terça-feira, 4 de agosto de 2015

Trovador Homenageado: Miguel Perrone Cione


A caridade deriva
e cresce do amor presente,
como a roseira nativa,
sem espinhos... certamente.
À deriva.. transportando
meus enlevos ao papel,
sou visionário sonhando
com rimas feitas de mel…
Ajoelhado no templo,
o cego fala a Jesus:
- Mesmo na treva eu contemplo
o clarão da Tua luz!
A lira dos meus amores,
de anseios e de alegrias,
também tange minhas dores,
nos serões das noites frias.
A saudade é uma goteira
que quando vem não se acalma.
Pinga quase a noite inteira
na solidão da minha alma.
Coração mau que se inflama
numa aventura qualquer,
deixa, às vezes, quem o ama,
para amar quem não lhe quer.
Criança, flor encantada,
luz clara de sol se abrindo,
que sorri por quase nada,
que chora quase sorrindo...
Da fé derivam caminhos,
onde Deus canta louvores,
podem ter muitos espinhos,
mas no final só têm flores.
Em que bola de cristal
eu vou ler nossos destinos,
neste mundo desigual,
neste mar de desatinos?…
Fonte amiga é o coração
de quem dá ao sofredor,
na ajuda de sua mão,
o amparo do seu amor.
Fonte clara - o nosso amor,
de esperanças refletidas,
quantos sonhos, quanto ardor
têm banhado as nossas vidas!
Já vi semblantes vestidos
de máscaras sorridentes
terem no olhar os gemidos
de corações descontentes
Maritaca tagarela...
Quer ave mais brasileira?
- Fez até a roupa dela
com as cores da bandeira.
Meus carnavais de criança...
máscaras... futilidades...
me deixaram na lembrança
mil confetes de saudade.
Minha lira anda ferida...
Como posso me inspirar,
vendo crianças na vida,
sem ter pão e sem ter lar?
Minha mãe, à luz dourada
do clarão da lamparina,
ilumina a santa amada,
em troca,a santa a ilumina…
Nas moendas milenares
que jamais podemos vê-las,
Deus fez a lua e os luares
com pó moído de estrelas.
Na sua imensa bondade,
a mãe traz do Criador,
um clarão da eternidade,
em cada instante de amor…
Nessa colheita de amores
tu e eu, pelos caminhos,
dividimos muitas flores,
mas, muito mais,os espinhos!
Nesta casinha singela,
sem luzes, sem esplendor,
basta o clarão de uma vela
para aquecer nosso amor…
No clarão de uma alvorada,
esperança... te esperei...
mas voltaste tão velada,
que quase não te encontrei…
No meu sonho o mundo gira,
tangendo a minha emoção...
O meu coração é a Lira,
a Trova... minha canção!…
No sofrer das minhas dores,
ou viver felicidade,
entre os espinhos e flores,
só me restou a saudade…
O amor sereno que passa
por nossa vida, florindo,
traz de Deus a essência e a graça,
no mesmo abraço se unindo.
O talento está na mente,
é inteligência e razão;
mas a razão nunca sente
as coisas do coração.
O verde mar se parece
com o destino da gente:
– em meio à paz se enfurece,
torna-se mau de repente.
Para uma trova ser pura,
ser mensageira do amor,
basta um sopro de ventura
no sonho do trovador.
Por levares com ternura,
teu apoio a quem tem dor,
terás na mão a ventura
de poder semear o amor.
Relembrando a tenra idade
na minha verde esperança,
sonhei com a felicidade,
como sonhava em criança.
Saudade, quando é de alguém
que nos deu ventura e amor,
dói como espinho, mas tem
perfumes como o da flor.
Se o bem tu podes fazer,
e não fazes coisa alguma,
tu não serás ao morrer
mais que uma bolha de espuma.
Talento, glória, riqueza,
tudo deixamos na Terra,
só levamos, com certeza,
a crença que em Deus se encerra.
Teus olhos verdes, sem sombras,
sem temores e embaraços,
são oásis, são alfombras
no caminho dos meus passos.
            Miguel Perrone Cione nasceu na cidade de Cravinhos/SP. Radicou-se em Ribeirão Preto/SP, na década de 1940. Foi analista clínico, biólogo, advogado.
            Membro da União Brasileira de Escritores (UBE), União Brasileira de Trovadores (UBT), Ordem dos Velhos Jornalistas do Estado de São Paulo, Centro Cultural de Filgueiras (Portugal), Academia Ribeirãopretana de Letras, Academia Goianense de Letras, Academia Internacional de Letras Três Fronteiras (Brasil - Argentina - Uruguai), International Academy of Letters of England (Londres), Casa do Poeta e do Escritor de Ribeirão Preto.
            Ecologista laureado pela Sociedade Geográfica Brasileira com a comenda relativa à preservação do meio ambiente, da flora, da fauna e do índio.
            Alguns livros publicados:
Elementos de Biologia (1952); Pequeno Dicionário Biológico (1953); Temas e Reflexões (1974); Galáxia Azul (Poesias - 1979); Ouropel (Trovas - 1979); Sombras Aladas (1993); Sol e Nuvens (1999); Espiral de Rimas (1999); Contos Esparsos (1999), etc.

Aparício Fernandes (Índios Trovadores)

  É sabido que a Trova já existia em Portugal, na época do descobrimento do Brasil. Vai daí, os portugueses trouxeram-na para nossa terra, onde encontrou um meio fertilíssimo para aprimoramento e expansão. Impõe-se, porém, uma pergunta fascinante: existiria a Trova no Brasil, antes de os portugueses aqui chegarem? Não estaria ela integrada à cultura artística dos nossos indígenas? A ser isto verdade, teríamos uma dupla origem da Trova no Brasil, justificando a inegável tendência do nosso povo pela quadrinha setissilábica. A este respeito, o Professor Faris Antônio S. Michaele, residente em Ponta Grossa, no Paraná, escreveu um interessantíssimo estudo intitulado “O Nosso Primeiro Trovador”, que foi publicado no n. 128 da revista santista Centro Português, em setembro de 1968. Eis um trecho do referido artigo, que submetemos à apreciação do leitor, sem maiores comentários:
“Os nosso primeiros trovadores foram, de fato, os índios, principalmente os tupis-guaranis.
É o que nos informam os cronistas, viajantes e missionários do Século XVI (Gabriel Soares de Souza, Fernão Cardim, Ambrósio F. Brandão, Magalhães Gandavo) e confirmam os estudiosos de séculos posteriores, até os dias atuais (Alexandre Rodrigues Ferreira, Couto de Magalhães, Barbosa Rodrigues, Batista Caetano, Batista Siqueira, Villa-Lobos, José Siqueira, Mário de Andrade, etc), não excluindo o alemão Von Martius, que tanto viajou e sofreu por este ilimitado continente.
Trovas amorosas, folclóricas e até de fundo animista são facilmente encontradas nas obras desses autores dos séculos XIX e XX. Mas o que nos faz pensar um bocado sobre a vivacidade mental do nosso irmão tupi-guarani é a mordacidade, que nada tem de primitiva,  das suas composições referentes às agruras da vida, aos contatos com o português (termo geralmente usado para caracterizar os brancos de todos os tipos), ou às contínuas perseguições, massacres e espoliações injustificáveis, num país tão vasto.
De Von Martius todos já conhecem as duas quadrinhas, adaptadas por Joaquim Norberto do seguinte modo:
Não quero mulher que tenha
as pernas bastante finas,
com medo que em mim se enrosquem
como feras viperinas.
Também não quero que tenha
o cabelo assaz comprido,
que em matos de tiririca
achar-me-ia perdido.
Da boca de dois tupi-guaçus, vindos de Aquidauana, Estado de Mato Grosso, ouvimos, há alguns anos, algumas trovas, que vamos reproduzir no original, com a respectiva adaptação ao português, por nós realizada.
São cantadas em nheengatu, ou tupi moderno:
1
Cariua, puxyuéra oikó,
Anhangá opinima  ahé;
Tatá opumun i pó,
Tiputy, i iurú popé.
Tradução:
Português é bicho mau,
foi pelo diabo pintado.
Sua mão vomita fogo,
tem boca em lugar errado.
2
Irara ou iané ira,
Iauraeté, capiuàra;
Ma, Caríua piá-puxy,
I mukáua-iucaçára.
Tradução:
Irara comeu o mel,
onça grande, a capivara;
porém é o branco cruel
que a espingarda nos dispara.
3
Caríua, ndê tinguaçú;
Caríua, macaca sáua.
Andirá ce py opitera:
– Ce manioca ndê reú.
Tradução:
Homem branco, nariz grande,
como o macaco, és peludo;
morcego, chupou meu pé,
comeste mandioca e tudo.
4
Macaca tuiué, paá,
Cuiambuca ahé Okuáu;
Amurupi, iané piá,
Mundé çui, nti oiauáu.
Tradução:
Dizem que macaco velho
nunca se deixa enganar;
ao contrário, o coração
nunca cessa de apanhar.
Como estão vendo os leitores, o indígena brasileiro, que produziu a maravilhosa cerâmica de Marajó; que como ninguém conhecia os astros e coisas do firmamento; e que ao branco ensinou mil e uma experiências úteis, até de fundo medicinal, era, igualmente, e é, ainda hoje, estupendo cultor da poesia e, com especialidade, da Trova.
Por isso, sem nenhuma reserva, merece, com os nossos agradecimentos, o título espetacular de o primeiro ou mais antigo trovador da terra de Santa Cruz.”
Fonte: Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história & antologia. Rio de Janeiro/GB: Artenova, 1972

Aparício Fernandes (Receita para se fazer uma trova antológica)

É muito simples. Tome:
A dramaticidade de João Rangel Coelho:
Senhor Deus! Ó Pai dos Pais!
Por que motivo consentes,
entre teus filhos iguais,
destinos tão diferentes?
A brejeirice de Luiz Homero de Almeida:
Sobre o busto ela trazia
três rosas frescas, catitas.
E, contando-as, eu dizia:
– Que cinco rosas bonitas!…
A fluência de Américo Falcão:
Não há tristeza no mundo
que se compare à tristeza
dos olhos de um moribundo
fitando uma vela acesa…
A musicalidade de Cícero Dias:
A tua casa pendida
entre o rosal e a mangueira
é uma açucena caída
no vermelhão da ladeira.
O humanismo de Zálkind Piatigorsky:
Tudo o que tenho reparto,
ó Senhor, sempre em Teu nome!
Tu fizeste o mundo farto,
o homem é que fez a fome!
A sugestão poética de Corrêa de Oliveira:
Ó ondas do mar salgado,
de onde vos vem tanto sal?
– Vem das lágrimas choradas
nas praias de Portugal!
O lirismo de Archimimo Lapagesse:
Se Deus atendesse um dia
minha prece ingênua e doce,
quem fosse mãe não morria,
por mais velhinha que fosse!

A simplicidade de Edgard B. Cerqueira
Saudade – lembrança triste
de tudo que já não sou!
Passado que tanto insiste
em fingir que não passou…
A originalidade de Adherbal de Carvalho:
Da lua sob os clarões,
os leques destas palmeiras
parecem caudas faceiras
de agigantados pavões!
A filosofia de José Maria Machado de Araújo:
Neste mundo que nos cansa,
tanta maldade se vê,
que a gente tem esperança,
mas já nem sabe de quê!…
A ironia de Belmiro Braga:
Quanta vez, junto a um jazigo,
alguém murmura de leve:
– Adeus para sempre, amigo!
E o morto diz: – Até breve!…
        
         Junte tudo isto, transponha para uma só trova e não há dúvida: você terá feito a melhor trova do mundo!
Fonte:
Aparício Fernandes. A trova no Brasil: história & antologia. Rio de Janeiro/GB: Artenova, 1972.

Trovador Homenageado : Augusto Astério de Campos



A Bondade é um roseiral
a florir n’alma de quem
tira os espinhos do mal
e planta as rosas do Bem.

Abrindo, em cantigas novas,
os jogos florais de ensaio,
abrem-se cachos de trovas
nessas roseiras de maio!

A Crença é tão generosa
que até os incréus, ateus,
curam-se à ação milagrosa
da medicina de Deus!

A guerra é um tremor de escolhos
que faz o mundo aluir…
A Paz, menina-dos-olhos
de uma criança a sorrir!

A pena de Rui descansa,
deixando, à Bahia, o orgulho
do Saber velado à lança
dos heróis do Dois de Julho!...

A trova que nos apraz,
iluminada em vitória,
é a chama viva do gás
do lampião da memória.

Balança o fiel da gente,
nesse oscilar inseguro,
entre o pesar do presente
e o que pesar... no futuro!...
 
Bom irmão é aquele amigo
que, numa angústia presente,
parte e reparte consigo
parte das dores da gente!...

Brinca, menino, é o teu fado,
e acende, aos olhos tristonhos,
teu balãozinho estrelado
de lanterninhas de sonhos!…

Castigo é ver, retratado,
no espelho dos desenganos,
o meu rosto retalhado
pelo chicote dos anos!...

De quanta safra, madura,
do trigal do coração,
a espiga é tão fértil, pura,
que já brotou feita em pão!…

Desta Pátria, verde ninho,
emplumado de ouro e anil,
cada Estado é um canarinho
cantando: avante Brasil!!!

É mais que perfeita, em nós,
a harmonia dos sentidos:
– enquanto solfeja a voz,
faz-se a audição dos ouvidos.

É uma edição de desgosto,
das esperanças, em fugas,
o livro aberto do rosto
todo franzido de rugas!...
 
Evoco o passado e assisto
à Santa Missa campal:
– abraçam-se a Cruz de Cristo
e a Santa Cruz de Cabral!…

Grito de amor que se espalma,
em repetida euforia,
o beijo é foguete da alma
a estrelejar de alegria!!!

Minha Mãe, um santo amor,
primeiro amor do meu peito:
– Maria, a bondade em flor,
meu segundo amor-perfeito!

Mudem-se, os ares da Terra,
num tempo firme, tenaz,
calando os trovões da guerra
em nuvens-brancas de paz!

Não me perco em passo errado,
nessas trilhas do amargor...
Vim ao mundo endereçado:
– aos cuidados do Senhor...

Não vale, a linguagem rica,
um palmo do chão que lavras:
- é a ação que frutifica!
Palavras... são só palavras!

Nas carícias das alfombras,
em caminhadas aos rés,
vão, meus pés, beijando as sombras
das pegadas dos teus pés...
 
Nesse parque, de quimera,
do coração da criança,
há sempre um lugar à espera
para o brincar da Esperança!

Nossos filhinhos ninando,
Maria a cantar, feliz,
é uma cigarra alegrando
meus sonhos primaveris!

O que nos tolhe a jornada
não são os cardos ao rés...
É a nossa sombra esmagada
pelo pisar de outros pés...

O viver é qual a vaga
ao sabor das ventanias:
– agita, eleva e se apaga
em marés de calmarias…

Pelos beijos da consorte,
numa terra Ave… Maria,
meu peito bate mais forte
que os sinos da Freguesia.

Quando o amor é amor de fé,
por estranho que pareça,
ama-se até Salomé
e não se perde a cabeça…

Quase caindo aos pedaços,
qualquer dia, que vier,
acabo morto nos braços
de u'a Maria qualquer...

Que consonante harmonia
da orquestra de passarinhos,
cantando a doce alegria
desses palanques de espinhos!...

Trago o peito estrangulado
na dor que mais me doeu,
vendo o lugar ocupado
no coração que foi meu!...

Vivo a vagar, sem roteiro…
E sinto, n´alma sofrida,
a perda do Timoneiro
do batel de minha vida.
         Augusto Astério de Campos nasceu em Cachoeira/BA a 28 de agosto de 1925. Cursou em Salvador, o ginásio Salesiano, transferindo-se em 1948 para o Rio de Janeiro, onde exerceu a função de industriário. Pertencente à família de consagrados poetas, como Jacinto de Campos, seu pai, autor de “Penumbras e Clarões”; seus tios Astério de Campos, autor de vários livros em prosa e verso; e Sabino de Campos, contista, poeta e romancista de motivos nordestinos. Irmão do poeta e trovador Onildo de Campos.
            Augusto pertence à Academia Brasileira de Trova (cadeira n. 35), foi fundador da Casa de Adelmar Tavares (ABT). Livro de trovas “Lira de sonhos” e um livro de sonetos e poemas.