinal, que eu faça
pra ter por meu o que de ti não tenho,
se já cansado estou com tanto empenho
de haurir de ti a mais suprema graça?

Há quanto tempo mendigando eu venho
um pouco mais que esta ventura escassa!
Do amor apenas pingos pões-me à taça
que eu sorvo ao jugo de pesado lenho!

Somente a um outro, nas liriais toalhas
da mesa de Eros serves tua paixão,
mesa em que, pródiga, teus bens espalhas!

E ali enjeitado, a farejar o chão,
o meu amor vive a lamber migalhas
que tu lhe atiras qual se fora a um cão!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Machado de Assis (O Alienista) IX – Dois lindos casos ; X – Restauração


CAPÍTULO IX - DOIS LINDOS CASOS

Não se demorou o alienista em receber o barbeiro; declarou-lhe que não tinha meios de resistir, e portanto estava prestes a obedecer. Só uma coisa pedia, é que o não constrangesse a assistir pessoalmente à destruição da Casa Verde.

— Engana-se Vossa Senhoria, disse o barbeiro depois de alguma pausa, engana-se em atribuir ao governo intenções vandálicas. Com razão ou sem ela, a opinião crê que a maior parte dos doidos ali metidos estão em seu perfeito juízo, mas o governo reconhece que a questão é puramente científica e não cogita em resolver com posturas as questões científicas.. Demais, a Casa Verde é uma instituição pública; tal a aceitamos das mãos da Câmara dissolvida. Há entretanto—por força que há de haver um alvitre intermédio que restitua o sossego ao espírito público.

O alienista mal podia dissimular o assombro; confessou que esperava outra coisa, o arrasamento do hospício, a prisão dele, o desterro, tudo, menos...

—O pasmo de Vossa Senhoria, atalhou gravemente o barbeiro, vem de não atender à grave responsabilidade do governo. O povo, tomado de uma cega piedade que lhe dá em tal caso legitima indignação, pode exigir do governo certa ordem de atos; mas este, com a responsabilidade que lhe incumbe, não os deve praticar, ao menos integralmente, e tal é a nossa situação. A generosa revolução que ontem derrubou uma Câmara vilipendiada e corrupta, pediu em altos brados o arrasamento da Casa Verde; mas pode entrar no animo do governo eliminar a loucura? Não. E se o governo não a pode eliminar, está ao menos apto para discriminá-la, reconhecê-la? Também não; é matéria de ciência. Logo, em assunto tão melindroso, o governo não pode, não quer dispensar o concurso de Vossa Senhoria. O que lhe pede é que de certa maneira demos alguma satisfação ao povo. Unamo-nos, e o povo saberá obedecer. Um dos alvitres aceitáveis, se Vossa Senhoria não indicar outro, seria fazer retirar da Casa Verde aqueles enfermos que estiverem quase curados e bem assim os maníacos de pouca monta, etc. Desse modo, sem grande perigo, mostraremos alguma tolerância e benignidade.

—Quantos mortos e feridos houve ontem no conflito? perguntou Simão Bacamarte depois de uns três minutos.

O barbeiro ficou espantado da pergunta, mas respondeu logo que onze mortos e vinte e cinco feridos.

—Onze mortos e vinte e cinco feridos! repetiu duas ou três vezes o alienista.

E em seguida declarou que o alvitre lhe não parecia bom mas que ele ia catar algum outro, e dentro de poucos dias lhe daria resposta. E fez-lhe várias perguntas acerca dos sucessos da véspera, ataque, defesa, adesão dos dragões, resistência da Câmara etc., ao que o barbeiro ia respondendo com grande abundância, insistindo principalmente no descrédito em que a Câmara caíra. O barbeiro confessou que o novo governo não tinha ainda por si a confiança dos principais da vila, mas o alienista podia fazer muito nesse ponto. O governo, concluiu o barbeiro, folgaria se pudesse contar não já com a simpatia senão com a benevolência do mais alto espírito de Itaguaí e seguramente do reino. Mas nada disso alterava a nobre e austera fisionomia daquele grande homem que ouvia calado, sem desvanecimento nem modéstia, mas impassível como um deus de pedra.

—Onze mortos e vinte e cinco feridos, repetiu o alienista depois de acompanhar o barbeiro até a porta. Eis aí dois lindos casos de doença cerebral. Os sintomas de duplicidade e descaramento deste barbeiro são positivos. Quanto à toleima dos que o aclamaram, não é preciso outra prova além dos onze mortos e vinte e cinco feridos.—Dois lindos casos!

—Viva o ilustre Porfírio! bradaram umas trinta pessoas que aguardavam o barbeiro à porta.

O alienista espiou pela janela e ainda ouviu este resto de uma pequena fala do barbeiro às trinta pessoas que o aclamavam:

—...porque eu velo, podeis estar certos disso, eu velo pela execução das vontades do povo. Confiai em mim; e tudo se fará pela melhor maneira. Só vos recomendo ordem. E ordem, meus amigos, é a base do governo...

—Viva o ilustre Porfírio bradaram as trinta vozes, agitando os chapéus.

—Dois lindos casos! murmurou o alienista.

CAPÍTULO X - RESTAURAÇÃO

Dentro de cinco dias, o alienista meteu na Casa Verde cerca de cinqüenta aclamadores do novo governo. O povo indignou-se. O governo, atarantado, não sabia reagir. João Pina, outro barbeiro, dizia abertamente nas ruas, que o Porfírio estava "vendido ao ouro de Simão Bacamarte", frase que congregou em torno de João Pina a gente mais resoluta da vila. Porfírio vendo o antigo rival da navalha à testa da insurreição, compreendeu que a sua perda era irremediável, se não desse um grande golpe; expediu dois decretos, um abolindo a Casa Verde, outro desterrando o alienista. João Pina mostrou claramente com grandes frases que o ato de Porfírio! era um simples aparato, um engodo, em que o povo não devia crer. Duas horas depois caía Porfírio! ignominiosamente e João Pina assumia a difícil tarefa do governo. Como achasse nas gavetas as minutas da proclamação, da exposição ao vice-rei e de outros atos inaugurais do governo anterior, deu-se pressa em os fazer copiar e expedir; acrescentam os cronistas, e aliás subentende-se, que ele lhes mudou os nomes, e onde o outro barbeiro falara de uma Câmara corrupta, falou este de "um intruso eivado das más doutrinas francesas e contrário aos sacrossantos interesses de Sua Majestade", etc.

Nisto entrou na vila uma força mandada pelo vice-rei e restabeleceu a ordem. O alienista exigiu desde logo a entrega do barbeiro Porfírio e bem assim a de uns cinqüenta e tantos indivíduos que declarou mentecaptos; e não só lhe deram esses como afiançaram entregar-lhe mais dezenove sequazes do barbeiro, que convalesciam das feridas apanhadas na primeira rebelião.

Este ponto da crise de Itaguaí marca também o grau máximo da influência de Simão Bacamarte. Tudo quanto quis, deu-se-lhe; e uma das mais vivas provas do poder do ilustre médico achamo-la na prontidão com que os vereadores, restituídos a seus lugares, consentiram em que Sebastião Freitas também fosse recolhido ao hospício. O alienista, sabendo da extraordinária inconsistência das opiniões desse vereador, entendeu que era um caso patológico, e pediu-o. A mesma coisa aconteceu ao boticário. O alienista, desde que lhe falaram da momentânea adesão de Crispim Soares à rebelião dos Canjicas, comparou-a à aprovação que sempre recebera dele ainda na véspera, e mandou capturá-lo. Crispim Soares não negou o fato, mas explicou-o dizendo que cedera a um movimento de terror ao ver a rebelião triunfante, e deu como prova a ausência de nenhum outro aro seu, acrescentando que voltara logo à cama, doente. Simão Bacamarte não o contrariou; disse, porém, aos circunstantes que o terror também é pai da loucura, e que o caso de Crispim Soares lhe parecia dos mais caracterizados.

Mas a prova mais evidente da influência de Simão Bacamarte foi a docilidade com que a Câmara lhe entregou o próprio presidente. Este digno magistrado tinha declarado, em plena sessão, que não se contentava, para lavá-la da afronta dos Canjicas, com menos de trinta almudes de sangue; palavra que chegou aos ouvidos do alienista por boca do secretário da Câmara entusiasmado de tamanha energia. Simão Bacamarte começou por meter 0 secretário na Casa Verde, e foi dali à Câmara à qual declarou que o presidente estava padecendo da "demência dos touros", um gênero que ele pretendia estudar, com grande vantagem para os povos. A Câmara a princípio hesitou, mas acabou cedendo.

Daí em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural e as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade mental. Alguns cronistas crêem que Simão Bacamarte nem sempre procedia com lisura, e citam em abono da afirmação (que não sei se pode ser aceita) o fato de ter alcançado da Câmara uma postura autorizando o uso de um anel de prata no dedo polegar da mão esquerda, a toda a pessoa que, sem outra prova documental ou tradicional, declarasse ter nas veias duas ou três onças de sangue godo. Dizem esses cronistas que o fim secreto da insinuação à Câmara foi enriquecer um ourives amigo e compadre dele; mas, conquanto seja certo que o ourives viu prosperar o negócio depois da nova ordenação municipal, não o é menos que essa postura deu à Casa Verde uma multidão de inquilinos; pelo que, não se pode definir, sem temeridade, o verdadeiro fim do ilustre médico. Quanto à razão determinativa da captura e aposentação na Casa Verde de todos quantos usaram do anel, é um dos pontos mais obscuros da história de Itaguaí a opinião mais verossímil é que eles foram recolhidos por andarem a gesticular, à loa, nas ruas, em casa, na igreja. Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito. Em todo caso, é uma simples conjetura; de positivo, nada há.

—Onde é que este homem vai parar? diziam os principais da terra. Ah! se nós tivéssemos apoiado os Canjicas...

Um dia de manhã—dia em que a Câmara devia dar um grande baile,—a vila inteira ficou abalada com a notícia de que a própria esposa do alienista fora metida na Casa Verde. Ninguém acreditou; devia ser invenção de algum gaiato. E não era: era a verdade pura. D. Evarista fora recolhida às duas horas da noite. O Padre Lopes correu ao alienista e interrogou-o discretamente acerca do fato.

—Já há algum tempo que eu desconfiava, disse gravemente o marido. A modéstia com que ela vivera em ambos os matrimônios não podia conciliar-se com o furor das sedas, veludos, rendas e pedras preciosas que manifestou logo que voltou do Rio de Janeiro. Desde então comecei a observá-la. Suas conversas eram todas sobre esses objetos; se eu lhe falava das antigas cortes, inquiria logo da forma dos vestidos das damas; se uma senhora a visitava na minha ausência, antes de me dizer o objeto da visita, descrevia-me o trajo, aprovando umas coisas e censurando outras. Um dia, creio que Vossa Reverendíssima há de lembrar-se, propôs-se a fazer anualmente um vestido para a imagem de Nossa Senhora da matriz. Tudo isto eram sintomas graves; esta noite, porém, declarou-se a total demência. Tinha escolhido, preparado, enfeitado o vestuário que levaria ao baile da Câmara Municipal; só hesitava entre um colar de granada e outro de safira. Anteontem perguntou-me qual deles levaria; respondi-lhe que um ou outro lhe ficava bem. Ontem repetiu a pergunta ao almoço; pouco depois de jantar fui achá-la calada e pensativa.—Que tem? perguntei-lhe.—Queria levar o colar de granada, mas acho o de safira tão bonito!—Pois leve o de safira.—Ah! mas onde fica o de granada?—Enfim, passou a tarde sem novidade. Ceamos, e deitamo-nos. Alta noite, seria hora e meia, acordo e não a vejo; levanto-me, vou ao quarto de vestir, acho-a diante dos dois colares, ensaiando-os ao espelho, ora um ora outro. Era evidente a demência: recolhi-a logo.

O Padre Lopes não se satisfez com a resposta, mas não objetou nada. O alienista, porém, percebeu e explicou-lhe que o caso de D. Evarista era de "mania santuária", não incurável e em todo caso digno de estudo.

—Conto pô-la boa dentro de seis semanas, concluiu ele.

E a abnegação do ilustre médico deu-lhe grande realce. Conjeturas, invenções, desconfianças, tudo caiu por terra desde que ele não duvidou recolher à Casa Verde a própria mulher, a quem amava com todas as forças da alma. Ninguém mais tinha o direito de resistir-lhe—menos ainda o de atribuir-lhe intuitos alheios à ciência.
Era um grande homem austero, Hipócrates forrado de Catão.
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continua… Capitulo XI – O Assombro de Itaguaí; Capítulo XII – O final dos § 4º.
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Fonte:
ASSIS, Machado de. O Alienista.