sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Newton Sampaio (Delírio do Zé Carijó)

— Deixe de maldade, rapaz! Pra que judiar do animal? Não sabe que isso machuca as pernas do bicho?

Geraldo, repreendido pelo pai, desistiu da proeza que queria praticar — amarrar uma lata de querosene na cauda do cavalo, que era tão manso, para depois gozar a barulheira, quando a corrida desabalada a fizesse sacolejar doidamente.

Desistiu dessa proeza, mas enfiou-se pelo fundo do quintal, à cata de novos motivos de travessura.

Zé Carijó abanou a cabeça.

— Não tem mais jeito, mesmo.

E, empunhando a foice, continuou a fazer ponta em um pedaço de peroba que serviria para ultimar a cerquinha do paiol de milho.

— Precisa ser posto em colégio de padre ou em quartel de polícia. Cruz-credo! Não há quem possa com as suas ruindades...

De dentro de casa, veio uma voz de mulher:

— Nhô Zé! Posso pôr a janta?

— Pode, Rosália. Já ‘tou com a barriga nas costas.

Largou a ferramenta. Foi até o poço tirar água para lavar as mãos. Espiou o céu.

— Quá! Nem sombra de chuva! Nem parece janeiro...

O jantarzinho foi servido no prato de folha.

— Cadê Geraldo? Vá ver se ele tá aí por perto, Rosália. 

O menino chegou com um sorriso velado, cínico, nos lábios.

— Coma depressa e vá à casa do compadre Lucas levar um recado.

Quando o garoto, já nutrido, saiu com destino ao velho Lucas, Zé Carijó puxou uma cadeira até a porta do terreiro. Chamou Ritinha, que andava pelos quatro anos.

— Filha, venha cá sentar no colo do pai.

Fora o último presente de Rita, pois, quando a criança nascera, a mulher partira desta vida para melhor.

Zé Carijó lembrava-se bem. Tinha sido difícil consolar-se com a perda de sua companheira fiel de doze anos. Enfim... Como assim rezava a vontade de Deus... Achava Ritinha (ele somente) infinitamente parecida com a mãe.

Até o mesmo nome lhe botara. E a fizera criar com carinhos requintados. Era o seu “ai Jesus”, como dizia perdidamente o Geraldo — na petulância de seus quinze anos —, que não podia compreender nem justificava a adoração do velho pela caçulinha. Até a “sinhá” Rosália — a irmã mais nova da Rita, e que passara a morar ali desde o nascimento da criança — de vez em quando gracejava com o exagero daquele amor paternal.

— Livra, nhô Zé! ‘Té parece princesa...

Zé Carijó, com a filhinha no colo, relembrava o seu jeito de vida. Não fossem a saudade da companheira e as peraltices do Geraldo (matutava), e o mundo não lhe seria mau.

Com a fuga do sol, o céu ficou todo cheinho de estrelas. E o caboclo, até muito tarde, deixou-se ficar ali, na porta da casinhola, pensando na sua Rita, que devia estar bem pra lá das estrelas, e afagando a menina do seu coração, a Ritinha, que ressonava, alheia à saudade do pai, alheia aos astros longínquos, piscantes, aos urutaus que enchiam a noite de assombrações — alheia à vida. 

Entrava mês, saía mês, e a existência do sertanejo arrasta-se no ritmo de sempre. Há certas pessoas que vivem assim: sem grandes dissabores nem gozos notáveis — o pêndulo da sensibilidade oscilando isocronicamente, suavemente de um lado a outro, na amplitude acanhada de seu movimento, sem jamais se desequilibrar no paradoxismo dos extremos.

Geraldo completara os dezenove anos. E Ritinha andava beirando já a casa dos oito. Foi por esse tempo que a pacatez do Zé Carijó começou a descambar francamente. O rapagote, cujos instintos perversos dia a dia se acentuavam, burlava a vigilância do pai. E, certa vez, sumiu do lugar, depois de praticar um roubo vultuoso contra o próprio padrinho, o velho Lucas.

Para Zé Carijó, o choque foi inimaginável. Seu nome, sempre tão honrado, manchado agora por esse malfeito do filho! 

Por muitos dias ficou abobado, indiferente, com a cara cheia de sulcos, e com uma vergonha tremenda pondo-lhe tremores na alma. Não quis mais aparecer a ninguém. Sentia-se sem o direito de olhar os outros homens. E, um belo dia, arrumou os tarecos, vendeu a moradia, pagou as poucas dívidas, e zarpou para longe, sem dizer a ninguém o destino que tomava.

A Ritinha — coitada! — chorou, chorou como nunca. Tinha amor pela casinhola onde nascera. 

Zé Carijó — mais a filha e a cunhada — tocou-se pros lados de São Jerônimo, lá no fundo sertão paranaense. E começou nova vida. Criando porcos. Plantando milho. Vendendo os presentes que a terra lhe dava.

Ninguém o conhecia ali. Achou até de bom aviso trocar de nome, embora como um eco, soubesse da regeneração do Geraldo. E, para todos os efeitos, passou a atender por “Zé de Minas”. 

Ritinha ia crescendo. Franzina sempre, tomava, no entanto, um arzinho simpático. E para Zé Carijó — pseudo Zé das Minas — que, apesar de não ser muito velho, andava já com a cabeça branqueando cada vez mais — para o Zé Carijó ela era o supremo consolo, na maturidade amarga de sua vida. Fazia-lhe por isso os melhores carinhos, aguardando uma possibilidade para levá-la p’ra perto da cidade.

Um dia, começou a chegar àquelas bandas o eco das façanhas de um tal João dos Corações. Assim o alcunhara o povaréu transido, porque — era voz corrente — quando o bandoleiro assaltava inopinadamente uma vivenda qualquer, depois de levar a efeito uma razia impiedosa, matava uma das moças, se as houvesse, deixando-a de peito aberto, à mostra. Um tipo mórbido, não havia dúvida.

Vencê-lo, e a seu bando, a raquítica polícia do interior não podia. E o já famoso João dos Corações continuava a assustar o bom povo do sertão, pilhando as fazendas desprotegidas e, quando possível, obedecendo ao imperativo de seu sadismo criminoso.

Quando uns vizinhos contaram ao Zé das Minas a história do bandido, ele não demonstrou susto.

— Que adianta esse João dos Corações vir a este rancho? Eu sou um coitado, sem haveres quase...

Numa noite, em que fazia um luar muito bonito, Zé das Minas se viu coagido em ir a um guardamento na casa de um conhecido que morava a menos de meio quilômetro.

Lá se foi, recomendando expressamente a Ritinha e a Rosália que não abrissem a porta a ninguém.

— Não tenham medo. Fico lá só meia hora, pra cumprir a obrigação. Logo ‘tou de volta.

Já de regresso, quando Zé das Minas deixava a casa do amigo enlutado, um grupo de cavaleiros passava pela frente de sua casa.

— Chefe! Luz! (E apontando o ranchinho). Deve ter coisa...

Desceram silenciosamente alguns homens. Examinaram as armas. Tudo no pontinho de bala, se fosse preciso. Forçaram rápida e violentamente a porta. O vento entrou pela casa, brusco, apagando a chama da lamparina.

As duas mulheres nem tiveram forças pra gritar, de tanto susto. Imobilizaram-se, no escuro tenebroso, pois, até lá fora, uma nuvem cúmplice tinha estorvado a luz da lua. Uma logo rolou pelo chão, ensanguentada. A outra, incólume, mas exânime, caiu no fundo da cozinha.

A pilhagem quase não trouxe lucro aos assaltantes. Ainda assim, uma ou outra coisa, apanhada na obscuridade, tinha bastante serventia. Quando os primeiros bandidos se dispunham a vir para o terreiro ensombrado, um deles procurou o corpo da moçoila. Rasgou-lhe, com suma perícia, o lado esquerdo do peito. Arrastou-a depois para fora, no mesmo instante em que o Zé das Minas, de volta, atravessava a porteirinha próxima.

Sentindo a aproximação de alguém, o bandoleiro largou a vítima. Mas, ao virar-se, a lua, desvencilhando-se da nuvem importuna, iluminou-lhe em cheio a feição sinistra.

E o Zé Carijó — pseudo Zé das Minas — teve tempo de reconhecer o fugitivo.

— Geraldo!...

Subiu uma onda incrível... Era piedade. E também ódio.

— Corre danado! Monta! Vai-te, bandido!

E a garganta apertou.

Zé Carijó estacou. Compreendeu tudo, num segundo. E sentiu na cabeça uma tonteira invencível. Reclamou energia extrema para das alguns passos. Chegou-se perto do corpo abandonado no terreiro. E viu o peito da sua Ritinha todo golpeado, exibindo um pedaço de coração, que parecia querer pulsar, ainda, o ritmo instintivo da vida.

Fez intenção de se baixar e levantar nos braços a filhinha de sua alma. Mas não o conseguiu. Sumiram-lhe as forças. O caboclo arregalou os olhos. Esfregou as pálpebras. Mas tudo começou a embaralhar. Pareceu-lhe que, do peito da moça, saía uma coisa pequenina, pequenina, que pouco a pouco aumentava para formar um coração bem da altura da sua Ritinha.

A perobeira, que havia ali perto, se pôs a mudar também de jeito.

O vasto matagal distante saiu do lugar e veio diminuindo, até desaparecer ali a dois passos. A luz, que estava muito clara, arreganhou-se toda em grandes curvas cordiformes, e, despencando do céu, vinha chegando, devagar, pra perto do caboclo.

Zé Carijó, com fisionomia agônica, no supremo esforço de sua vitalidade, traçou no ar, com o dedo longo, o contorno exato de um enorme coração. E caiu de borco, ali mesmo, rente ao corpo inanimado da filha.
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Publicado originalmente no Correio dos Ferroviários. Curitiba, maio de 1934.

Fonte:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.

Aparecido Raimundo de Souza (O menino e os encantos do primeiro amor)

ANTES DE CRUZAR as portas da matriz da igreja, findada a missa dominical, o garoto chegou para a menina, com um bilhetinho dobrado na mão esquerda e uma rosa vermelha escondida na outra que trazia cruzada atrás das costas. De perto, ela era, sem dúvida alguma, bem mais bonita e divinal, que vista às escondidas, de longe, com a ajuda do binóculo do pai. Rostinho de cinderela, pose de princesa, sem falar na maneira como se vestia: tão elegante e esbelta, como uma rainha dos contos infantis.

— Oi!

— Oi!

Na voz embargada, podia ser notada uma emoção indescritível. Havia um encantamento colossal e assombroso. Do sorriso emanava uma pureza bucólica que dava a impressão de se abrir em um leque de sonhos dourados e quimerados em direção a uma vida próspera e harmoniosa.

— Mandaram eu entregar estas coisas a você.

Trêmulo e indeciso, praticamente o guri jogou o bilhete que escrevera e mais vacilante ainda, atirou a rosa aos pés da criatura.  Ela sorriu com um ligeiro toque de elegância, ao tempo em que as suas maçãs faciais ruborizavam. No instante em que a preciosa esticou as mãos para receber os objetos, ele sentiu uma vontade imensa de agarrá-la num abraço inesperado e beijá-la longamente, calmamente. Seria, para ele, depois, um desejo absconso que guardaria no seu desejo eterno como um revérbero imorredouro. Todavia, um medo infantil, um tormento mesclado por mil fantasmas, não lhe deixou levar adiante o gesto pretendido. A jovenzinha, em voz maviosa, indagou “quem fora que mandara fazer aquela entrega,” mas o espavorido travesso andava longe. Corria, às carreiras, desembestadamente, feito um doidinho pelo meio dos carros estacionados, até o instante em que sumiu na esquina próxima. Temia levar um fora, um não, um chega pra lá, e, assim, ver as suas alucinações rolarem por água abaixo. 

A menina, em casa, vinte minutos depois, se acomodou na rede estendida na varanda que se fazia adornada por um jardim imenso. A residência onde morava, frenteava (do outro lado da calçada), com um parquinho. Todas as manhãs e finais de tarde, crianças das mais variadas faixas de idade vinham gastar o tempo brincando com a vida aos regozijos dos balanços e gangorras, enquanto as mães e as babás tricoteavam em seus celulares. De repente ela olhou para um ponto fixo equidistante, como se temesse a presença de alguém a observando. Na verdade, poderia ser (e, de fato, não outro), senão o tal menino que lhe fizera o lisonjeiro galanteio. Possivelmente o engraçadinho sapeca a estaria reverenciando. Se abriu inteira, numa fervura inquietante. Jurou, atrelada às suas emoções que não descansaria enquanto não descobrisse quem se atrevia a mandar recadinhos de amor a uma charmosa que mal saíra dos desabroches das fraldas. Sua mãe, por experiência própria, há muito sabia deste amor oculto. Nada dizia, só observava. E se enamorava dos seus tempos de juventude.

Entretanto, uma coisa se fazia incógnita. Ela desconhecia, ou pelo menos fingia ignorar que a sua encantadora mocinha, apesar da pouca idade, alimentava no peito um sentimento muito vivo e latejante que fazia um outro ser, possivelmente não muito distanciado dali, disparar e voar longe quando via a sua filhota por perto. A se ver, de fato, sozinha depois de se certificar que a mãe e o pai não a flagrariam, a donzela abriu cuidadosamente o bilhetinho mal escrito numa metade de folha de caderno: 

“Você é o vento que mexe nas folhas e balança as cortinas de seu quarto. Este sopro é o meu desespero batendo descompassado, querendo pular tresloucado de dentro do meu ser só para ficar escondido, quietinho, bem fundo, dentro da quentura que brota das entranhas de seu corpo. Saiba que te gosto muito. Assinado: seu admirador secreto.”

Logo abaixo, um coração desenhado e, ao lado, uma observação sublinhada com lápis de cor:

“A rosa que você está segurando agora é o símbolo do nosso futuro amor. Você será minha. Até lá, sinta o perfume dela e se embriague com o cheiro da paixão inimitável que sinto por você.” 

Fonte: Texto enviado pelo autor 

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Edy Soares (Oceano de Trovas) – 1 -

Trova e imagem: Facebook do trovador
Imagem de Fundo: arte por JFeldman


Mensagem na Garrafa – 43 -


Gabriela Pais
Almada/Portugal

DEVANEIO

Quem não sonha ser princesa,
montar em branco alazão
encontrar grande paixão.
Sobre a luz da natureza
a quimera fica presa,
a cabeça em devaneio,
sonha de coração cheio.

Quem viaja com o vento
quem não vive de lembranças
e queremos ser crianças,
entressonho de espavento,
aspiração de momento,
percorrer montes e vales,
por amor sarar os males.

Cada sonho uma mensagem,
o encontro duma aventura
em mar crispo e com bravura,
a mente segue viagem
por vezes ganha vantagem,
fica liberado o amor
devaneio sai vencedor.

Fértil imaginação
fugir da realidade
almejar felicidade,
firmar realização
de melhor mundo, ilusão.
Será princípio de loucura
sonhar o que se procura?…

João da Câmara (Perdido)

Quando ouviu ao longe, no campanário da freguesia, bater meia-noite, entreabriu de mansinho a porta da choupana e escutou por longo tempo. Nem um sussurro!... Tudo dormia àquela hora.

Saiu e, pé ante pé, com a enxada ao ombro, aproximou-se da aldeia, que tinha de atravessar. Tudo era silêncio; apenas, muito ao longe, junto à fonte, uma rã solitária coaxava tristemente.

A lua no minguante alumiava com uma serenidade triste umas 30 ou 40 casas, dispostas no fundo do vale, ao acaso, entre os choupos da beira do riacho e os últimos pinheiros da mata, que descia pela encosta em pujante vegetação sombria.

Pelas fendas das portas mal cerradas, ouvia-se por vezes o profundo ressonar compassado dos homens de trabalho. Então parava com o ouvido à escuta, olho à espreita, com um pé adiante, o outro para trás, posto de bico, pronto para a retirada. E, quando tudo outra vez caía no primitivo silêncio, tornava a caminhar devagarinho, sempre cauteloso, sobressaltado, de olhar desconfiado, como se fosse cometer um crime.

Grossos rolos de nuvens pardacentas, com largas nódoas escuras, onde a lua, numa carreira seguida, mergulhava enchendo o campo de trevas, começaram deixando cair grossos pingos d’água sobre a rama dos pinheiros. O vento soprava rijo do sul e toda a serra soltava gemidos dolorosos, fantásticos, em meio do sussurro da folhagem.

À medida que a encosta ia se elevando, cerrava-se mais e mais o pinhal. A chuva engrossara, e por entre as ramas mal coava um ou outro raio de luar, iriando, como pérolas transparentes, as gotas d’água, que tremeluziam no extremo das agulhas.

Era no alto da serra que o seu tesouro junto, pouco a pouco, desde tantos anos, fora escondido. Vinha aumentá-lo naquela noite, vinha palpá-lo, tomar-lhe o peso, tendo como únicas testemunhas de prazer tamanho o céu de temporal e os pinheiros a gemerem.
* * *

Subitamente estacou. Na clareira, no meio do pinhal, era a choupana do guarda. Ouvira um choro de criança e uma voz triste de mulher a cantar.

O avarento aproximou-se pé ante pé.

— Fome que o pequeno tem — dizia a mulher com a voz chorosa, interrompendo o canto. — Se eu não comi!... Secou-me o leite. 

E chorava.

Aquela mulher pedira-lhe esmola na véspera. Pedira- lhe esmola!... Tinha fome, dizia. E ele?... Tinha frio. E ele? O filho definhava-se, desde que o marido dela adoecera. Pedira-lhe esmola, como se lhe fora possível, a ele, dar um pedaço da sua alma. Era idiota a mulher!

Mas ao som daquela voz estremeceu, porque ela, doida, ofendida pela recusa, desgrenhada, olhos injetados, chamara-lhe de ladrão, assassino, pondo-lhe os punhos cerrados junto da cara.

— Hão de tudo roubar-te um dia, e tu, cão, hás de chorar, em cima da cova onde escondeste o dinheiro, esfregando a cara na lama... ladrão!

E só a ideia de poder um dia ser assassinado, roubado, que vinha a dar na mesma, fez-lhe passar pela espinha um calafrio, que lhe eriçou todos os pelos do corpo.

Afastou-se da choça, para longe afugentar aquela ideia soturna; mas poucos passos andara, quando lhe pareceu ouvir o lenhador, com uma voz fraca de tísico, entrecortada pela tosse, pronunciar-lhe o nome.

Novamente estacou e ficou-se boquiaberto, respirando a custo, de ouvido a escuta, sentindo bater acelerado o coração. Calara-se tudo na choça e apenas por vezes o vento arrastava pelo pinhal afora uns tristes gemidos de criança, já falta de forças e farta de sofrer.

Tentariam aqueles roubá-lo?

E estremecendo, cheio de susto, deitou a correr pelo pinhal afora, deixando o vento levar-lhe o chapéu esburacado e remoinhar-lhe nas longas farripas (cabelos ralos e um tanto compridos) grisalhas, largando aos bocados nos tojos (plantas espinhosas) e nas silvas os tristes farrapos que o cobriam, escorregando na caruma (folha de pinheiro), agarrando-se aos pinheiros, que sacudidos o encharcavam, a correr, a correr por ali afora, até ao alto da serra, onde se deixou cair extenuado ao pé dum enorme pinheiro manso, seco, que sobre um rochedo escalvado atirava para o ar os longos braços de espectro.

Era ali o seu tesouro.
* * *

Longo tempo ficou estirado, de bruços, sobre os fetos úmidos, arquejando longamente. Depois, criando ânimo, mostrando força inacreditável em corpo tão franzino, com os braços ósseos erguendo alto a enxada e deixando-a depois cair com um esforço, que lhe arrancava do peito cavado um gemido a cada enxadada, começou a cavar, a cavar, até que finalmente o ferro bateu de encontro ao ferro.

Então afastou a terra, ajoelhou, debruçou-se com avidez sobre a cova, meteu-lhe dentro as mãos e, arquejante, fazendo um esforço supremo, com um ah! de vitória, puxou para si o cofre, que, rolando no chão, produziu um som criador do êxtase.

Riu-se alto, enlevado. Depois ergueu-se e com a manga da jaqueta limpou o suor que lhe escorria pela testa.

Ali estava o seu tesouro!... Seu!

E olhava para o cofre, com ternura, sorrindo-se com uma lagrimazinha no olho, abaixando-se para sopesá-lo.

Queriam roubá-lo talvez! Abraçava-se ao dinheiro, com o olhar luzente de uma fera, sentindo nas entranhas uma coragem enorme para defendê-lo como nunca uma loba defendeu um filho.

Podia alguém ter desconfiado do lugar onde o escondera... Era muito noite, ainda teria tempo de sobra para levá-lo dali. Felizmente não lhe escasseavam forças. Querido tesouro da sua alma, junto moeda a moeda!

E, outra vez deitado sobre o cofre, abraçava-o, beijava-o, como se outra alma lá dentro houvesse de perceber a dele; pedia-lhe, cheio de ternura, que não se deixasse roubar, que era vida, sangue de seu coração!

Os pinheiros úmidos tornavam balsâmica a atmosfera. Os raios oblíquos da lua quebravam as sombras das árvores nos troncos das outras e as sombras das copas bailavam, fantásticas, sobre os fetos molhados. E ele ali, tão sozinho com seu tesouro! Havia tanto que lhe não punha os olhos! 

Sentando-se numa pedra, aproximando o cofre, com um esforço enorme, fez girar a tampa nos gonzos ferrugentos e queixosos.

O luar, entre dois farrapos de nuvens, encheu o cofre de faíscas de ouro. E o avarento, em êxtase, fechou os olhos, como encandeado por tanta luz!

O vento cessara de repente e no instante em que o temporal tomou fôlego, um grito de dor, estrídulo, repetido ao longe, ainda mais dolorosamente, pelo eco da montanha empinada, partiu da choça do lenhador.

Eram eles com certeza!... Eram os ladrões!

Ergueu-se abraçado ao tesouro, transido de medo, suando frio. E depois, espavorido, deitou a fugir, esbarrando nos pinheiros, deixando a carne nos esgalhos, caindo, agarrado ao cofre, sobre os seixos agudos, e levantando-se logo para correr outra vez, correr sempre, para fugir do grito, que, ameaçador, o perseguia.

E durante toda a noite, andou fugido, em correrias pelo pinhal, já nem sabia por onde. E o sangue e o suor corriam-lhe pela cara.

Quando o luar começava esmorecendo ajoelhou meio desfalecido, e com as unhas agudas, recurvadas, abriu uma cova funda onde, com esgares de doido enterrou o dinheiro, longe, muito longe, de onde estava antes. Tapou tudo e, por instinto de precaução, puxou-lhe os fetos para cima. E abalou outra vez.

Era manhã quando chegou na casa extenuado, esfarrapado todo, com os cabelos agarrados às faces gotejando sangue, ardendo em febre. Deixou-se cair no catre nojento.

O dia rompia sereno. O vento abrandara e só por detrás da serra é que as nuvens azuladas sombreavam intensamente o fundo da paisagem, em que destacavam alvejantes os casarios. O sol erguia-se esplêndido, enchendo os campos de joias cintilando no escrínio de verdura. A aldeia acordara num banho de luz, cheia de bulícios, de cantos de galos e risos de crianças. Pelas chaminés subia uma colunazinha de fumo azulado, transparente, que a enchia do cheiro bom, alegre, do pinho queimado nas lareiras, aquecendo os almoços. 

Quando o homem voltou a si, depois de muitas horas de cruel delírio, apenas intercalado por curtos sonos cheios de pesadelos, um pesadelo ainda lhe pareceu a lembrança confusa de toda aquela noite agitada.

Viu-se percorrendo o pinhal imenso, que gemia e dançava lugubremente, contorcendo-se no temporal como um condenado na fogueira. Lembrou-se do grito que o perseguira. E logo se viu sujo de sangue, com as unhas despegadas do sabugo, o corpo cheio de nódoas negras, os joelhos escalavrados.

Mas onde enterrara o seu ouro?

Passava a mão pela testa, apertando as fontes, tentando recordar o sítio, a forma de algum pinheiro, o caminho que seguira. Sentou-se no catre, rasgando com as unhas lascadas a carne magra do peito, trêmulo, suando frio. 

Levantou-se e atravessou a aldeia aos bordos, com a vista desvairada, a boca torta, ameaçando com a mão de esqueleto as mulheres sentadas às portas das casas, vigiando os pequenos, que brincavam, no riacho, tostando ao sol os ventrezinhos redondos e as cabecinhas loiras.

E o pinhal até onde a vista se alongava sombreava os montes por ali afora! Ali estava o seu tesouro, ali debaixo de uns fetos, cujas hastes se abriam à sombra de uns pinheiros, fetos e pinheiros todos iguais naquela imensidão!

Outra vez, arquejante, mal sustendo-se nas pernas, trepou e desceu encostas, procurando pegadas, querendo lembrar-se, serenar, passando a mão pela testa com gestos de desespero, como tentando arrancar do cérebro a loucura, que, pouco a pouco, o invadia!

Quase noite foi dar à choça do lenhador.

Lembrou-se então que dali partira o grito que o amedrontara e, escumando de raiva, atirou-se contra a porta, berrando:

— Ladrões! Ladrões!

No meio do quarto estava a criança deitada sobre uma caminha de fetos, pálida, mirrada, as mãozinhas de cera atadas sobre o peito com uma fita velha de seda roxa.

E o pai e a mãe, ao lado do cadáver do filho, choravam mansamente.

O avarento parou no limiar da porta, alumiado pelo último vislumbre da razão. Recuou instintivamente e foi cair sobre um grande molho de achas, dizendo palavras desencadeadas, com os olhos esgazeados, doido de todo e para sempre.

E diante dele passavam bandos alegres de pintassilgos fugindo para os ninhos, levando nos bicos os farrapos da jaqueta, que ele deixara nas silvas do pinhal enquanto os gaios contentes, aquecendo-se ao último raio de sol daquela tarde de primavera, soltavam, pulando de ramo em ramo, grandes gargalhadas irônicas.

Fonte: João da Câmara. Contos. Lisboa: Guimrães, Libânio & Cia, 1900. Disponível em Domínio Público.

Professor Garcia (Sonetos Avulsos) – 2 –


NOITE DE NATAL

Na noite tão divina, estou sempre sozinho,
na favela onde vivo, eu sei que não sou mal.
Já cresci, mas não sei por que, meu bom velhinho,
não mereço um presente, noite de Natal!

Não te esqueças, Noel, que eu tenho um sapatinho,
que eu tiro do meu pé e o ponho no quintal,
passa a noite a esperar teu gesto de carinho,
tremendo de emoção, nas cordas do varal.

O meu sonho não morre, e eu vivo esta esperança,
porque quero sonhar, e enquanto eu for criança,
cobrarei do senhor o bem que sempre fiz,

Meu pobre sapatinho já nem presta mais,
mas eu vou te esperar Noel, noutros Natais,
porque quero um Natal, mais justo e mais feliz!
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SONHOS DE UM SEPTAGENÁRIO

Aos setenta de idade, eu conto agora,
tudo quanto perdi, quanto ganhei;
venci muitas batalhas mundo afora,
quando fui derrotado, não chorei.

Esse velho poeta a Deus implora,
que proteja a família que eu sonhei,
que me guarde esse amor, sonhos de outrora,
o mais rico troféu que conquistei.

Eu não sei se meu sonho, na velhice,
terá sempre o vigor da meninice,
mas um sonho de amor não me envergonha...

Se eu errei, meu perdão pelo que fiz,
que quem sonha, na vida, em ser feliz,
será sempre feliz enquanto sonha!
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TRISTE CORAÇÃO

Vi teu rosto num sonho e fiquei rindo,
no verdor da mais linda mocidade.
Como é doce beijar a flor se abrindo,
aos suspiros do amor, na flor da idade.

Na verdade, eu te vi sempre sorrindo,
como estavas no sonho, sem maldade.
Mas o amor, mesmo em sonho, me iludindo,
redobrava o temor desta saudade.

E depois deste adeus, tu foste embora,
nem sequer, acenaste a um ser que chora,
num silêncio esquisito e sofredor...

E eu do sonho, acordava e, por lembrança,
só restava, do tempo de criança,
velha foto repleta de esplendor!
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MEMÓRIA

Esta dor que me fere e me magoa,
quando lembro da minha mocidade,
nem me importa, que a dor, tanto me doa,
se doendo, não cura esta saudade.

Melancolicamente, eu vou lembrando,
de saudade em saudade, eu vou vivendo,
mas não posso esquecer, de quando em quando,
que em teus braços, aos poucos, vou morrendo.

Nesta luta sem trégua, em desatino,
eu me agarro nas rédeas do destino
dos arquivos ingratos da velhice...

Mas não posso esquecer que fui criança,
guardarei para sempre, na lembrança,
a saudade feliz da meninice!
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GANÂNCIA DESUMANA

Quem me dera as belezas campesinas
das manhãs orvalhadas do meu chão,
aves soltas, voando nas campinas,
pirilampos riscando a escuridão.

Sem beber mais nas fontes cristalinas,
como bate tristonho o coração;
guardo tristes, gravados nas retinas,
os instantes felizes que se vão.

E os heróis da ganância irrefletida,
vão, aos poucos, matando a própria vida
de quem tudo, na vida, já lhes deu...

Chora a fauna, e a floresta não reclama,
porque sabem que o bruto também ama,
mas quem ama este mundo já morreu!

Fonte: Francisco Garcia de Araújo. Cantigas do meu cantar. Natal/RN: CJA Edições, 2017.
Enviado pelo autor.

Lima Barreto (A Minha Bebedeira e a Minha Loucura)

Ao pegar agora no lápis para explicar bem estas notas que vou escrevendo no hospício, cercado de delirantes cujos delírios mal compreendo, nessa incoerência verbal de manicômio, em que um diz isto, outro diz aquilo, e que, parecendo conversarem, as ideias e o sentido das frases de cada um dos interlocutores vão cada qual para o seu lado, eu me lembro muito bem que um amigo de minha família, médico ele mesmo de loucos, me deu, logo ao adoecer meu pai, o livro de Maudsley, O Crime e a Loucura. A obra me impressionou muito e de há muito premedito repetir-lhe a leitura. Saído dela, escrevi um decálogo para o governo da minha vida; entre os seus artigos havia o mandamento de não beber alcoólicos, coisa aconselhada por Maudsley, para evitar a loucura. Nunca o cumpri e fiz mal. Muitas causas influíram para que viesse a beber; mas, de todas elas, foi um sentimento ou pressentimento, um medo, sem razão nem explicação, de uma catástrofe doméstica sempre presente. Adivinhava a morte de meu pai e eu sem dinheiro para enterrá-lo; previa moléstias com tratamento caro e eu sem recursos; amedrontava-me com uma demissão e eu sem fortes conhecimentos que me arranjassem colocação condigna com a minha instrução; e eu me aborrecia e procurava distrair-me, ficar na cidade, avançar pela noite adentro; e assim conheci o chope, o uísque, as noitadas, amanhecendo na casa deste ou daquele.

A minha casa me aborrecia, tão triste era ela! Meu pai delirava, queixava-se, resmungava, com tal ar que me parecia [ .... ]. Eu me agastava, tanto mais que ele não tinha razão alguma. A não ser na ilha do Governador, plena roça, por aquelas épocas, cujas vantagens de moradia são fáceis de adivinhar, eu não me lembrava de ter morado em melhor casa e ter comido melhor; mas ele resmungava.

De resto, tinha horror à vizinhança e, por isto e pelo que disse mais acima, procurei sempre entrar em casa ao anoitecer, quando todos estavam recolhidos. Era rematada tolice, porquanto eu saía para a repartição dia claro e à vista de todos. Coisas de maluco...

No começo, havia dinheiro na bolsa de todos e o parati entrava como mera extravagância. O forte era cerveja; mas, bem depressa, com a fuga inexplicável do dinheiro das nossas algibeiras, a cachaça ficou sendo o nosso forte; e eu a bebia desbragadamente, a ponto de estar completamente bêbado às nove ou dez horas da noite.

O aparecimento do meu primeiro livro não me deu grande satisfação. Esperava que o atacassem, que me descompusessem e eu, por isso, tendo o dever de revidar, cobraria novas forças; mas tal não se deu; calaram-se uns e os que dele trataram o elogiaram. É inútil dizer que nada pedi.

A minha dor ou as minhas dores aumentavam ainda; e, cheio de dívidas, sem saber como pagá-las, o J. M. aconselhou-me que escrevesse um livro e o levasse para ser publicado no Jornal do Commercio.

Assim o fiz. Pus-me em casa dois meses e escrevi o livro. Saiu na edição da tarde e ninguém o leu, e só veio a fazer sucesso, para mim inesperado, quando o publiquei em livro. Desalentado e desanimado, sentindo que eu não podia dar nenhuma satisfação àqueles que me instruíram tão generosamente, nem mesmo formando-me, não tendo nenhuma ambição política, administrativa, via escapar-se por falta de habilidade, de macieza, a única coisa que me alentava na vida — o amor das letras, da glória, do nome, por ele só.

Eu me senti capaz de fazer, mas de antemão sabia que não encontraria em parte alguma quem me imprimisse e tinha a íntima certeza de que não encontraria dinheiro com que me fosse possível editar o meu trabalho, especialmente o Gonzaga de Sá.

Bebi cada vez mais, e, dentre muitas aventuras, algumas humilhantes, e não foram as mais o parar duas ou três vezes nas delegacias de polícia, aconteceu-me uma, que se cerca de um mistério que até hoje não pude desvendar. Conto. 

Uma noite, às últimas horas, muito bêbado, pedi a V. que me levasse ao bonde, que passava na Rua Sete de Setembro. Esperei no poste, em frente ao canil, o veículo e, de repente, focinhei no chão. V., que já morreu e era muito mais forte do que eu, levantou-me, equilibrou-me e pôs-me de pé. De repente, veio uma rapariga preta, surgida não sei de onde, que perguntou a V. (foi ele que me contou):

— A patroa manda perguntar o que tem o doutor L.

V. respondeu: — O doutor L. está um pouco incomodado, devido a ter se excedido um pouco. Não é nada.

A rapariga foi-se e logo após voltou:

— A patroa manda este remédio para o senhor fazer que o doutor L. cheire. Ela manda também que o senhor acompanhe o doutor L. até em casa, com todo o cuidado.

Era um vidro de amônia que, ainda, vazio, guardo em casa. Quem foi essa boa alma? Quem é essa “patroa”? Não sei e creio que não saberei nunca. Ficam aqui, porém, os meus ternos agradecimentos. As minhas dores e as minhas dificuldades, também.

Não me preocupava com o meu corpo. Deixava crescer o cabelo, a barba, não me banhava a miúdo. Todo o dinheiro que apanhava bebia. Delirava de desespero e desesperança; eu não obteria nada.

Outras muitas me aconteceram, mas são banais a todos os bebedores. Dormi em capinzais, fiquei sem chapéu, roubaram-me mais de uma vez quantias vultuosas. Um dia, furtaram-me cerca de quinhentos mil-réis e eu amanheci sentado a uma soleira, na Praça da Bandeira, com mil-réis no bolso, que, creio, me deixaram por comiseração os que me roubaram.

Tenho vergonha de contar algumas dessas aventuras, em que felizmente ainda me deixaram com roupa. Elas seriam pitorescas, mas não influiriam para o que tenho em vista. Resvalava para a embriaguez inveterada, faltava à repartição semanas e meses. Se não ia ao centro da cidade, bebia pelos arredores de minha casa, desbragadamente. Embriagava-me antes do almoço, depois do almoço, até ao jantar, depois deste até à hora de dormir.

Eu sou dado ao maravilhoso, ao fantástico, ao hipersensível; nunca, por mais que quisesse, pude ter uma concepção mecânica, rígida do Universo e de nós mesmos. No último, no fim do homem e do mundo, há mistério e eu creio nele. Todas as prosápias sabichonas, todas as sentenças formais dos materialistas, e mesmo dos que não são, sobre as certezas da ciência, me fazem sorrir e, creio que este meu sorriso não é falso, nem precipitado, ele me vem de longas meditações e de excitantes dúvidas.

Cheio de mistério e cercado de mistério, talvez as alucinações que tive, as pessoas conspícuas e sem tara possam atribuí-las à herança, ao álcool, a outro qualquer fator ao alcance da mão. Prefiro ir mais longe...

Certo dia, a minha alucinação foi tão forte, que resolveram levar-me para a casa de um parente, para ver se melhorava; foi pior. Mandaram-me para o hospício. No mesmo dia que lá cheguei, no pavilhão, nada sofri. Assim não foi no Hospital Central, nem na Santa Casa, de Ouro Fino, onde as visões continuaram, no hospital por mais de vinte e quatro horas e, em Ouro Fino, unicamente na noite da entrada.

Agora, que creio ser a última ou a penúltima, porque daqui não sairei vivo, se entrar outra vez, penetrei no pavilhão calmo, tranquilo, sem nenhum sintoma de loucura, embora toda a noite tivesse andado pelos subúrbios sem dinheiro, a procurar uma delegacia, a fim de queixar-me ao delegado das coisas mais fantásticas dessa vida, vendo as coisas mais fantásticas que se possa imaginar.

No começo, eu gritava, gesticulava, insultava, descompunha; dessa forma, vi-as familiarmente, como a coisa mais natural deste mundo. Só a minha agitação, uma frase ou outra desconexa, um gesto sem explicação denunciavam que eu não estava na minha razão.

O que há em mim, meu Deus? Loucura? Quem sabe lá?

Fonte: Lima Barreto. O cemitério dos vivos. Publicado originalmente em 1920. Disponível em Domínio Público.

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Daniel Maurício (Poética) 61

 

Mensagem na garrafa – 42 –


Jaqueline Machado
(Cachoeira do Sul/RS)

AMOR QUANDO É AMOR

Amor quando é amor,
coisa rara de se viver,
nasce primeiro, inocente,
numa fluidez de almas...
Num doce entrelaçar de bem querer...

Amor quando é amor,
causa calafrios,
as palavras ficam soltas demais
ou a voz se cala de vez.
Causa espanto!
Dá vontade de ficar,
e vontade de correr...

Amor quando é amor,
transforma a gente por dentro.
É tão lindo o sentimento,
que a gente pensa...
Não merecer...

Amor quando é amor,
não é planejado.
Nasce no altar do templo sagrado
da divindade suprema...
É presente do universo...
É alegria de viver!

Amor quando é amor,
depois dos medos se entrega.
Tudo vira reciprocidade,
porque encantar o ser amado
é tarefa que dá prazer...

Amor quando é amor,
não é pra sempre inocente...
Mas a verdade a pulsar nos corações
é tão pungente, que o ato de fazer amor
vira eclipse do saber...

Silmar Böhrer (Croniquinha) 98

Estamos nos sentindo importantes?  

Sejamos, desde que o esforço e a dedicação nos credenciem. Tantos e tantos e tantos se julgam importantes, mas não moveram até então um dedo, não apresentaram uma ideia que mova uma colina (nem se fale em montanha !), trazendo algo de bom, de útil, de necessário para o mundo.

Talvez seja por isso que o planeta floresça, ilumine, prospere nas mãos de uma minoria -os sonhadores entusiastas que com ousadia movem a mola do progresso usando ideias e ações.

E os demais ?

Os demais, os acomodados, são coadjuvantes subalternos que põem em prática ideias e ideais daqueles superiores. E nem se dão conta de que são peças da engrenagem comandada por visionários.

Fonte: Texto enviado pelo autor 

A. A. de Assis (Des-criação do mundo)

No aglomeraço de cimento e aço, pequena árvore, ao lado de outra mais pequena ainda, ocupava tímido lugar no espaço.

 Duas árvores, a maiorzinha e a mais pequena, lembrando aos sobreviventes do asfalto que ainda havia verde, e ainda havia sonho, e até esperança havia ainda.

 Quem as plantara – aquelas duas criaturinhas verdes –, não sei dizer. Abençoadas mãos. Eram duas árvores apenas, tão pequenas – o que da natureza restava na cinzenta área. 

 Ali era o quintal, era o pomar, era o “parque nacional” que das janelas das torres a vizinhança encaixotada via, e amava.

 Uma árvore maiorzinha e outra mais pequena. Ao lado delas os aposentados da quadra fundaram o clubinho de truco. De longe se escutava o eco.

 De manhã, ponto de encontro das babás que se reuniam para dar sol aos bebês. Parada obrigatória também das apressadas senhoras e dos sisudos cavalheiros que os elevadores despejavam aos punhados para mais uma jornada de quefazeres.

 De dia, o dia inteiro, as duas arvorezinhas assistiam ao entra e sai de moradores, porteiros, faxineiros, carteiros, eletricistas, encanadores, fisioterapeutas, entregadores, todos tão íntimos. Alguns mais desatentos. Outros tão carinhosos que paravam e lhes acariciavam as folhas.

De noite, casais românticos exibiam ali o seu amor em cenas que elas, as arvorezinhas, testemunhavam com generosa cumplicidade.

Até que num certo/incerto dia, assim-assim, num de repente, chegou um homem pilotando impiedosa máquina, em nome dessa coisa assustadora chamada progresso.

A tal ferramenta era um bicho feio, de ferro, terrivelmente faminto, e rosnava, e avançava, e eram inúteis as lágrimas encachoeiradas das torres, inúteis os gritos vindos de todos os ecos.

O bicho rosnava e ia comendo tudo: as arvorezinhas, os sonhos, o clubinho de truco, a esperança, o ponto de encontro das babás, o “parque nacional” da vizinhança...

Do alto uma câmera filmava flashes da des-criação do mundo.

Tão diferente do comecinho de tudo, quando o Amor criou e colocou cada coisa em seu devido lugar e ninguém filmou, ninguém fotografou. Teria sido o mais belo e rico documentário de todas as eras. O acendimento das estrelas no céu, a espalhação das sementes na terra, a soltura dos peixes nas águas, a inauguração das flores, a afinação da orquestra dos pássaros. Que pena: não havia nenhuma câmera lá para gravar tais cenas.

Agora atentas kodaquinhas chamadas celulares estão em toda parte permanentemente engatilhadas para registrar cada movimento da des-criação. Mas será que sobrará alguém vivo para daqui a alguns anos ver o triste filminho do desfazimento daquelas duas derradeiras arvorezinhas – a maiorzinha e a mais pequena?
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 15.11.23)

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Luiz Damo (Trovas do Sul) LII


A velhice nunca vem
rindo e desacompanhada,
junto, sempre traz também,
as dores da caminhada.
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Dentro da literatura
buscamos a perfeição,
se por vezes, nos tortura,
noutras, traz satisfação.
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Distantes, porém profundos,
bons momentos de alegria,
pareciam de outros mundos
de tanta paz e harmonia.
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Fortes mentes, rijos passos,
formam homens corajosos,
conquistando seus espaços
e aumentando os invejosos.
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Muitas trilhas na floresta
feitas com foice e facão,
hoje, a lembrança nos resta,
da alavanca e do picão.
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Muito além dos horizontes
onde o sol a luz esconde,
sorvo o sussurro das fontes
num eco que me responde.
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Nas manhãs ensolaradas
cheirando restos de orvalho,
segue o obreiro nas estradas
para o local de trabalho.
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O amor tenha seu caminho,
nele a paz sempre perdure,
que nunca seja mesquinho
mas sincero enquanto dure.
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O homem fora preparado
para ser um vencedor,
cala, sofrendo frustrado,
quando acaba perdedor.
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O homem tem a liberdade
de escolher e decidir:
seguir pela claridade,
ou nas trevas prosseguir.
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Onde se cultivam flores
de jardim posso chamar,
neste mundo sem olores
nascemos pra perfumar.
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O torrão que tanto amamos
guarda alguns jacarandás,
sobre seus vistosos ramos
cantam belos sabiás.
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Pelos frutos conhecemos
a planta que os produziu,
se são bons, logo dizemos
que ela já nos seduziu.
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Quando a criançada grita
parece grande algazarra,
porém o que mais irrita,
é o zumbido da cigarra.
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Quando a vida Deus nos deu
junto deu-nos liberdade,
mas por ser direito seu,
pra si quis a autoridade.
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Quando os verbos conjugamos
nos três tempos consagrados,
vemos que nos subjugamos
aos problemas já passados.
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'Quem se insula se estiola',*
diz o adágio popular,
nada existe que consola
quem prefere se insular.
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* quem se “isola” se “enfraquece” (ou se “debilita”).
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Saí pelo mundo afora
em busca de soluções,
posso computar agora
conquistas e decepções.
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Se a resposta não retruca
demonstra ser verdadeira
e ao tê-la sequer machuca,
durará pra vida inteira.
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Se o tempo nunca passasse
e assim nada envelhecesse,
com certeza, a nossa face,
a de um Anjo parecesse.
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Somos fortes, mas nem tanto,
pra suportar tantas dores,
pela face escorre o pranto
quando formos perdedores.
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Tantas horas sem dormir,
ou dias sem trabalhar,
tudo nos faz presumir:
só vence quem batalhar.
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Tão brilhantes as estrelas,
neste universo espalhadas,
esperamos poder vê-las
em noites enluaradas.
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Tem um tempo para tudo:
para dar e receber,
o melhor tempo, contudo,
é o que temos pra viver.
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Toda a beleza do mundo
cabe na palma da mão,
quando num gesto fecundo
alguém ajuda um irmão.
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Vencerá qualquer batalha
o forte e determinado,
nessa luta quem trabalha
tem seu prêmio assegurado.
= = = = = = = = = 
Fonte: Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Enviado pelo autor.