segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Trovadores Potiguares que Deixaram Saudades (F – J)


Eu vi teu rastro na areia
pela derradeira vez
e dei-lhe um milhão de beijos
pensando no pé que o fez...
Ferreira Itajubá † (?)

Aquelas nuvens esparsas
nos horizontes risonhos
bem parecem lindas garças
no lago azul dos meus sonhos.
Francisco Alcaniz (Chico Traíra)
Assu, 1926 -1989


Estradas longas, compridas...
Caminhos despovoados:
– são minhas mágoas sofridas,
– meus lamentos desprezados.
Francisco Amorim
Assu, 1889 -1992


No sepulcro quero apenas
inscrição da minha idade;
e no lugar de verbenas,
um poema de saudade.
Francisco Mota † (?)

Descendo o rio da Vida,
e indo ao mar buscar encanto,
vou deixando na descida
os retalhos do meu pranto...
Francisco Bezerra
Pau dos Ferros, 1920 – ???? Natal


No sertão, sol causticante,
meu pai de enxada nas mãos,
foi morrendo a cada instante
por mim e por meus irmãos!...
Francisco Macedo
Natal 1948 – 2012


Já sofri demais ao léu
por esse mundão afora...
Se tiver direito ao céu
só não desejo ir agora.
Gilda Moura † (?)

Pelos mais árduos caminhos
da vida por onde fores,
verás sempre entre os espinhos
nascer as mais belas flores.
Giovani Xavier
Martins 1923 – ???? Natal


A grandeza que te invade
e a força que te conduz,
é ter a credulidade
de uma alma cheia de luz.
Haroldo Duarte
Sobral/CE 1953 – ???? Natal


As nossas mágoas doridas
vivem hoje num clamor:
– romance de nossas vidas,
comédia do nosso amor...
Hercílio Sobral Crispim † (?)

Chuva que turva as estrelas
não caia com força, não!
há largas brechas nas telhas
do meu frágil coração!
Hilda Araújo † (?)

Entre verdes manguezais,
e um vetusto casario,
ninguém te esquece jamais,
ó Potengi, nosso rio.
Hilton da Cruz Gouveia
Palmares/PE 1920 – ???? Natal


Olhando o céu azulado,
vendo a beleza do mar,
vejo um sol belo e dourado
iluminando o meu lar.
Ivaniso Galhardo 
1915 – ????


Quando a viola ponteia
a mais saudosa canção,
a lua vem e prateia
todo o céu do meu sertão.
Ivanosck Galhardo † (?)

Quando a noite veste o espaço
de lantejoulas de luz,
Natal parece um pedaço
do presépio de Jesus!
Jaime Wanderley † (?)

Teu olhar doce e castanho,
brilhando com forte luz,
modelou bem o tamanho
dos braços da minha cruz.
Jayme Paulo Filgueira
Caicó 1934 – ???? Natal


Lá, no céu, bem curiosa,
a lua branca altaneira,
espreita maliciosa
os cabarés da Ribeira.
João Alfredo
Natal 1943 – 2004


Natal é cidade amada,
do Potengi a consorte.
– É bela joia engastada
no Rio Grande do Norte.
João Carlos de Vasconcelos † (?)

À sombra de uma palmeira
de um solar colonial,
aquela velha porteira
parece um cartão postal...
Jonas Ramos da Cunha † (?)

Não quero corais de pranto
no dia da minha morte...
– Vou me enterrar no chão santo
do Rio Grande do Norte.
José Amaral † (?)

O cego, com dedos certos,
tange a sanfona dorida,
e eu, com dois olhos abertos,
erro nas teclas da vida.
José Lucas de Barros
Serra Negra do Norte 1934 – 2015 Natal/RN


Quando tu pisas, morena,
é tão leve o teu andar,
que eu penso que tu tens pena
de o próprio chão machucar...
Josué Tabira da Silva
Natal 1889 – ????


Sou um homem rico. Vede
vós que sofreis de ambição:
– uma cabocla, uma rede,
um cachimbo e um violão.
Junquilho Lourival
Natal 1895 – ????


Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva

Carlos Drummond de Andrade (Caso de Recenseamento)


O agente do recenseamento vai bater numa casa de subúrbio longínquo, aonde nunca chegam as notícias.

— Não quero comprar nada.

— Eu não vim vender, minha senhora. Estou fazendo o censo da população e lhe peço o favor de me ajudar.

— Ah, moço, não estou em condições de ajudar ninguém. Tomara eu que Deus me ajude. Com licença, sim?

E fecha-lhe a porta.

Ele bate de novo.

— O senhor, outra vez?! Não lhe disse que não adianta me pedir auxílio?

— A senhora não me entendeu bem, desculpe. Desejo que me auxilie mas é a encher este papel. Não vai pagar nada, não vou lhe tomar nada. Basta responder a umas perguntinhas.

— Não vou responder a perguntinha nenhuma, estou muito ocupada, até logo!

A porta é fechada de novo, de novo o agente obstinado tenta restabelecer o diálogo.

— Sabe de uma coisa? Dê o fora depressa antes que eu chame meu marido!

— Chame sim, minha senhora, eu me explico com ele.

(Só Deus sabe o que irá acontecer. Mas o rapaz tem uma ideia na cabeça: é preciso preencher o questionário, é preciso preencher o questionário, é preciso preencher o questionário.)

— Que é que há? — resmunga o marido, sonolento, descalço e sem camisa, puxado pela mulher.

— É esse camelô aí que não quer deixar a gente sossegada!

— Não sou camelô, meu amigo, sou agente do censo…

— Agente coisa nenhuma, eles inventam uma besteira qualquer, depois empurram a mercadoria! A gente não pode comprar mais nada este mês, Ediraldo!

O marido faz-lhe um gesto para calar-se, enquanto ele estuda o rapaz, suas intenções. O agente explica-lhe tudo com calma, convence-o de que não é nem camelô nem policial nem cobrador de impostos nem emissário de Tenório Cavalcanti. A ideia de recenseamento, pouco a pouco, vai-se instalando naquela casa, penetrando naquele espírito. Não custa atender ao rapaz, que é bonzinho e respeitoso. E como não há despesa nem ameaça de despesa ou incômodo de qualquer ordem, começa a informar, obscuramente orgulhoso de ser objeto — pela primeira vez na vida — da curiosidade do governo.

— O senhor tem filhos, seu Ediraldo?

— Tenho três, sim senhor.

— Pode me dizer a graça deles, por obséquio? Com a idade de cada um?

— Pois não. Tenho o Jorge Independente, de catorze anos; o Miguel Urubatã, de dez; e a Pipoca, de quatro.

— Muito bem, me deixe tomar nota. Jorge… Urubatã… E a Pipoca, como é mesmo o nome dela?

— Nós chamamos ela de Pipoca porque é doida por pipoca.

— Se pudesse me dizer como é que ela foi registrada…

— Isso eu não sei, não me lembro.

E voltando-se para a cozinha:

— Mulher, sabes o nome da Pipoca?

A mulher aparece, confusa.

— Assim de cabeça eu não guardei. Procura o papel na gaveta.

Reviram a gaveta, não acham a certidão de registro civil.

— Só perguntando à madrinha dela, que foi quem inventou o nome. Pra nós ela é Pipoca, tá bom?

— Pois então fica se chamando Pipoca — decide o agente. — Muito obrigado, seu Ediraldo, muito obrigado, minha senhora, disponham!

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Prêmio Literário Gonzaga de Carvalho (Resultado Final)

Realização da Academia de Letras de Teófilo Otoni/MG

Categoria: Poesia

Classificação geral


Primeiro Lugar:
“Chaves e fechadura”
Cláudio Rogério Trindade
Ijuí-RS;

Segundo lugar:
“Desencontro”
Evandro Ferreira
Caucaia-CE

Terceiro lugar:
“Ao Dom Juca-Desrenato...”
João Bosco de Castro
Bom Despacho -MG.

Menções Honrosas:

4º lugar:

“O banquete”
Antonia Aleixo Fernandes
São Paulo-SP;

5º lugar:
“Homofobia”,
Valter Bitencourt Júnior
Salvador-BA;

6º lugar:
“Após Maria da Penha”
Marina Barreiros Mota
Palmas-TO;

7º lugar:
”Aprendizado”
Isabel Cristina Silva Vargas
Pelotas-RS;

8º lugar:
“Divagações”
Cláudio de Almeida Hermínio
Belo Horizonte-MG;

9º lugar:
“Transmutação”
Érika Lourenço Jurandy
Rio de Janeiro-RJ;

10º lugar:
 “Aos lábios de uma rosa”
Fernando Catelan
Mogi das Cruzes-SP;

11º lugar:
“Juju, a Anta sabe sabe”,
Rosilene Alves
Padre Paraíso-MG;

12º lugar:
“Para que serve a saudade?”
José Feldman
Maringá-PR;


13º lugar:
“Caminho amarelo”
Fátima Sampaio
Belo Horizonte-MG;

14º lugar:
“Sou poeta” 
Teresa C.C. M. Azevedo
Campinas-SP; e

15º lugar:

“Chuvas do Sertão”
Walter Luiz Cid do Nascimento
João Dourado-BA.

Categoria: Crônica

Classificação geral


Primeiro Lugar:
“Tempos”
Amalri Nascimento
Rio de Janeiro-RJ;

Segundo lugar:
“Domingos de saudade”
Marina Barreiros Mota
Palmas-TO

Terceiro lugar:
“Renascendo das cinzas”
Paulo Roberto de Oliveira Caruso
Rio de Janeiro-RJ.

Menções Honrosas:

4º lugar:

“Cabo Maninho...”,
João Bosco de Castro
Bom Despacho-MG;

5º lugar:
“Um chafariz de refresco”
Celso Gonzaga Porto
Cachoeiriha-RS;

6º lugar:
Contemplas o mar...”
Juracy Nonato Ferreira
Santa Helena de Minas, MG;

7º lugar:
“Ma Petit Fille (Blonde)
Vânia Rodrigues Calmon
Vila Velha-ES;

8º lugar:
“A política do açougue”
Marcelo de Oliveira Souza
Salvador-BA;

9º lugar:
“O armário do meu quarto”
Caracy Teixeira Bessa
Salvador-BA;

10º lugar:
“Solidão”
Margareth das Dores Rafael Moreira Costa
Itambacuri-MG;

11º lugar:
“Ouse pensar... e contribua com uma sociedade melhor”
Lucivalter Almeida
Nazaré-BA;

12º lugar:
“Boneca de carne”
Carmelita Ribeiro Cunha Dantas
Aparecida de Goiás – GO;

13º lugar:
“Hoje”
Odyla Paiva
Rio de Janeiro-RJ;

14º lugar:
“A cidade vista sob o olhar altruísta”
Odenir Follador
Ponta Grossa-PR e

15º lugar:
“Quantum e a realidade da multiplicidade”
Sílvio Parise
East Providence – EUA

Fonte:
Academia de Letras de Teófilo Otoni

Lançamento da Coletânea 100 Sonetos de 100 Poetas (25 de agosto em Fortaleza)


O Instituto Horácio Dídimo de Arte, Cultura e Espiritualidade tem a grata satisfação de convidar a todos para o lançamento da coletânea "100 Sonetos de 100 Poetas" que acontecerá às 17h30min do dia 25/08/2019 no Espaço Juvenal Galeno da XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará, no Centro de Eventos do Ceará, na Av. Washington Soares, 999 - Edson Queiroz - Fortaleza-CE.

A coletânea, que conta com participação de 100 poetas sonetistas de todo o Brasil,  foi organizada por Luciano Dídimo com a colaboração dos professores Bôscoly Morais e Carlos Gildemar Pontes, sendo enaltecida com o  prefácio de Sânzio de Azevedo, um dos maiores especialistas cearenses em  Teoria do Verso!

Na ocasião o livro poderá ser adquirido pelo preço promocional de R$20,00 a unidade, com desconto de 25% na compra de 10 unidades (R$150,00).

Confira abaixo a lista dos 100 poetas participantes:

    Adriano de Alvarenga Azevedo – Ideal de Paz
    Airton Uchoa Neto – Andropausa
    Alana Girão de Alencar – A… calma
    Alan Bezerra Torres – Metanoia
    Ana Maria Nascimento – Presença de Outono
    Ana Néo – Antissoneto
    Antônio Francisco Pereira – A Travessia
    Antônio Ortiz – Soneto de meu pai
    Arielvaldo Vianna – Dilemas de Ícaro
    Arlindo Tadeu Hagen – O Breu da Ausência
    Batista de Lima – Outonal
    Bôscoly Morais – Ninho Vazio
    Bruno Paulino – Poema do Peregrino
    Caio Fraga – Soneto Resoluto
    Carlos Gildemar Pontes – Na luz da tua imagem
    Carlos Vargas – Cristo: Alimento da Igreja
    Carlos Vazconcelos – Em defesa do soneto
    Célia de Paula – Entardecer
    Daniel Perroni Ratto – Soneto da Busca
    Décio Romano – Soneto 113
    Diana Balis – Verdade
    Dimas Carvalho – O Espelho
    Diogo Fontenelle – Soneto ao Eu-Menino
    Edir Pina de Barros – Confissões
    Edmar Freitas – O Tempo
    Elimax de Andrade – Solidão
    Elvira Drummond – O Muro e a Ponte
    Estela da Paz – Soneto à Rainha do Carmelo
    Eugênia Carra’h – As Pérolas da Vida
    Fabiana Guimarães – Primeiro Soneto
    Fernando Saboia – Soneto para a Alma
    Francisco Lopes Neto – Cânticos, 6
    Francisco Silvino – O Tempo
    Gilliard Santos da Silva – Soneto de Esperança
    Giselda Medeiros – Insanidade
    Gonzaga Mota – Sentido da Vida
    Guiomar Frota – Saudade
    Henrique Beltrão – Soneto Torto
    Inês Carolina Rilho – Ecoando n’alma
    Isabel Furini – Batalha Poética
    Ismar Dias de Matos – Diamantina
    Israel Batista de Sousa – Rosemary
    Izaíra Silvino – Sonho Alentado
    Jader Soares – Vira-lata
    João de Arimateia de Melo – Líquidas Palavras
    José Feldman – Mistérios da Vida
    José M. M. Pedro – Antes que surja o amor
    Josenir Lacerda – Anseio
    José Valdivino – Carmelitas
    J. Udine – A Morte do Velho Monge
    Júlio César Martins Soares – A mulher nasce do sonho
    Júnior Bonfim – Eu Sou
    Karla Karenina – Soneto do Amor Passado
    Kléber Cação – Tentativas Vazias
    Leo Rocha – Sinestesia da Fome
    Linhares Filho – À Amada do Octogenário
    Luciano Dídimo – Sonetos e Sonatas
    Lucineide Souto – Então
    Magna Maricelle – Terra à vista
    Manoel Virgílio – Nada
    Márcio Catunda – O Filho Pródigo
    Marcos Antônio de Abreu – Soneto do Amor 
    Marisa Maria Ribeiro – Morada Poética
    Marli Voigt – Palco das Flores
    Mary Nascimento – Renascimento
    Michelle Gomes Moreira – Detalhados Segredos
    Mihai Eminescu (Tradução de Luciano Maia) – Veneza
    Nádya Gurgel – Redondilhas Menores Doridas
    Nahor Lopes de Souza Junior – Não sou poeta
    Nealdo Zaidan – Prova Irreal
    Nicodemos Napoleão – Filosofia
    Nilze Costa e Silva – Navegando
    Oliveira de Castela – Sonito
    Oswald Barroso – Amor sem medida
    Oswaldo Francisco Martins – Amor e Bem Verdadeiros
    Paulo Roberto Coelho Ximenes – Magia no Mundaú 
    Paulo Roberto de Oliveira Caruso – Soneto Decassilábico de Guia
    Pedro Bezerra de Araújo – Caminhar, Errar, Perdoar
    Pedro Francisco Alves – Força do Equilíbrio
    Pedro Ernesto – Os Falsos Heróis da Modernidade
    Pedro Sampaio – Soneto à Liberdade
    Roberto Coelho – Onde florescem os sonhos?
    Roberto Ferrari – Paixão Sentida
    Rosanni Guerra – Quartos Vazios
    Sânzio de Azevedo – Versos ao Sono
    Sônia Cardoso – Manhã
    Sônia Nogueira – Serenidade
    Stélio Torquato Lima – Fugaz
    Tetê Macambira – Soneto do Querer
    Tito de Andréa – Para Lyria
    Totonho Laprovitera – Feliz e Satisfeito
    Túlio Monteiro – E há pó de estrelas pelas estradas
    Vianney Mesquita – Espirituosidade Comedida
    Vicente Delgado Carreto – Razone tendrá la muerte
    Vicente de Paula Maia Santos Lima – Sorriso de Criança
    Vicente Freitas – Soneto ao meu pai morto
    Vicente Vieira – Louco Poeta
    Virgílio Maia – Soneto de Iracema e de Martim
    Wilamy Carneiro – Soneto de Amor!
    Xico Torres – Ide

Instituto Horácio Dídimo
www.institutohoraciodidimo.org
ihd@institutohoraciodidimo.org
Instagram: @institutohoraciodidimo
Facebook: Instituto Horácio Dídimo
 
Fonte:
Luciano Dídimo
Site: www.lucianodidimo.com

domingo, 4 de agosto de 2019

Varal de Trovas n. 53


João do Rio (Emoções)

         
           A Henrique de Vasconcellos.

Ontem, às 6 horas da tarde, fui buscar ao clube da rua do Passeio o velho barão Belfort, que me prometera mostrar, três dias antes, a sua cara coleção de esmaltes árabes. O barão jogava e per­dia com um moço febril, que à lapela trazia um crisântemo amarelo, da cor da sua tez. Ao ver-me, disse amavelmente

— Estamos a jogar. O Osvaldo ganha como um inglês e com a alucinação de um brasileiro. Estou perdendo e apreciando este bom Osvaldo, que ainda tem emoções.

Os seus olhares seguiam, frios e argutos, o jogo do bom Osvaldo, e, a cada cartada, tamborilando os dedos na mesa, Belfort sorria um sorriso mau, entre desconfiado e satisfeito. De repente, porém, as pupilas acenderam-se-lhe. Pôs as duas mãos nervosas na mesa, e perguntou, enquanto mais pálido o moço estacava:

— E tu não jogas?

— Não.

— Fazes bem. Um escritor do tempo de Balzac dizia que o jogo era para a mocidade o veneno da perdição. O veneno! ora vê tu, o veneno!

Sorriu com delicadeza.

— O Osvaldo permite? Vou embora sem mais um real. Até amanhã. E não deixe de tomar água de flor de laranja...

Levantou-se, mirou as unhas brunidas, mirou a gravata, e saiu, deixando o jovem só naquele salão que o pleno verão tornara deserto. Acompanhei-o, não sem olhar para traz. O moço pendia a cabeça na sombra, e assim pálido, com um pálido crisântemo, os seus olhos tinham chispas de susto e de prazer.

Embaixo, no vestiário, o barão deixou que lhe enfiassem o paletó, mandou chamar o coupé[9], e partimos discretamente, sob a tarde luminosa e cor de pérola. Belfort aconchegou-se à almofada de cetim malva, acendeu uma cigarrilha do Egito com o seu monograma em ouro, e, enquanto o carro rodava, indagou:

— Que tal achaste o Osvaldo? É o meu estudo agora. Havia meia hora que me roubava escanda­losamente... Não lhe disse nada. Ainda é possível salva-lo...

— Quer perde-lo? indaguei habituado ás excen­tricidades desse álgido ser.

— Oh! não, quero gozá-lo. Tu sabes, o homem é um animal que gosta. O gosto é que varia. Eu gosto de ver as emoções alheias, não chego a ser o bisbi­lhoteiro das taras do próximo, mas sou o gozador das grandes emoções de em torno. Ver sentir, forçar as paixões, os delírios, os paroxismos sentimentais dos outros é a mais delicada das observações e a mais fina emoção.

— Oh! ser horrível e macabro!

— Seja; horrível, macabro, mas delicado. É por isso que eu não quero perder o Osvaldo, quero apenas gozá-lo. Preciso não limitar a minha ação humana aos passeios pelo Oriente, às coleções autênticas e a alguns deboches nos restaurantes de grão tom. Mas daí a perde-lo, c’est trop fort...

— Pois não imagina o mal que fez ao pobre Osvaldo. O rapaz estava horrivelmente pálido!

— Tal qual como o outro. Que exemplar, meu caro! que caso admirável! Esse pequeno há seis meses odiava o víspora. Hoje tem a voracidade de ganhar, e tamanha que já rouba. Amanhã arde, queima, rebenta numa banca de jogo. Ah! o jogo! É o único instinto de perdição que ainda desencadeia tempestades nos nervos da humanidade. O Osvaldinho é tal qual o outro, o Chinês, a minha última observação.

— O Chinês?

Belfort soprou o fumo da cigarrilha, sorrindo.

— Imagina que vai para um ano fui apresen­tado a um rapaz chamado Praxedes, filho de uma chinesa e de um negociante português em Macau. O homem falava inglês, estava no comércio, e vinha de Xangai, com um carregamento de pote­rias e bronzes por contrabando, para vender. Simpatizei com ele. Era imberbe, ativo, paciente, dizia a cada instante frases amáveis, e casara com uma interessante rapariga, a Clotilde — Clô para os íntimos. Conversou da China, dos boxers, confessou o contrabando e levou-me a vê-lo. Que vida feliz a daquele casal!

O Praxedes saía pela manhã, trabalhava, voltava para o jantar, e não se largava mais de junto da Clô. Não tinha um vício, nunca tivera um vício, era um chinês espantoso, sem dragões e sem vícios! Estudei-o, analisei-o. Nada. Legisla­tivamente moral.

Uma noite em que o convidara para jantar, jogamos. Adivinharia alguém que cratera esperava o momento de rebentar nessa alma tranquila? A senhora, a Clotilde, cantava no meu piano, com voz triste, a ária do suicídio da detestável Gioconda. Eu estava receoso que depois surgissem variações sobre o bailado das Horas. Disse-lhe despreocu­pado 

— “ Quer jogar?” 

— “ Não sei”. 

“É sempre agradável ensinar mesmo o vício”. 

— “ Então en­sine”. 

Pegou das cartas, olhou-as indiferente, mas as minhas palavras ouvia-as desvanecedoramente. Jogamos a primeira partida. Os seus olhos come­çaram a luzir. Jogamos outra. 

— “ Mas isso assim sem dinheiro? Ponhamos dois tostões ”. 

— “ Pois seja ”. 

Perdi. 

“ Redobra-se a parada?” 

— “Oito tostões?” 

— “ Sim”. 

— “ Pois seja” 

À meia noite jogávamos a dez mil réis, e Clotilde, muito cansada, já sem cantar, fazia inúteis esforços para o arrancar à mesa.

Deitei-me sem conclusões, e só no dia seguinte, quando o chinês enleado apareceu pedindo outra partida, é que compreendi o assombro. A paixão estalara, — a paixão voraz, que corrói, escorcha, rebenta... Invejei-o, e, como homem delicado, jo­guei e perdi No outro dia, Praxedes voltou. Levei-o ao clube, à roleta, donde saiu a ganhar pela madru­gada.

Ah! meu caro, que cena! que fina emoção! O jogo, quando empolga, domina e envolve o homem, é o mais belo vício da vida, é o enlouquecedor espetáculo de uma catástrofe sempre iminente, de um abismo em vertigem. O Chinês era patético. Com os dedos trêmulos, assoando-se de vez em quando, os olhos embaciados, quase vítreos, o Pra­xedes rouquejava num estertor silvante que parecia agarrar-se desesperadamente à bola: 27, 15, 2ª dúzia! 27, 15, 2ª dúzia! E a bola corria, e a alma do pobre esfacelava-se na corrida, esforçando-se, puxando-a para o numero desejado, num esforço que o tornava roxo...

Jantei no clube só para não perder algumas horas o interesse desse espetáculo. Também durante três dias e três noites Praxedes não deixou a roleta. Estava pálido, fraco. A gente do clube, vendo-o ganhar, ganhar mesmo uma fortuna, já o tratava de dom Praxedes. Ao cabo de uma semana, entre­tanto, a chance desandou. Praxedes começou a perder bruscamente com gestos de alucinado, espalhando as fichas como quem arranca pedaços da própria carne.

— “Calma, meu caro, dizia-lhe eu “. — “ Impossível! impossível!”, murmurava ele.

Pediu-me dinheiro, dei-o, pediu a outros, deram-­lho. Pediu mais — deixou de ser o dom Praxedes, recebeu recusas brutais. Acabou não voltando mais ao clube. Eu, porém, sentia-o em outros antros, definitivamente preso à sua cruz de horror, à cruz que cada homem tem de carregar na vida...

Certa noite, meses depois, encontrei-o numa batota da rua da Ajuda, com o fato enrugado e a gravata de lado. Correu para mim.

“Foi Deus que o trouxe. Estou farto de peruar. Isto de mirone[1] não me serve. Empreste-me cinquenta mil réis para arrumar tudo no 00. Ah ! está dando hoje escandalo­samente. Faremos uma vaca[16]? Vai dar pela certa.”

Agarrou a nota como um desesperado, precipi­tou-se na roda que cercava o tableau da direita: 

“Tenho aqui cinquentão; esperem!” 

E caiu por cima dos outros, com o braço esticado.

O duble-zero falhou. Ele voltou cínico: 

“ É preciso insistir; deixe ver mais algum. Não dá? Olhe, escute aqui, hipoteco-lhe uma mobília de quarto, serve? ”

Compreendi então a descabida vertigem da­quela queda. Tive pena. Arrastei-o quase à força para a rua, fi-lo contar-me a vida. Estava desem­pregado, abandonara o emprego, vendera o mobiliário, as jóias da Clô, os vestidos, as roupas, mu­dara-se para uma casa menor e alugara a sala da frente. A cábula [2], a má sorte, a guigne perseguiam-no, e, pendido ao meu braço o miserável soluçava: “

 — Havemos de melhorar, empreste-me algum. estou sem níquel !”

Deixei-o sem níquel, mas fui ao outro dia ver a Clotilde, uma flor de beleza, com os olhos verme­lhos de chorar e as roupas já estragadas. Ia sair, arranjar dinheiro... 

— “ E seu marido? ” 

— “ Meu marido está perdido. Anda por aí a jogar. Há dois dias não o vejo; hoje não comi...”

 — “ Aban­done-o! ” 

— “ Abandona-lo eu? E a sociedade, e ele? Que seria dele? ”

 — “ Ora, ele! ” 

— “Ele ama-me, ama-me como dantes. Mas que quer? Veio-lhe a desgraça. Às vezes brigo, mas ele diz­-me: Ai ! Clô, que hei de fazer? É uma força, uma força que me puxa os músculos. Parece que desen­rolaram uma bola de aço dentro de mim, tenho de jogar. E cai em prantos, por aí, tão triste, tão triste que até lhe vou arranjar dinheiro, que saio a pedir...”

É espantoso, pois não? O homem tinha uma bola de aço e a fidelidade da mulher! Só esses seres especiais conseguem coisas tão difíceis!

Um instante o barão calou-se. O coupé rolava pela praia, e a noite, caindo, desdobrava por sobre o mar a talagarça [3] fuliginosa das primeiras sombras.

Respeitei a Clotilde, por sistema, já assustado com as proporções emocionais do marido. Ao outro dia, porém, Praxedes. com sorrisinhos equívocos na face escaveirada: 

“ Esteve com a Clô, hein? Con­servada apesar da desgraça, a minha mulherzinha, pois não?...” 

Recuei assombrado. Aquele homem bom, digno no fundo, aquele homem que amava a mulher, para arranjar dinheiro .com que satisfazer as cartas e a roleta, mercadejava-a aberta, cínica, despejadamente. 

— “Que queres tu? inda­guei áspero, tem vergonha, vai, some-te! ”

— “Eu hipoteco uma mobília. Só quinhentos, só quinhentos!”

Era a alucinação. Corri-o, e esperei ansioso como quem espera o final de uma tragédia, porque tinha a certeza do paroxismo daquele vício. Afinal há de haver seis meses, antes do meu encontro com o Osvaldo, li, na cama, às 3 da manhã, este bilhete desesperado 
“Venha. Praxedes matou-se. Estou sem ninguém. Acuda-me. — Clô”.

Ai ! menino, não sei o que senti. A minha vontade era ver, era saber, era acabar logo. Precipitei-me. Quando cheguei, às voltas com a polícia que queria levar o corpo para o Necrotério, Clotilde, desgre­nhada, com os lábios em sangue, caiu nos meus braços. 

— “ Então, como foi isso? ” 

— “ Sei lá como foi! Tinha que ser! A desgraça! Estava doido. Hipotecou a mobília, os juros eram semanais. Não arranjei dinheiro e o judeu levou-a. Dormi no chão. Ontem não apareceu. Hoje estava eu a dormir quando o senti que caminhava. Risquei o fósforo. Era ele, lívido, embrulhando a casaca do casamento. Não sei o que me deu. 

— “ Onde vais?” 

— “Vou ver se arranjo uns cobres, respondeu. Pre­ciso jogar, sinto uma ânsia, não posso mais.” 

— “Estás doido!” 

— Não estou, Clô, não estou, fez ele arregalando os olhos. Eu fui cruel: olha que se ven­des a casaca ficas sem roupa para o enterro. Ele parou. “ Para o enterro? para o meu enterro? É melhor mesmo, é melhor mesmo, eu não posso mais !” 

E, de repente. desesperado, começou a ba­ter com a cabeça pelas paredes. Praxedes ! Praxe­des ! Não faças isso! Praxedes! Gritei, solucei. Qual! Cada vez arrumava o crânio com mais força de encontro às quinas das portas. O som, ah! esse som como me ensandece! Ainda o ouço ! E ele todo em sangue, todo em sangue... Agar­rei-o. Arrastou-me até à janela, voltou-se, deixou-se cair em cheio com a nuca na sacada, esticou o pescoço desesperadamente e rodou... Oh! o horror! salve-me! salve-me!”

Abri o grupo dos agentes, fui ver Praxedes. Estava cor de cera, com a cabeça fendida e os lábios coagulados de sangue roxo. E o olhar vítreo, a mão recurva, assim, sob a luz da madrugada, pareciam seguir ainda e acompanhar o mal a que o impelira a sua bola de aço.

Esse recorde de emoção desesperada prostrou-me. Nunca vi sentir tão vertiginosamente.

O carro parara. O barão saltou, subiu de vagar as escadas de mármore, enquanto no interior do palacete retiniam campainhas elétricas.

— Preciso sentir vendo os outros sentir, fez mirando-se no alto espelho do vestiário. Só assim tenho emoções. Garanto-te que o Osvaldo acaba como o chinês de Macau, mas por outro meio — com a morfina talvez. Só os chineses morrem às cabeçadas por sentir demais !

E fomos jantar tranquilamente na sua mesa florida de cravos e anêmonas brancas.
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Notas:
[1] Aquele que observa o jogo, sem dele fazer parte.

[2] Má sorte, caiporismo, azar.

[3] Tecido ralo, por sobre o qual se tece um bordado.
 

 Fonte;
João do Rio. Dentro da Noite.