sábado, 19 de janeiro de 2013

Nilto Maciel (Dimas Carvalho e o Reino da Poesia)


Conheço a literatura de Dimas Carvalho há muito tempo. Li quase todos os seus livros. Meu conhecimento dele, porém, veio depois. Vi-o pela primeira vez numa tarde de janeiro de 1997. Inaugurava-se o Bosque Moreira Campos (Faculdade de Letras da UFC). O evento está registrado em fotografias, três delas reproduzidas nas páginas derradeiras do Almanaque de Contos Cearenses, daquele ano. 

Não lembro mais quem me apresentou a Dimas. Talvez Pedro Salgueiro, relações-públicas da literatura cearense. Conhece todo mundo: acadêmicos engravatados, cordelistas de chapéu de couro, poetas de todos os naipes: enigmáticos, sorumbáticos, asmáticos. Frequenta, com desenvoltura, o banquete dos escritores de fraque e cartola e a alcova das hetairas. Pois deve ter sido ele o autor da apresentação de Dimas a mim. 

De longe, avistei aquela figura esquisita, a sorrir e palrar. Supus tratar-se de algum cigano (Pedro se dá bem com todas as maiorias e minorias), em busca da mulher perdida. Vestia calça de linho branco e camisa colorida (talvez portasse um punhal na cintura). Na cabeça, chapéu de feltro. No pescoço, cordão dourado. Nos braços, relógio e pulseiras de ouro. “Não vá se assustar. Dimas gosta de se mostrar assim. Além disso, anda sempre com, pelo menos, duas mulheres jovens e belas. É o dândi da ribeira do Acaraú.” Não me assustei, porque nem a poesia mais enigmática me assusta.

Depois daquele dia festivo (Moreira Campos merece mais homenagens como aquela), Dimas e eu pouco nos vimos, ele na sua Acaraú, eu em Fortaleza. Estivemos em bares e encontros de escritores, palestras em faculdades, lançamentos de livros, entrega de prêmios (as paredes e estantes de sua casa estão repletas de certificados, medalhas, etc). Tanto abocanhou prêmios que julgadores de concursos já dizem: “Não, desta vez Dimas não deve ganhar. Precisamos democratizar os concursos literários.” Não concordo com certas práticas democráticas. Pois isso ocorreu em certo concurso, do qual fui julgador. Dimas concorreu na categoria “livro publicado”. Dei meu voto, convicto de estar escolhendo o melhor. Os demais julgadores, no entanto, votaram em outra obra: “O livro de Dimas é o melhor, sim, mas ele já ganhou prêmios demais. Agora é a vez de outros.”

Amante das fêmeas humanas, Dimas escreve com um olho na folha de papel e outro nas ancas das moças. Apesar disso, não há uma só página em sua obra em que se vislumbre ao menos uma curva mais erótica.

Admirador de padre Antônio Tomás, sabe-lhe de cor todos os sonetos. E os diz, ufano, como se cantasse o Hino Nacional Brasileiro. Como o primeiro quarteto de “Verso e reverso”:

Essa mulher de face encaveirada
 Que vês tremendo em ânsias de fadiga
 Estendendo a quem passa a mão mirrada
 Foi meretriz, antes de ser mendiga. 

É sua intenção publicar em livro a obra do grande poeta de Acaraú.

Dimas é viajante nobre. Todo ano vai à Europa. Conhece, palmo a palmo, as ruas das principais cidades europeias. E tem memória fabulosa. Narra até os pormenores de seus passeios por Lisboa, Paris, Roma. Para o ouvinte é como se estivesse ao lado do poeta nas caminhadas pela História.

Por tudo isso, já valeria a pena conhecer Dimas Carvalho. Mas há ainda o poeta e o contista, ambos excelentes. É ler seus livros, suas fábulas perversas, suas pequenas narrativas, suas histórias de zoologia humana, seus poemas. O mais recente – Acaraú & outros países – é uma homenagem ao seu pequeno reino, a oeste do império dos tapuias. Nele há também um poema longo, monumental, desses que só os maiores conseguem compor: “Outros países”. São 21 sonetos de esquemas variados. Assim, os 11 primeiros se apresentam dentro do chamado modelo inglês. Todos – ou o todo – compostos como numa partitura. E então se vê, sobretudo, o rosto de Camões (não só nos versos “é para muito além que eu não desejo / cruzarmos os olhares redundantes / por mares nunca navegados dantes / dormem os caminhos que pra nós prevejo”) e o olhar iluminado do Jorge de Lima de Invenção de Orfeu (“Ser que nasceu bem antes do princípio / e que decerto nunca há de ter fim / pois ele é o próprio abismo, o berço, o início”).

Para ser poeta da estatura de colosso, bastaria este poema. Obra de quem se situa entre o eterno e o universal.

Fortaleza, 24 de agosto de 2009.

Fonte:
http://www.niltomaciel.net.br/node/216

Paula Ney (Poesias Avulsas)


extraído de A Produção Poética de Paula Nei. Artigo de Bruno Scomparim Pereira (Cuiabá/MT)

A ABOLIÇÃO

A justiça de um povo generoso,
Pesando sobre a negra escravidão,
Esmagou-a de um modo glorioso,
Sufocando-a com a lei da Abolição.

Esse passado tétrico, horroroso,
Da mais nefanda e torpe instituição,
Rolou no chão, no abismo pavoroso,
Assombrado com a luz da Redenção.

Não mais dos homens os fatais horrores,
Não mais o vil zumbir das vergastadas,
Salpicando de sangue o chão e as flores.

Não mais escravos pelas esplanadas!
São todos livres! Não há mais senhores!
Foi-se a noite: só temos alvoradas!


Segundo Raimundo de Menezes, o presente soneto foi escrito nos dias que se sucederam à Abolição, em meio às comemorações que tomavam as ruas centrais do Rio de Janeiro. Diz o biógrafo que Paula Ney escreveu-o de improviso, "entre dois cálices de vermouth, em meio ao ruidar da multidão na rua".

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SEM TÍTULO

Mestre Meira mira o Moura
E o mestre Moura mira o Meira
Na marinha e na salmoura,
Mestre Meira mira o Moura,
Enquanto grita a lavoura,
Saltando doida e brejeira,
Mestre Meira mira o Moura
E o mestre Moura mira o Meira!


Jogo de palavras composto por Paula Ney, sobre desentendimentos havidos entre dois Ministros do Império: João Florentino Meira de Vasconcelos e João Pereira Moura, este ocupando a pasta da Marinha. Segundo R. de M., Ney, na ocasião trabalhando como repórter parlamentar, compôs esses versos e distribui-os aos parlamentares, na Câmara dos Deputados.

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SEM TÍTULO

Aquele piano, que ontem soluçava,
Triste e dolente, a doce cavatina
Dos teus olhos, oh! lânguida bonina,
Parecia uma órfã que chorava...

Parecia uma nuvem que espalhava
A branda luz da estrela matutina;
Parecia uma pomba que arrulhava
Na orla verde-negra da campina.

E eu chorava também... Tinha em meu peito
A dor da ausência, o perenal martírio
Dum grande amor passado e já desfeito!

Então, pedia às brisas que corriam,
Puras e leves, como o odor do lírio,
Para falar-te; e as brisas me fugiam...


Raimundo de Menezes, n'"A Vida Boêmia de Paula Ney", intitula o soneto "O Piano", afirmando que ele foi dedicado a D. Júlia Lima de Freitas Coutinho, com a qual o boêmio se casou já trintagenário. Da união matrimonial nasceram três filhos, sendo que o primogênito faleceu ainda recém-nascido, após intervenção cirúrgica. Já Ciro Vieira da Cunha possui outra versão para o poema. Segundo o biógrafo, o poema nasceu da parceria de Paula Ney e Lins de Albuquerque, poeta parnasiano morto precocemente e  que pertencia à roda boêmia de Ney. O soneto acima, sem título, teria sido, segundo Vieira da Cunha, publicado n'"O Mequetrefe", sob as inicias P. N. e L. A., após ter sido redigido em uma das mesas da Confeitaria Paschoal, no Rio. O biógrafo explica que foi o olvido que baixou sobre a figura de Lins e Albuquerque que fez  com que atribuíssem sua autoria apenas ao nome de Paula Ney. Efetivamente, a versão de Ciro Vieira da Cunha parece-nos mais fidedigna, e por isso optamos por não intitular o soneto do modo como fez Raimundo de Menezes.

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A TRANÇA

Esta santa relíquia imaculada,
De teu saudoso amor, esta lembrança,
Da vida que fugiu, arrebatada,
Ligeira, como um sonho de criança,

Nos sonos de uma noite de bonança...
- Eu guardo, junto a mim, oh! noiva amada,
Enquanto minha vista não se cansa
De vê-la e adorá-la, extasiada!

Com o fio desta trança, tão escura,
Tão negra, sim - que até minha amargura
Lhe invejaria a cor - e tão macia...

Quais pétalas de rosa, eu teço, à noite,
Da viração sentindo o brando açoite,
- O epitáfio de minha campa fria!...


Único poema de Ney de que se tem notícia  que foi publicado na imprensa, à época da composição. Foi este soneto foi estampado no periódico "A Semana", de 16 de Janeiro de 1886.

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ADORAÇÃO

Tu és minha, afinal! Enfim, te vejo
Sobre os meus braços, lânguida, prostrada,
Enquanto em tua face, descorada,
Os lábios colo e sorvo-te num beijo.

Vibra em minh'alma o lúbrico desejo,
De assim gozar-te a sós, abandonada,
De sentir o que sentes, minha amada,
De escutar-te do peito o doce arpejo!

Quando, entretanto, eu sinto que teu seio
Palpita delirante em doido anseio,
Como a luz que do sol à terra emana,

Eu digo dentro em mim: se eu te manchara,
Se eu te manchara, Flor, ai! não te amara,
Oh! branca espuma da beleza humana!


Sobre este soneto escreveu Ney da Silva: "neste encantador quatorzeto vê-se bem delineada toda a idéia: a posse, o desejo, a piedade, e, por fim, a revolta íntima de um ato pouco  digno de um coração que coloca o ideal, sempre intangível e puro, longe, muito longe, das terrenas misérias do mundo. Nele o espírito pode mais do que a matéria vil, e, assim, a doce e a inefável visão dos seus sonhares, ficou-lhe sendo sempre: 'a branca espuma da beleza humana'" – O entusiasmo quiçá exagerado do escritor se escusa pelo fato de seu parentesco com Paula Ney...

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DE VIAGEM

Voa minh'alma, voa pelos ares,
Como o trapo de nuvem flutuante,
Vai perdida, sozinha e soluçante,
Distende as asas tuas sobre os mares!

Leva contigo os lânguidos cismares,
Que um dia acalentaste, delirante,
Como acalenta o vento roçagante,
A copa verde-negra dos palmares.

Atira tudo isso aos pés de Deus,
Lá onde brilha a luz e estão os céus
E virgens mil c'roadas de verbena.

Isto que já brilhou como uma estrela,
_ Adeus! dirás, só pertenceu a ela,
Corpo de um anjo, coração de hiena!


Este poema – conta-nos R. de M. – foi escrito a bordo do navio que levou Ney, em sua mocidade, do Rio de Janeiro para Salvador, onde passou tumultuosa e alegre  temporada. O motivo da viagem, a filha de um comerciante da Corte, pela qual o jovem boêmio se apaixonara, e que lhe serviu de inspiração para o soneto transcrito.

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A FORTALEZA

Ao longe, em brancas praias embalada
Pelas ondas azuis dos verdes mares,
A Fortaleza, a loira desposada
Do sol, dormita à sombra dos palmares.

Loura de sol e branca de luares,
Como uma hóstia de luz cristalizada,
Entre verbenas e jardins pousada
Na brancura de místicos altares.

Lá canta em cada ramo um passarinho,
Há pipilos de amor em cada ninho,
Na solidão dos verdes matagais...

É minha terra! a terra de Iracema,
O decantado e esplêndido poema
De alegria e beleza universais!


Quando se pensa sobre a fama atual de Ney, constata-se que, seguramente, este soneto é seu legado mais vivo, na medida em  que a beleza dos versos de "A Fortaleza" rendeu ao poema o mérito de figurar em diversas coletâneas de poesias, sendo o soneto consideravelmente conhecido pelo público até hoje, principalmente em Fortaleza, que por muitos ainda é chamada de – A loira desposa do sol".

Fonte:
http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/44129

Paula Ney (1858 – 1897)


A Produção Poética de Paula Nei. Artigo de Bruno Scomparim Pereira (Cuiabá/MT)

   O nome de Francisco de Paula Ney (Vila de Aracati, CE, 2/2/1858 – Rio de Janeiro, RJ, 13/10/1897) é mencionado nos meios literários, atualmente, máxime e somente como partícipe da vida boêmia que marcou o Rio de Janeiro da belle époque, e na qual figuraram nomes que acabaram se imortalizando, como é o caso de Aluízio Azevedo e  Olavo Bilac, e outros que a Crítica de hoje situa em posição menos elevada – são exemplos Coelho Neto, Guimarães Passos, Luís Murat, e muitos outros.

   Figura de enorme popularidade no Rio de Janeiro de sua época, Paula Ney nunca pretendeu se dedicar seriamente à literatura, e muito menos viver dela – passou sua mocidade vivendo do que lhe rendia sua atividade na imprensa diária, bem como dos freqüentes favores que lhe faziam seus colegas e conhecidos. Sua vida apenas conheceu relativa estabilidade após seu casamento, quando o status de pai de família, o emprego público e a saúde cada vez mais fragilizada impediam-lhe de viver no mesmo desregramento de antes.

   Não obstante fugir da carreira literária, que considerava avessa ao seu gênio turbulento e ansioso por movimento, Paula Ney, em sua curta existência (faleceu aos 37 anos de idade), acabou deixando à posteridade, além das linhas que anonimamente escreveu nos jornais, também algumas modestas produções poéticas, que, juntamente com alguns discursos de sua lavra (Paula Ney foi brilhante orador, ficando famosa sua capacidade de improvisação, sendo que nos  restou algumas transcrições de seus discursos nos jornais da época), compõem seu reduzido acervo literário.

   É mais pelo seu valor histórico e bibliográfico que tomamos a iniciativa de reunir, em um só corpo, o que já foi possível reunir-se das poesias escritas por Paula Ney, e que constam das duas biografias que tiveram por objeto a vida do ilustre boêmio: "A Vida Boêmia de Paula Ney", da lavra do minucioso biógrafo Raimundo de Menezes, que também dedicou-se ao estudo da vida de outros escritores contemporâneos à Ney, como Aluízio Azevedo, Guimarães Passos e Emílio de Menezes; e "No Tempo de Paula Ney", esmerado livro de autoria de Ciro Vieira da Cunha, que com sua obra conquistou o Prêmio Carlos de Laet de 1949, promovido pela Academia Brasileira de Letras, e que também é autor de um curioso opúsculo intitulado "100 Piadas de Paula Ney", que reúne o formidável anedotário do boêmio cearense.

   As poesias de Paula Ney, desconsiderados os versos satíricos que ele arquitetava espontaneamente em meio as suas palestras, e que raramente eram registradas em papel, não passam de meia dúzia, e não primam pelo estilo. Nem dele seria razoável esperar o contrário, pois nos parece que seus versos foram esboçados, in totum, de improviso, à  mesa das confeitarias em que ele tomava assento para escrever suas reportagens e descobrir novas matérias para elas. Percebe-se a influência do parnasianismo predominante no momento: o uso do soneto como molde de manifestação poética, algumas figuras de linhagem, e elementos outros que não merecem ser mencionados nesta pequena resenha.

   Não obstante, sua linguagem destoa do formalismo e do rigor da Escola de Bilac – a singeleza das figuras que Paula Ney invoca, e a simplicidade dos termos e das construções de que se utiliza reportam uma influência maior do Romantismo – em seus versos prevalece a emotividade e os exageros românticos, em detrimento da emoção contida e contemplativa dos parnasianos.

   Quanto à qualidade dos poemas, em seu conteúdo, não se pode tirar nenhum juízo que olvide o fato de que, se Paula Ney foi poeta em algumas ocasiões, foi-o de improviso, sem maiores pretensões e veleidades. Isso talvez escuse as deficiências que hora ou outra se encontram pelos seus parcos versos, como o emprego de figuras poéticas já exaustivamente conhecidas, o uso excessivo de vocativos, etc. Não obstante, inegável que seus versos emanam certa beleza, muito dela devida à simplicidade e espontaneidade que neles transparecem. Exemplo maior disso é o soneto "A Fortaleza", que ganhou considerável notoriedade em sua época, a ponto de que a capital cearense fosse, como ainda é, batizada de "loira desposada do sol", feliz inspiração de Paula Ney em uma faceta pouco conhecida de sua vida – a de Poeta.

   Por fim, convém notar, antes que se julgue que os poemas a seguir pertencem tão-somente à poeira do Passado, que, curiosamente, até mesmo na internet é possível encontrar os versos de Paula Ney, embora algumas transcrições pequem pelo descuido, sendo que de uma pequena análise que fizemos na web, verificamos diversas imprecisões quanto à grafia das palavras, quanto à acentuação, ocorrendo até mesmo omissões e inversões de termos, desconfigurando alguns versos.

   Essas deficiências não obscurecem a importância, porém, que há no ato de se dar publicidade aos versos de uma figura que anda esquecida dos estudos literário que têm enfoque nos autores do final do século XIX. E é essa publicidade que, se os versos do boêmio cearense não possuíram no papel, possuem agora, na rede mundial de computadores, acessível para milhões de brasileiros que presentemente podem conhecer, ainda que em pequena dose, um pouco dessa figura literária tão cativante, como é a de Paula Ney.

Fonte:
http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/44129

Oliver Sacks (Memórias de uma Infância Química )


Trecho do livro Tio Tungstênio — Memórias de uma Infância Química, 
–––––-
Muitas das minhas lembranças da infância têm relação com metais: eles parecem ter exercido poder sobre mim desde o início. Destacavam-se em meio à heterogeneidade do mundo por seu brilho e cintilação, pelos tons prateados, pela uniformidade e peso. Eram frios ao toque, retiniam quando golpeados. 

Eu adorava o amarelo do ouro, seu peso. Minha mãe tirava a aliança do dedo e me deixava pegá-la um pouco, comentando que aquele material se mantinha sempre puro e nunca perdia o brilho. "Está sentindo como é pesado?", ela acrescentava. "Mais pesado até do que o chumbo." Eu sabia o que era chumbo, pois já segurara os canos pesados e maleáveis que o encanador uma vez esquecera lá em casa. O ouro também era maleável, minha mãe explicou, por isso, em geral, o combinavam com outro material para torná-lo mais duro.

O mesmo acontecia com o bronze. Bronze! — a palavra em si já me soava como um clarim, pois uma batalha era o choque valente de bronze contra bronze, espadas de bronze em escudos de bronze, o grande escudo de Aquiles. O cobre também podia ser combinado com zinco para produzir latão, acrescentou minha mãe. Todos nós — minha mãe, meus irmãos e eu — tínhamos nosso menorá de bronze para o Hanuca. (O de meu pai era de prata.)

Eu conhecia o cobre — a reluzente cor rósea do grande caldeirão em nossa cozinha era cobre; o caldeirão era tirado do armário só uma vez por ano, quando os marmelos e as maçãs ácidas amadureciam no pomar e minha mãe fazia geléias com eles.

Eu conhecia o zinco — o pequeno chafariz fosco e levemente azulado onde os pássaros se banhavam no jardim era feito de zinco; e o estanho — a pesada folha-de-flandres em que eram embalados os sanduíches para piquenique. Minha mãe me mostrou que, quando se dobrava estanho ou zinco, eles emitiam um "grito" espacial. "Isso é devido à deformação da estrutura cristalina", ela explicou, esquecendo que eu tinha 5 anos e por isso não a compreendia — mas ainda assim suas palavras me fascinavam, faziam-me querer saber mais.

Havia um enorme rolo compressor de ferro fundido no jardim — pesava mais de 200 quilos, meu pai contou. Nós, crianças, mal conseguíamos movê-lo, mas meu pai era fortíssimo e conseguia erguê-lo do chão. O rolo estava sempre um pouco enferrujado, e isso me afligia — a ferrugem descascava, deixando pequenas cavidades e escamas —, porque eu temia que o rolo inteiro algum dia se esfarelasse pela corrosão, se reduzisse a uma massa de pó e flocos avermelhados. Eu tinha necessidade de ver os metais como estáveis, como é o ouro — capazes de resistir aos danos e estragos do tempo.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Maria do Carmo Marino Schneider (Cristais Poéticos 2)


FEITIÇO

Qual cantiga triste, sussurrada ao vento,
 tua voz sonora, em doce lamento,
 como som de harpa veio e me encantou...

 Qual brisa suave, ao tanger do sino,
 tua face meiga, de eterno menino,
 como anjo celeste então me cativou...

 Qual taça espumante que promete tudo,
 teu olhar profundo, de negro veludo,
 como vinho antigo me embriagou...

 Qual rubra maçã em pomar proibido,
 tua boca ardente, num doce gemido,
 como vil pecado me atormentou...

 Qual cupido alado vindo dos espaços,
 teu ser cativante embargou-me os passos
 e, como um feiticeiro, me apaixonou…

MOSAICO

Madrugada de abril.
 Um vento frio e inesperado
 abre, ao acaso, a pagina
 de um livro de memórias
 há muito guardado.
 Inscrita em negra tinta
 uma frase: "never more"...
 Sob o pó acumulado,
 emoldurando os traços
 infantis e descuidados,
 vê-se ainda o frágil esboço
 de um coração, antes inteiro,
 hoje feito em pedaços.

MAR

Na concha da mão
 adormece uma lágrima.
 Pérola escondida.

 Na praia, o mar
 beijava o teu corpo lasso.
 Matutina orgia...

 Na espuma clara
 do mar deitei meus sonhos.
 Dormem no azul.

 Duas alvas lágrimas.
 Contas ocultas na concha
 de um mar de saudade.

MAR II

Verde mar,
 verde folha,
 verde esperança
 que se desfaz,
 que se desfolha,
 na alva areia,
 entre alga e espuma...
 Assim, o amor,
 concha esquecida
 em praia deserta,
 no vai e vem
 da onda saudade
 também se evade,
 também se esfuma.

INDAGAÇÃO

Veios d'água
 fluíram de dentro de mim,
 viraram rios
 transbordando limites.
 Na vazante
 levaram as palavras.
 Fiquei vazia de signos.
 Só meus olhos,
 cegos de sentido,
 inundam de porquês.

O LUAR E A NOITE

Raio de luar, raio de luar,
 minha sombra infinda vens luarizar
 mesmo já sabendo que, chegando a aurora,
 vais me abandonar...

 Raio de luar, raio de luar,
 de luz transitória vens me fulgurar
 mas, luzindo o dia, em incerta hora,
 sei, vais me deixar...

 Raio de luar, raio de luar...
 Pela frágil aurora vives a buscar
 Quem, indiferente, sempre vai embora
 Sem calor te dar...

 Raio de luar, raio de luar,
 me adornei de estrelas para te esperar.
 Não fujas assim, não te vás agora,
 de sombras fui feita para te velar
 Não tenho a beleza ou o brilho da aurora,
 mas berço de paz para te ofertar.

IMAGINÁRIO

Sonho sonhos impossíveis
 de um amor imaginário.
 E quanto mais eu te vejo,
 de perto, assim, tão concreto,
 mais te concebo abstrato,
 ao meu tímido contato,
 como se fosses a imagem,
 esmaecida e incorpórea,
 de antigo porta-retrato.
 E quanto mais te contemplo,
 misterioso e galante,
 cruzando meus descaminhos,
 mais percebo, a contragosto,
 que é de estrelas solitárias
 o meu sombrio caminho.
 E que não cobrirão teu rosto
 as vãs espumas de prata
 dos meus sonhados carinhos.

SONATA

Vibram as cordas da alma do poeta,
 No afã da criação, a rara e completa
 arte de versejar então resgata.

 Retoma o soneto, a mais dileta
 forma de poesia, e a repleta
 de tom e suavidade já inata.

 Com a arte e a habilidade mais discreta,
 de quem modula sons em serenata,

 cria sua obra-prima o poeta:
 herdeira do soneto, eis a SONATA!

DESTINO

Tranquilos como as águas de um rio
 Assim se vão meus dias...
 Sou como o verde ramo
 Que se deixa levar
 Sob o morno sol do estio
 Troncos, pedras, seixos,
 Nada impede meu caminho.
 Apenas o vento me conduz
 Em suas asas de pluma.
 Para onde? Não sei...
 Talvez para a grande foz
 Onde todos rios deságuam
 E onde o barqueiro me espera
 Para a pontual travessia…

Fonte:

Coelho Neto (Mano) Parte 6


SEMPRE

No Dia de Finados

Dia dos mortos, teu dia... Não! O teu dia chama-se “Sempre”, não é um só, de horas contadas, limitando estreitamente o círculo das lembranças, que são os minutos da Saudade.

O dia de hoje é como os demais no tempo; o teu é infindo.

Dentro em pouco o crepúsculo baixará escuro e tudo desaparecerá na sombra solitária e, mais do que sobre os túmulos, a treva se adensará na memória efêmera dos que aguardam um dia para recordar.

Dos círios que alumiaram mausoléus e carneiros nada, em breve, restará senão lágrimas de cera e as flores murcharão na terra como as lembranças nos corações volúveis.

Os círios que te alumiam são os nossos olho cujas lágrimas não se condensam gélidas e são cada vez mais fluentes. As flores que alfombram o teu túmulo são sempre frescas, porque, além das que nascem de ti, das raízes do teu coração de bondade, o nosso amor vela solícito para que te não falte, todas as manhãs, a oferenda da nossa devoção.

Continuas a viver conosco, ainda que separado: nós, no sofrimento; tu, no alívio; nós, onde o sol aclara; tu, onde a noite governa. Há entre nós apenas uma lápide e é tanto, todavia, como o espaço que separa o céu da terra.

Foi-se o teu vulto, mas a tua essência ficou; sentimo-la conosco, como tornada a nós, de regresso ao amor de que saiu.

Teu nome é o estribilho da nossa melancolia: cai-nos, de vez em quando, dos lábios como caem das árvores no outono as folhas mortas.

A Vida é a respiração da Natureza; um ir e vir continuo. O bafejo que exalamos reentra-nos em fôlego purificado. Assim tu: foste e tornaste ao nosso coração e nele assistes.

Vivo, saías, passavas horas longe de nós, mas estavas preso à vida e vinhas por ela à casa com o teu passo senhoril e espalhavas por ela o som da tua voz, a alegria do teu sorriso. Dividias-te com os amigos que te disputavam. 

Agora és todo nosso, não sais de nós, és nós mesmos, como é mar a água que regressa ao oceano lançada pela nuvem que a sorveu.

Teu dia! Como se pudéssemos destacar um dia entre tantos, só respirar, só ver luz, ouvir vozes, viver, enfim, um só dia!

Sendo, como sempre foste, e és, o nosso amor, estás constantemente conosco e continuamos a chamar-te filho, como se andasses entre os teus irmãos.

Se eu não te houvesse assistido na agonia, recolhendo, num beijo, a lágrima derradeira que choraste, não acreditaria na tua morte, tão rápida foi ela...

Onde se viu o céu anoitecer antes da tarde?

Se a natureza regula o tempo, não extinguindo a Luz senão quando lhe chega o instante de apagar-se, por que havia a Morte de abater um jovem no verdor da esperança, quando nele mais ardia a mocidade?

Custaste tanto a crescer! Primeiro entre nós, aninhado entre dois corações, vigiado por olhos vígilos, aquecido a beijos; depois no berço ajoujado ao nosso leito e quando menino, tiveste a tua cama em quarto próprio. Quanta vez, alta noite, fomos, medrosamente, pé ante pé, escutar o teu coração, sentir teu hálito como se adivinhássemos a traição que havia de arrebatar-te!

Na cama de menino sonhaste os teus primeiros sonhos, meditaste os teus primeiros pensamentos e, começavas, talvez, a sentir a solidão do Paraíso quando a Morte entrou em ti alanceando-te o corpo esbelto.

Pobre filho! O que a tortura fez de ti! Como tu te refugiaste na infância imaginando, assim, com tal meiguice, esconder-te da pérfida!

Ressuscitaram na tua boca ressequida os diminutivos carinhosos com que nos chamavas, à noite, quando temias a escuridão.

Ouvindo-te parecia-me que eras o pequenino que acalentávamos nos braços. Saudoso tempo!

Vinte e quatro anos viveste dentro da nossa vida. Eras como uma torre que construíramos pouco a pouco, dando-lhe eu, de mim, energia e coragem; e ela brandura e fé, e, justamente quando contávamos contigo para nosso amparo, quando nos fiávamos em ti para nossa defesa e sorríamos, um ao outro, contentes em nossa velhice, por possuirmos a tua mocidade, veio a Morte... e deixou-nos sós. Por que?

Se a alma é eterna como se explica que nos morresses, tu que eras a nossa alma?

Como nos iludíamos com a Vida acreditando que a tivesses em nós quando toda ela estava contigo!

Que é da nossa alegria? Não era nossa? Não a tínhamos em sorrisos? Onde estão eles, tais sorrisos?

Ai! de nós! eram reflexos de ti e tanto é isto verdade que, desde o teu desaparecimento, nunca mais se nos descolaram os lábios nem em nossos olhos brilhou mais o lume da felicidade.

A nossa ventura eras tu e jazes num sepulcro.

Vinte e quatro anos de amor esvaídos num suspiro!

E vale a pena construir com tão carinhoso desvelo um ser, depositando nele toda a nossa riqueza para que, a súbitas, a uma rajada do Destino, tudo alua deixando-nos à mercê do tempo e míseros?

Como nos guiaremos doravante na escuridão silente?

Vives, mas vives como um sonho que se desvanece com a manhã. Sentimos-te, mas se te procuramos não estás; és apenas lembrança, rastro na alma, dor na saudade, espinho no coração.

A rosa de Jericó reabre-se se a mergulham na água. Se acontecesse o mesmo com os mortos (tantas têm sido as nossas lágrimas!) já terias ressurgido do túmulo como se emergisses à tona de um oceano. Mas de que servem lágrimas?! Paraste na mocidade. Os teus irmãos menores prosseguirão na vida e tu, que os precedias, quedarás na hora em que caíste, vendo-os passar, transpor a idade em que foste ferido, entrar pelos anos além, envelhecendo, e eles falarão de ti, o irmão mais velho, morto com pouco mais de vinte e quatro anos.

E assim ficarás sempre jovem na saudade dos teus, que te perderam.

Os que buscam consolar-nos tentam convencer-nos de que Deus te chamou tão cedo porque eras bom. E nós!? Por que nos havia Ele de ferir arrancando-te dos nossos corações?

O teu dia, meu filho, há de durar, sem noite, enquanto vivermos para a tua saudade.

O teu dia não terá horas, será toda a nossa existência.

O RETRATO

Como a lâmpada perene das capelas, símbolo da Fé pervígila, o teu retrato, ante meus olhos, alumia-me a memória e, como fica o sacrário entre luz e penumbra, assim jaz o meu coração na saudade.

A imagem do teu corpo airoso, que se desfaz na terra podia desvanecer-se-me na lembrança, posto que eu nela o sinta vivo como outrora. Todavia, como tudo que é efêmero perece, para que o teu semblante e o teu todo me não fujam, como foge a sombra com o corpo que a reflete, tenho a lâmpada que nos aclara e, assim, com a alma que ficou comigo, por ser minha, e o retrato que me acompanha, conservo-te tal qual foste.

Teu túmulo floresce, as flores, porém, ainda que delas cuide, com esmero, o jardineiro, murcham em breve. O teu retrato, esse perdura; é a flor imarcessível que ficou da tua mocidade. 

Pena é que lhe falte o que na flor é perfume e em nós é alma.

Olhamo-nos a fito. Eu vejo-te; e tu? A sombra não vê, não ouve, não sente, é um enigma que nos segue porque, sendo filha da luz, e escura; sendo a projeção de um corpo, é nada.

Vivo em contemplação diante do teu retrato e, de tanto fitá-lo, já se me gravou nos olhos e, quer eu os tenha abertos, quer fechados, vejo-te sempre.

Cego que ficasse ver-te-ia do mesmo modo, como vejo a luz. És como um sentido novo em mim.

E como não há de ser assim, meu filho, se continuas a viver comigo e, agora, mais do que nunca, és a razão de ser da minha vida!

Pobre de mim! Como me iludo! Retratos. Que valem rastros de caminhantes numa estrada sem fim!

Retratos... Miragens... Quando de vivos chamam-se lembranças, sendo como o teu não passam de saudades.

LAMENTO

Antes chorasses tu! Águas primaveris seca-as depressa o sol.

A tua mocidade radiosa reagiria contra a tristeza e, ainda que, por vezes, turvasse o teu coração a nuvem de saudade a sombra seria de eclipse, e não de noite eterna.

A alegria, própria da juventude, é lume que se não apaga.

Abafem-no, embora! quanto maior for o acúmulo de folhagem e troncos mais viva irromperá a chama vitoriosa.

Nos carvões que vasquejam uma gota de orvalho é quanto basta para matar na cinza a brasa trêmula.

O sol na primavera é vida; no inverno é morte.

O que, em ti, faria nascer o esquecimento, em mim mais aviva a lembrança.

O sol, em campo verde, fá-lo rebentar em flores; nos píncaros alpestres, fundindo a neve em torrentes, põe a descoberto abismos, desnuda alcantis, escorcha escarpas, todas as agruras e arestas da montanha merencória.

Quando se é moço o tempo é medicina para as chagas do coração; na velhice...

Que valem ruínas! Só resistem se as sustêm enliços de verdura, presilhas de hera que se emaranhe pelas frinchas; soltas, logo se esboroam.

Antes chorasses tu!

Um coração de moço, ainda na maior tristeza, se a alegria o ronda, ilumina-se e aquece-se.

Em meu coração, se a alegria passa-lhe por perto, a saudade, que está sempre alerta, levanta-se como cão de guarda quando pressente alguém se aproximar.

O que seriam risos em teus lábios correm-me em lágrimas dos olhos.

Antes chorasses tu!

Mal conhecias a vida e, com ânsia de novidades, depressa esquecerias o túmulo do morto.

Eu...

Que posso ver mais na vida se as lágrimas me empanam os olhos e o mundo me aparece, através do pranto, como a paisagem, em dia de chuva, nimbada pelas cordas de água. 

Antes chorasses tu!

––––––––
Continua…

Fonte:
http://leituradiaria.com

Isidro Iturat (Arte Poética) parte 4


3.4.3. Associação de nome e adjetivo

          Um dos recursos mais sobreutilizados na hora de compor consiste em fazer com que o poema se sustente principalmente sobre a associação de nome e adjetivo. Cabe mencionar também o caso dos poemas de tom surrealista, onde a procura pela combinação insólita entre estas categorias gramaticais predomina.

           Se queremos superar esta tendência, a ideia que deve ser incorporada é a seguinte: o autor que procura realmente a versatilidade expressiva não se limita a contemplar o nome e o adjetivo, concede valor a toda palavra, a toda categoria gramatical de palavra, e também à pontuação, às combinações de sílabas, de letras, de silêncios.

3.4.4. Insuficiências na rima

           1º. Rima gasta. Alguns dos exemplos mais clássicos são as rimas formadas com as terminações: –nte, -ento, -ava, -ão, -ado, -inho.

           2º. Fazer terminar versos diferentes com a mesma palavra. Quando se recorre a isto pelo simples fato de não ser capaz de achar uma rima mais distante, o mais provável é um resultado inarmônico, se bem que há composições nas quais o poeta recorre a isto conscientemente, convertendo assim tal ação em recurso estético.

           3º. O rípio. É a palavra colocada no final de um verso que, para fazê-lo rimar com outro, prejudica o sentido e a fluidez do discurso, negando normalmente à rima a sensação de surpresa e prazer estético que produz quando é engenhosa. Porém, existem autores que o utilizam intencionalmente, ficando demasiado óbvio para obter um efeito humorístico.

3.4.4.1. Rimas esporádicas no poema em verso livre 

          Quando em um poema em verso livre achamos versos próximos que rimam, os sentimos como especialmente vinculados entre si e como ressaltados em relação ao conjunto por causa da intensificação que a rima produz na percepção sensorial das palavras. Por isso, ao não estar distribuída de forma simétrica, o mais provável será sentir que houve uma ruptura na harmonia do tudo, experimentar um incômodo, como se o texto ficasse “atolado" nesse ponto; então, dá a sensação de que falta ao autor versatilidade expressiva, que seu estilo é pobre[8]. 

           No entanto, quando no momento de compor em verso livre fazemos o esforço de não incluir rimas, ou pelo menos o esforço de situá-las suficientemente distantes entre si para que o ouvido não as perceba, o poema oferece uma sensação de "oxigenação", de nitidez e de uma riqueza discursiva mais ampla. 

3.4.5. Algumas considerações gerais sobre a rima

          Quando o autor ainda não domina a rima pode ser comparado, valendo-me  de uma metáfora, ao jóquei que quer domar um cavalo sem a habilidade nem a força necessárias para isso. E em tal caso, o animal se descontrola.

           A rima é prazerosa ao leitor quando não é sentida como forçada ou óbvia, quando aparece em um texto que flui com naturalidade, que pode conter as ideias mais profundas, a carga afetiva mais intensa, e mesmo assim, surpreendentemente, “magicamente”, rima.

           Quando é bem empregada, a forma pode reforçar o conteúdo, o pensamento que quer elevar-se  se eleva ainda mais e a emoção que se queira intensificar, intensifica-se. Aqui,  o autor será comparável a um jóquei que domina seu cavalo, tendo sempre em consideração que o melhor é aquele que soube, não apenas domar e guiar seu animal, mas estabelecer uma relação afetiva com o mesmo. O poeta desfruta com e pela rima, dança com ela e esse deleite, essa dança, passará finalmente ao leitor.

           Para aperfeiçoá-la, além da prática unida ao auxílio dos dicionários, podem ser procuradas as obras dos melhores rimadores e ler ‘saboreando’ detalhadamente as suas rimas, para interiorizar naturalmente e através do prazer suas cadências e alternâncias. 

 3.5. Colocar-se na pele do leitor

          Os autores que conseguem sensibilizar com suas palavras, costumam ter a faculdade de, além de expressar no texto suas próprias inquietações, levar em consideração o leitor: O que sentirá?... O que pensará?... O que verá?... O que interpretará?...

           Quando se escreve dessa maneira, o número de planos semânticos do poema tende a aumentar, ele se faz ressonante, plurissignificativo, tende a ir do “plano” ao “esférico”, do psíquico individual ao arquetípico, a deixar de ser de apenas um indivíduo para ser de todos.

           Salvo honrosas exceções (por exemplo, se acreditamos em Antón Chéjov, que afirmou que não se preocupava nem um pouco com o leitor[9]), quando um autor escreve só para si mesmo, o receptor do texto não sente que a mensagem também lhe concerne e se desinteressa rapidamente.

           O eu literário, que pode ser muito diferente do eu pessoal, tende a virar arquetípico, permitindo assim que o leitor se identifique com ele. Quando o eu pessoal exige muita atenção ele pode fazê-lo, recorrendo, por exemplo, à polarização da obra para a expressão em primeira pessoa, ou fazendo óbvia demais a recriação das suas vivências particulares, evidenciando desse modo, uma mera atitude narcisista (o que será suficiente para provocar rechaço). Além disso, é possível que as recriações vertidas ao papel também tendam a apresentar pobreza imaginativa pelo simples fato de ser produto de uma visão de mundo naturalmente muito limitada.

           Por último, devemos levar em consideração que nunca será possível, em última instância, um real e objetivo conhecimento do que o leitor captará ( e nem seria salutar, em minha opinião). Quem escreve terá de  contentar-se, sem que isto signifique absolutamente um mal resultado, com forjar a imagem do que se chama um “leitor ideal”.

3.6. Deixar repousar o texto

          O momento da criação está embebido frequentemente de um estado mental especial, nele, levantam-se emoções intensas, o poeta pode se sentir como “em outra esfera”, ou inclusive, como diziam os antigos, ”possuído pelo numen...”, mas neste momento de “fogo criador”, de “parto”, é pouco habitual conseguir um poema bem acabado. Depois que esse momento criador termina, é recomendável deixar o poema guardado. Passado algum tempo (horas, dias, semanas, meses ou inclusive anos) ao reler o poema novamente, será muito fácil perceber incorreções, pontos que não fluem, que não foram percebidos durante o primeiro ímpeto da criação.

3.7. Corrigir

          Frequentemente nosso sentido da razão não é suficiente para decidir quando considerar terminado um poema. Também faz falta atender às próprias sensações, emoções e intuições. Alguns poemas precisam apenas de minutos para ser obra acabada, outros de anos; e há outros que, inclusive depois de anos, não alcançarão uma forma satisfatória.

           Alguns autores preconizam uma mínima correção enquanto outros uma correção ostensiva, e em ambos os casos, dependendo da personalidade do autor, podem ter razão. Mas também não podemos deixar de atender aos perigos das duas opiniões: primeiro deixar a obra “verde” (isto é mais provável em quem se sente um “poeta nato”); segundo, anular a vitalidade inicial do poema por excesso de correção (em quem se sente excessivamente inseguro).

           Com relação a este ponto, não sugeriria adotar um mesmo padrão para todos os casos, mas simplesmente que cada composição seja considerada individualmente, que o autor “ouça” o que precisa especificamente cada poema.

           Alguns procedimentos para a correção: abreviar, amplificar, eliminar, substituir, mudar de posição.

3.8. O fácil e o difícil

          Na nossa cultura ocidental, costumamos irmanar as noções de dificuldade e valia: se é difícil, tem mérito. Mas a experiência demonstra que um poema não deve ser obrigatoriamente melhor que outro apenas por apresentar uma estrutura mais complexa. Também existem vozes que desprezam sistematicamente o poema pelo simples fato de ser artificioso.

           Diante de tudo isso, seria conveniente não perder de vista que, em última instância, é a necessidade interior do poeta o que deve primar na hora de definir a natureza do discurso. O poema será um objeto vivo, sendo barroco ou minimalista, se estiver em consonância com esta necessidade interior.

           Dando continuidade ao que foi colocado anteriormente,  gostaria de lembrar a seguinte máxima: “Há um tempo para tudo”. Isto é, para o simples e o complexo, para o profundo e para o trivial.

3.9. Inovação formal

          Algumas estratégias:

3.9.1. Através da associação de características formais

          Exemplo: a décima espinela[10], do autor espanhol Vicente Espinel, onde se estabelece como forma fixa a associação de 10 versos de oito sílabas a um esquema de rima a b b a a c c d d c.

3.9.2. Através da associação de características formais e características semânticas

          Exemplo: o haicai japonês[11] na sua forma canônica, onde uma estrofe constituída por três versos de 5, 7, 5 sílabas se associa ao kigo, que consiste em fazer referência a alguma das estações do ano.

3.9.3. Através da expansão

          1º. Expansão do número de estrofes. Exemplo: adição de estrambotes[12] no soneto.

           2º. Expansão do número de versos. Exemplo: À estrutura do haicai são agregados dois versos de sete sílabas e desse modo é obtida uma nova figura constituída por cinco versos de 5, 7, 5, 7, 7 sílabas: o tanka[13].

3.9.4. Através da multiplicação

          Exemplo: o renga[14] ou canção encadeada, que consiste em uma sequência de tankas. Normalmente é composta por vários autores que trabalham em conjunto.

3.9.5. Através da condensação

          Exemplo: o indriso[15], que surge de um processo de condensação das estrofes do soneto.

Soneto
 4
 4
 3
 3

Indriso

3
3
1
1

3.9.6. Através da redistribuição das partes

          1º. Redistribuição do número de versos na estrofe. Exemplo: o soneto[16], cujas estrofes apresentaram inicialmente estruturas como 8-6 e 8-3-3, e que terminou se consolidando sob a forma 4-4-3-3.

           2º. Redistribuição da posição das estrofes. Exemplos: variantes do indriso[17]. Da forma inicial 3-3-1-1 (indriso ou indriso em sístole) derivam as seguintes:

           1-1-3-3: Indriso em diástole.
           3-1-3-1: Indriso de duas sístoles.
           1-3-1-3: Indriso de duas diástoles.
           3-1-1-3: Indriso em sístole interna.
           1-3-3-1: Indriso em diástole interna.

3.9.7. Através da imitação

          Como no caso dos poemas visuais que reproduzem a forma de objetos físicos.

           Exemplo: o blavino[18], forma poética ideada pelos poetas brasileiros Juliana Ruas Blasina e Volmar Camargo Junior. Este reproduz a imagem de um triângulo ou pirâmide, apresentando uma estrutura estrófica 1-2-3-1-3-2-1. O primeiro verso está formado por uma única palavra e os seguintes vão aumentando progressivamente o seu número de sílabas, até alcançar a estrofe de verso único central, que é a linha poética de maior medida. Na segunda metade do poema, a medida das linhas decresce progressivamente até o último verso, que também está constituído por uma única palavra.

3.9.8. Através da oposição

          Exemplo: o cânone do soneto em decassílabos com rima consoante ABBA ABBA CDC DCD, provoca em diversos autores a vontade de flexibilizá-lo. Desse modo, surgem variações tanto na rima como nas medidas, tais como o soneto em alexandrinos, em verso livre etc.

3.9.9. Através da fusão de objetos distintos

           1º. Fusão de formas poéticas diferentes. Exemplo: a decilira[19], ideada pelo poeta espanhol Juan Ruiz de Torres, onde as estruturas da décima e da lira (ambas as formas procedentes da tradição literária espanhola) aparecem fusionadas de acordo com o seguinte procedimento:

           - Estrutura da décima: 10 versos de oito sílabas com rima a b b a a c c d d c.

          - Estrutura da lira: 5 versos que combinam versos de onze e sete sílabas seguindo o esquema 7-11-7-7-11 e com rima a B a b B.

           - Estrutura da decilira: 10 versos, os cinco primeiros apresentam a mesma medida que a lira e os cinco últimos se combinam de forma especular em relação aos cinco primeiros             (7-11-7-7-11-11-7-7-11-7), a rima segue o esquema da décima (a B b a A C c d D c). No nível semântico, os quatro primeiros versos formam uma unidade que apresenta o tema, que será desenvolvido e resolvido nos seis seguintes, seja em um único bloco ou em várias subestrofes.

           2º. Fusão de diferentes suportes artísticos. Como nos casos onde a palavra se combina com pintura, música, fotografia, escultura, efeitos de computação gráfica etc. Exemplos disto são as obras do espanhol Joan Brossa[20] e do brasileiro Augusto de Campos[21].

––––––––
Continua…

Fonte:
http://www.indrisos.com/ensayosyarticulos/artepoeticaportugues.html#4