terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Machado de Assis (Uns Braços)


INÁCIO ESTREMECEU, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que este lhe apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes, malandro, cabeça de vento, estúpido, maluco.

— Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu pai, para que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de marmelo, ou um pau; sim, ainda pode apanhar, não pense que não. Estúpido! maluco!

— Olhe que lá fora é isto mesmo que você vê aqui, continuou, voltando-se para D. Severina, senhora que vivia com ele maritalmente, há anos. Confunde-me os papéis todos, erra as casas, vai a um escrivão em vez de ir a outro, troca os advogados: é o diabo! É o tal sono pesado e contínuo. De manhã é o que se vê; primeiro que acorde é preciso quebrar-lhe os ossos.. . Deixe; amanhã hei de acordá-lo a pau de vassoura!

D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges espeitorou ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens.

Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Inácio não era propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e bem feitos. Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada. Tudo isso posto sobre um corpo não destituído de graça, ainda que mal vestido. O pai é barbeiro na Cidade Nova, e pô-lo de agente, escrevente, ou que quer que era, do solicitador Borges, com esperança de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito. Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870.

Durante alguns minutos não se ouviu mais que o tinir dos talheres e o ruído da mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vaca; interrompia-se para virgular a oração com um golpe de vinho e continuava logo calado.

Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo.

Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus, constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmo abaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à mostra. Na verdade, eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas é justo explicar que ela os não trazia assim por faceira, senão porque já gastara todos os vestidos de mangas compridas. De pé, era muito vistosa; andando, tinha meneios engraçados; ele, entretanto, quase que só a via à mesa, onde, além dos braços, mal poderia mirar-lhe o busto. Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos.

Acabaram de jantar. Borges, vindo o café, tirou quatro charutos da algibeira, comparou-os, apertou-os entre os dedos, escolheu um e guardou os restantes. Aceso o charuto, fincou os cotovelos na mesa e falou a D. Severina de trinta mil cousas que não interessavam nada ao nosso Inácio; mas enquanto falava, não o descompunha e ele podia devanear à larga.

Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dous, um S. Pedro e um S. João, registros trazidos de festas encaixilhados em casa. Vá que disfarçasse com S. João, cuja cabeça moça alegra as imaginações católicas, mas com o austero S. Pedro era demais. A única defesa do moço Inácio é que ele não via nem um nem outro; passava os olhos por ali como por nada. Via só os braços de D. Severina, — ou porque sorrateiramente olhasse para eles, ou porque andasse com eles impressos na memória.

— Homem, você não acaba mais? bradou de repente o solicitador.

Não havia remédio; Inácio bebeu a última gota, já fria, e retirou-se, como de costume, para o seu quarto, nos fundos da casa. Entrando, fez um gesto de zanga e desespero e foi depois encostar-se a uma das duas janelas que davam para o mar. Cinco minutos depois, a vista das águas próximas e das montanhas ao longe restituía-lhe o sentimento confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma cousa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor. Tinha vontade de ir embora e de ficar. Havia cinco semanas que ali morava, e a vida era sempre a mesma, sair de manhã com o Borges, andar por audiências e cartórios, correndo, levando papéis ao selo, ao distribuidor, aos escrivães, aos oficiais de justiça. Voltava à tarde jantava e recolhia-se ao quarto, até a hora da ceia; ceava e ia dormir. Borges não lhe dava intimidade na família, que se compunha apenas de D. Severina, nem Inácio a via mais de três vezes por dia, durante as refeições. Cinco semanas de solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs; cinco semanas de silêncio, porque ele só falava uma ou outra vez na rua; em casa, nada.

"Deixe estar, — pensou ele um dia — fujo daqui e não volto mais."

Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso. Agüentava toda a trabalheira de fora toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços.

Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (não tinha ali outra cama), D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma cousa Rejeitou a idéia logo, uma criança! Mas há idéias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra idéia não foi rejeitada, antes afagada e beijada. E recordou então os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim.

— Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de alguns minutos de pausa.

— Não tenho nada.

— Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos . . .

E foi por ali, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças, mas realmente incapaz de as cumprir, pois era antes grosseiro que mau. D. Severina interrompia-o que não, que era engano, não estava dormindo, estava pensando na comadre Fortunata. Não a visitavam desde o Natal; por que não iriam lá uma daquelas noites? Borges redargüia que andava cansado, trabalhava como um negro, não estava para visitas de parola, e descompôs a comadre, descompôs o compadre, descompôs o afilhado, que não ia ao colégio, com dez anos! Ele, Borges, com dez anos, já sabia ler, escrever e contar, não muito bem, é certo, mas sabia. Dez anos! Havia de ter um bonito fim: — vadio, e o covado e meio nas costas. A tarimba é que viria ensiná-lo.

D. Severina apaziguava-o com desculpas, a pobreza da comadre, o caiporismo do compadre, e fazia-lhe carinhos, a medo, que eles podiam irritá-lo mais. A noite caíra de todo; ela ouviu o tlic do lampião do gás da rua, que acabavam de acender, e viu o clarão dele nas janelas da casa fronteira. Borges, cansado do dia, pois era realmente um trabalhador de primeira ordem, foi fechando os olhos e pegando no sono, e deixou-a só na sala, às escuras, consigo e com a descoberta que acaba de fazer.

Tudo parecia dizer à dama que era verdade; mas essa verdade, desfeita a impressão do assombro, trouxe-lhe uma complicação moral que ela só conheceu pelos efeitos, não achando meio de discernir o que era. Não podia entender-se nem equilibrar-se, chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador, e ele que mandasse embora o fedelho. Mas que era tudo? Aqui estacou: realmente, não havia mais que suposição, coincidência e possivelmente ilusão. Não, não, ilusão não era. E logo recolhia os indícios vagos, as atitudes do mocinho, o acanhamento, as distrações, para rejeitar a idéia de estar enganada. Daí a pouco, (capciosa natureza!) refletindo que seria mau acusá-lo sem fundamento, admitiu que se iludisse, para o único fim de observá-lo melhor e averiguar bem a realidade das cousas.

Já nessa noite, D. Severina mirava por baixo dos olhos os gestos de Inácio; não chegou a achar nada, porque o tempo do chá era curto e o rapazinho não tirou os olhos da xícara. No dia seguinte pôde observar melhor, e nos outros otimamente. Percebeu que sim, que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo. D. Severina compreendeu que não havia recear nenhum desacato, e concluiu que o melhor era não dizer nada ao solicitador; poupava-lhe um desgosto, e outro à pobre criança. Já se persuadia bem que ele era criança, e assentou de o tratar tão secamente como até ali, ou ainda mais. E assim fez; Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, quase tanto como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era curto.

— Vou-me embora, repetia ele na rua como nos primeiros dias.

Chegava a casa e não se ia embora. Os braços de D. Severina fechavam-lhe um parêntesis no meio do longo e fastidioso período da vida que levava, e essa oração intercalada trazia uma idéia original e profunda, inventada pelo céu unicamente para ele. Deixava-se estar e ia andando. Afinal, porém, teve de sair, e para nunca mais; eis aqui como e porquê.

D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão. Inácio chegou ao extremo de confiança de rir um dia à mesa, cousa que jamais fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa vez, porque era ele que contava um caso engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então que D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria.

A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem entender-se. Não estava bem em parte nenhuma. Acordava de noite, pensando em D. Severina. Na rua, trocava de esquinas, errava as portas, muito mais que dantes, e não via mulher, ao longe ou ao perto, que lha não trouxesse à memória. Ao entrar no corredor da casa, voltando do trabalho, sentia sempre algum alvoroço, às vezes grande, quando dava com ela no topo da escada, olhando através das grades de pau da cancela, como tendo acudido a ver quem era.

Um domingo, — nunca ele esqueceu esse domingo, — estava só no quarto, à janela, virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas, que faziam grandes giros no ar, ou pairavam em cima d'água, ou avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal.

Inácio passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham. Ao cabo de meia hora, deixou cair o folheto e pôs os olhos na parede, donde, cinco minutos depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O natural era que se espantasse; mas não se espantou. Embora com as pálpebras cerradas viu-a desprender-se de todo, parar, sorrir e andar para a rede. Era ela mesma, eram os seus mesmos braços.

É certo, porém, que D. Severina, tanto não podia sair da parede, dado que houvesse ali porta ou rasgão, que estava justamente na sala da frente ouvindo os passos do solicitador que descia as escadas. Ouviu-o descer; foi à janela vê-lo sair e só se recolheu quando ele se perdeu ao longe, no caminho da Rua das Mangueiras. Então entrou e foi sentar-se no canapé. Parecia fora do natural, inquieta, quase maluca; levantando-se, foi pegar na jarra que estava em cima do aparador e deixou-a no mesmo lugar; depois caminhou até à porta, deteve-se e voltou, ao que parece, sem plano. Sentou-se outra vez cinco ou dez minutos. De repente, lembrou-se que Inácio comera pouco ao almoço e tinha o ar abatido, e advertiu que podia estar doente; podia ser até que estivesse muito mal.

Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do mocinho, cuja porta achou escancarada. D. Severina parou, espiou, deu com ele na rede, dormindo, com o braço para fora e o folheto caído no chão. A cabeça inclinava-se um pouco do lado da porta, deixando ver os olhos fechados, os cabelos revoltos e um grande ar de riso e de beatitude.

D. Severina sentiu bater-lhe o coração com veemência e recuou. Sonhara de noite com ele; pode ser que ele estivesse sonhando com ela. Desde madrugada que a figura do mocinho andava-lhe diante dos olhos como uma tentação diabólica. Recuou ainda, depois voltou, olhou dous, três, cinco minutos, ou mais. Parece que o sono dava à adolescência de Inácio uma expressão mais acentuada, quase feminina, quase pueril. "Uma criança!" disse ela a si mesma, naquela língua sem palavras que todos trazemos conosco. E esta idéia abateu-lhe o alvoroço do sangue e dissipou-lhe em parte a turvação dos sentidos.

"Uma criança!"

E mirou-o lentamente, fartou-se de vê-lo, com a cabeça inclinada, o braço caído; mas, ao mesmo tempo que o achava criança, achava-o bonito, muito mais bonito que acordado, e uma dessas idéias corrigia ou corrompia a outra. De repente estremeceu e recuou assustada: ouvira um ruído ao pé, na saleta do engomado; foi ver, era um gato que deitara uma tigela ao chão. Voltando devagarinho a espiá-lo, viu que dormia profundamente. Tinha o sono duro a criança! O rumor que a abalara tanto, não o fez sequer mudar de posição. E ela continuou a vê-lo dormir, — dormir e talvez sonhar.

Que não possamos ver os sonhos uns dos outros! D. Severina ter-se-ia visto a si mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto diante da rede, risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-las ao peito, cruzando ali os braços, os famosos braços. Inácio, namorado deles, ainda assim ouvia as palavras dela, que eram lindas cálidas, principalmente novas, — ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele não conhecia, posto que o entendesse. Duas três e quatro vezes a figura esvaía-se, para tornar logo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o corredor com toda a graça robusta de que era capaz. E tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca.

Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação e fora dela. A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão depressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta, vexada e medrosa. Dali passou à sala da frente, aturdida do que fizera, sem olhar fixamente para nada. Afiava o ouvido, ia até o fim do corredor, a ver se escutava algum rumor que lhe dissesse que ele acordara, e só depois de muito tempo é que o medo foi passando. Na verdade, a criança tinha o sono duro; nada lhe abria os olhos, nem os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade. Mas, se o medo foi passando, o vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de crer que fizesse aquilo; parece que embrulhara os seus desejos na idéia de que era uma criança namorada que ali estava sem consciência nem imputação; e, meia mãe, meia amiga, inclinara-se e beijara-o. Fosse como fosse, estava confusa, irritada, aborrecida mal consigo e mal com ele. O medo de que ele podia estar fingindo que dormia apontou-lhe na alma e deu-lhe um calefrio.

Mas a verdade é que dormiu ainda muito, e só acordou para jantar. Sentou-se à mesa lépido. Conquanto achasse D. Severina calada e severa e o solicitador tão ríspido como nos outros dias, nem a rispidez de um, nem a severidade da outra podiam dissipar-lhe a visão graciosa que ainda trazia consigo, ou amortecer-lhe a sensação do beijo. Não reparou que D. Severina tinha um xale que lhe cobria os braços; reparou depois, na segunda-feira, e na terça-feira, também, e até sábado, que foi o dia em que Borges mandou dizer ao pai que não podia ficar com ele; e não o fez zangado, porque o tratou relativamente bem e ainda lhe disse à saída:

— Quando precisar de mim para alguma cousa, procure-me.

— Sim, senhor. A Sra. D. Severina. . .

— Está lá para o quarto, com muita dor de cabeça. Venha amanhã ou depois despedir-se dela.

Inácio saiu sem entender nada. Não entendia a despedida, nem a completa mudança de D. Severina, em relação a ele, nem o xale, nem nada. Estava tão bem! falava-lhe com tanta amizade! Como é que, de repente. . . Tanto pensou que acabou supondo de sua parte algum olhar indiscreto, alguma distração que a ofendera, não era outra cousa; e daqui a cara fechada e o xale que cobria os braços tão bonitos... Não importa; levava consigo o sabor do sonho. E através dos anos, por meio de outros amores, mais efetivos e longos, nenhuma sensação achou nunca igual à daquele domingo, na Rua da Lapa, quando ele tinha quinze anos. Ele mesmo exclama às vezes, sem saber que se engana:

E foi um sonho! um simples sonho!

Fontes:
ASSIS, Machado de. Várias Histórias. Ed. Martin Claret
Imagem = www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/bracos.gif

Machado de Assis (Análise dos Contos de “Várias Histórias”: 3. Uns Braços)


Análise realizada pelo Prof. Bartolomeu Amâncio da Silva. Bacharel em Letras, pela USP, professor de literatura da rede Objetivo (colégios e cursos pré-vestibular).
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Inserido no volume que constitui as Várias Histórias, o conto Uns braços foi recebido pela crítica contemporânea a Machado de Assis muito elogiosamente.

Machado não emprega nunca tintas fortes e cruas; jamais lança mão de notas extremas nem chega às vias de fato, o que podemos comprovar com a leitura de Uns braços, onde dona Severina beija o rapaz, e este permanece dormindo; não acorda para surpreendê-la, seja positiva ou negativamente. Potencialmente, resta sempre uma dúvida, uma incerteza, uma sensação de desconforto provocada pela não resolução das questões no texto machadiano.

É a história de Inácio, jovem de 15 anos que vai trabalhar como ajudante do ríspido solicitador (funcionário do Judiciário, algo entre procurador e advogado) Borges, morando na casa deste. É lá que acaba se encantando com os braços de D. Severina, companheira do seu patrão. Deve-se lembrar que na época em que se passa a história, 1870, não era comum uma mulher exibir tal parte do corpo. Mas, antes que se pense que ela era despudorada, deve-se lembrar que só o fazia por passar por certas dificuldades que tornava o seu vestuário falto de peças mais adequadas. Ainda assim, os breves momentos em que via a mulher e principalmente os braços dela eram, para Inácio, o grande alívio diante de um cotidiano tão massacrante. Até que um dia D. Severina percebe o interesse que desperta no moço. Demora a aceitar, pois considera-o apenas uma criança. Mas, quando vê o homem já na forma do menino, entra num sentimento conflitante, misto de vaidade e pudor. Por isso oscila entre tratar mal o rapaz e mostrar preocupação com o seu bem-estar. Até que num domingo ocorre a cena mais importante da história. D. Severina encontra Inácio dormindo na rede. Dá-lhe um leve beijo na boca. A senhora não sabe que naquele exato instante o garoto sonhava com o beijo dela e ele não sabe que era beijado realmente enquanto estava mergulhado na fantasia do seu sono. Pouco tempo depois, Borges dispensa o garoto de forma admiravelmente amistosa. O menino não vê mais D. Severina, guardando a sensação daquela tarde como algo que não ia ser superado em nenhum relacionamento de sua existência.

Note que nesse conto Machado mostra o dom que possui para narrativas memorialistas. Veja também o seu início abrupto, sendo o leitor jogado de chofre no meio da história (técnica chamada de in media res). Repare, por fim, que a temática da descoberta do amor só vai perder em delicadeza e brilho para outro conto do autor, “Missa do Galo”, que infelizmente não faz parte dessa coletânea.

Segundo Roberto Acízelo de Souza, a posição subalterna ocupada pelas mulheres na sociedade brasileira oitocentista constitui noção que integra o saber do senso comum, mesmo porque se trata de um estado de coisas que se conservou no essencial até pelo menos os anos 50 do século XX.

A personagem feminina do conto ocupa papel semelhante ao descrito acima. Porém, dona Severina, na tentativa de recusa a esta clausura, não se conforma com esta posição, permitindo que, através de ações ambíguas e movimentos contraditórios que comentaremos posteriormente, revele-se a vontade de ser desejada por um outro homem e, por sua vez, a de desejá-lo também. Trata-se de um quadro de adultério pintado com suaves tintas por Machado de Assis, cuidadoso que é na estruturação de suas histórias, nunca ferindo as vistas dos leitores.

A contradição e a ambigüidade em Machado de Assis estão presentes, inicialmente, nos recursos lingüisticos e estilísticos adotados, ou seja, na forma que utiliza para expressar seu conteúdo. Então, de saída, percebemos a linguagem por ele usada possibilitando e incentivando movimentos contraditórios e ambivalentes dentro de sua narrativa.

O conto contêm vazios, que constituem a condição básica para o processo de comunicação. Isso porque eles se encontram intimamente relacionados à provocação do texto, para que o leitor reflita sobre os conflitos não solucionados. Tais vazios, variam de acordo com as interpretações dos leitores, ou, em outros termos, variam segundo as respostas que formulamos diante da experiência estética.

Em Uns Braços tem-se o personagem de Inácio, que está hospedado na casa do solicitador Borges, para quem trabalha de agente. Isso ocorre por ordens de seu pai, a quem a idéia de que Inácio se tornasse procurador parecia muito lucrativa. O menino apaixona-se por D. Severina, esposa de Borges.

Logo no início do conto tem-se os primeiros sinais dessa paixão, já que o mocinho é repreendido por Borges por andar tão distraído, confundindo papéis e errando casas. Logo em seguida, o narrador faz a seguinte observação acerca de Inácio: “Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada”. Essa frase já aponta para o próprio final do conto, e poderia mesmo ser repetida, em se tratando de um adiantamento de expectativas, já que é exatamente o que ocorre: Inácio sonha com Severina, adivinha que está por perto, indaga-se, e acaba não sabendo de nada, nem do interesse correspondido, nem da fusão do sonho com a realidade. Imediatamente após, temos certeza do interesse de Inácio pela senhora, já que o narrador confessa:

Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo.

Durante as refeições, Inácio procura ao máximo prolongar sua permanência na mesa para poder continuar na presença de D. Severina:

Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dois, um S. Pedro e um S. João, registros trazidos de festas encaixilhados em casa.

Severina, por sua vez, trazia sempre os braços nus à mesa, podendo-se tratar de uma provocação, ainda que inconsciente, mesmo se já gastara todos os vestidos de manga comprida que possuía. Ao apontar a diferença de idade entre Severina e Inácio, Machado é elegante e delicado; prefere a sugestão em vez da obviedade. Primeiro anuncia a idade do menino: “Tinha quinze anos feitos e bem feitos”, para mais a frente deixar-nos à par da idade da senhora: “Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos”. Assim como no conto “Missa do galo”, a sexualidade de um rapaz bem novo é despertada por uma mulher mais velha e casada. O leitor em sociedade, ou leitor real, como pensou Iser, sofre efeitos históricos produzidos pelo texto através da descrição de costumes e de padrões sociais, tudo isso experimentado pelo leitor durante o processo de recepção textual.

O sentimento de Inácio era “confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma coisa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor”. Nesta passagem, Machado descreve exatamente o sentimento da paixão, que é por si só algo contraditório, dúbio e perturbador. Trata-se, aqui, do despertar sexual do rapaz que implica diversas impossibilidades: Severina não só é mais velha como casada, e ambos estão inseridos na sociedade oitocentista, impregnada de valores morais e sociais muito rígidos.

Machado também trata a questão do tempo como uma abstração, tal como faz em outras obras suas, como nas "Memórias Póstumas", mais especificamente no capítulo “O delírio”. Sim, o tempo é uma abstração, e não importa o que passou, mas o que vem. O tempo também pode curar tudo e fazer com que mudemos de idéia, mesmo as que parecem fixas, definitivas e trágicas, como no conto “Noite de Almirante”, quando Deolindo promete suicidar-se e não o faz. Em Uns braços, Inácio promete um dia fugir daquela casa, e também não consegue fazê-lo:

- Deixe estar, - pensou ele um dia - fujo daqui e não volto mais.
Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos.

Inácio, porém, não é o único a ter comportamentos contraditórios. Severina, principal figura do conto, adota uma postura essencialmente ambígua, contraditória e misteriosa, como muitas personagens femininas criadas por Machado de Assis, diga-se de passagem. Os personagens de Machado de Assis são geralmente caracteres indecisos, hesitantes, atormentados pela moléstia da dúvida; incoerentes? contraditórios? de acordo; mas verdadeiros por isso mesmo.

Na seguinte passagem do conto tem-se um exemplo deste tipo de comportamento por parte da mulher machadiana:

D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma coisa. Rejeitou a idéia logo, uma criança! [...] Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra idéia não foi rejeitada, antes afagada e beijada.

Primeiro, a personagem rejeita a idéia de que o rapaz estivesse mesmo demonstrando interesse, certamente num azo de obediência aos padrões sociais da época, para logo depois descartar essa rejeição, afinal, ela não podia ser amada ou desejada? D. Severina começa a procurar justificativas para a atitude do rapaz, por querer, justamente, se sentir mais viva, e consequentemente, menos submissa.

Magalhães de Azeredo faz uma observação muito pertinente em se tratando das figuras femininas de Machado de Assis, e que se aplica muito bem a D. Severina, cujo nome já aponta para certa perversidade e conseqüente sedução, ou, conforme o próprio nome, severidade mesmo:

As mulheres, evocadas por Machado de Assis - para quem o eterno feminino é um vasto elemento moral -, têm de ordinário uma soberania de beleza, de sedução, de resistência ou mesmo de virtude, que lhe confere a vitória na luta com o sexo rival. Perversa, em rigor, não vejo nenhuma; perturbadoras há muitas, e de penosa decifração.

D. Severina, visivelmente perturbada com a presença de Inácio em sua casa, passa também a devanear e a assumir um comportamento semelhante ao do rapaz. Na passagem seguinte, a atitude do solicitador pode ser uma simples repressão, mas pode ser também que estivesse desconfiando de algum interesse por parte de sua mulher e de seu escrevente. Trata-se de um vazio que o texto cria e que o leitor deve resolver sozinho, porque a narrativa machadiana não se compromete em resolver os conflitos que ela mesma cria:

- Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de alguns minutos de pausa.
- Não tenho nada.
- Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos...

A sujeição feminina encontra-se também manifesta na passagem em que Severina teme acariciar seu próprio marido por medo de irritá-lo ainda mais: “fazia-lhe carinhos, a medo, que eles podiam irritá-lo mais”. Porém, como quem se indigna com essa submissão, Severina tem atitudes mais que ousadas para uma senhora casada inserida na sociedade brasileira oitocentista. Como achasse por bem observar o rapaz Inácio antes de tomar uma atitude inapropriada e precipitada, aceitou estrategicamente que tudo fora apenas ilusão, e “percebeu que sim, que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo.”

Machado, através de seu texto, consegue transportar o leitor de qualquer época para dentro do seu conto, fazendo com que haja uma real comunicação entre texto e leitor, que, por sua vez, consegue se inserir de tal modo na própria narrativa que passa a vivenciar as mesmas experiências dos personagens, como se de fato estivesse fazendo parte daquele contexto, daquele exato momento histórico em que se insurge a narrativa.

Numa atitude tipicamente confusa, Severina conclui que se tratava de uma criança e que não havia o que temer. A partir disso, assume um comportamento essencialmente perturbador, indeciso e incoerente.

Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, quase tanto como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era curto.

Por fim, na conclusão do conto, tem-se a fusão do sonho com a realidade. Inácio está dormindo em sua rede, e sonha com Severina encarando-lhe de frente, pegando-lhe nas mãos, cruzando-as nos braços, e dando-lhe um beijo na boca. Este exato momento do sonho coincide com a realidade, pois que Severina de fato beija a boca do rapaz para de imediato sair do quarto, assustada, confusa e arrependida com sua atitude. E não somente por vergonha, mas como forma de punir a si mesma por tamanha ousadia, Severina passa a cobrir os braços à mesa, mas também como punição ao próprio rapaz, a quem ela atribui uma parcela de culpa. A princípio Inácio não percebe que o famoso par de braços não mais está à vista, tão embriago pela sensação do beijo. Ao final, o rapaz deve ir embora da casa do comendador, mas não consegue se despedir de Severina, que inventa uma forte dor de cabeça. O mocinho jamais saberia que não foi um mero sonho, muito embora nunca tenha achado sensação igual à daquele domingo.

Machado de Assis incita o leitor a criar um significado próprio para a obra, de acordo com sua leitura pessoal, levando sempre em consideração as questões extrateóricas, realmente manifestas, ou seja, seu campo pragmático. As perspectivas textuais orientam as linhas de leitura, e não podemos atribuir a elas uma escala hierárquica de valor. Uma perspectiva sozinha não produz o significado do texto, pois tal significado é o resultado da convergência das diferentes perspectivas que se cruzam num específico ponto de encontro (meeting point), e que só é determinável pelo ponto de vista do leitor. O significado do texto não está dentro dele, nem fora; é um efeito a ser experimentado, não mais um objeto que se define. É, portanto, resultado da compreensão do leitor.
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Continua… análise do conto “Um Homem Célebre”
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Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/v/varias_historias

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.106)


Uma Trova Nacional

Depois do agrado, é verdade,
apressado, ele partia...
Mas hoje tenho saudade
da saudade que eu sentia...
(DOMITILLA B. BELTRAME/SP)

Uma Trova Potiguar

Os sonhos da mocidade,
quase ninguém os esquece;
deixam fundo uma saudade
que nunca desaparece!
(JOAMIR MEDEIROS/RN)

Uma Trova Premiada

1994 > Bandeirantes/PR
Tema > FAMÍLIA > Vencedora

Triste... a criança dizia
ao colega do orfanato:
– uma família eu queria;
nem que fosse... no retrato!
(MARIA LÚCIA DALOCE/PR)

Simplesmente Poesia

MOTE.
Se batiza o sertanejo,
com sol, com seca e poeira.

GLOSA.
Surge o dia num bafejo
quente tal qual a fornalha,
no rescaldo da borralha
se batiza o sertanejo.
Não é mesmo malfazejo
para uma gente altaneira
que nasce mais brasileira
à mercê do seu destino,
lhe ministram sal divino
com sol, com seca e poeira.
(MANOEL DANTAS/RN)

Uma Trova de Ademar

Das colheitas dadivosas
que Deus deixa nos caminhos,
uns curvam-se e colhem rosas,
outros só colhem espinhos...
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Fortuna bem merecida,
nas mãos de quem faz o bem,
multiplica os bens da vida,
depois divide o que tem.
(ALOÍSIO ALVES DA COSTA/CE)

Estrofe do Dia

Até pra uma falsa dama
usando de consciência,
dê a sua independência
pra que não faça programa;
pra meu irmão eu dei cama
para não vê-lo no chão,
ele forrou seu colchão
e o meu ficou desforrado;
sou um barco viajado
no mar da desilusão.
(JOÃO PARAIBANO/PB)

Soneto do Dia

– José Ouverney/SP –
O MONSTRO-MONTANHA

Montanha é linda enquanto só montanha:
intrépida guardiã da Natureza,
tal se fosse a Ministra da Defesa,
dando aos postais uma visão que assanha.

Quando, ao fremir das águas, desce e ganha
força incomum e uma mortal frieza,
impelindo com fúria a correnteza,
como explicar dissociação tamanha?

Cena dantesca: o monstro põe ao chão
tudo o que vê, de forma ensandecida:
de um antideus, voraz encarnação;

se aos mortos nossa prece é o contrapeso,
aos que sobreviveram falta vida,
porque ninguém sai dessa luta ileso...

Fonte:
Ademar Macedo

Alba Krishna Topan Feldman (A Identidade da Mulher Indígena na Escrita de Zitkala-Ša e Eliane Potiguara)


RESUMO:
O estudo de crítica feminina tem se desenvolvido para abarcar mulheres de diferentes etnias e também de diferentes formações culturais e épocas. Este trabalho tem por objetivo discutir como a identidade de gênero e etnia se apresenta na escrita de duas autoras de origem indígena, uma brasileira contemporânea, Eliane Potiguara, e outra Estadunidense do início do século XX, Zitkala-Ša. As duas autoras estudadas misturam de forma vivaz a ficção, a escrita jornalística de informação com relação à situação indígena, além de poesia e narração com moldes na oralidade, reafirmando o papel da mulher indígena como contadora de histórias e como educadora. Ambas buscaram por caminhos às vezes diferentes, e muitas vezes conflitantes pela diferença de cultura e objetivo final com relação aos leitores, mas muitas vezes similares, mostrar aspectos desconhecidos e calados dos sentimentos e angústias vividas pela mulher indígena diante de uma sociedade opressora retomando fatos históricos e também as condições contemporâneas de suas tribos e do povo indígena como um todo.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura étnica comparada; Eliane Potiguara; Zitkala-Ša; escrita feminina.

1 – Introdução

Eliane Potiguara é descendente de índios Potiguaras do Recife, escritora brasileira contemporânea, enquanto Zitkala-Ša é Yankton Dakota, e viveu no final do século XIX e início do século XX, nação Sioux, Estados Unidos. O foco de estudo deste artigo recairá nas estratégias utilizadas pelas duas autoras como forma de manter e questionar sua condição como mulher e como indígena em períodos igualmente marcados pela violência e repressão em seus respectivos países. Ashcroft (2002), Hall (2002), e Trinh (1989) fornecerão a base teórica para a análise. Uma breve intervenção biográfica das duas autoras será seguido do estudo de excertos que demonstram seus estilos e suas estratégias para tornarem-se agentes de suas etnias e de seu gênero. A primeira parte da análise se focará na etnia e na reafirmação do indígena procedido pelas duas autoras, enquanto a segunda discutirá o corpo indígena e o corpo feminino.

2 – As autoras: vidas e obras

Zitkala-Ša, nascida Gertrude Simmons (1876-1938), em uma das reservas mais pobres dos EUA era filha de mãe indígena e pai provavelmente branco, do qual quase nada se sabe. A autora enfrentou momentos amargos na história indígena americana, como as marchas forçadas, chamadas de trilhas de lágrimas, a aculturação em massa exercida pelas boarding schools, escolas indígenas que trouxeram doenças, trauma e morte, além das chamadas guerras índias, que dizimaram os indígenas no século XIX e início do século XX. Seus contos autobiográficos, poemas e artigos foram publicados em periódicos de renome na época, como o Atlantic Monthly Magazine, em 1900 e mais tarde transformada em dois livros, entre 1920 e 1922. Tornou-se Gertrude Bonnin pelo casamento, mas optou pelo nome indígena Zitkala-Ša como escritora, da língua Dakota, que significa “Pássaro Vermelho”. Ela tornou-se um dos raros Nativos Americanos que conseguiram chegar ao Ensino Superior, musicista, escritora e ativista pela causa indígena, autora da única ópera com tema indígena e composta por um indígena. Porém, mesmo com todas as suas realizações, caiu no esquecimento após sua morte. Seus escritos foram recuperados no final do século XX, quando os estudos da crítica feminina, do pós-modernismo e do pós-colonialismo questionaram a construção do cânone literário. Sua obra American Indian Stories aborda momentos de sua infância, na reserva Yankton, seus momentos de aluna em uma boarding school dirigida por missionários e também como professora de outra boarding school, a conhecida Carlisle School. Old Indian Legends recupera as estórias que ouvia enquanto criança, ao redor da fogueira (LISA, 1996).

Eliane Potiguara é brasileira, 56 anos, Conselheira do Impbrapi, Instituto Indígena de Propriedade Intelectual e Coordenadora da Rede de Escritores Indígenas na Internet e do Grumin – grupo de mulheres indígenas/ Rede de Comunicação Indígena. Nascida com outro nome, adotou Eliane Potiguara para homenagear a tribo de onde veio, da Paraíba, os Potiguares (Comedores de Camarão). É formada em Letras e participa de diversas ONGs. Foi indicada, por seu trabalho como ativista, como representante do Brasil na campanha “Mil Mulheres Para o Prêmio Nobel da Paz 2005”. Foi nomeada uma das 10 mulheres do ano em 1988, pelo Conselho das Mulheres do Brasil, por ter criado o GRUMIN. Participou durante anos, da elaboração da ”Declaração Universal dos Direitos Indígenas”, na ONU em Genebra. Recebeu em 1996 o título de “Cidadania Internacional”, concedido pela filosofia Iraniana Baha‟i, que trabalha pela implantação da Paz Mundial. Foi premiada pelo Pen Club da Inglaterra pelo seu livro A Terra é a Mãe do Índio. Sua última obra publicada é Metade Cara, Metade Máscara, que mescla informações sobre a situação indígena atual, confissões e histórias autobiográficas, além da narrativa poética ficcional de Cunhataí e Jurupiranga, um casal que se separa na época da colonização, e passa os séculos pelo sofrimento de seu povo, para se reencontrar no presente.

3 - A identidade fragmentada e reafirmada

A etnia indígena que vivia nos EUA na época de Zitkala-Ša passaram por diversos problemas que comprometiam suas identidades, que incluíam:

- a invasão cultural europeizante, que procurava aculturar e “assimilar” o indígena em um projeto bem planejado e que assumia diversas formas, algumas inclusive disfarçadas em “pele de cordeiro”, como a distribuição de terras aos índios através do Dawes Act, de 1887, que possibilitava aos brancos um roubo legalizado das terras das reservas indígenas, ou as boarding schools, internatos religiosos ou militares que traumatizaram as crianças, fazendo com que elas perdessem sua tradição étnica, sua linguagem, mas ao mesmo tempo não conseguissem se adaptar à sociedade euro-americana;

- as teorias secundárias às idéias darwinianas, que estabeleciam as raças não européias como inferiores, e o hibridismo como degeneração. No caso de Zitkala-Ša, há uma forte possibilidade de que seu pai seja um homem branco, o que ela nunca deixou transparecer em sua escrita. Mesmo assim, sua educação e criação acabou por representar nela o dilema existencial que fazia parte da vida da maioria do povo indígena na época: “Mesmo a natureza parecia não ter lugar para mim. Eu não era uma menina pequena, nem grande. Não era uma índia selvagem, nem domada” (ZITKALA-ŠA, 2003, contracapa).

A identidade fragmentada é apontada por Hall (2002) ao afirmar que, a partir de certos movimentos que tiveram início no final do século XIX, como a Psicologia (que cindiu a mente em consciente e inconsciente), o marxismo (que cindiu a sociedade em classes), Foucault e o feminismo, que questionaram o posicionamento de poder e de gênero, a identidade deixa de ser um todo, um “bloco” uno, com um único centro, e passa a ter diversos centros, ou seja, a identidade vista sob o prisma dos estudos pós-modernos vai variar de acordo com os sistemas culturais que a interpelam.

A questão da pluralidade de identidades está presente em Zitkala-Ša de diversas formas: ela assume, publicamente, sua condição de índia, abandonando sua hibridez física, mas utiliza sua hibridez cultural ao fazer uso de sua educação e conhecimento da língua inglesa para escrever, inclusive mostrando sua erudição, contra a cultura branca e seus efeitos devastadores dos processos de assimilação aos indígenas de sua época. Por outro lado, assume os dois papéis destinados às mulheres índias na época. O primeiro é a a squaw, palavra para “vagina” em algumas línguas indígenas e “moça” em outras, usada desdenhosamente pelos brancos para designar as mulheres indígenas que, são forçadas a se prostituírem e abandonarem suas aldeias para servirem aos homens brancos. O segundo estereótipo é a princesa, personificada pela filha do chefe Powhatan, a famosa Pocahontas, que, além de servir de mediadora entre brancos e índios, arrisca sua vida pelo homem branco, muitas vezes às custas da destruição de seu próprio povo. Zitkala-Ša deixa em suspenso o fato de que seria ou não neta de Tatanka Yotanka (O famoso chefe indígena Touro Sentado, místico e ativista, que participou da troupe circence do velho oeste de Buffalo Bill e venceu o general Custer na batalha de Little Big Horn), assumindo, portanto, o papel de princesa, neta do chefe. Também é chamada de squaw na forma de um cartaz quando ganha um concurso de oratória na faculdade, sendo a única concorrente indígena. Pode-se, então, observar que a autora subverte os dois papéis, uma vez que é comprovado através da análise dos anos de nascimento, que é impossível para Zitkala-Ša ser neta biológica de Touro Sentado. Por outro lado, ela usou esse expediente para ter acesso aos corredores do poder como ativista em Washington D.C.. Ela também subverte o estereótipo de squaw, porque recebe este nome não pela sua subordinação aos brancos, e nem por favores sexuais, mas por ousadia em competir em um ambiente cultural não-indígena, e sua por competência em ganhar.

Potiguara também deixa entrever o hibridismo e a fragmentação em sua história, quando afirma, narrando a própria história em terceira pessoa: “Foi impactante porque eram todas mulheres, as quatro filhas do índio X, mais a mãe Maria da Luz. Sua avó, a menina Maria de Lourdes, com apenas 12 anos, já era mãe solteira, vítima da violação sexual praticada por colonos que trabalhavam para a família inglesa X”(POTIGUARA, 2004, p. 27). A história reticente e muitas vezes imprecisa quanto a dados históricos, que são apenas entrevistos é utilizada pelas duas autoras, como forma de generalização e representação da identidade indígena como um todo: não são apenas elas ou suas famílias que passaram por situações parecidas, mas toda uma população indígena.

Ambas as autoras hibridizam também suas literaturas: fazem um resgate dos acontecimentos e as tradições de seus respectivos povos utilizando a linguagem do dominante, porém, também de forma híbrida: misturam diversos gêneros literários, como ensaio reflexivo, narrativa e poesia. Enquanto Potiguara se afirma diretamente e denuncia as violências sentidas por seu povo, Zitkala-Ša o faz de maneira velada, mas não menos incisiva, como quando, por exemplo, ao narrar o corte de seu cabelo no internato, considerada desonra para seu povo, ela o faz com as tintas de um estupro:

Eu me lembro de ter sido forçada e puxada, mesmo resistindo com chutes e unhadas selvagens. Totalmente contra minha vontade, fui carregada pela escadaria abaixo e amarrada com força a uma cadeira. Eu gritava alto, balançando minha cabeça o tempo todo até sentir as lâminas geladas da tesoura contra meu pescoço e as ouvir destruírem uma de minhas grossas tranças. Então, perdi meu espírito. (ZITKALA-ŠA, 2003, p. 69, tradução nossa).

A doçura da infância na reserva convivendo com o carinho da tribo contrasta com o tratamento desumano recebido na escola. E esta era a realidade de milhares de crianças indígenas na época de Zitkla-Ša, proibidas de usar as roupas e adereços das tribos, sua linguagem e qualquer elemento de suas tradições sob pena de surras e todo tipo de violência.

Potiguara mistura uma escrita informativa, ensaística e poética: “Em 18 de abril de 1997, o líder indígena Marçal Tupã-y, assassinado em 25 de novembro de 1983, esteve nas terras do Sul do Brasil e disse: 'Eu não fico quieto não...⁄ Eu reclamo...⁄Eu falo... ⁄ Eu denuncio'.” (POTIGUARA, 2004, p. 47).

Uma das formas de resistência, segundo Ashcroft (2002), é o testimonio, ou seja, a narrativa de histórias do cotidiano dos povos dominados, a escrita autobiográfica. Esta é uma forma não apenas de auto-expressão e de arte literária, mas também uma forma de o dominado denunciar o que ocorre em seu mundo. Desta forma, o dominado também se apropria das armas do dominante, seja na forma da linguagem, ou de sua negação, seja através de mímica, de ironia, entre outros recursos, para a formação de seu próprio espaço e, fugindo ao controle do dominador, mescla sua cultura. O testemunho é usado pelas duas autoras em suas escritas autobiográficas e também na recuperação de tradições e da filosofia indígena.

Uma das provas da insistência na cultura dominada é a utilização, por parte de ambas, da arte de contar histórias. Esta é apontada por elas como o método de educação das crianças indígenas. Ambas as autoras o fazem por meio de suas narrativas autobiográficas e ficcionais, subvertendo a erudição e o uso da linguagem dominante aprendida como forma de chamar a atenção dos não-indígenas para a problemática indígena, e também como forma de recuperação da auto-estima alquebrada de seus povos. Potiguara aponta para caminhos mais esperançosos: ao final de sua saga de seu livro Metade Cara, Metade Máscara, Cunhataí e Jurupiranga se reencontram e juntos criam presenciam o renascimento da cultura; da união de suas lágrimas, produzem a felicidade para si e para seu povo. Enquanto isso, Zitkala-Ša oscila entre uma esperança febril e o desânimo ante os poucos resultados de sua luta. No início de sua obra, em diversos contos, ela entrevê índios dançando felizes, como nunca havia visto:

O presente era uma coisa fantástica, a textura muito mais delicada que a teia brilhante de uma aranha. Era uma visão! Uma figura de uma aldeia indígena, não pintada em tela, nem mesmo escrita. Era feita de sonhos, suspensa no ar, enchendo a área do baú de cedro. Quando ela olhou para dentro, a figura ficou mais e mais real, ultrapassando as dimensões do baú, Enquanto observava a figura, esta crescia mais. Era tão suave que parecia que uma respiração poderia tê-la destruído; ainda assim, era real como a vida – um acampamento circular, cheio de tendas brancas em forma de cone, viva com o povo indígena. [...] Ela ouviu distintamente as palavras Dakota que ele proclamava ao povo. Alegrem-se, fiquem felizes! Olhem e vejam o novo dia nascendo! A ajuda está próxima! Ouçam-me todos.” Ela sentiu as ondas de alegria e ficou emocionada com nova esperança para seu povo” (ZITKALA-ŠA, 2003, p. 142, tradução nossa).

Porém, em algumas obras, como no conto Search of Bear Claws, the lost schoolboy, (em busca de Garras de Urso, o estudante perdido), onde ela conta a história de um menino que foge da repressão do internato, seu final não é feliz. A tribo usa sua tradição para encontrá-lo, na figura do Medicine Man, o curandeiro, mas isso não é suficiente, pois a morte aparece como a libertação para o pequeno fugitivo: “Ali, sob o manto da neve, eles encontraram o corpo do estudante fugitivo: o pequeno Garras de Urso fugira para onde os internatos não poderiam torturá-lo mais.” (IDEM, 2001, p. 96, tradução nossa) 4

Imagens como a reunião da tribo em volta de uma fogueira para contar histórias ou dançar, em Zitkala-Ša, o uso das ervas para Potiguara, a comunhão com a natureza e a aldeia, seja ela física ou simbólica em ambas, procuram estabelecer aspectos de identidade do índio e lembrar as tradições. Porém, ambas mostram-se conscientes de que é necessário o conhecimento do idoso e a ação do jovem para que a cultura indígena sobreviva, de forma a não ficarem presas ao passado, mas procurarem a resolução dos problemas no presente.

A relação respeitosa e simbiótica do indígena com a natureza também está presente nas autoras, como pode ser mostrado nesse excerto: “Quando o espírito penetra meu peito, gosto de andar calmamente entre as montanhas verdes; ou, às vezes, sentada às margens do Missouri sussurrante, eu me maravilho com o grande azul acima.” (IDEM, 2003, p. 114)

No poema “Eu não tenho minha aldeia”, Potiguara coloca a aldeia como símbolo da própria identidade indígena para aqueles que a perderam:

Eu não tenho minha aldeia / Minha aldeia é minha casa espiritual / Deixada pelos meus pais e meus avós / A maior herança indígena [...]

Ah, Já tenho minha aldeia / Minha Aldeia é Meu Coração ardente / É a casa dos meus antepassados / E do topo dela eu vejo o mundo
(POTIGUARA, 2004, p. 131-132).

Desta forma, as duas autoras, por mais que estejam forçadamente no limiar de duas culturas, a cultura branca imposta e a cultura indígena perdida, fazem a opção pela cultura indígena, utilizando-se de expedientes da cultura e do conhecimento do dominante para transmitir seu conhecimento e sua indignação com a situação em que vivem suas respectivas etnias, hibridizando seus conhecimentos e o uso que fazem dele.

A identidade fragmentada e a opção pela indianidade (o desaparecimento das origens brancas) aparece propositadamente nas duas escritas autobiográficas. A união da modernidade e da tradição são patentes nas duas obras. No conto A dream of her grandfather, de Zitkala-Ša, a neta ativista recebe de presente do avô, um medicine man, uma visão. No mesmo sentido, Potiguara afirma que Jurupiranga “Percebeu a comunhão da nova e avançada tecnologia utilizada por alguns indígenas com as tradições indígenas, onde o diálogo jovens versus velhos era uma realidade” (POTIGUARA, 2004, p. 129).

Outros símbolos, como o cobertor e a fogueira do centro da aldeia (para Zitkala-Ša) e a pintura (para Potiguara) também representam a afirmação do índio e a busca de sua identidade, mas o choque entre a cultura branca e indígena procura ser resolvido pelas autoras de uma forma suave, não violenta, com respeito mútuo. Esta tentativa é mais forte em Zitkala-Ša, enquanto Potiguara é mais incisiva na apresentação e na busca da resolução dos conflitos em a que a solução aparece pela união da mulher indígena e do homem indígena.

4 - O corpo e o gênero

O corpo marca as diferenças visíveis entre etnias e entre gêneros, além de oferecer terrenos seguros para essencialismos, generalizações e ideologias sexistas e racistas. Os temas de outremização e identidade também estão presentes no corpo, pois a diferença gera hierarquias e dominação (TRINH, 1989).

Zitkala-Ša não é direta sobre questões sexuais, talvez pela educação rígida que recebera, pelos veículos nos quais publicou, ou pelas próprias limitações da época em que viveu, mas ela tem uma escrita que contrasta e ressalta sensações corporais, cores, e contrasta o corpo branco e indígena, além de reiterar exaustivamente a agência feminina. Metaforicamente, o conto the snow episode mostra uma outra faceta da relação índio/ branco: as meninas índias brincam de marcar a neve com seus corpos e são duramente repreendidas, pois é inconcebível que deixem as marcas de seu corpo vermelho na pureza da neve branca (mais uma vez, a neve representando o branco – como em outros contos da autora, a frieza e o motivo da dor do índio). Ao marcarem o branco da neve com seus corpos vermelhos, as crianças estariam indo contra a proposta assimilacionista, que era “embranquecer” o índio, e não “avermelhar” o branco.

O homem indígena em Zitkala-Ša é respeitável e amado, mas geralmente está perdido, louco, ou trata-se de um nobre antepassado já morto. A mulher tem a agência, no entanto, o homem indígena serve de inspiração à mulher, que sempre será a guerreira e portadora da tradição, utilizando-se de diferentes armas, como a personagem Tusee, do conto The Warrior’s daughter, que liberta o amado da tribo inimiga com sua inteligência e seu conhecimento da linguagem. Impressions mostra o tio da personagem narradora como um guerreiro honrado enterrado nas montanhas da reserva. A terra é mãe do índio, motivo de inspiração e contato com a divindade e a mulher é aquela que liberta o homem.

A escrita é sensorial em Zitkala-Ša – os sentidos são aguçados a todo o momento, e as descrições são vivazes neste sentido – gostos e cheiros da aldeia dentro da reserva são suaves e coloridos e é sempre verão ou primavera, enquanto a escuridão, o frio e a opressão da prisão são vivazes na escola e o inverno impera.

Enquanto isso, a escrita de Potiguara além de profundamente sensorial, como a de Zitkala-Ša, é também sensual: a terra não é apenas a mãe do índio, mas sua esposa prometida: a cunhã. A mulher é consciente de seu poder, mas está no aguardo de um momento para quebrar o silêncio:

Que faço com a minha cara de índia ?
E meus espíritos / E minha força / E meu Tupã / E meus círculos ?
Que faço com a minha cara de índia? / E meu sangue / E minha consciência / E minha luta / E nossos filhos ?
Brasil, o que faço com a minha cara de índia?
Não sou violência / Ou estupro / Eu sou história / Eu sou cunha / Barriga brasileira / Ventre sagrado / Povo brasileiro / Ventre que gerou / O povo brasileiro / Hoje está só ... / A barriga da mãe fecunda / E os cânticos que outrora cantava / Hoje são gritos de guerra / Contra o massacre imundo
(POTIGUARA, 2004 p. 34-35).

O índio de Potiguara está fraco (Jurupiranga), mas é também um guerreiro nobre e está em vias de despertar, se levantar e voltar a usar as tintas de sua tradição, em consonância com a modernidade.

Então tomaremos o mel da manhã, / Pra que todos os antepassados renasçam / E olharemos pro céu do amanhã / Pra que nossos filhos se elevem / E beberemos a água do carimã / Pra suportar a dor da Nação acabada /
E os POTIGUARAS, comedores de camarão / Que HOJE – carentes / Nos recomendarão a Tupã / E te darão o anel do guerreiro – parceiro. / E a mim? / Me darão a honra do Nome / A ESPERANÇA – meu homem! / De uma pátria sem fim
” (IBIDEM, p. 138-139).

As mulheres nas obras das duas autoras podem ser empurradas e sofrerem pelas circunstâncias, mas são fortes e questionam o mundo que as cerca. Ela salva o homem em quase todas as obras, mesmo que seja uma salvação simbólica, pequena, como a avó que opta por ficar para trás num período de guerra, mesmo sabendo que ia morrer, para procurar seu netinho (Zitkala-Ša), ou Cunhataí, que faz Jurupiranga renascer, na obra de Potiguara.

As personagens femininas são fortemente retratadas dentro das obras das duas autoras, sejam elas o eu narrador autobiográfico, as parentes, como a mãe (no caso de Zitkala-Ša) ou a avó, no caso de Potiguara, ou personagens fictícias. Ambas autoras enfatizam o choque das culturas, mas apostam na sua resolução de maneira menos invasiva e violenta. O homem indígena não é superior ou inferior à mulher, mas reforça sua identidade (no caso de Potiguara) ou é fonte nobre e inspiradora de ação independente por parte da mulher (no caso de Zitkala-Ša).

5 - Considerações finais

As duas autoras misturam de forma vivaz a ficção, a escrita jornalística de informação com relação à situação indígena, poesia e narração com moldes na oralidade indígena, oferecendo uma hibridez e resistência tendo como uso a linguagem dominante subvertida. Ambas buscaram por caminhos às vezes diferentes, e muitas vezes conflitantes, pela diferença de cultura e por seu objetivo final com relação aos leitores, mas muitas vezes similares, mostrar aspectos desconhecidos e calados dos sentimentos e angústias vividas pela mulher indígena diante de uma sociedade opressora. A principal diferença nas formas está na denúncia direta por parte de Potiguara, com nomes e situações históricas comprovadas e claras contra o modo velado de Zitkala-Ša aludir a situações como as marchas forçadas, o massacre de índios em Wounded Knee e às guerras, com outros assuntos explorados de forma mais dramática, como o tratamento cruel recebido nos internatos.

As duas também fazem uma retomada dos mitos e tradições para esclarecerem às outras etnias e lembrarem os próprios indígenas de seu passado. Potiguara mistura a escrita acadêmica e sócio-histórica, com poesias que discutem a posição da mulher e do índio na sociedade e perante si mesmo, além da escrita autobiográfica, enquanto Zitkala-Ša recupera as histórias e a oralidade de seu povo, que ouvia quando criança, apostando na captura do leitor através da identificação do mesmo com o sofrimento e a bravura das personagensa, além de narrativa ficcional e também escrita autobiográfica.

Eliane Potiguara e Zitkala-Ša partiram de uma realidade até certo ponto parecida, mas não totalmente igual: os índios americanos nos século XIX não eram considerados cidadãos, não tinham direito a voto e muito menos representatividade política. Eram exterminados por doenças e pela fome, por marchas forçadas, por guerras e ataques do exército, além de estarem circunscritos ao bel prazer do governo em reservas, onde recebiam parcas rações de subsistência. Enquanto isso, os índios brasileiros passam por lutas parecidas com relação ao preconceito, à luta pela demarcação de suas terras, e a ONU, entre outros órgãos mundiais procuram garantir sua liberdade e tratamento humano, mesmo que essa não seja uma realidade. As duas autoras não deixaram que a ânsia e a necessidade de dizerem suas identidades ou a identidade da mulher indígena fosse maior que a forma de talento literário que se apresenta em suas obras, mas procuraram negociações de suas identidades, de forma que pudessem viver em um mundo de culturas e corpos híbridos sem caírem no identitarismo vazio.

Referências Bibliográficas
ASHCROFT, Bill. Post-colonial transformation. London and New York: Routledge, 2002.
HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 7. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
LISA, Laurie. The life story of Zitkala-Ša: Gertrude Simmons Bonnin: writing and creating a public image. 227 p. Dissertation of requirement for the Degree Doctor of Philosophy. USA: Arizona State University. may 1996.
POTIGUARA, Eliane. Metade Cara, Metade Máscara. São Paulo: Global, 2004
TRINH, T. Minh-ha. Woman, Native, Other: Writing Postcoloniality and Feminism. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1989.
ZITKALA-ŠA. American Indian Stories, legends and other writing. (with introduction and notes by DAVIDSON, Cathy and NORRIS, Ada). USA: Penguin Classics, 2003.
______. Dreams and Thunder: Stories, Poems, and The Sun Dance Opera: Introduction by Jane Hafen. Lincoln: University of Nebraska, 2001.

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http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/03/eliane-potiguara-orao-pela-libertao-dos.html

Fonte:
II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE – Cascavel, 06 a 08 de outubro de 2010

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Carlos Drummond de Andrade (Adeus a Sete Quedas )


Sete damas por mim passaram,
E todas sete me beijaram.
Alphonsus de Guimaraens

Aqui outrora retumbaram hinos.
Raimundo Correia

Sete quedas por mim passaram,
e todas sete se esvaíram.
Cessa o estrondo das cachoeiras, e com ele
a memória dos índios, pulverizada,
já não desperta o mínimo arrepio.
Aos mortos espanhóis, aos mortos bandeirantes,
aos apagados fogos
de Ciudad Real de Guaira vão juntar-se
os sete fantasmas das águas assassinadas
por mão do homem, dono do planeta.

Aqui outrora retumbaram vozes
da natureza imaginosa, fértil
em teatrais encenações de sonhos
aos homens ofertadas sem contrato.
Uma beleza-em-si, fantástico desenho
corporizado em cachões e bulcões de aéreo contorno
mostrava-se, despia-se, doava-se
em livre coito à humana vista extasiada.
Toda a arquitetura, toda a engenharia
de remotos egípcios e assírios
em vão ousaria criar tal monumento.

E desfaz-se
por ingrata intervenção de tecnocratas.
Aqui sete visões, sete esculturas
de líquido perfil
dissolvem-se entre cálculos computadorizados
de um país que vai deixando de ser humano
para tornar-se empresa gélida, mais nada.

Faz-se do movimento uma represa,
da agitação faz-se um silêncio
empresarial, de hidrelétrico projeto.
Vamos oferecer todo o conforto
que luz e força tarifadas geram
à custa de outro bem que não tem preço
nem resgate, empobrecendo a vida
na feroz ilusão de enriquecê-la.
Sete boiadas de água, sete touros brancos,
de bilhões de touros brancos integrados,
afundam-se em lagoa, e no vazio
que forma alguma ocupará, que resta
senão da natureza a dor sem gesto,
a calada censura
e a maldição que o tempo irá trazendo?

Vinde povos estranhos, vinde irmãos
brasileiros de todos os semblantes,
vinde ver e guardar
não mais a obra de arte natural
hoje cartão-postal a cores, melancólico,
mas seu espectro ainda rorejante
de irisadas pérolas de espuma e raiva,
passando, circunvoando,
entre pontes pênseis destruídas
e o inútil pranto das coisas,
sem acordar nenhum remorso,
nenhuma culpa ardente e confessada.
(“Assumimos a responsabilidade!
Estamos construindo o Brasil grande!”)
E patati patati patatá...

Sete quedas por nós passaram,
e não soubemos, ah, não soubemos amá-las,
e todas sete foram mortas,
e todas sete somem no ar,
sete fantasmas, sete crimes
dos vivos golpeando a vida
que nunca mais renascerá.

Fonte:
ANDRADE, Carlos Drummond. Jornal do Brasil, Caderno B, 09 de setembro de 1982

Maria Rosa Moreira Lima (A Lenda dos Tatus Brancos)


A lenda dos tatus brancos, na opinião de Afonso Arinos, pertence ao folclore paulista e teve início da seguinte maneira:

Alguns bandeirantes audaciosos, buscando novos descobrimentos acompanhavam o traçado do rio Tietê e depois de longa jornada resolveram adentrar a mata bravia. Caminharam dias seguidos quando lhes veio a idéia de procurar ouro e pedras preciosas. Dirigiram-se, então, para as terras das Minas Gerais. Desta maneira chegaram a um local desconhecido, onde os campos ficavam perto de cavernas e furnas imensas, escuras, tenebrosas. Apesar do local agreste, as tendas foram armadas para repouso merecido. Acocorados em torno do lume, saboreando alguma bebida, os viajantes escutavam as mais curiosas e absurdas histórias contadas pelos caboclos nativos embora, ao mesmo tempo, insistissem para que levantassem acampamento o quanto antes pelo fato daquela região ser dominada por uma espécie de índios conhecidos como tatus brancos, habitantes das cavernas adjacentes e, enxergando tão bem dentro da escuridão como se tivessem olhos de coruja. Além desta qualidade excepcional, havia uma outra e esta verdadeiramente de apavorar pois as citadas criaturas davam um valor inestimável à carne humana, preferindo-a mesmo a qualquer caça ao alcance de suas flechas. Além da predileção absurda, tinham um faro especial sentiam o cheiro do alimento favorito, logo se aprestavam para caçá-lo.

O chefe paulista, sendo o mais interessado nos relatos concernentes à sanha antropófaga dos vampiros da tribo dos tatus brancos, prometeu a si mesmo desvendar o mistério. Daí não querer escutar os conselhos do mais experimentado caboclo, cujas palavras eram endossadas pelos outros guias também confirmando casos de pessoas sumidas, provavelmente levadas para as vastidões sombrias e jamais tornaram a aparecer. Mesmo assim, o moço insistia em ficar no local, dizendo somente partir depois de certificar-se quanto à veracidade das histórias contadas por aqueles homens que, embora reconhecidamente valentes, manifestavam grande pavor ao ouvir o menor ruído. Audacioso, o chefe da expedição sozinho começou investigando e, para isso penetrava nas furnas mais tenebrosas, examinando rastros, atento ao mais insignificante rumor.

Certa noite de escuridão cerrada, a tropa descansava numa clareira. O silêncio era profundo, perturbado apenas pelo bater de asas de algum pássaro retardatário buscando o aconchego do ninho. Pouco a pouco os homens foram percebendo um clamor estranho. Eram muitas vozes juntas, inicialmente confusas pela distância mas, aproximando-se rapidamente, enquanto um tropel diferente como se incalculável quantidade de animais pequeninos corressem desenfreados pelas quebradas em direção ao acampamento e, suas vozes, foram discernidas à medida que se aproximavam. Os componentes do grupo paulista puseram-se de sobreaviso com as armas engatilhadas. Súbito, uma horda de pigmeus, saindo da escuridão, iniciou o ataque. O imprevisto do acontecimento impossibilitou uma defensiva eficiente.

Mesmo assim a luta foi renhida mas rápida. Era a força dos homens grandes contra a astúcia e agilidade assombrosa dos assaltantes. Os pequenos seres arrastavam para as trevas os corpos dilacerados e sem vida dos vencidos inclusive os agonizantes e, nem escapou ao massacre o chefe da escolta. Este, ferido levemente, em companhia dos subalternos foi levado para uma das cavernas dos agressores. Mas aconteceu o seguinte: A princesa da tribo já vira o moço paulista e por ele se apaixonara, propiciando-lhe este fato, o direito de dispor da vida do prisioneiro.

No âmago da caverna o valente bandeirante passa algum tempo desacordado e quando recupera os sentidos vê, junto de si, um pequeno vulto de mulher. Quando seus olhos vão se acostumando às trevas nota e com horror o restante dos companheiros devorados pela horda sinistra que, comemorando a vitória dançavam satisfeitos dando por terminado o banquete macabro. Naquele antro escuro, o detido permaneceu por muito tempo sempre vigiado pela jovem apaixonada. Certa noite a malta assassina parte para os cerrados buscando alimento humano. Aproveitando a oportunidade, o moço deixa-se envolver pela turba apressada dos pigmeus e, sem ser notado, consegue sair também das cavernas mas, sempre vigiado pela amorosa companheira. Enfraquecido, não consegue chegar a saída da gruta e, exausto pela falta de alimentação, sentindo-se desfalecer, faz um sinal para descansar. Deitam-se no chão. Ele apesar de tudo, alimentando a esperança de alcançar a liberdade, finge adormecer, enquanto a jovem a seu lado, é, na verdade dominada pelo sono. Disfarçadamente o prisioneiro atento, aguarda o nascer do sol para ver onde se encontrava e quando os clarões da madrugada iluminaram a terra, levanta-se com muito cuidado e tenta fugir. No mesmo instante a moça acorda e, mal desperta, atordoada com a claridade, num esforço tenta arrastar o homem para o negrume da caverna. E naquele momento de aflição ele conseguiu observá-la. Era uma pequenina mulher e como os seus irmãos, mal atingindo a metade da altura de um homem de baixa estatura, pele clara de quem nunca sentiu os raios solares, os cabelos longos de um louro sem vida. Quanto aos olhos eram de um azul esbranquiçado e ela gemendo procurava conservá-los fechados ou protegê-los da claridade com uma das mãos, enquanto com a outra buscava o companheiro, desta maneira caminhando às tontas como se fosse inteiramente cega. O moço desvencilhando-se da criatura que fazia ingentes esforços para detê-lo, foge em desabalada carreira, daquele local maldito dominado pela tribo dos tatus brancos, considerados os mais ferozes canibais que infestavam aquela região do ouro.

Fonte
LIMA, Maria Rosa Moreira. A lenda dos tatus brancos. Diário de São Paulo, São Paulo, 09 de agosto de 1975.

Solano Trindade (Antologia Poética)


POEMA AUTOBIOGRÁFICO

Quando eu nasci,
Meu pai batia sola,
Minha mana pisava milho no pilão,
Para o angu das manhãs...
Portanto eu venho da massa,
Eu sou um trabalhador...

Ouvi o ritmo das máquinas,
E o borbulhar das caldeiras...
Obedeci ao chamado das sirenes...
Morei num mucambo do ""Bode"",
E hoje moro num barraco na Saúde...

Não mudei nada...

CANTA AMÉRICA

Não o canto de mentira e falsidade
que a ilusão ariana
cantou para o mundo
na conquista do ouro
nem o canto da supremacia dos derramadores de sangue
das utópicas novas ordens
de napoleônicas conquistas
mas o canto da liberdade dos povos
e do direito do trabalhador...

CONVERSA

- Eita negro!
quem foi que disse
que a gente não é gente?
quem foi esse demente,
se tem olhos não vê...

- Que foi que fizeste mano
pra tanto falar assim?
- Plantei os canaviais do nordeste

- E tu, mano, o que fizeste?
Eu plantei algodão
nos campos do sul
pros homens de sangue azul
que pagavam o meu trabalho
com surra de cipó-pau.

- Basta, mano,
pra eu não chorar,
E tu, Ana,
Conta-me tua vida,
Na senzala, no terreiro

- Eu...
cantei embolada,
pra sinhá dormir,
fiz tranças nela,
pra sinhá sair,

tomando cachaça,
servi de amor,
dancei no terreiro,
pra sinhozinho,
apanhei surras grandes,
sem mal eu fazer.

Eita! quanta coisa
tu tens pra contar...
não conta mais nada,
pra eu não chorar -

E tu, Manoel,
que andaste a fazer
- Eu sempre fui malandro
Ó tia Maria,
gostava de terreiro,
como ninguém,
subi para o morro,
fiz sambas bonitos,
conquistei as mulatas
bonitas de lá...

Eita negro!
- Quem foi que disse
que a gente não é gente?
Quem foi esse demente,
se tem olhos não vê.

EU GOSTO DE LER GOSTANDO

Eu gosto de ler gostando,
gozando a poesia,
como se ela fosse
uma boa camarada,
dessas que beijam a gente
gostando de ser beijada.

Eu gosto de ler gostando
gozando assim o poema,
como se ele fosse
boca de mulher pura
simples boa libertada
boca de mulher que pensa...
dessas que a gente gosta
gostando de ser gostada.

NEGRA BONITA

Negra bonita de vestido azul e branco
Sentada num banco de segunda de trem
Negra bonita o que é que você tem?
Com a cara tão triste não sorri pra ninguém?
Negra bonita
É seu amor que não veio
Quem sabe se ainda vem
Quem sabe perdeu o trem
Negra bonita não fique triste não
Se seu amor não vier
Quem sabe se outro vem
Quando se perde um amor Logo se encontra cem
Você uma negra bonita Logo encontra outro bem.
Quem sabe se eu sirvo
Para ser o seu amor
Salvo se você não gosta
De gente da sua cor
Mas se gosta eu sou o tal
Que não perde pra ninguém
Sou o tipo ideal
Pra quem ficou sem o bem...

REFLEXÃO

Vieste acender o meu fogo poético,
E minh’alma se abriu pras grandes festas,
A música dos teus poemas,
Faz-me dançar o bailado, Da primeira mocidade...
Eu sinto vontade de não ser sexo,
Para brincar contigo como criança,
E brincar de cirandinha com tu’alma.
Mas como sou sexo, Vou assistir um espetáculo humano;
A confecção de bandeiras iguais,
Para seres que parecem diferentes.

POEMA DO HOMEM

Desci à praia
Para ver o homem do mar,
E vi que o homem
É maior que o mar

Subi ao monte
Pra ver o homem da terra,
E vi que o homem
É maior que a terra

Olhei para cima
Para ver o homem do céu,
E vi que o homem
É maior que o céu.

O CANTO DA LIBERDADE

Ouço um novo canto,
Que sai da boca,
de todas as raças,
Com infinidade de ritmos...
Canto que faz dançar,
Todos os corpos,
De formas,
E coloridos diferentes...
Canto que faz vibrar,
Todas as almas,
De crenças,
E idealismos desiguais...
É o canto da liberdade,
Que está penetrando,
Em todos os ouvidos...

MEU CANTO DE GUERRA

Eu canto na guerra,
Como cantei na paz,
Pois o meu poema
É Universal.
É o homem que sofre,
O homem que geme,
É o lamento
Do povo oprimido,
Da gente sem pão...
É o gemido
De todas as raças,
De todos os homens.
É o poema
da multidão!

ABOLIÇÃO NÚMERO DOIS

Parem com estes batuques,
Bombos e caracaxás,
Parem com estes ritmos tristes e sensuais

Deixem que eu ouça
Que eu veja
Que eu sinta
O grito
A cor
E a forma
da minha libertação...

QUEM TÁ GEMENDO?

Quem tá gemendo,
Negro ou carro de boi?
Carro de boi geme quando quer,
Negro, não,
Negro geme porque apanha,
Apanha pra não gemer...

Gemido de negro é cantiga,
Gemido de negro é poema...

Gemem na minh'alma,
A alma do Congo,
Da Niger, da Guiné,
De toda África enfim...
A alma da América...
A alma Universal...

Quem tá gemendo,
negro ou carro de boi?
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mais poesias de Solano em http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/11/solano-trindade-1908-1974-poesias.html
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Ricardo Faria (Um Poeta chamado Solano Trindade)


Tempos de Teatro de Arena, Redondo, TBC, TAIB, do Teatro das Nações, inaugurado com uma ópera para mais de mil pessoas vestidas a rigor.

A gente se reunia no Ponto de Encontro, uma livraria no subsolo da Galeria Metrópole, em frente à Praça da Biblioteca, na então Paulicéia Desvairada dos anos sessenta. Que bom ter conhecido tantas pessoas especiais.

Aquele negrão era cativante, mais ainda quando declamava e se repartia.

Solano Trindade, pernambucano de Recife, filho do sapateiro Manuel Abílio e da quituteira Emerenciana, cresceu dançando o Pastoril e Bumba-meu-boi. Participou dos Congressos Afros dos anos trinta, especialmente quando Gilberto Freyre lança seu Casa Grande & Senzala.

Em 1936, Solano funda o Centro Cultural Afro-Brasileiro e a Frente Negra Pernambucana, uma extensão da Frente Negra Brasileira. Publica os seus Poemas Negros. Inquieto, viaja para Minas Gerais e depois para o Rio Grande do Sul, onde cria, em Pelotas, um Grupo de Arte Popular.

Aquele homem de andar manso, cabeça cheia de planos e energia inabalável foi depois para o Rio de Janeiro. Em 1944 publicou o livro Poemas de uma Vida Simples. Em 1945, junto com Abdias Nascimento, criou o Comitê Democrático Afro-Brasileiro.

Com Haroldo Costa fundou o Teatro Folclórico. Atuou em filmes como A hora e a vez de Augusto Matraga e O Santo Milagroso.

Na cidade maravilhosa, Solano gostava do Café Vermelhinho freqüentado por intelectuais, políticos, jornalistas, escritores e atores teatrais. Era amigo de pessoas como o Barão de Itararé e Santa Rosa.

Solano filiou-se ao Partido Comunista, as reuniões da Célula Tiradentes ocorriam na sua residência e, durante a perseguição aos comunistas, empreendida pelo governo Dutra, entram em sua casa. Seu filho, Liberto, está deitado, doente. A polícia vira o colchão, à procura de armas. Exemplares de seus livros são apreendidos.

A filha Raquel lembra: "Papai jamais esconderia armas. Sua luta era feita com idéias". Preso, não se abala. Raquel e a mãe, Margarida, percorrem as cadeias até encontrá-lo.

Quando sai, Solano parece fortalecido. Embora com os olhos tristonhos, seu otimismo é contagiante, nasce do seu amor pela arte e pela vida. Continua escrevendo, fazendo teatro e espalhando sonhos e esperanças por onde passa.

Preocupava-se com o que chamava de folclore, com as danças populares. Dizia ser necessário pesquisar nas fontes de origem e devolver ao povo em forma de arte. Sua experiência mais bem sucedida neste sentido foi o Teatro Popular Brasileiro, criado por ele, por sua esposa Margarida Trindade e pelo sociólogo Édison Carneiro em 1950

Com Haroldo Costa fundou o Teatro Folclórico. Atuou em filmes como A hora e a vez de Augusto Matraga e O Santo Milagroso.

Na cidade maravilhosa, Solano era freqüentador do Café Vermelhinho, onde se reuniam intelectuais, políticos, jornalistas, escritores e artistas de teatro. Ali era amigo de pessoas como o Barão de Itararé e Santa Rosa.

O Embu é um agradável município distante cerca de uma hora do centro de São Paulo. Embora tão próxima à metrópole, a cidade guarda um clima bucólico, aconchegante.

Quem chega no Embu aos domingos, quando é grande o movimento de turistas, não imagina estar diante da concretização do sonho de artistas negros, dentre eles o poeta Solano Trindade, pesquisador das nossas tradições populares, teatrólogo, pintor e boêmio; um ser humano de grande carisma e visão, para quem a arte representava parte essencial da vida.

Solano vem a São Paulo e é convidado pelo escultor Assis para apresentar-se no Embu e leva o seu grupo. Dormem no barracão de Assis nos finais de semana, quando mostram sua arte para um número cada vez maior de pessoas. Participam da peça "Gimba", de Gianfrancesco Guarnieri. Em 1967, apresentam-se para um dos criadores da Negritude: Leopold Senghor.

Solano apaixona-se pelo Embu, muda-se para lá e sua casa torna-se uma núcleo artístico. Na cidade já havia um movimento com artistas como Sakai e Azteca, mas a atividade de Solano e Assis faz surgir a feira de artesanato e revoluciona o local, aumentando o fluxo turístico.

Solano chegou a ser conhecido como "o patriarca do Embu". A casa e o coração de Solano estavam sempre prontos para receber, na panela, havia comida para quem chegasse a qualquer hora.

Ironicamente, no final da vida, vários desses amigos se afastaram, mas talvez este seja o cruel destino dos grandes criadores, de profetas e poetas assinalados. A poesia de Solano o marcou. Orgulhava-se ser chamado de “poeta negro”; - “Sou negro, meus avós foram queimados pelo sol da África minh'alma recebeu o batismo dos tambores atabaques, gonguês e agogôs.”

Casou-se três vezes e teve quatro filhos. Raquel Trindade, que hoje continua o trabalho do pai, no Embu, descreve-o: "Existem artistas que aparentam ser uma coisa e, no fundo, são outra. Papai mostrava-se como era, um pai fantástico".

Último ato: esse poeta dava-se completamente à arte e à vida sem se importar com bens materiais, ainda que seu trabalho tenha favorecido a muitos. A partir de 1970, sua saúde começou a apresentar problemas. Morreu no Rio de Janeiro, em 1974.

Em 1976, voltou aos braços do povo como tema da escola de samba Vai-Vai, com enredo elaborado por sua filha Raquel. Os versos do samba de Geraldo Filme ainda ecoam: “Canta meu povo, vamos cantar em homenagem ao poeta popular Vai-Vai é povo, está na rua saudoso poeta, a noite é sua.”

Palavras escritas num poema à filha Raquel se tornam proféticas: “Estou conservado no ritmo do meu povo Me tornei cantiga determinadamente, nunca terei tempo para morrer.”

Um de seus trabalhos mais famosos, intitulado "Tem gente com fome", foi musicado e gravado por Nei Matogrosso: Trem sujo da Leopoldina correndo, correndo, parece dizer tem gente com fome, tem gente com fome, tem gente com fome. O ritmo é o de um trem em movimento. No final, quando vai parando, a voz ouvida pelo poeta exige: se tem gente com fome, dá de comer. Solano também cantou continuamente o amor. - Fonte Márcio Barbosa

Em tempos de Beto Carneiro, o Vampiro Brasileiro, e Emílio Surita com seu Pânico na TV, vale a pena homenagear Solano Trindade:

Tem gente com Fome

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Piiiiii

Estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer

Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuuu

Fonte:
Revista Entrementes

Serafina Ferreira Machado (A Imagem do Negro na Poesia de Solano Trindade)


RESUMO: Este artigo se propõe a revisar o processo da formação da identidade do negro: da subalternidade à luta pelo reconhecimento, na esfera histórica e literária. Na obra de Solano Trindade, o poeta cede sua voz ao oprimido (o homem negro ou branco) para denunciar as injustiças sociais. O discurso de Trindade convida o leitor a uma revisão da condição do negro e, ao ressaltar o caráter humano em sua poética, questiona as imagens fixas, revestidas por estereótipos que estigmatizam. A obra deste poeta se propõe, pois, a uma (re)leitura das imagens impingidas ao negro na diáspora, confrontando-se com valores morais, políticos e sociais da elite, no intuito de reconhecer o caráter humano do negro.

PALAVRAS-CHAVE: poesia, negro, humanização.

Na produção literária brasileira, apesar da referência ao negro, é comum encontrar sua imagem marcada por preconceitos e estereótipos construídos numa tentativa de apagar sua representatividade cultural. E hoje, em pleno século XXI, as discussões em torno de medidas compensatórias para sanar as consequências comprovam o resultado desastroso desta lógica. Ou seja, embora o Brasil traga marcas de várias etnias, nota-se que o cânone literário fez sua opção pelo modelo europeu durante um longo tempo. Nesta opção, reconhece-se a tentativa de dominar o caráter humano do negro, retratando-o pelo crivo da inferioridade, a partir da lógica maniqueista que ora o apresenta como dócil, ora como selvagem e quase sempre zoomorfizado.

Portanto, muitas foram as formas de violências pelas quais o negro foi submetido. A sua verdadeira humanidade foi, aos poucos, sendo substituída por imagens que, com o passar do tempo, alicerçaram-se na cultura nacional. Imagens estas que refletiam as ideologias adotadas e cobravam do “sujeito brasileiro” uma “boa aparência”, isto é, assimilação dos modelos da sociedade branca europeia. Assim sendo, justifica-se a exclusão do negro, denunciada no poema “Civilização Branca”, de Solano Trindade:
.

Lincharam um homem
entre os arranha-céus
(li num jornal)
procurei o crime do homem
o crime não estava no homem
estava na cor de sua epiderme...
(Trindade 1961: 37)

A ideologia branca, ao longo da história, tentou enfraquecer a participação do negro na vida social, por isso o poeta busca um verbo forte (lincharam) para definir a violência contra este homem que figura em seu poema. A “boa aparência” cobrada pela época representava o oposto da negrura da pele, dos cabelos pixains, do nariz achatado... Diante desta questão de “aparência”, observa-se que, embora a cultura negra seja, hoje, visível, tolerada, respeitada e integrada nos símbolos constitutivos da cultura nacional, os homens e as mulheres negras, produtores dessa cultura são “invisibilizados”, “linchados”.

Desta forma, diante da civilização branca, Trindade reconhece que a passagem de ser “o outro” apagado, para um “Eu”, requeria o resgate da experiência histórica do ser negro. Assim, ele utiliza a poesia como arma contra as opressões e marginalização social. Mantém um diálogo com a sociedade atual e se insere numa produção que busca incluir as classes marginalizadas.

A palavra foi a arma de Solano Trindade contra a opressão de seu tempo. No poema “Canto de Palmares” ele relata uma batalha onde muitos de seus irmãos foram mortos, mas o poema, arma do eu lírico, permaneceu. E ao revelar “meu poema é cantado através dos séculos/ minha musa esclarece a consciência” percebe-se ainda mais o poder da palavra que pode agir na consciência, como agiu na consciência dos mais jovens como Cuti, Oubi, Adão Ventura etc, que continuaram o canto simples de Trindade.

Através da poesia negra, em que a palavra poética configura-se como arma contra a opressão, pode-se reconhecer a resistência do escritor afro-descendente contra as formas de descriminação racial. Na obra de Solano Trindade, por exemplo, há a cobrança por um reconhecimento, na tentativa de visibilizar e re-apresentar esta categoria marginalizada. A escrita negra faz exatamente isto: rasura a identidade mumificada pela negação e faz emergir um “eu” que reivindica sua voz e seu lugar de agente de/no processo histórico.

Ter consciência de si mesmo é o processo necessário para que o negro efetivamente construa sua identidade. Ou seja, através da conscientização o afro-descendente pode negar os símbolos de estereotipias que foram anexadas a sua real imagem. Na poética é possível verificar o comprometimento do “eu” negro com sua própria identidade como pessoa, aceitando-se e assumindo a própria cor.

Solano Trindade, em diversos momentos, faz menção à tentativa da literatura canônica de “dilaceração” da produção do autor afro-brasileiro. A presença do opressor é, desta forma, constante em “Canto dos Palmares” e as armas são diversas: dinheiro, flechas, os ideais de escravagismo, o sadismo... Mas, a arte poética mostra-se superior a estas formas coercitivas: “...eu os faço correr”. O sangue foi derramado, amadas foram mortas, canta o eu lírico. No entanto, ressalta-se por diversas vezes “Ainda sou poeta e meu poema/ levanta os meus irmãos”. Reiterando, a resistência é marca constante na obra deste poeta pernambucano.

A poesia configura-se como uma oportunidade histórica para se aclamar a negritude, uma negritude que resistiu às diversas formas de coerção, e que agora, incendeia-se para o mundo, consumindo as imagens de negro mau, primitivo, submisso, invisível... Fica no leitor a visão de uma uma brecha por onde o afro-descendente pode atravessar e mostrar-se ao mundo, obrigar-se a ser visto e ouvido: a poesia. A obra de Trindade adquire este sentido e o eu lírico busca transformar o seu status social através do discurso poético. Roger Toumson, em “La littérature antillaise d’expression française”, define essa crise da consciência do sujeito dominado que exige a voz da seguinte forma: “Sua enunciação tem por objetivo arrancá-lo do nada em que a opressão o manteve por tão longo tempo, testemunhar sua presença no mundo e sua verdadeira experiência da história. Polêmico, o discurso afro-antilhano se propõe a restabelecer uma verdade até então deliberadamente abafada” (Bernd 1988: 29).

O olhar do eu lírico nas poesias de Trindade, assim, reconstrói a trajetória do homem, apreendendo um outro sentido nas “mercadorias humanas” trazidas da África, como se pode verificar no poema abaixo:

Lá vem o navio negreiro
Lá vem sobre o mar
Lá vem o navio negreiro
Vamos minha gente olhar...
Lá vem o navio negreiro
Por água brasiliana
Lá vem o navio negreiro
Trazendo carga humana...
Lá vem o navio negreiro
Cheio de melancolia
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de poesia...
Lá vem o navio negreiro
Com carga de resistência
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de inteligência...
(Trindade 1961: 44)

O poeta inicia uma luta pelo reconhecimento da história dos marginalizados, no entanto, convoca o povo para que se junte a ele, para que redescubra as verdades sufocadas pelo preconceito. Para isso, mergulha sem medo no passado histórico e encontra neste mergulho não múmias marcadas pelas ferrugens de um cárcere, ou por pedras de muralhas, mas o ser humano. E ao buscar o humano, ao invés de carga ou mercadoria a ser vendida, o poeta denuncia uma situação política e social que ainda não fora extinta: o afro-descendente continua psicológica e economicamente escravo, oprimido, sem chances reais de alcançar melhores condições de existência humana. Desta forma, é necessário retornar ao passado, visualizar o navio negreiro e perceber o que está contido neste símbolo que até então marcara a dor, o desenraizamento, o apagamento. E a primeira descoberta de Trindade é que neste navio havia carga humana: “Lá vem o navio negreiro/ Trazendo carga humana”. No entanto, o adjetivo “carga” é utilizado com um sentindo deliberadamente pejorativo, referindo-se à condição do transporte de escravo. Por isso, ele convoca todos para que olhem o navio, que redescubram o conteúdo destas embarcações: o negro e sua possível humanidade.

Logo à primeira leitura, o poema chama a atenção para o aspecto visual. A figura do navio negreiro se impõe ao leitor desde o início, como um objeto que deve ser observado: “Vamos minha gente olhar....” Ele é visualizado durante todo o poema, situado no espaço, apresentado por sua função geral (trazer carga humana), o interior do meio de transporte (“cheio de melancolia/ cheio de poesia”) e o interior de seus passageiros: a resistência e a inteligência.

A primeira referência do poeta em relação ao navio é o seu aspecto externo. Através deste ponto de vista destaca-se, no navio, a função de transporte de escravos; em seguida, é captado seu interior e os seres nele transportados. Sobressai a integração dos diferentes ângulos deste mesmo objeto, que se une numa idéia geral de resistência e inteligência. A última palavra, que finaliza o poema harmoniza-se com o vocábulo resistência. A inteligência é símbolo do homem que pensa, que resiste à condição de besta de carga. Por isso, a ausência de ponto final no poema é significativa para demonstrar uma luta iniciada, deixando uma ideia de continuidade.

O efeito geral do poema é de um quadro, mas um quadro que se movimenta de acordo como o olhar do poeta conduzindo o do leitor. Desta forma, é compreensível a insistência nos fonemas [m] e [n] devido o valor expressivo que possuem dentro do poema. Ao reiterar estes fonemas, assim como a frase “Lá vem o navio negreiro”, realiza uma operação ondeante que aproxima o movimento do poema ao movimento do mar. A repetição insiste no retorno, no olhar novamente. Mas, além disso, insiste no prosseguir, num novo passo, ou numa nova visão sobre o objeto que apresenta conteúdos que se diferenciam a cada olhar: carga humana, melancolia, poesia, resistência e inteligência. Cada novo verso equivale a um retorno, a uma retomada do olhar a partir de um ângulo novo sobre o mesmo navio, justapondo-se as faces deste objeto como um recomeço sempre nascente da percepção, até completar-se a imagem real do objeto: um navio que transporta pessoas que sofrem, sentem, se indignam e agem com discernimento.

Nota-se, pois, uma atração do apelo musical que parece vir do mar, do marulho das águas, do som sempre recomeçado das ondas, cujo movimento repetitivo vem representado pela reiteração do verso “Lá vem o navio negreiro”. Além disso, não se pode deixar de perceber a relação entre a música e a poesia, assim como o seu vínculo com a natureza, com a simplicidade.

O paralelismo traz de volta a frase de convocação, ao lado dos outros versos, todos livres, sem qualquer pontuação a não ser o ponto final da quadra. Esta liberdade permite classificar as quadras, do ponto de vista sintático, como uma construção paratática, ou seja, é composta por orações coordenadas absolutas, livres, sem qualquer vínculo conjuntivo ou mesmo sinal de pontuação.

O ritmo, apoiado pela construção paralelística, vincula os versos fazendo ondular, ao mesmo tempo, as ondas do mar e a subjetividade do sujeito que olha, mas, retoma o olhar, no desejo de partilhar a sua visão. As construções verbais, feitas com palavras corriqueiras e repetitivas, em ritmo encantatório, servem para mobilizar alguns elementos temáticos. São motivos tomados do espaço natural (o mar, a água) ou da interioridade humana (melancolia, resistência, inteligência).

A mobilidade fortifica o ritmo que, no poema, passa a ideia de retorno à origem (o verso e a unidade rítmica é uma forma de voltar). Ao mesmo tempo, o navio avança (sempre mais próximo do receptor, desnudando-se, mostrando-se internamente). Com um ritmo tão marcado, tão repisado, o poema parece preparar o leitor para uma dissolução da consciência.

Isto faz com que o poema se assemelhe a certas formas de músicas primitivas, de rítmica rebatida e incisiva, como é o caso, por exemplo, da música dos cultos afro-brasileiros e/ou da poesia lírica medieval. Verifica-se, no poema, a mesma força hipnótica da música popular. No movimento incessante do navio negreiro, um novo ponto de vista vai se revelando. O navio negreiro que se movimenta por águas brasileiras traz sim o sofrimento, a dor, a melancolia; mas, nesse passado de revolta, de exploração, de desaculturação, o poeta encontra a fonte de uma poesia de denúncia: denúncia de um passado de violência, denúncia de um presente de repressão camuflada.

Neste poema que imita o movimento do mar (retorno e avanço) o eu lírico retorna à época de tráfico de escravos. É o retorno necessário para a fonte da poesia e para sugerir um re-olhar. O navio negreiro não representa apenas a embarcação de transporte de carga para o trabalho escravo, perpetuando uma história de humilhação. Se olhado novamente, pode-se reconhecer no navio negreiro o expoente de resistência. O eu lírico, assim, convoca “sua gente” a se auto-reciclar, a se autodescobrir. E deste descobrimento, percebe-se que o navio negreiro trazia uma carga “cheinha de inteligência”, cheinha de história a ser contada, a ser retomada. No entanto, a inteligência a que se refere o eu lírico não é a inteligência racionalista e unilateral, mas, a inteligência ancorada em outros saberes e registros. A prova é que a história é para ser contada e não para ser imposta por leis da grafia.

A poética de Solano Trindade, como se pode perceber, torna-se uma convocação contra as diversas formas de opressão sofridas pelo afro-descendente. Além disso, expressa um convite para o ingresso a um outro universo de sentido, outra forma de apreender, significar e organizar o espaço/mundo. Em sua obra, busca o re-conhecimento do negro e propõe um olhar novamente. Para alcançar este re-conhecimento explicita a diferença entre cada pessoa. Uma diferença expressa nas palavras de Fanon: “Por que não a tentativa simples de tocar o outro, de sentir o outro, de explicar o outro a mim mesmo?... Na conclusão deste estudo, quero que o mundo reconheça, comigo, a porta aberta de cada consciência” (1983: 177).

Nas palavras acima se observa a despersonalização imposta pelo sistema colonial, fechado em seu narcisismo, reconhecendo apenas a sua imagem e negando o diferente. É preciso, no entanto, re-olhar o “outro” que se apresenta como o diferente, que mostra sua subjetividade. Ao olhar novamente o “outro”, pode-se reconhecer “a porta aberta de cada consciência”, a individualidade de cada agente social que detém um saber resultante de uma experiência. O poema aponta para a necessidade de olhar novamente a história desse povo tantas vezes ignorado e que tem muito a revelar. Por isso, em outro poema, “Canto da América”, o poeta pede que a América cante a verdadeira história, não a versão da supremacia de uns em detrimento dos outros, mas sim, o canto da liberdade.

Desta forma, reconhece-se, na obra de Solano Trindade, a resistência às formas de marginalização, valorizando a voz negra e, ao mesmo tempo, identificando-se com os oprimidos, sejam negros ou brancos. Este aspecto da poesia de Trindade pode ser reconhecido no poema “Cantiga”, onde é possível verificar a necessidade de o negro identificar-se com a Negritude a fim de dar valor a si mesmo e à sua produção cultural. Pois, a negritude – como tomada de consciência da descriminação e a busca de uma identidade negra - permite que o negro volte a ter orgulho do patrimônio africano que foi perdido no transporte para a América. Desta forma, no poema, ele assume com orgulho: “Negro bom que sou / que bom / Como noite sem lua sou / Negro bom! / ...que bom!”. O eu lírico sente-se feliz em ser negro e encontra o lado positivo dessa negritude, assumindo-se plenamente, como uma noite sem lua, totalmente escura, mas cuja presença ou ausência já não pode ser ignorada.

No desejo de transmitir as mensagens escondidas, ignoradas pela mentalidade vigente, forma-se a alma de poeta social. Assim, é com orgulho que ele também assumirá: “Poeta e negro sou”. Num processo de pleno acolhimento de si mesmo, o eu lírico reconhece-se como poeta, mas como um poeta negro, que não tem vergonha de enunciar-se como tal. Há, porém,uma procura de não se fechar em si mesmo e, por isso, a voz no poema declara que qualquer cor serve para a sua obra poética, para o assumir-se como pessoa capaz de amar o outro independente da cor da pele. Assim, de forma prognóstica o eu lírico conta que num mundo de igualdade, a cor não terá importância, não diferenciará as pessoas e nele servirá, portanto, qualquer cor. E quando este tempo chegar: “Que bom! / ... que bom!”

Há no poema um efeito admirável, pois Trindade aproveita-se dos valores fônicos, criando uma orquestração onomatopeica que traduz o som do batuque e simboliza também a intensidade do desejo do eu lírico em ver os homens unidos, ao mesmo tempo em que aponta para um fluxo vital de recuperação, recriação e reinterpretação de valores fundamentais para a afirmação da individualidade e da coletividade do afro-descendente.

Desenham-se contornos mais coerentes com as verdadeiras raízes históricas e culturais do Brasil. O negro passa por um processo em que ele descobre a própria história perdida e, nesta história, logrou preservar, reelaborar e sustentar sua cultura e desdobrar a herança africana. Com isso, Trindade restabelece em suas poesias uma identidade humanizada. É necessário, desta forma, reconhecer a particularidade de cada cultura, pois, ela faz parte do processo de afirmação do ser humano como agente social no mundo. Desta forma, o poeta imprime ao longo de sua obra o desejo de um projeto integrador de todas as culturas, sem perder de vista o reconhecimento da particularidade de assumir-se, como fica evidente no poema “Sou negro”.

Nesse poema, ele se refere à História, mas do ponto de vista de quem recupera a escravidão como condição de vida e não através da visão do senhor de engenho. É preciso destacar, igualmente, o valor da oralidade na literatura trindadiana: “Contaram-me que meus avós vieram de Loanda/ como mercadoria de baixo preço”. É a herança africana que não se perdeu totalmente.

O poeta, assim sendo, conta a história de seu povo, que também é sua: ele é negro, é descendente de africanos e herdeiro do som dos “tambores/ atabaques, gonguês e agogôs”. Todos estes instrumentos ligando o negro-escravo à sua terra origem, a África. O ritmo do tambor, ritmo de vida, torna mais estrondosa a voz de Trindade proporcionando um som forte, já que a obra do poeta deve alcançar outros ouvidos. O som dos instrumentos que ficam na alma do poeta atravessa o espaço, leva a mensagem de união entre os povos, o ritmo da fraternidade.

Pode-se perceber, ainda, que o eu lírico relata sobre a exportação forçada de homens para serem escravos, vendidos como mercadoria. O trabalho do negro para enriquecimento do senhor novo também não é esquecido: “plantaram cana pra senhor de engenho novo”. Mas, apesar de toda exploração humana, apesar de distantes do país de origem, os negros fundaram o primeiro Maracatu, uma dança dramática afrobrasileira.

O ritmo novo do povo negro resistiria em terra brasileira.

No avô, o eu poético destaca o reconhecimento da não alienação do homem negro, refutando a ideia de escravos totalmente submissos e até felizes em servir. De certa forma, o estereótipo do pai João foi construído na tentativa de encobrir esta luta negra pela liberdade. Mas Trindade une a imagem do avô à imagem de Zumbi, referencial de conscientização e resistência.

Sabe-se que a mulher negra e escrava, no período colonial, foi símbolo do mais baixo nível de poder e vontade própria. No entanto, a avó retratada pelo eu lírico também desmente esta visão de submissão. Sua atuação na guerra dos Malês, obscurecida pela oficialidade vigente, é exemplar para se perceber o papel de mulher consciente, guerreira, altiva, sofrida, e que nem todas as mulheres negras foram mucamas passivas.

Com uma história de luta, de resistência, de exemplos a serem seguidos, na alma do eu lírico fica não a marca do escravo, para sempre escravo, mas elementos simbólicos de sua origem, de sua identidade como homem negro: “o samba, o batuque e o desejo de libertação”.

No poema “Sou Negro” é possível perceber como o eu lírico rejeita a idéia de um negro servil, mas destaca e deposita na imagem dos avós o empenho em conquistar a humanização, a identidade apagada pela história, o desejo de serem livres. Através do conhecimento do passado o negro conhece a si mesmo e a sua cultura e, por isso, a cor da pele deixa de ser motivo de desonra e ele pode assumir com “Orgulho”:

Sou filho de escravo
Tronco
senzala
chicote
gritos
choros
gemidos
Sou filho de escravo
(Trindade 1961: 43)

Bernd afirma que a marca registrada da poesia de Solano Trindade é a “obsessão da reconstituição histórica” (1988: 89). Esta reconstituição do passado negro do ponto de vista de quem sofreu os efeitos da História tornou-se uma importante ferramenta para a sua produção, ao mesmo tempo que trazia o propósito de, ressignificando a História, valorizar aqueles a quem foram impostas as mais duras experiências. Através da reconstituição do passado, este homem passaria a ter um “espelho” no qual ele poderia reconhecer a sua cultura, assumindo um orgulho pelo passado africano que se perdeu com a chegada na América. A história de escravidão, desta forma, não o envergonha mais, ao contrário serve-lhe como arsenal de experiências e ele aprende, afinal, a se olhar como sujeito e reconstrói-se como homem. Assim, pode-se entender o reconhecimento: sou filho de escravo, fui violentado humana e historicamente, mas a humanização resistiu em mim e querendo ou não, faço parte desta sociedade. O eu poético primeiramente olha para si próprio e é este olhar que permite a identificação com a cultura, com a etnia e, por fim, com o continente em que está inserido.

Pode-se verificar, no projeto de Trindade, a necessidade de aceitação da participação histórica de todas as culturas, ou seja, a luta pelo fim do maniqueismo branco/negro, num processo essencial para o reconhecimento do Ser Humano que existe em cada ser. Teve, no entanto, que passar pelo olhar europeu sobre as culturas africanas para redescobrir-se e, a partir daí, com voz poética, recusar ser um tipo, para ser negro e homem. O resultado deste processo de reconhecimento pode ser notado em seu poema “Negros”:

Negros que escravizam
e vendem negro na África
não são meus irmãos
negros senhores na América
a serviço do capital
não são meus irmãos
negros opressores
em qualquer parte do mundo
não são meus irmãos
Só os negros oprimidos
escravizados
em luta pela liberdade
são meus irmãos
Para estes tenho um poema grande como o Nilo.
(Trindade 1981: 15)

A escolha do tema negro, além de encontrar-se em consonância com os ideais que o poeta defendeu, é um dos exemplos mais explícitos do processo de desumanização que se delineia ao longo da história oficial.

Na primeira estrofe do poema, com uma economia de recursos irretocável, o eu lírico traz para a sua poesia o passado. Assim, os dois primeiros versos dão conta de três séculos de escravidão na América. Há que se destacar que os dois verbos que indicam esse processo de exploração da força física do outro – “escravizam” e “vendem” – apontam como sujeitos os próprios negros. Fica evidente já nesta primeira estrofe a lucidez e o olhar isento do poeta quando identifica alguns negros com o senhor de escravos; negros servindo um sistema que, ao escravizar, desumanizou e transformou o homem negro em mercadoria a ser vendida e explorada.

Na segunda estrofe há um passado mais recente. O colonialismo cede lugar a outro tipo de exploração humana: o capitalismo. Os agentes são os mesmos: negros. Não se enfoca, porém, o negro operário, mas sim “negros senhores na América”. A crítica que se pode abstrair é que os próprios negros serviram a mercantilização do homem, favorecendo a exploração do trabalho humano a preços baixos. A desumanidade do sistema colonial é substituída pela desumanidade do sistema capitalista.

Na estrofe que se segue, o poeta sai do particular para alcançar uma visão universal da exploração e da opressão sócio-política do trabalhador. Através desta estrofe, há uma ligação de indivíduos oprimidos em qualquer parte do mundo. Os opressores novamente são alguns negros.

Ao longo das três primeiras estrofes, o poeta desmistifica a visão do negro vitimizado, identificando o negro ao senhor, ao capitalista e ao opressor. No entanto, ao final destas estrofes, a voz do eu lírico negará esses negros: “Não são meus irmãos”. É o gesto de recusa que se repete diante dos negros que servem às diversas formas de exploração. Tem-se, pois, ao final destas estrofes uma expressão direta e indignada.

O projeto de Solano Trindade consiste no amor incondicional pelo povo e pela vida, e na confiança no progresso da humanidade. Assim sendo, há no poeta uma íntima adesão aos problemas próprios de sua época, criticando a desumanidade da vida capitalista.

Em “Negros”, o poeta condena algumas atitudes individualistas que impedem o ser humano de se identificar consigo mesmo e com os outros. O poema é ordenado de modo a revelar a relação entre opressores e oprimidos, como consequência óbvia da superioridade de força de uns sobre os outros. No entanto, faz-se necessário replicar com uma indignação genuína: “Não são meus irmãos”. O eu lírico propõe uma ruptura com todos os negros que operam no nível da opressão humana, separando os negros (senhor, capitalista, explorador), dos negros (escravo, operário, explorado).

A quarta estrofe é iniciada com o advérbio “só”, com a finalidade de delimitar a relação com os homens negros do mundo, mas moldando esta relação de acordo com as as convicções marxistas do eu lírico: “só os negros oprimidos/ escravizados” que, como ele compartilham o mesmo ideal de liberdade, são seus irmãos. Esta identificação pode ser notada no uso do artigo “o” com um valor afetivo, aproximando o eu lírico destes negros que representam seu projeto de irmandade. Este desejo de que todos os homens sejam livres fica expresso no terceiro verso da quarta estrofe: “em luta pela liberdade”.

A liberdade que o poeta expressa vai além da condição de não ser mais escravo no sistema colonial. A liberdade expressa no poema é o uso dos direitos de homem livre e, principalmente, a condição de igualdade. No último verso da quarta estrofe, porém, a ideia de recusa expressa no advérbio “não” desaparece e o eu lírico reconhece os oprimidos e escravizados: “São meus irmãos”.

Esta identificação com o oprimido constitui uma das bases temáticas de Trindade, afastando-se momentaneamente do foco de afirmação do “ser negro”, a fim de buscar matizes universais. A opressão, desta forma, é o denominador comum de luta para os homens, brancos ou negros. E para estes homens, ligados ao eu lírico por um laço de irmandade, há um presente, que é também uma arma, um poema grande como o Nilo, rio extremamente simbólico para os africanos.

Ao longo do poema, desmistifica-se o estereótipo sociológico. Mussa define o estereótipo sociológico como a observação do comportamento do negro em relação ao branco: o negro bom e o negro ruim (1989: 24). A relação é excludente, ou o negro é fiel, submisso, ou é selvagem, fujão, vingativo, perigoso para a sociedade. O estereótipo sociológico se configura com uma grande violência, pois retira do negro a humanidade, marmorizando-o em uma pedra de apenas uma dimensão, (ou bondade, ou maldade) esquecendo que o ser humano é um ser contraditório, complexo, e que traz em si ambos sentimentos. É esta a verdadeira dialética da realidade humana que o poeta apresenta no poema “Negros”.

A negação, (não são meus irmãos), encontrada ao longo do poema, torna-se essencial para a compreensão do processo de humanização: o espírito negador transcende a indiferença narcísica. Ao negar, o eu lírico, que se identifica com o excluído, impõe a identidade destes marginalizados, desestruturando a forma fixa de ser visto.

Através da leitura do poema fica patente que o negro não foi apenas vítima e que serviu ao opressor. Assim fazendo, o poeta descongela as estereotipias em que foi plasmada a figura do negro. Como bem expressa Lacan, o “outro é uma matriz de dupla entrada” (Bhabha 1998: 87). Ou seja, o ser humano é ambíguo, antagônico em seus desejos e, por isso, jamais homogeneizado, fixo.

A leitura do poema revela, pois, uma crítica à obsessiva reconstituição de uma identidade supostamente estável, fixa, imobilizada como uma fotografia. A dinamicidade complexa é que deveria constituir o jogo necessário para uma distinção entre alteridade e diferença, uma vez que a cultura pós-colonial supõe extirpar as raízes únicas e deixar aflorarem as estratégias alternativas de representação para articular as diferenças históricas e os valores em construção. Através da explicitação da diferença entre os negros (irmãos e não-irmãos), recupera-se uma ordem identitária de representações ethoetnoculturais que expressam uma matriz contaminada pelo processo de assimilação colonial, mas possibilitando a afirmação da alteridade na diferença, cujo paradigma foi aberto por Frantz Fanon, Aimé Césaire e Léopold Senghor, como resposta identitária étnica ao excludente universalismo colonialista.

Através do poema “Negros”, o poeta evidencia que é necessário visualizar a diferença, a identidade heterogênica, a fim de perceber o entre-lugar da subjetividade pós-colonial, em que se evidencia a permanência do outro, a falta, a perda, a não coincidência dos sujeitos. Ao apresentar o negro em sua diferença, o poeta explicita o fato de o próprio negro optar por sua subjetividade, ou seja, ele escolhe servir ao opressor ou unir-se ao negro oprimido. Essa opção é o caminho e o meio para que o Negro se manifeste como um ser humanizado, desvelando-se e opondo suas várias faces diante da imagem fixa, estereotipada. No poema o eu lírico rejeita o olhar maniqueísta presente nas estereotipias na qual o negro era a vítima, ou o negro bestial, o selvagem fadado à extinção. Desta maneira o projeto poético de Solano Trindade se concretiza, ou seja, ele concede a sua ARMA poética um caráter humanizador.
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Obras citadas
ARAÚJO, Ari. 1986. “Por um pensamento negro-brasileiro; a reversibilidade do espelho”. Estudos afro-asiáticos (Rio de Janeiro) 12 (ago.): 63-79.
BERND, Zilá. 1988. Introdução à Literatura negra. São Paulo: Brasiliense.
BHABHA, Homi. 1998. O local da cultura. Tradução de Myrian Ávila et al. Belo Horizonte: Editora da UFMG.
FANON, Franz. 1983. Pele negra, máscara branca. Tradução de Adriano Caldas. Rio de Janeiro: Fator.
FONSECA, Maria Nazareth Soares, org. 2000. Brasil afro-brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica.
GIACOMINI, Sônia Maria. 1988. Mulher e escrava: uma introdução histórica ao estudo da mulher negra no Brasil. Petrópolis: Vozes.
MUSSA, Alberto Baeta Neves. 1989. “Estereótipos de negro na literatura brasileira: sistema e motivação histórica”. Estudos Afro-asiáticos (Rio de Janeiro) 16 (jan.-jun.): 70-87.
TRINDADE, Solano. 1944. Poemas de uma vida simples. Rio de Janeiro: [s.e.].
——. 1961. Cantares ao meu povo. São Paulo: Fulgor, 1961.
——. 1988. Tem gente com fome e outros poemas. Rio de Janeiro: Departamento Geral da Imprensa Oficial, 1988.


Fontes:
Revista de Estudos Literários Terra roxa e outras terras. volume 17-A . Londrina; UEL, dez. 2009

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