terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Soares de Passos (Saudade)


Assim, pálida lua, assim teu rosto
Fulgurava tranquilo nessa noite
Em que o adeus lhe murmurei sentido;
Quando, após os momentos preciosos
Em que inda pude vê-la, inda escutá-la,
Afoutando meu ânimo indeciso,
Sua trémula voz me disse: parte...
Entanto que uma lágrima furtiva
Lhe escorria na face melindrosa,
Mais pálida que a tua...

Astro saudoso
Astro da solidão, quanto me aprazes!
Eu amo o teu silêncio, amo o teu brilho,
Mais que do sol os importunos raios.
Que me importa desse astro a luz e a vida,
Se a luz e a vida me ficaram longe?
Se em meio do rumor que o dia espalha,
A voz não ouço que responde à minha?

Estes vales, e selvas, estes montes,
À luz do dia, são talvez formosos;
«ias não é este o ar que ela respira,
Não são estes os sítios que ela encanta
Com seu mago sorriso. O dia é mudo;
Porém tu surges, solitária amiga,
Tu vens falar-me dela, astro saudoso.

Lua, desse áureo trono onde campeias,
Tu vês os sítios caros. Que faz ela?
Acaso; como pomba fatigada,
Repousa adormecida? Verte, ó lua,
Verte-lhe em torno o perfumado alento
Que a noite rouba às orvalhadas flores.
«ias não; talvez agora em mim pensando,
Agora mesmo sobre o teu semblante
Ela fixa também os olhos tristes,
« nossos pensamentos, nossas vistas
Se confundem em ti. Oh! não podermos,
Adejando como eles nesse espaço,
Embora por momentos, confundir-nos
Em teu regaço, deslembrando a ausência!
Ao menos, astro amigo, ordena, ordena
Que o anjo da saudade, que em ti mora,
Desça, e lhe diga o que minha alma sente.

Oh! quando solto d'importunos laços,
Demandando outros céus, hei-de já livre
Vê-la, ouvi-la, falar-lhe? Quem o sabe?
Mas tu entanto, confidente meiga.
Em cada noite vem falar-me dela;
E em meu peito sombrio e solitário
Derrama, envolto no teu doce brilho,
O bálsamo suave da esperança.
Assim possas tu ser, benigna deusa,
A invocada dos tristes; e se acaso
Amas também. se algum remoto lago
Entre floridas margens escondido
Te prende as feições, possas tu sempre
No cristalino azul das suas águas
Sem nuvens espelhar teu rosto ameno!

Fonte: 
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Antônio Martins (Memória Viva de São Luís em Xeque)


 Antônio Martins de Araújo nasceu em São Luís do Maranhão, numa meia-morada situada na rua dos Afogados, esquina com a rua do Ribeirão, tendo em frente a Fonte do Ribeirão, no dia 1º de agosto de 1932. O escritor é Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, tendo se aposentado como professor de Língua Portuguesa por essa instituição. É considerado o maior expert, no Brasil, no que se refere à obra de Arthur Azevedo. Ocupa atualmente a presidência da Academia Brasileira de Filologia - ABF e é membro da Academia Maranhense de Letras - AML, trabalhando ainda como professor do Instituto de Língua Portuguesa do Liceu Literário Português. Entre suas principais obras é possível mencionar: Arthur Azevedo – a palavra e o riso, Noel Rosa – língua e estilo (em parceria com Castelar de Carvalho), A herança de João de Barros e outros estudos, Chão do Tempo, e O peito do Pelicano - ensaios maranhenses. Numa bela manhã do início de setembro deste ano, Antônio Martins de Araújo concedeu ao Guesa Errante a entrevista que publicamos abaixo. O intelectual maranhense mora no Rio de Janeiro.

Paulo Melo Sousa - Caro mestre Antônio Martins, quais as recordações mais antigas da sua infância, vividas em São Luís? 

Antônio Martins de Araújo - Eu me lembro bem da casa na qual nasci, local em que meu pai manteve um comércio durante a segunda guerra mundial. Em 1938 ele abriu falência, eu tinha seis anos de idade, foi quando ele perdeu a Mercearia Gaúcha. Ele vendia a crédito para os garis da prefeitura de São Luís e, na época, sofreu um calote de 30 contos de réis. As compras dos garis eram descontadas dos salários deles, por intermédio de meu padrinho, um maçon chamado seu Cruz. Aí o governo mudou em 1938, e o substituto de seu Cruz, Agenor Vieira, não honrou os compromissos assumidos com a mercearia. Então, meu pai foi obrigado a vender tudo e fomos embora para Viana, terra natal do meu pai. Lá eu estudei no Colégio Municipal entre os seis e os sete anos de idade. Tenho muitas saudades do lago de Viana, das mocorocas e das enchentes. Dessa época tenho uma recordação magnífica, lembro de histórias que conto no meu livro “Menino do Ribeirão”, que ainda não publiquei, já que existem dois capítulos da obra nos quais relato as minhas primeiras experiências sexuais, e como as meninas ainda estão vivas, uma delas casada, o livro só será publicado trinta anos depois da minha morte (risos).

Em seguida, a sua família retornou a São Luís... 

Sim, e aí eu estudei aqui no Colégio Justo Jansen, que funcionava num sobradão situado na rua da Cruz, esquina com a rua dos Afogados. Ali, tive uma experiência muito boa, pois estudava pela manhã e, na parte da tarde, quatro portas além da minha casa, tinha aula particular com a professora Maria de Lourdes Garrido. A ela devo a minha orientação para fazer o exame de admissão ao Colégio Marista, no qual fui aprovado de imediato, aos 11 anos de idade. Poucos anos depois, aos 15 anos, comecei a dar aulas de Português e História do Brasil na Escola Champagnat, uma espécie de escola supletiva, que funcionava à noite. No entanto, na minha formação, eu digo que a minha primeira universidade foi o Teatro Arthur Azevedo, o mundo recontado através da arte.

Como aconteceu esse seu contato com o teatro? 

Entre os meus 5 anos e os 15 anos de idade, a minha madrinha, Edith Barbosa Pinto, mãe de criação da minha mãe, Edith Raposo Martins Araújo, era quem me levava ao teatro. Ela vendia cafezinho e mingau de milho aos atores e para alguns outros fregueses. Dessa forma, eu assisti de graça aos espetáculos de todas as companhias de teatro que passaram por São Luís de 1937 a 1947. Quando digo que a minha primeira formação superior aconteceu no Arthur Azevedo é porque ali tive o privilégio de assistir às apresentações de nomes magistrais do teatro, tais como a Companhia dos Estudantes de Coimbra, as operetas dos irmãos Vicente Celestino, peças com Pascoal Carlos Magno, Eva Tudor, Iracema de Alencar, Henriette Morineau, Lenita Bruno. Em homenagem a essa atriz, que, entre 1937 e 1947, brilhou intensamente por mais de uma vez no Teatro Arthur Azevedo, e me dedicava, eu menino ainda, um carinho muito especial, sugeri à minha mãe que pusesse o nome de Lenita à minha segunda irmã, o que foi feito. Foi na nossa principal casa de espetáculos que, sob o prisma da arte cênica, o universo à minha volta se revelou a mim.

Esse seu interesse pelo teatro continuou quando você foi morar no Rio de Janeiro... 

É verdade. O ator Delorges Caminha, marido da atriz francesa Henriette Morineau, foi o meu primeiro diretor na Escola de Teatro Martins Pena. Tive também lá como meus diretores, entre outros, o brilhante ator José Wilker e o excelente bailarino Klaus Viana. As aulas de Impostação da Voz eu só ministrei duas ou três vezes, após fazer um curso intensivo, nos anos 60, com a professora cearense Glória Beutmuller, radicada no Rio, há muitos anos. Eu também lecionava sobre História do Espetáculo, mas, não recuava até 5 mil anos antes de Cristo quando, na ilha de Bali, praticamente nasceu o teatro. Ainda hoje os atores representam nessa ilha o espetáculo do embate entre o bem e o mal, e, quem faz o papel do demônio se deixa atravessar por uma espada e não sangra, já que o golpe desferido não atinge os órgãos vitais. Trata-se de uma cultura milenar, diante da qual devemos tirar o chapéu. Lá é que nasceu realmente o teatro. Isso pode não ter tido influência alguma sobre o teatro greco-romano, mas, é uma ilusão. Quando se diz que Monteiro Lobato foi um grande contador de estórias, isso é conversa fiada, já que ele recontou estórias que La Fontaine já contava. E aí quando se diz que La Fontaine era um grande contador de estórias, fábulas, isso também é conversa fiada, já que ele bebeu nas fábulas de Esopo...

 Isso nos lembra a ideia do eterno retorno, de Nietzsche, e ainda de Jorge Luís Borges, na obra “História da Eternidade”; ali, num pequeno ensaio intitulado “A doutrina dos ciclos”, ele escreve que “num tempo infinito, o número de permutações possíveis deve ser alcançado, e o universo deverá se repetir”... Sim. E então poderíamos pensar que a cultura greco-romana é o berço da nossa cultura. Nesse particular específico do fabulário, a história nos ensina que a literatura europeia ocidental, grosso modo, possui origem nas estórias de animais encontradas nos livros sagrados hindus do Mahabharata e do Rig Veda, que são muito anteriores à cultura helênica. Assim também, quando se fala de gíria, muita gente pensa que é criação tupiniquim, quando, na verdade, foi a tribo dos bazigares oriundos, creio, que da Hungria, que a teria criado. Procurei mostrar como chegou até nós esse gosto pela gíria em meu ensaio “Arthur Azevedo: a Palavra e o Riso”, co-editado em 1988 pela prestigiosa Editora Perspectiva e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Então, nós temos que tirar o nosso chapéu para a lei de Lavoisier, que diz que “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. O Chacrinha tinha uma paráfrase do Lavoisier: “na vida nada se perde, nada se cria, tudo se copia”...(risos!).

Mestre Martins, fale-nos sobre a sua inserção no movimento cultural maranhense de então..

Muito me agrada a sua pergunta. Nós nos reuníamos no Centro Cultural Gonçalves Dias, cujas sessões eram realizadas no Grêmio Lítero Recreativo Português, ali em frente à praça João Lisboa, aonde assisti a declamações de poesia de Ferreira Gullar, que hoje tem ódio ao seu livro de estréia, “Luta Corporal”. No entanto, acho que esse livro marca a trajetória ascensional do Gullar. Nós nos reuníamos também no Café do Chico, em frente à João Lisboa, situado na esquina da rua de Nazaré, de onde se defrontava a Livraria Moderna. Ali nós líamos os nossos poemas uns para os outros e, quando um dizia que era para se rasgar o texto, que estava uma merda, nós rasgávamos o poema na mesma hora, respeitávamos a opinião dos amigos, todos bem informados. Ali se encontrava o Sarney, o Tobias Pinheiro, o Gullar. Também havia encontros na galeria do Paiva, na Movelaria Guanabara, situada na rua do Sol. Nós, um pouco mais jovens, nos reuníamos na casa de Zé Mário Santos, grande orador, que ficava no Campo de Ourique, perto da praça Deodoro. Eu era liderança da “Agremiação Liberal Acadêmica - ALA” e ele era líder do “Movimento Nacionalista Acadêmico - MNA”, e nessa casa eu me reunia com Manoel Lopes, Clóvis Sena, que faleceu recentemente.

No entanto, os encontros sempre estavam ligados a questões culturais... 

Sempre. Eu me lembro que nós tivemos a oportunidade de receber por lá a visita de Darcy Ribeiro e de um parente do famoso escritor Aldous Huxley, o antropólogo Francis Huxley, de procedência inglesa. Então, ele resolveu declamar um trecho de Shakespeare, que era muito onomatopaico. Na sua declamação, ele fazia ohhhhh, aliado a uns trejeitos meio estranhos e nós nos danamos a rir, foi um surto de riso vexaminoso (risos), que pegou muito mal. O rapaz estava querendo fazer uma homenagem a nós, declamando da melhor forma possível, mas, os trejeitos dele eram muito cômicos (risos). Um dia nós fomos almoçar num restaurante que ficava nos fundos da atual Academia Maranhense de Letras, e eu fiquei admirando o tamanho dos sapatos do Darcy. Então, ele me disse: “já sei, Antônio, você está achando o sapato exagerado, mas, é que eu e o Francis vamos pisar na tribo dos índios Urubus-Kaapor, e tenho que me proteger dos tocos do mato, né? Por isso os sapatões que usamos”. Então, essa geração nos deu muitas alegrias.

Até que idade você morou em São Luís, e qual a razão da sua partida? 

A minha partida daqui se deveu a uma experiência altamente frustrante, ao mesmo tempo em que foi altamente redentora. Eu acabara de fundar, quando tinha uns 27 anos de idade, um colégio chamado Ginásio Operário Getúlio Vargas, no âmbito da Campanha Nacional de Educandários Gratuitos, no bairro do Lira. Dr. Elói Coelho Neto era o presidente dessa instituição, no Maranhão, da qual eu era Secretário Geral. Nós fundamos vários colégios pelo interior do Maranhão, em Codó, Coroatá e outros municípios. Quando eu estava prestes a me tornar diretor da instituição, o governador Newton Belo me convidou para ser diretor do Liceu Maranhense, eu tinha apenas 28 anos de idade. Nos quatro anos em que permaneci ali, com um grande amigo, meu compadre, padrinho de um filho meu, o saudoso Merval Lebre Santiago, eu tive experiências ‘magníficas’, já que grandes ‘amigos’ que eu ajudei a colocar no Liceu me traíram posteriormente, disputando a diretoria, como é o caso de um pernambucano mau caráter chamado Gildo Cordeiro Rosa, que reprovava os alunos para depois ensinar matemática aos mesmos alunos, de forma particular, para poder aprová-los. Eu vivia recebendo pauladas do Jornal Pequeno, do meu amigo Bogéa, e do Neiva Moreira, que era diretor do Jornal do Povo. Faltava energia e no outro dia surgia a manchete: ‘diretor irresponsável do Liceu suspende as aulas’... Como é que se poderia dar aulas com velas? Era na época do João Goulart, greve atrás de greve, jogavam bombas na porta da escola, então eu mandava os alunos para casa.

Período conturbado... 

Pois é, e aquilo me cansou a beleza, eu já tinha 32 anos. Então, resolvi fazer concurso para professor no Rio de Janeiro. Na ocasião, falei com o grande comandante, grande amigo meu, Renato Archer, que tinha grande trânsito junto à Panair. O Renato me ajudou com a passagem, eu era pobre, e fui fazer concurso na Escola Técnica Federal, na Universidade Gama Filho e na Escola Naval. Então, fui aprovado e me transferi para o Rio de Janeiro. Foi o início da minha redenção, pois eu dava 72 horas de aula no Maranhão, acumulava a direção do Liceu durante a manhã e à noite. Durante a tarde, funcionava a Escola Normal, sob o comando de Oceanira Galvão, descendente do grande poeta maranhense Trajano Galvão. Então, no Rio de Janeiro passei a trabalhar oito horas a menos e a ganhar seis vezes mais. Vivi durante dois anos na rua Maranhão, perto da escola Maranhão, da farmácia e da padaria Maranhão, para não fugir à tradição...(risos). Então, não cortei de uma vez o cordão umbilical com a minha terra, fui me despedindo do Maranhão aos poucos. Depois de dois anos comprei meu apartamento na rua do Copacabana Palace, onde moro até hoje.

Depois de tanto tempo fora do Maranhão, as suas vindas a São Luís são sempre marcantes... 

São Luís é sempre um encantamento. Essa prosápia, essa fidalguia, esse orgulho que o Maranhão tem de praticar o melhor português do Brasil, sem favor nenhum, porque o Maranhão já nasce com essa vocação para respeitar o idioma pátrio, que é uma prova de bom caráter, realmente me impressiona. Havia um sujeito pichando uma das paredes da cidade e quebraram o maior pau em cima dele não por causa da pichação, mas, em razão de ele ter escrito à bessa com dois esses em vez de à beça, desrespeitando a língua portuguesa; só mesmo no Maranhão existem essas coisas.

E seus planos futuros? 

Ano que vem vou fazer pela quarta vez 20 anos de idade...(risos)...não ria não porque a coisa é séria...(risos)...já estou descendo a ladeira...(risos)...mas vou descendo e também subindo, agora mesmo estou dando aulas para um curso de mestrado em Cruzeiro do Sul, perto de Rio Branco, formando uma turma de 50 mestrandos. Em maio ministrei aulas de Linguística Aplicada ao Ensino de Letras Neolatinas, área da minha formação, e tenho textos inéditos à espera de publicação; enfim, continuo escrevendo, produzindo sempre.

Fonte:
Suplemento Cultural & Literário JP Guesa Errante. Ano X. Edição 238. 5 de outubro de 2011.

Eça de Queiros (O Mandarim) Parte 7


O sonho de Vladimira era habitar Paris; e fazendo ferver delicadamente as folhas de chá, pedia-me histórias ladinas de cocottes, e dizia-me o seu culto por Dumas filho...

Eu arregaçava-lhe a larga manga do casabeque de seda cor de folha morta, e ia fazendo viajar os meus lábios devotos pela pele fresca dos seus belos braços; – e depois sobre o divã, enlaçados, peito contra peito, num êxtase mudo, sentíamos as lâminas de cristal ressoar eolicamente as pegas azuis esvoaçarem pelos plátanos, o fugitivo ritmo do arroio corrente...

Os nossos olhos humedecidos encontravam às vezes um quadro de cetim preto, por cima do divã, onde em caracteres chineses se desenrolavam sentenças do Livro Sagrado de Li-Nun «sobre os deveres das esposas». Mas nenhum de nós percebia o chinês... E no silêncio os nossos beijos recomeçavam, espaçados, soando docemente, e comparáveis (na língua florida daqueles países) a pérolas que caem uma a uma sobre uma bacia de prata... – Oh suaves sestas dos jardins de Pequim, onde estais vós? Onde estais, folhas mortas dos lírios escarlates do Japão?...

Uma manhã, Camilloff, entrando na Chancelaria, onde eu fumava o cachimbo da amizade de companhia com Meriskoff, atirou o seu enorme sabre para um canapé, e contou-nos radiante as notícias que lhe dera o penetrante príncipe Tong. – Descobrira-se enfim que um opulento mandarim, de nome Ti Chin-Fu, vivera outrora nos confins da Mongólia, na vila de Tien-Hó! Tinha morrido subitamente: e a sua larga descendência residia lá, em miséria, num casebre vil...

Esta descoberta, é certo, não fora devida à sagacidade da burocracia imperial – mas fizera-a um astrólogo do templo de Faqua, que durante vinte noites folheara no céu o luminoso arquivo dos astros...

– Teodoro, há-de ser o seu homem! – exclamou Camilloff.

E Meriskoff repetiu, sacudindo a cinza do cachimbo:

– Há-de ser o seu homem, Teodoro!

– O meu homem... – murmurei sombriamente.

Era talvez o meu homem, sim! Mas não me seduzia ir procurar o meu homem ou a sua família, na monotonia de uma caravana, por essas desoladas extremidades da China!... Depois desde que chegara a Pequim, eu não tornara a avistar a forma odiosa de Ti Chin-Fu e do seu papagaio. A Consciência era dentro em mim como uma pomba adormecida. Certamente, o alto esforço de me ter arrancado às doçuras do bulevar e do Loreto, de ter sulcado os mares até ao Império do Meio, parecera à Eterna Equidade uma expiação suficiente e uma peregrinação reparadora. Certamente Ti Chin-Fu, acalmado, recolhera-se com o seu papagaio à sempiterna Imobilidade... Para que iria eu, pois, a Tien-Hó? Porque não ficaria ali, naquele amável Pequim, comendo nenúfares em calda de açúcar, abandonando-me às sonolências amorosas do Repouso Discreto, e pelas tardes azuladas, dando o meu passeio pelo braço do bom Meriskoff, nos terraços de jaspe da Purificação ou sob os cedros da Templo do Céu?... 

Mas já o zeloso Camilloff, de lápis na mão, ia marcando no mapa o meu itinerário para Tien-Hó! E mostrando-me, num desagradável entrelaçamento, sombras de montes, linhas tortuosas de rios, esfumados de lagoas:

– Aqui está! O meu hóspede sobe até Ni Ku-Hé, na margem do Pei-Hó... Daí, em barcos chatos, vai a My-Yun. Boa cidade, há lá um Buda vivo... Daí, a cavalo, segue até à fortaleza de Ché-Hia. Passa a Grande Muralha, famoso espectáculo!... Descansa no forte de Ku Pi-Hó. Pode lá caçar a gazela. Soberbas gazelas... E com dois dias de caminhada está em Tien-Hó... Brilhante, hem?... Quando quer partir? Amanhã?...

– Amanhã – rosnei, tristonho.

Pobre generala! Nessa noite, enquanto Meriskoff, ao fundo da sala, fazia com três oficiais da Embaixada o seu whist sacramental, e Camilloff, ao canto do sofá, de braços cruzados, solene como numa poltrona do Congresso de Viena, dormia de boca aberta – ela sentou-se ao piano. Eu ao lado, na atitude de um Lara, devastado pela fatalidade, retorcia lugubremente o bigode. E a doce criatura, entre dois gemidos do teclado, de uma saudade penetrante, cantou revirando para mim os seus olhos rebrilhantes e húmidos:

L'oiseau s'envole,
Là bas, là bas!...
L'oiseau s'envole...
Ne revien pas...

– A ave há-de voltar ao ninho – murmurei eu enternecido.

E, afastando-me a esconder uma lágrima, ia resmungando furioso:

– Canalha de Ti Chin-Fu! Por tua causa! Velho malandro! Velho garoto!...

Ao outro dia lá vou para Tien-Hó – com o respeitoso intérprete Sá-Tó, uma longa fila de carretas, dois cossacos, toda uma populaça de coolies.

Ao deixar a muralha da Cidade Tártara, seguimos muito tempo ao comprido dos jardins sagrados que orlam o templo de Confúcio.

Era no fim do Outono; já as folhas tinham amarelecido; uma doçura tocante errava no ar...

Dos quiosques santos saía uma sussurração de cânticos, de nota monótona e triste. Pelos terraços, enormes serpentes, venerandas como deuses, iam-se arrastando, já entorpecidas da friagem. E aqui e além, ao passar, avistávamos budistas decrépitos, secos como pergaminhos e nodosos como raízes, encruzados no chão sob os sicômoros, numa imobilidade de ídolos, contemplando incessantemente o umbigo, à espera da perfeição do Nirvana...

E eu ia pensando, com uma tristeza tão pálida como aquele mesmo céu de Outubro asiático, nas duas lágrimas redondinhas que vira brilhar, à despedida, nos olhos verdes da generala!... 

VI

Já a tarde declinava, e o Sol descia vermelho como um escudo de metal candente, quando chegámos a Tien-Hó.

As muralhas negras da vila erguem-se, do lado do sul, ao pé de uma torrente que ruge entre rochas: para o nascente, a planície lívida e poeirenta estende-se até a um grupo escuro de colinas onde branqueja um vasto edifício – que é uma missão católica. E para além, para o extremo norte, são as eternas montanhas roxas da Mongólia, suspensas sempre no ar como nuvens.

Alojámo-nos num barracão fétido, intitulado Estalagem da Consolação Terrestre. Foi-me reservado o quarto nobre, que abria sobre uma galeria fixada em estacas; era ornado estranhamente de dragões de papel recortado, suspensos por cordéis do travejamento do tecto; à menor aragem aquela legião de monstros fabulosos oscilava em cadência, com um rumor seco de folhagem, como tomada de vida sobrenatural e grotesca.

Antes que escurecesse fui ver com Sá-Tó a vila: mas bem depressa fugi ao fedor abominável das vielas: tudo se me afigurou ser negro – os casebres, o chão barrento, os enxurros, os cães famintos, a populaça abjecta... Recolhi ao albergue – onde arrieiros mongóis e crianças piolhosas me miravam com assombro.

– Toda esta gente me parece suspeita, Sá-Tó – disse eu, franzindo a testa.

– Tem Vossa Honra razão. É uma ralé! Mas não há perigo: eu matei, antes de partirmos, um galo negro, e a deusa Kaonine deve estar contente. Pode Vossa Honra dormir ao abrigo dos maus espíritos... Quer Vossa Honra o chá?...

– Traz, Sá-Tó.

Bebido o chá, conversámos do grande plano: na manhã seguinte eu ia levar a alegria à triste choupana da viúva de Ti Chin-Fu, anunciando-lhe os milhões que lhe dava, depositados já em Pequim: depois, de acordo com o mandarim governador, faríamos uma copiosa distribuição de arroz pela populaça: e à noite iluminações, danças, como numa gala pública...

– Que te parece, Sá-Tó?

– Nos lábios de Vossa Honra habita a sabedoria de Confúcio... Vai ser grande! Vai ser grande!

Como vinha cansado, bem cedo comecei a bocejar, e estirei-me sobre o estrado de tijolo aquecido que serve de leito nas estalagens da China; enrolado na minha peliça, fiz o sinal-da-cruz, e adormeci pensando nos braços brancos da generala, nos seus olhos verdes de sereia... 

Era talvez já meia-noite quando despertei a um rumor lento e surdo que envolvia o barracão – como de forte vento num arvoredo, ou uma maresia grossa batendo um paredão. Pela galeria aberta, o luar entrava no quarto, um luar triste de Outono asiático, dando aos dragões suspensos do tecto formas, semelhanças quiméricas...

Ergui-me, já nervoso – quando um vulto, alto e inquieto, apareceu na faixa luminosa do luar...

– Sou eu, Vossa Honra! – murmurou a voz apavorada de Sá-Tó.

E logo, agachando-se ao pé de mim, contou-me num fluxo de palavras roucas a sua aflição: – enquanto eu dormia, espalhara-se pela vila que um estrangeiro, o Diabo estrangeiro, chegara com bagagens carregadas de tesouros... Já desde o começo da noite ele tinha entrevisto faces agudas, de olho voraz, rondando o barracão, como chacais impacientes... E ordenara logo aos coolies que entrincheirassem a porta com os carros das bagagens, formados em semicírculo à velha maneira tártara... Mas pouco a pouco a malta crescera... Agora vinha de espreitar por um postigo: e era em roda da estalagem toda a populaça de Tien-Há, rosnando sinistramente... A deusa Kaonine não se satisfizera com o sangue do galo preto!... Além disso ele vira à porta de um pagode uma cabra negra recuar! ... A noite seria de terrores!... E a sua pobre mulher, o osso do seu osso; que estava tão longe, em Pequim!...

– E agora, Sá-Tó? – perguntei eu.

– Agora... Vossa Honra! Agora...

Calou-se: e a sua magra figura tremia, acaçapada como um cão que se roja sob o açoite.

Eu afastei o cobarde, e adiantei-me para a galeria. Em baixo, o muro fronteiro, coberto de um alpendre, projectava uma funda sombra. Aí com efeito estava uma turba negra apinhada. Às vezes uma figura, rastejando, adiantava-se no espaço alumiado, espreitava, farejava as carretas e, sentindo a lua sobre a face, recuava vivamente, fundindo-se na escuridão: e como o tecto do alpendre era baixo, faiscava um momento à luz algum ferro de lança inclinada...

– Que querem vocês, canalha? – bradei eu em português.

A esta voz estrangeira um grunhido saiu da treva; imediatamente uma pedra veio ao meu lado furar o papel encerado da gelosia; depois uma flecha silvou, cravou-se por cima da minha cabeça, num barrote...

Desci rapidamente à cozinha da estalagem. Os meus coolies, acocorados sobre os calcanhares, batiam o queixo num terror; e os dois cossacos que me acompanhavam, impassíveis à lareira, cachimbavam, com o sabre nu nos joelhos. 

O velho estalajadeiro de óculos, uma avó andrajosa que eu vira no pátio deitando ao ar um papagaio de papel, os arrieiros mongóis, as crianças piolhosas, esses tinham desaparecido; só ficara um velho, bêbedo de ópio, caído a um canto como um fardo. Fora ouvia-se já a multidão vociferar.

Interpelei então Sá-Tó, que quase desmaiava, arrimado a uma viga: nós estávamos sem armas; os dois cossacos, sós, não podiam repelir o assalto: era necessário pois ir acordar o mandarim governador, revelar-lhe que eu era um amigo de Camilloff, um conviva do príncipe Tong, intimá-lo a que viesse dispersar a turba, manter a lei santa da hospitalidade!...

Mas Sá-Tó confessou-me, numa voz débil como um sopro, que o governador decerto é quem estava dirigindo o assalto! Desde as autoridades até aos mendigos, a fama da minha riqueza, a legenda das carretas carregadas de ouro inflamara todos os apetites!... A prudência ordenava, como um mandamento santo, que abandonássemos parte dos tesouros, mulas, caixas de comestíveis...

– E ficar aqui, nesta aldeia maldita, sem camisas, sem dinheiro e sem mantimentos?...

– Mas com a rica vida, Vossa Honra!

Cedi. E ordenei a Sá-Tó que fosse propor à turba uma copiosa distribuição de sapeques – se ela consentisse em recolher aos seus casebres, e respeitar em nós os hóspedes enviados por Buda...

Sá-Tó subiu à sacada da galeria, a tremer; e rompeu logo a arengar à malta, bracejando, atirando as palavras com a violência de um cão que ladra. Eu abrira já uma maleta, e ia-lhe passando cartuchos, sacos de sapeques – que ele arremessava aos punhados com um gesto de semeador... Em baixo havia por momentos um tumulto furioso ao chover dos metais; depois um lento suspiro de gula satisfeita; e logo um silêncio, numa suspensão de quem espera mais...

– Mais! – murmurava Sá-Tó, voltando-se para mim ansioso.

Eu, indignado, lá lhe dava outros cartuchos, mais rolos, molhos de moedas de meio real enfiadas em cordéis... Já a maleta estava vazia. A turba rugia, insaciada.

– Mais, Vossa Honra! – suplicou Sá-Tó.

– Não tenho mais, criatura! O resto está em Pequim!

– Oh Buda santo! Perdidos! Perdidos! – clamou Sá-Tó, abatendo-se sobre os joelhos.

A populaça, calada, esperava ainda. De repente, uma ululação selvagem rasgou o ar. E eu senti aquela massa ávida arremessar-se sobre as carretas que defendiam a porta em semicírculo: ao choque todo o madeiramento da Estalagem da Consolação Terrestre rangeu e oscilou...
–––––––––––
Continua…

Fonte:
http://leituradiaria.com 

Clássicos do Cancioneiro Popular (O Casamento do Rato com a Catita)


No tempo em que os animais
 Seguiam civilidade
 O mundo era diferente
 Deste da atualidade
 Não havia a corrupção
 Que existe na humanidade

 Nesse tempo o senhor leão
 Era o rei dos animais
 O gafanhoto também
 Trazia insígnias reais
 O elefante, grande sábio,
 Fazia códigos legais

 O urso era juiz de direito
 O tigre era presidente
 O lobo era capitão
 A girafa era intendente
 O tamanduá era padre
 E o porco-espinho tenente

 O boi era juiz de paz
 Mestre burro era doutor
 O macaco era escrivão
 A lagarta cobrador
 A preguiça era fiscal
 Tatu-peba coletor

 O carneiro era mendigo
 Era o bode um almirante
 A raposa era correio
 Era o cavalo estudante
 O galo era um insolente
 E o punaré negociante

 A cobra, uma criminosa
 O cachorro, delegado
 O queixada, vagabundo
 O sapo, velho soldado
 E o peru era pobre preso
 Que vivia encarcerado

 Gato era cabo de esquadra
 Saguim era professor
 O veado era vaqueiro
 Periquito, promotor
 Camelo era viajante
 E o porco era criador

 O jacaré era dentista
 O morcego era barbeiro
 A ema era bom alfaiate
 O pica-pau, carpinteiro
 Guaxinim, senhor de engenho
 Mestre urubu, cozinheiro

 Vivia o abutre faminto
 A coruja era um profeta
 O cisne era um amante
 O rouxinol, um poeta
 A zebra, grande tratante
 O canguru era um pateta

 O castor era pedreiro
 O rato era namorado
 A barata era gatuno
 O pato era um empregado
 O pavão era um ourives
 E o canário, um advogado

 Era o mocó bom marchante
 A andorinha, comboeiro
 A formiga, agricultor
 Hiena, um sujo coveiro
 A cigarra era cantora
 E o besouro era bombeiro

 Afinal, tudo o que os homens
 São nessa atualidade
 Os brutos também já foram
 No tempo da antiguidade
 Quando o Destino era um deus
 De poder e majestade

 Nesse tempo, o jovem rato
 Habitava num chalé
 E namorava a Catita
 A filha do punaré
 Ela ainda era donzela
 E ele era um moço de fé

 O rato determinou-se
 A pedir a mão da amada
 Visitando o punaré
 Pediu-lhe a filha estimada
 Visto ela também já estar
 Bem por ele apaixonada

 — Meu tio, eu não venho aqui
 Só fazer-lhe uma visita
 Venho lhe pedir a mão
 De sua filha Catita
 Para casar-me com ela
 Pois acho-a muito bonita

 O punaré respondeu-lhe:
 — Só não te dou minha filha
 Porque ainda não tens recursos
 Pra sustentar a família
 E um pobre casar com um rico
 É mais do que maravilha

 — Meu tio, eu sei que sou pobre
 Não preciso que me diga
 A fazer-lhe este pedido
 É mesmo o amor quem me obriga
 Se me negar o que peço
 Haverá entre nós intriga

 — Eu darei o que me pedes
 Pois não te posso negar
 Já que a moça é tua prima
 Porém só podes casar
 Quando tiveres dinheiro
 Com que possas te aprontar

 — Se o senhor me proteger
 Eu proponho-lhe um negócio
 Faça de mim seu caixeiro
 Pois não sou muito beócio
 E, depois, quando casar
 Poderei ser o seu sócio

 — Aceito tua proposta
 Podes vir ser meu caixeiro
 Porém há uma circunstância
 Quero avisar-te primeiro
 Que não namores a moça
 Enquanto fores solteiro

 Então, fecharam negócio
 Passaram um documento
 E o rato tomou conta
 Dum estabelecimento
 Trataram para o fim do ano
 O tempo do casamento

 O punaré proibiu
 À filha de namorar
 Porém ela, às escondidas
 Ia com o rato prosar
 Toda noite, no jardim
 Tinham um particular

 Ao cabo de pouco tempo
 Sentiu-se a moça doente
 Estava bem descorada
 Com um olhar diferente
 Os peitos tinha crescidos
 E bastante inchado o ventre

 Foi receitar-se num médico
 E este, a vendo, logo disse:
 — Senhora, este seu incômodo
 Nada mais é que prenhice
 Remédio para este mal
 Nunca pôde descobrir-se

 O Rato desconfiou
 Tratou logo de fugir
 Roubou o cofre do tio
 Que, quando o quis perseguir
 Não o encontrou mais na loja
 Nem no quarto de dormir

 Vendo-se a moça ofendida
 Foi, correndo, se queixar
 Suplicando ao delegado
 Para este logo obrigar
 O Rato a casar com ela
 Pr’assim sua honra pagar

 Prometeu o delegado
 Que faria o que pudesse:
 Mandava prender o moço
 E, embora ele não quisesse
 Casar-se com a ofendida
 Casava houvesse o que houvesse!

 A moça voltou pra casa
 E o delegado apitou
 Em menos de uma meia hora
 Uma tropa se ajuntou
 O Gato chegou primeiro
 Dizendo logo: - Cá estou!

 Os soldados perguntaram:
 — Que quer, senhor delegado?
 Este respondeu: — Eu quero
 Que o Rato seja intimado
 Se ele fizer resistência
 Tragam morto ou amarrado!

 Logo os soldados se armaram
 Foram em busca do Rato
 Este, com medo da tropa
 Estava oculto no mato
 Porém isto o não livrou
 De cair nas mãos do Gato

 Cercou a tropa uma serra
 E, de cima dum penedo
 Avistou o criminoso
 Debaixo dum arvoredo
 Muitos soldados correram
 Outros morreram de medo!

 O Rato estava dormindo
 E acordou atordoado
 Com uma voz lhe dizendo:
 — O’ cabra esteja intimado!
 O Rato pensou consigo:
 — Ai! Ai! estou desgraçado!

 O Rato quis evadir-se
 Porém foi logo agarrado
 Ele se opôs e, na luta
 Deixaram-no bem pelado
 Pois assim mesmo o levaram
 Diante do delegado

 Este perguntou ao preso:
 — Que foi que fizeste tu?
 Que foi que te aconteceu
 Que estás aí quase nu?
 Para ti serve o ditado:
 Quem se vexa come cru!

 Disse o Rato: — Eu quis casar
 Com uma jovem mui bela;
 Mas, por ela me ser falsa,
 Eu disse para o pai dela:
 Que procurasse outro noivo
 Para casar-se com ela

 O delegado então disse:
 — Pois que o camarada me ouça:
 Por aí corre o boato
 Que tu ofendeste essa moça
 Agora, o que te acontece
 É morte ou casar à força!

 O Rato lhe respondeu:
 — Não é preciso matar-me!
 Eu já estou arrependido
 E, como quer castigar-me
 Mande chamar logo o padre
 Quero hoje mesmo casar-me

 O delegado respondeu-lhe
 — Não precisa se vexar
 Ainda falta correr banhos
 E a moça se preparar
 Eu dou-lhe um mês como prazo
 Para tudo se arranjar

 Com esse espaço dum mês
 Tudo estava preparado
 Todo o povo do lugar
 Tinha sido convidado
 Para ao grande baile vir
 Que havia de ser falado

 O Punaré, logo cedo
 Mandou ao padre chamar
 Pra fazer o casamento
 Que era em primeiro lugar
 Na manhã daquele dia
 Sem poder mais se adiar

 Convidou Mocó das Índias
 Pra ser do noivo o padrinho
 Visto ele ser seu parente
 E também ser seu vizinho
 Este não bebeu na festa
 Por gostar pouco de vinho

 Mandou chamar a Cotia
 Pra ser da noiva a madrinha
 Esta não comeu na festa
 Por não gostar de galinha
 E, como tinha inimigos
 Desconfiada é que vinha

 Convidou Mestre Urubu
 Para a festa cozinhar
 Este preparou guisados
 E, quando foram jantar
 O delegado chegou
 Para no baile dançar

 Ao chegar o delegado
 A festa foi acabada
 Pois a madrinha da noiva
 Era com ele intrigada
 O delegado agarrou-a
 Matando-a numa dentada!

 Numa guerra sanguinária
 Tranformou-se, então, a festa
 Tamanduá levantou-se
 Perguntou: — Que zoada é esta?
 Mas, quando viu que era o cão
 Se embrenhou pela floresta

 Na cabeceira da mesa
 Estavam Catita e Rato
 Quando ouviram o barulho
 Quiseram correr pro mato
 Mas, antes disso fazerem
 Foram mortos pelo Gato!

 Morreram nesse barulho
 Mais de dois mil convidados!
 Os que escaparam com vida
 Foram todos debandados
 Desde esse dia ficaram
 Os animais intrigados

Fonte:
Barroso, Gustavo. Ao som da viola (folk-lore); nova edição correta e aumentada. Rio de Janeiro, 1949. Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140.Edição Especial de Aniversário