sábado, 12 de janeiro de 2013

Isidro Iturat (Arte Poética) parte 2


2. A INTROSPECÇÃO

                                     La poesía es entrar en el ser
                                                                   Octavio Paz


2.1. Gnôthi seautón

          Sem conhecimento sobre a própria interioridade não há escritor, ou seja, sem atender, em alguma medida, os próprios processos psicológicos: nossas fortalezas e fraquezas, atrações e repulsões... ao mental por fim e, idealmente ao espiritual.

           Nota: Devido à complexidade do assunto, estudar o fenômeno poético sob a perspectiva do espírito excede os limites deste trabalho. Por isso, nos limitaremos a abordar aqui a dimensão psíquica. No entanto, temos que dizer que não é infrequente que o indivíduo que se interessa pela introspecção, em um determinado ponto do querer ver “mais adentro”, descubra os movimentos da alma.

2.2. A polaridade mental

          A psicologia moderna explorou as zonas do cérebro onde residem as distintas funções mentais. Uma apresentação sucinta disto poderá ajudar-nos a entender alguns processos relacionados com a criatividade.

           A continuação, algumas destas funções (aquelas que mais interessam ao nosso assunto), e a sua localização: 

Hemisfério esquerdo
Plano consciente
 Pensamento lógico (razão, cálculo, análise)
 Linguagem (sintaxe e gramática, leitura e escritura)
 Visão do detalhe
 Noção de tempo
 Interpretação do ambiente físico

Hemisfério direito
Plano inconsciente
 Pensamento analógico (imagem, símbolo, metáfora, fantasia)
 Música
 Visão do conjunto
 Noção de espaço
 Intuição

          Dos dois hemisférios, um deles sempre é o dominante, mas a zona que os conecta, o corpo caloso, permite a ação integrada das funções de ambos. Curiosamente, segundo a psicologia, os indivíduos mais saudáveis seriam aqueles que conseguem uma melhor compenetração e equilíbrio entre estes dois polos, aproximando-se do que é denominado de coniunctio oppositorum (conciliação dos opostos). Tais sujeitos apresentariam uma personalidade mais integrada, traduzido em signos como um maior conhecimento e adaptação perante o mundo interior e exterior, capacidade de empatia, individualidade, auto-regulação, capacidade de experimentar prazer diante das situações vitais e, obviamente, criatividade. Também pode nos interessar saber que a poesia, pelo fato de exercitar naturalmente a interação entre ambos os hemisférios, colabora com os processos integradores da personalidade.

           Relacionando tudo isto com o temperamento do poema, poderemos observar que, quando a atividade mental é excessivamente dirigida pelo hemisfério esquerdo, tende a produzir obras “frias” e sem intrepidez artística. Do mesmo modo, se acontecer uma polarização para o direito, o poema propende a oferecer formas caóticas. Quando ambos hemisférios trabalham unidos, evoluciona-se para o tipo de obra onde o intelectual e o passional, em vez de atuar confrontados, recebem um incentivo mútuo. Podem dar-se ao mesmo tempo, por exemplo, a emoção intensa e a regularidade formal, as expressões insólitas e o sentido, o pensamento profundo e a forma refinada, o trabalho consciente e a inspiração mágica.

2.3. Vanitas vanitatum

          Começaremos mencionando o que os estudiosos chamam de “grandiosidade infantil”. Aqui, o desejo natural de ser admirado e aprovado em determinadas fases da infância não é transcendido. A causa se encontra em experiências específicas relacionadas com a frustração e o abandono, que levam esse desejo a permanecer com intensidade patológica durante a vida adulta. Menciono o caso porque sinto que é necessário mostrar, mesmo brevemente, a expressão mais aguda do problema, mas em última instância, uma abordagem profunda concernirá, acima de tudo, ao psicólogo.

          Deixando de lado as situações extremas, temos que dizer que, qualquer ser humano que cria alguma coisa e é aplaudido por isso, em algum momento sentirá vaidade, e em maior ou menor medida, dependendo da intensidade dos aplausos, da história pessoal ou da predisposição natural à mesma.

           Então, o que o poeta pode questionar-se não é se a sentirá ou não, mas como impor-lhe limites. Algumas ideias para isto:

2.3.1. Natureza da vaidade

          Quando a sua origem não provém de um conflito dos primeiros anos, trata-se de uma resposta instintivamente natural diante da recepção de um impacto emotivo (no caso do escritor, os aplausos) e que se traduz em um estado de instabilidade emocional. A pessoa envaidecida está fora do próprio equilíbrio, fragilizada. Além disso, quanto maior é a demonstração externa de grandiosidade, maior é a insegurança interior.

2.3.2. Seus efeitos

           As consequências mais comuns são:

           1ª. As pessoas realmente valiosas (por exemplo, aquelas que nos estimam com sinceridade) tendem a se afastar.

           2ª. O autor perde a objetividade em relação à qualidade da própria obra. Assim, qualquer coisa que escreve considera uma “grande obra”. Inclusive,  não é raro o caso de quem já produziu obras excepcionais e que, em  determinado momento, envaidecido, produz obras medíocres acreditando que são genialidades.

2.3.3. Como impor limites à vaidade

           1º. Dedicação ao estudo. Principalmente nos momentos de agravamento da emoção, pode ser útil submergir-se no estudo literário ou da língua. Quanto mais difícil for esse estudo melhor, pois, desse jeito, a pessoa recupera a consciência do muito que ainda falta por saber e fazer.

           2º. O sexo, idealmente com amor. Quando não é realizado com a intenção de agredir, significa propriamente um ato de entrega. Sempre supõe uma “pequena morte” do eu, nos ajudando a delimitá-lo e a colocar os pés no chão. Normalmente, a pessoa que se dedica a tarefas intelectuais e não tem uma vivência mínima do sexo tende a produzir um tipo de discurso intrincado e embebido de um intelectualismo vazio.

           3º. O memento homo (“Lembra-te, homem, que és pó...”). Sem querer ser demasiado trágico, podemos lembrar de que nada impede que, em qualquer momento da vida chegue algum tipo de acidente imprevisível e inevitável que anule a potência física do melhor atleta, a mente do melhor pensador, a fortuna do mais rico, a beleza do mais gracioso, a tarefa do trabalhador mais esforçado, a arte do melhor artista etc.

           4º. Diante do público. Recorrer à leitura de livros de oratória pode ser de grande utilidade, mas menciono igualmente algumas estratégias específicas relacionadas com a nossa epígrafe:

           - A insistência em proclamar ’como sou humilde’ ou criticar a vaidade dos outros não ajuda, porque qualquer observador minimamente lúcido nos dirá o velho ditado espanhol “Dime de qué presumes y te diré de qué careces”. (“Diga-me do que te vanglorias e te direi do que careces”).

           - No contato direto com as outras pessoas o fato de saber ouvir é centrador e fortalecedor. Estar atento às necessidades do outro, ser acessível, mas também saber restringir o contato caso nos sintamos explorados ou esgotados emocionalmente. E, obviamente, evitar sempre a rispidez.

           - Restringir, na medida do possível, o contato com os aduladores e incrementar esse contato com as pessoas que tenham integridade e coragem suficientes para nos dar uma opinião crítica, caso seja necessária.

           - No entanto, tendo talento ou não, sempre é prudente não falar mal da própria obra ao público. Primeiro, porque isso desestimula o leitor para abordar os nossos escritos (como alguém vai se interessar por um texto cujo próprio autor afirma explicitamente que não é bom?...); segundo, isto costuma ser uma das formas mais usuais de falsa modéstia.

           - Se formos elogiados, a princípio, agradecer é suficiente. Isto inclui também algo muito necessário: permitir-nos ser queridos, ”alimentados”, pelo público.

           - Dar atenção à gestualidade. A postura corporal e os gestos podem mostrar nosso estado emocional antes mesmo que as nossas palavras. Por exemplo, encarar o público ou um interlocutor com os braços cruzados já denota uma atitude de defesa, um “nariz empinado” deixa transparecer nosso envaidecimento etc.

           5º. A lei maior. O que mais nos fortalece na hora de lidar com a vaidade é agir com humor, compreensão e compaixão, tanto em relação a si mesmo quanto em relação aos outros. Somos todos feitos da mesma matéria.

2.4. O elogio e a crítica

          O elogio é bom e necessário, mas existe uma tênue linha que separa o efeito positivo que ele provoca e o desequilíbrio. Para identificar esta linha, primeiro, é preciso ter uma visão minimamente clara dos nossos limites artísticos. O elogio bem assimilado supõe um forte incentivo para continuar criando e, realmente, o artista precisa dele; porém, a crítica não é algo menos indispensável.

           Com relação a este segundo objeto, cabe dizer que, logicamente, é desejável  receber críticas lúcidas e que mantenham a cortesia, mas até mesmo a pior delas, a mais grosseira e obtusa, pode ser benéfica se aproveitada tanto para delimitar a vaidade quanto para melhorar a própria obra.

           Na verdade, a indignação provocada ao receber um insulto, por exemplo, pode significar um valioso estímulo para reexaminar aquilo que se faz. Se o autor tiver algum interesse de que a sua obra alcance a qualidade, colocará verdadeira energia em tentar reforçar as próprias debilidades. Então, mesmo que doa, toda crítica é boa se queremos e sabemos aproveitá-la.

           De qualquer maneira, se desejamos que o impacto emocional seja menor, podemos aumentar a própria receptividade e flexibilidade aprendendo como funciona o processo de reação instintiva que costuma desencadear-se quando uma pessoa é contrariada. Tal processo consta das seguintes fases:

           1ª. Negação. A pessoa nega automaticamente a crítica.

           2ª. Racionalização. Tenta justificar-se, encontrar argumentos racionais para demonstrar que a sua atitude não é errônea.

           3ª. Agressividade. Responde à crítica com hostilidade.

           4ª. Assimilação/aceitação. Em um momento posterior de calma, a pessoa começa a remeditar sobre o assunto e a entrever a sua posição equivocada, caso realmente seja assim.

           Uma forma de evitar as três primeiras fases pode consistir em fazer perguntas para o emissor da crítica. Perguntar o porquê, como, formas de solução e correção. Desse modo, quebramos o cenário de confrontação saindo da nossa postura defensiva, tendo como consequência natural converter nosso oponente, antes “inimigo”, em um aliado para a solução da carência.

           Por último, cabe assinalar os benefícios de escutar a todos, sim, mas também  de “filtrar” aquilo que nos dizem, seja lá quem for, de modo que, finalmente,  as ideias e decisões adotadas sejam fruto de um sólido e cuidadoso processo de discernimento.

2.5. Inspiração e trabalho

          A inspiração é algo que não vem exatamente quando queremos, mas podemos formar as bases mentais para que chegue com maior frequência e facilidade. Isso pode ser alcançado por meio de:

           1º. Trabalho. Seguindo aquela “lei do foco”, segundo a qual tudo o que recebe atenção cresce, se o hábito de escrever é maior, também serão mais frequentes os momentos de inspiração produtiva.

           2º. Ofício poético. É bem certo que um autor com ofício pode escrever um poema com uma técnica perfeita, servindo-se de uma ideia interessante e que esse poema não tenha “alento”, “magia”, “alma”, que não “vibre”, que não “tenha vida”, que seja “frio”... porque faltou a “conexão com o coração”. Contudo, também existirão momentos em que essa conexão seja muito intensa e, se o autor não tiver ofício, também não disporá dos recursos expressivos necessários para aproveitá-la, de modo que, efetivamente  produzirá um poema que reflita emoções muito intensas, mas tão incapaz de cativar o leitor como no primeiro caso.

           Compor, esporadicamente, um poema frio ou que simplesmente não funcione não deve nos preocupar tanto assim. Como não deve nos preocupar que um volume mais ou menos considerável daquilo que escrevemos termine na lixeira (de fato, se isso acontecer, será um indicador a mais de objetividade e sinceridade consigo mesmo). Podemos inclusive dizer que, um poema que não funciona pode estar preparando a nossa sensibilidade para outro que se materializará mais tarde com toda a magia e força poética. Isto é mais provável, por exemplo, quando se volta à escritura depois de um longo período de inatividade.

           No entanto, o que desperta a energia criativa pode variar muito de acordo com os temperamentos, aquilo que funciona com uma pessoa não funciona com outra. Por isso, o poeta deve aprender a conhecer seus próprios processos internos, procurar entender o que o leva a escrever, para que, para quem, que tipo de poesia lhe interessa e quer fazer, quais situações, vivências, leituras desencadeiam, ou não, o verso.

2.6. Disparadores do ato criativo

          Encontram-se naturalmente no que vivemos com especial interesse ou intensidade. Lembraremos, pelo menos, os mais habituais, que podem dividir-se em dos grupos:

2.6.1. Externos (na percepção dos estímulos exteriores)

          1º. As leituras.

           2º. A observação direta do ambiente físico.

           3º. As outras artes: pintura, escultura, música, cinema, teatro etc.

           4º. O conflito e/ou harmonia externos, tanto naqueles em que intervimos ativamente quanto naqueles em que somos simples observadores interessados.

2.6.2. Internos (na percepção dos estímulos interiores)

          1º. As próprias emoções: agressividade, júbilo, excitação amorosa, depressão, humorismo etc.

           2º. O próprio pensamento: meditação filosófica e vital.

           3º. A imaginação.

           4º. A intuição.

           5º. As fantasias diurnas e os sonhos.

           6º. As lembranças.

           7º. Os desejos.

2.7. Períodos de seca criativa

          Durante o caminho artístico, por mais talento que se tenha, é totalmente natural que venham épocas de baixa criatividade, inclusive épocas nas quais seja totalmente impossível escrever. Isto é inevitável, pois, por um lado, a vida pode não nos conceder sempre um espaço para fazer coisas como compor um poema; por outro, mesmo que não seja assim, a energia criativa expressa, per se, seus altos e baixos.

           Porém, nem mesmo um período no qual não possamos escrever deve ser entendido como estéril. Pode ser necessário, por exemplo, para restaurar a energia, acumular novas vivências etc.

           A seguir, algumas sugestões para os períodos nos quais, por uma razão ou outra, o novo texto não sai: se não conseguimos escrever coisas novas, podemos tratar de corrigir textos anteriores ou que se encontrem em processo de refinamento. Se não conseguimos corrigir, podemos aproveitar para ler. Se não conseguimos ler, podemos limitar-nos a deixar que venham novas experiências vitais significativas. Se nem isso acontece, podemos aproveitar para fazer nada. No poeta, tudo trabalha para conjurar o poema, tudo é matéria transmutável em verso, mesmo a não ação, e se realmente queremos manter a poesia no próprio caminho, em algum momento ela voltará.
––––––––

Continua…

Fonte:
http://www.indrisos.com/ensayosyarticulos/artepoeticaportugues.html#4

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Hildeberto Barbosa Filho / MA (Pequena Propedêutica Litúrgica ao Sagrado Corpo da Mulher Amada)


 nada
 é mais sagrado
 que o corpo da mulher
 amada

 o corpo
 da mulher amada
 é um evangelho de veredas
 abissais

 é uma planície habitada
 por silentes centopéias

 é sempre um país estranho
 estrangeiras águas
 donde vêm as violetas
 do amor

 o corpo
 da mulher amada
 está salpicado de picassos
 vermelhos
 e os milharais sobrevoam
 os corvos do coração

 o corpo
 da mulher amada
 sangra a cada mês
 a divina palidez das metáforas
 nuas

 o corpo
 da mulher amada
 tem vidraças
 tem chafarizes
 e tem colmeias
 e tem garças
 e tem antíteses

 procuremos
 no corpo da mulher
 amada
 os demônios do paraíso

 bebamos
 o corpo da mulher
 amada
 como os sedentos que naufragam
 nas miragens do deserto

 [...]
 o corpo
 da mulher amada
 é para ser olhado como se olha
 uma paisagem de gerânios
 solitários

 é para ser tocado como se toca
 as harpas do sol
 é para ser consumido como se consome
 uma rara liturgia

 é para ser amado como se ama
 o secreto lume da noite
 derradeira

 pobre do amante
 que não alcança as mandalas
 eróticas

 os imprevistos rituais
 os translúcidos castiçais
 os lóbulos lacustres
 do corpo da mulher
 amada

 o corpo
 da mulher amada
 nunca morre

 o corpo
 da mulher amada
 nunca apodrece

 o corpo
 da mulher amada
 nunca é pornográfico

 nunca é banal
 nem árido
 nem deserto

 nunca é abjeto
 o corpo da mulher
 amada

 o corpo
 da mulher amada
 é alma tangível

 mais sagrado
 que o corpo da mulher
 amada
 só o beijo da mulher
 amada

 [...]

Fonte:
FILHO, Hildeberto Barbosa. Nem morrer é remédio, Poesia reunida. João Pessoa, PB: Ideia Editora Ltda., 2012, p.259-265

José Antonio Jacob (Sonetos Escolhidos)


SONETO PARA UMA AQUARELA
(ou a princesa e o sapo)

Na desbotada folha do papel
 Luiza vai compondo o meu destino,
 De início ela pintou um lindo céu
 Acima dos meus sonhos de menino.

 Depois foi desenhando: um carrossel,
 Uma quermesse, uma igrejinha e um sino.
 E, ao lado de um castelo pequenino,
 Uma princesa e um sapo num corcel.

 Em derredor, nos campos, se depara,
 Lírios-do-vale, margaridas, dálias.
 Uma aquarela de paisagem rara.

 Ó doce Luiza, ó flor que me ampara!
 Por que sua princesa usa sandálias
 E o feio sapo tem a minha cara?!…

DE VOLTA AOS QUINTAIS

Mesmo corrido o tempo guardo apreço
 Aos meus passos cansados, desiguais,
 Que sempre me levaram sem tropeço
 Ao refúgio da infância dos quintais.

 Nada mudou! De longe reconheço
 A confraria alegre dos pardais
 E as mesmas roupas claras nos varais:
 Nunca tirei daqui meu endereço!

 Apenas me ausentei de casa cedo,
 Qual criança que se afasta do folguedo
 Para mais tarde aconchegá-lo a si.

 Eu sou esse menino arrependido
 E quero o meu brinquedo envelhecido
 Para brincar no tempo que perdi!

ELOGIO À DOR DO DESAMOR

I

Ainda que até o amor você me roube
 (Pode roubar-me sem abrir a porta)
 Rogarei que outro amor maior me arroube,
 Pois só o amor meu coração conforta.

 Ora, que triste, a noite é quase morta!
 E o meu beijo em seus lábios nunca coube,
 Eu amo a dor e a dor não me suporta
 Porque eu já morri e você não soube.

 O meu amor que o seu amor espalma,
 Em troca de ter-me arrebatado a alma,
 Haverá de avivar as suas dores.

 Que vibre no seu peito outros amores!
 Você feriu-me a vida e dou-lhe flores...
 E morro sem você na noite calma.

  II

Que doce olhar... e a vida é tão pequena!
 O mundo é triste sem seu doce olhar...
 Para mim seu olhar é uma novena
 Que acompanho de longe sem rezar.

 Amo-a tanto e ela sabe que me amar
 É dor, tristeza, mágoa, perda e pena,
 Por isto ela não me ama e me condena
 A entrar no céu e não poder ficar.

 Que coisa triste, que desesperança!
 Ponho em seus olhos meu olhar que clama
 E ela olha-me inocente feito criança.

 Adeus! (meu breve adeus é o de quem ama)
 Deixo-lhe meu sorriso de lembrança,
 Pois tenho de ir que a minha dor me chama.

III
  
Não me diga adeus que ainda é cedo amor,
 Antes sorria para que eu não chore
 E deixe que entre nós tudo demore,
 Até a despedida e o desamor.

 Eu sei que você sabe a minha dor,
 (E haja em mim mais angústia que lhe implore)
 Essa dor que os meus olhos descolore
 Haverá de ficar se você for.

 Não faça assim amor, não me entristeça,
 Se for para você se despedir
 Tomara que amanhã não amanheça!

 Nada acontece quando Deus não quer,
 E eu peço a Deus para você não ir
 Nem me dizer adeus... Se Deus quiser!

IV

Enquanto, em seu olhar, o amor se cala,
 Se Deus quiser você verá que aqui
 No meu olhar é o coração que fala:
 - É a minha alma que nele lhe sorri!

 Eu tive tanto tempo para amá-la,
 Os dias todos em que não morri,
 E amei a solidão na minha sala
 Nos mesmos dias em que não vivi.

 Eu não a vejo na minha saudade,
 E o que os seus olhos podem me dizer
 Sua saudade ingênua não me diz.

 Que seu olhar se cale de verdade!
 Mas se a verdade é o que me faz sofrer
 Dê-me a mentira para eu ser feliz.

O VENDEDOR DE BONEQUINHOS

De manhãzinha, à beira da calçada,
 Diariamente a corda eu estendia,
 E pendurava nela uma braçada
 De bonequinhos feios que eu vendia.

 Eram polichinelos que eu fazia
 De trança de algodão, mal desfiada...
 No pano das feições não conseguia
 Puxar-lhes traços de melhor fachada.

 Ao desbotar o azul, no fim do dia,
 Quando eu os desatava dos alinhos
 Desse varal de cordeação brilhante,

 Esses desengonçados bonequinhos
 Desciam-me nas mãos com alegria
 E me davam abraços de barbante.

A DOR DO VINHO

Lembras-te tu do vinho da ilusão,
 Que, entre olhares confusos de fumaças,
 Bebemos devagar em nossas taças
 E que nos deu delírios de paixão?

 Bem me lembro dos risos nas vidraças
 E da música suave no salão,
 E que ninguém mais nos prestava graças
 Quando toquei de leve a tua mão.

 E enquanto te fiz tratos de carinho
 E amei teus olhos grandes e indecisos,
 Fitaste-me a sorrir em desvario...

 E zonzo, para o sempre, fui sozinho,
 Levando na lembrança os teus sorrisos
 E o coração no peito mais vazio…

VERSOS DE AMOR

Ó alma solitária, outrora envaidecida,
 Que dirás aos teus olhos, nesta noite morta,
 Ao veres tua vida triste e desflorida,
 Se o desespero vier te aferrolhar a porta?
  
 - Aqui jaz a pessoa que ninguém suporta!
 (Mal ouvirás o som da tua voz ferida)
 E escreverás no espelho, com a letra torta,
 A derradeira frase de repúdio à vida.
  
 Caso vieres, Senhora, sofrer a inquietação,
 Da incômoda lembrança, dos doces sinais,
 Que o passado feliz deixa no coração...
  
 Lembres que teu futuro não existe mais,
 Que estás vivendo a última recordação
 Nestes versos de amor de quem te amou demais…

Fontes:

José Antonio Jacob (1950)


José Antonio de Souza Jacob, nasceu em Juiz de Fora (MG) em 11 de fevereiro de 1950 onde realizou seus primeiros estudos, ingressando em seguida no curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais "Vianna Júnior”. 

No final dos anos 70 iniciou-se no jornalismo como redator da Gazeta Comercial, tendo nessa época se aprofundado no estudo de Filosofia e Letras e logo em seguida foi admitido, por concurso, na área de Recursos Humanos da Companhia Telefônica de Minas Gerais, tendo se aposentado do serviço público em 2005. 

Desde as primeiras letras o menino foi estimulado a ler poetas, levado pela mão de seu pai, um comerciante que apreciava poesia, especialmente a dos brasileiros e dos portugueses. 

Entre as leituras de sua adolescência estão poesias de Raul de Leôni, Mário Quintana, Augusto dos Anjos, António Nobre, Cesário Verde, Fernando Pessoa, José Gomes Ferreira e Charles Baudelaire. 

Da mãe Heloisa herdou a doçura das palavras e a maneira singela de contemplar a vida sem ser alienado. 

Seu estilo simples e requintado de escrever poesia conquistou grandes poetas e escritores, de sua cidade, de quem passou a desfrutar de convivência contínua, mesmo ainda muito jovem. 

Por sua perfeição na metrificação e na qualidade poética é considerado por muitos que conhecem sua obra como “um dos mais importantes sonetistas da língua portuguesa na atualidade”. 

Este juizforano, nascido sob o signo de aquário, recusa-se a escolher seu verso do coração e a participar de escolas e grupos literários, preferindo o sossego da vida bucólica nos arredores de Juiz de Fora. 

A 27 de abril de 2007 foi condecorado e recebeu a insigne Medalha do Mérito Legislativo, Mérito Excepcional em Poesia, na Câmara Municipal de Juiz de Fora. 

A 06 de julho de 2007 foi sancionado pelo prefeito de Juiz de Fora o "Título Honorífico de Cidadão Benemérito de Juiz de Fora ao Poeta José Antonio de Souza Jacob", por indicação do vereador Bruno Siqueira, com aprovação unânime da Câmara Municipal. Acadêmico HONORÍFICO AVPB, ocupa a cadeira de honra n 01.

Fonte:

Mitos e Lendas (O Urubu e o Sapo)



Certa vez, o urubu e o sapo foram convidados para uma festa no céu. Todos os pássaros tinham sidos convidados e estavam contentes. O urubu, querendo caçoar do sapo, foi à casa dele e falou-lhe: 

— Ei, compadre sapo! Já sei que você também vai à festa no céu! Quero ir em sua companhia.

— Pois não, compadre urubu — respondeu calmamente o sapo — contanto que você leve a sua viola. 

— Como não? Contanto que você leve seu pandeiro. 

Combinaram que o urubu viria buscar o compadre no dia seguinte.

No dia da festa, o urubu chegou à casa do sapo e foi muito bem recebido. O sapo mandou-o entrar, para ver a comadre e os afilhados. E enquanto o urubu estava entretido, o sapo entrou na viola do urubu, dizendo: 

— Até logo, compadre. Como ando devagar, já vou indo.

E ficou bem quietinho dentro da viola do urubu. Dali a pouco o urubu despediu-se da comadre e dos afilhados, pegou na viola e voou para o céu. 

Quando chegou, perguntaram-lhe pelo compadre, mas o urubu disse: 

— Ora, ele não vem, nada. Se anda tão devagar lá em baixo, como há de voar?

Quando o urubu deixou a viola num canto, o sapo saltou de dentro e apareceu entre os convidados, gritando:

— Pronto, gente! Aqui estou eu! 

Todos se admiraram de ver o sapo naquelas alturas mas, pouco depois, começaram a dançar e a brincar, esquecendo-se dele. Mas a festa acabou e chegou a hora de voltar. Novamente o sapo, sem ser visto, meteu-se na viola do urubu, que largou vôo para a terra. Mas o sapo moveu-se dentro da viola, o urubu ouviu e virou o instrumento de boca para baixo. Então o sapo despencou lá de cima e, enquanto caia, gritava: 

— Arreda pedra, senão você se quebra! 

— Ora essa! — exclamou o urubu rindo — Não é que o compadre sapo sabe mesmo voar? 

O sapo caiu, esborrachou-se e esfolou-se todo. Por isso é que ele é assim como o vemos hoje.

Fonte:
Colhido por Jerônimo B. Monteiro e publicado em sua coluna Lendas, mitos e crendices
Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

Clássicos do Cancioneiro Popular (A Sogra Enganando o Diabo)


 Dizem, não sei se é ditado,
 Que ao diabo ninguém logra;
 Porém vou contar o caso
 Que se deu com minha sogra.
 As testemunhas são eu,
 Meu sogro, que já morreu,
 E a velha, que é falecida.
 Esse caso foi passado
 Na rua do Pé Quebrado
 Da vila Corpo Sem Vida.

 Chamava-se Quebra-Quengo
 A mãe de minha mulher,
 Que se chamava Aluada
 Da Silva Quebra-Colher,
 Filha do Zé Cabeludo.
 Irmã de Vítor Cascudo
 E de Marcelino Brabo,
 Pai de Corisco Estupor;
 Mas ouça agora o senhor
 Que fez a velha ao diabo.

 Minha sogra era uma velha
 Bem carola e rezadeira,
 Tinha seu quengo lixado,
 Era audaz e feiticeira;
 Para ela tudo era tolo,
 Porque ela dava bolo
 No tipo mais estradeiro.
 Era assim o seu serviço:
 Ela virava o feitiço
 Por cima do feiticeiro!

 Disse o demo: — Quebra-Quengo,
 Qual é a tua virtude?
 Dizem que és azucrinada
 E que a ti ninguém ilude?
 Disse a velha: — Inda mais esta!
 Você parece que é besta!
 Que tem você c’o que faço?
 Disse ele: — Tudo desmancho,
 Nem Santo Antônio com gancho
 Te livra hoje do meu laço!

 Ela indagou: — Quem és tu?
 Respondeu: — Sou o demônio,
 Nem me espanto com milagre,
 Nem com reza a Santo Antônio!
 Pretendo entrar no teu couro!
 E nisto ouviu-se um estouro!
 Gritou a velha: — Jesus!
 Ligeira se ajoelhou
 E, depois, se persignou
 E rezou o Credo em cruz!

 Nisto, o diabo fugiu.
 E, quando a velha se ergueu,
 Ele chegou de mansinho,
 Dizendo logo: — Sou eu!
 Agora sou teu amigo
 Quero andar junto contigo,
 Mostrar-te que sou fiel.
 Minha carta, queres ver?
 A velha pediu pra ler
 E apossou-se do papel.

 — Dê-me isto! grita o diabo,
 Em tom de quem sofre agravo.
 Diz a velha: — Não dou mais!
 Tu, agora, és o meu escravo!
 Disse o diabo: — Danada!
 Meteu-me numa quengada!
 Sou agora escravo dela!
 E disse com humildade:
 — Dê-me a minha liberdade,
 Que esticarei a canela!

 Disse a velha: — Pé de pato,
 Farás o que te mandar?
 Respondeu: — Pois sim, senhora,
 Pode me determinar,
 Porque estou no seu cabresto
 Carregarei água em cesto,
 Transformarei terra em massa,
 Que para isso tenho estudo;
 Afinal, eu farei tudo
 Que a senhora disser — faça!

 Disse a velha: — Vá na igreja,
 Traga a imagem de Jesus.
 Respondeu: — Posso trazê-la,
 Mas ela vem sem a cruz,
 Porque desta tenho medo!
 Disse a velha: — Volte cedo!
 Ele seguiu a viagem
 E ao sacristão iludiu:
 Uma estampa lhe pediu
 Que só tivesse uma imagem.

 A velha, então, conheceu
 Do cão o quengo moderno,
 E, receando que um dia
 A levasse para o inferno,
 Para algum canto o mandou
 E em sua ausência traçou
 Com giz uma cruz na porta.
 Voltou o cão sem demora,
 Viu a cruz, ficou de fora,
 Gritando com a cara torta.

 Gritou o cão no terreiro:
 — Aqui não posso passar!
 Venha me dar minha carta,
 Quero pro inferno voltar!
 Disse a velha que não dava,
 Mas ele continuava
 A rinchar como uma besta.
 — Pois fecha os olhos! ela diz.
 Ele fechou e, com giz,
 Fez-lhe outra cruz bem na testa!

 Aí entregou-lhe a carta
 E o demo pôs-se na estrada,
 Dizendo com seus botões:
 — Não quero mais caçoada
 Com velha que seja sogra,
 Porque ela sempre nos logra!
 Foi, assim, a murmurar.
 Quando no inferno chegou,
 O maioral lhe gritou:
 — Aqui não podes entrar!

 — Então, já não me conhece?
 Perguntou ao maioral.
 — Conheço, porém, aqui
 Não entras com tal sinal:
 Estás com uma cruz na testa!
 Disse ele: — Que história é esta?
 Que é que estás aí dizendo?
 Mirou-se dum espelho à luz:
 Quando distinguiu a cruz,
 Saiu danado, correndo!

 E, na carreira em que ia,
 Precipitou-se no abismo,
 Perdeu o ser diabólico,
 Virou-se no caiporismo,
 Pela terra se espalhou,
 Em todo lugar se achou,
 Ao caipora encaiporando,
 Embaraçando seus passos
 E com traiçoeiros laços
 As sogras auxiliando...

 Deste fato as testemunhas
 Já disse todas quais são.
 Agora, quer o senhor
 Saber se é exato ou não?
 Invoque no espiritismo
 Ou pergunte ao caiporismo,
 Este que sempre nos logra,
 Se sua origem não veio
 Do diabo imundo e feio
 E do quengo duma sogra!

Fonte:
Barroso, Gustavo. Ao som da viola (folclore); nova edição correta e aumentada. Rio de Janeiro, 1949. Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140.Edição Especial de Aniversário