terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Hegel Pontes (Álbum de Trovas e Sonetos)



Hegel Pontes (Monte Santo de Minas/MG, 05 de dezembro de 1932 – Juiz de Fora/MG, 15 de novembro de 2012)

TROVAS

A honra é a imagem casta
 dentro do espelho do Bem:
 - Se a gente dele se afasta
 ela se afasta também...

A lágrima comovida
 que vem de dentro de nós,
 é uma palavra sofrida
 que chega aos olhos sem voz.

A quiromante não lia,
 ao fazer a predição,
 que o destino me daria
 justamente a sua mão.

A voz dos ventos distantes,
 dentro das conchas do mar,
 são preces de navegantes,
 que não puderam voltar.

Cidade Poema, eu queria,
 já que a fonte não se esgota,
 beber o encanto e a poesia
 que até de seu nome brota. 

Com que ironia o destino
 pode este quadro pintar:
 De um lado, um lar sem menino;
 de outro, um menino sem lar.

Conversas de marinheiro
 ouço nas conchas do mar.
 São almas de jangadeiros
 Que não puderam voltar.

Depois da falsa meiguice
 e dos falsos beijos seus,
 “Adeus”; sem graça, ela disse,
 e eu disse: - Graças a Deus!

É noite em nossa favela
e o vento, em leve rumor,
apaga a chama da vela
e acende a chama do amor.

Felicidade, és somente
 meu horizonte fugaz:
 quando dou um passo à frente
 dás um passo para trás...

Jogou, perdeu, e hoje sabe,
 vivendo um natal sombrio,
 que a consciência não cabe
 num sapatinho vazio.

Não julgues pelo semblante
 A honra alheia, meu filho:
 - Na lua, a face brilhante
 oculta a face sem brilho!

Nesta noite nordestina,
quando o luar me arrebata,
é lindo ver toda salina,
banhada de prata

No beco dos infelizes,
 se houver saída, me aponte:
 - quem vive sob as marquises
 não vê céu nem horizonte...

O cego, na estrada escura,
 vai tateando... e sua mão
 parece que faz ternura
 na face da escuridão!

O drama da despedida
 foi termos, ambos, notado
 tua lágrima fingida
 e o meu sorriso forçado...

O sino é um ser sem razão,
 que não tem razão de ser:
 quando pára um coração,
 ele começa a bater...

Partiste e chovia tanto!...
mas entendi na saudade
que a leve gota de um pranto
molha mais que tempestade.

- Pescadores, foi milagre!
E o fanfarrão se gabava:
Só a foto do meu bagre
Mais de dez quilos pesava

Quando a vejo sobre o monte,
 qual pipa vagando ao léu,
 pego a linha do horizonte
 e empino a lua no céu!

SONETOS

A ALMA DA PEDRA
  
Longa pesquisa. E o mestre hindu descobre
que existe uma fadiga nos metais;
que o descanso renova, do ouro ao cobre,
o reino singular dos minerais.

Eu também sinto que a matéria encobre
estranhas vibrações emocionais.
É que a pedra tem alma, simples, nobre,
sonhando evoluções espirituais.

E a alma da pedra imovel é a energia
que evolui, na ilusória letargia,
entre seres gigantes e pigmeus.

E sonha, nos milênios que a consomem,
ser um cacto que sonha ser um homem,
ser um homem que sonha ser um Deus.

AMOR ADOLESCENTE

Esta noite, meu bem, foi tão comprida
e tão sem graça foi a madrugada,
que eu senti que você é minha vida
e a vida sem você não vale nada.

Mas é tarde demais. A despedida
é como a pedra que já foi lançada:
mesmo partindo da pessoa amada,
nunca mais poderá ser recolhida.

Tudo acabado: os sonhos que sonhei,
seu amor, seu carinho e seu desvelo...
E esta noite, meu bem, foi tão comprida,

que dei graças a Deus quando acordei
e percebi, após o pesadelo,
que entre nós dois nunca houve despedida.

DEVANEIO

È noite de natal, estou sozinho
E escuto ela chegando passo a passo;
Entra no quarto e agora, de mansinho,
Afaga minha fonte e meu cansaço.

Ela fala das flores do caminho,
E ainda sem notar meu embaraço,
Fala de velhos sonhos, de carinho,
De um beijo antigo, de um antigo abraço.

E por falar comigo desse jeito,
Vai removendo amargas cicatrizes
E arrancando lembranças do meu peito.

Eu ouço e peço: “Cala-te saudade,
Não se deve dizer aos infelizes
Que algum dia existiu felicidade”.

DUAS CHAMAS

Qual monge recolhido em sua cela,
Rezando a derradeira Ave-Maria,
Estava só e apenas uma vela
Velava a minha noite de agonia.

Eu contemplava a ardente sentinela
Que em vigília também se consumia,
E percebia uma oração singela,
No declínio da chama fugidia...

...Agora é madrugada e, por um fio,
Duas chamas de vida em decadência
Vacilam e se apagam no vazio.

E apenas uma, ao fim da claridade,
Caindo no vazio da existência,
Ressurge no esplendor da eternidade.

ESTRELA DA MANHÃ

Estrela da manhã que resplandece
no céu espiritual de minha vida,
vislumbro em seu olhar a mesma prece
que envolve ao longe a solitária ermida.

Brilha no azul. Porém quando escurece,
não passa de uma lágrima perdida
na imensidão da noite que aparece,
de estrelas fulgurantes, revestida.

E, levando meus sonhos noite afora,
eu posso vê-la ainda ao sol nascente,
quando as estrelas todas vão embora.

Pois só você, estrela entristecida,
não tem repouso e brilha suavemente
no céu espiritual de minha vida.

SÃO FIDÉLIS

De São Fidélis guardo a ressonância
 De pássaros cantando nas capoeiras;
 No olhar conservo as flores das primeiras
 Primaveras perdidas na distância…

 Toucou-me um dia a incontrolável ânsia
 De procurar caminho e abrir porteiras,
 Deixando para trás velhas mangueiras
 Que encheram de doçura a minha infância.

 Comércio, indústria, o campo verde, o açude…
 Cidade Poema, te esquecer não pude,
 Porque, mesmo partindo da cidade,

 Como carro-de-boi que geme e chora,
 Eu vou levando pela vida afora
 A colheita indelével da saudade!

SÃO FIDÉLIS II

Cidade poema, tu não és somente
 Um recanto de esplêndida beleza,
 Fruto de tua rica natureza
 E também do labor de tua gente.

 Não é apenas a visão presente
 De tudo que compõe tua grandeza:
 Jardins e monumentos, e a surpresa
 Que a cada passo o visitante sente…

 São Fidélis, tu és a extraordinária
 Imagem da Matriz bicentenária,
 Testemunha de sua trajetória.

 Ela é o ontem que acena ao amanhã
 E que se eleva como guardiã
 De tua longa e luminosa história.

SONETO VERDE

"O Paraibuna, rio singular 
Que vai passando mas não vai embora 
É testemunha mais que milenar 
Da mata do Krambeck em Juiz de Fora 

E diz que a mata é dona do lugar, 
Porque usucapiu a fauna e a flora 
E tudo que devemos preservar 
Desde ontem, hoje e séculos afora 

A mata é o grito verde permanente 
Da natureza em prol do meio-ambiente, 
O bem maior que a humanidade tem.

A mata é vida e em nome da harmonia 
A poetisa Clevane já dizia: 
Quem mata a mata morrerá também."
--
Fontes:
http://artculturalbrasil.blogspot.com.br/2009/02/escola-juiz-forana-de-trovas.html
http://poesiaemtrovas.blogspot.com
http://vendavaldasletras.wordpress.com
http://trovaspequenasnotaveis.blogspot.com.br/
http://colunaacontecendo.blogspot.com.br/2012/11/nota-de-falecimento-hegel-pontes.html
http://www.sardenbergpoesias.com.br/200_anos_matriz_sao_fidelis/obras_vencedoras/obras_vencedoras.htm 
Alguns sonetos foram enviados pelo poeta mineiro Luciano Brandão

Machado de Assis (Porto Alegre: Colombo)


O ASSUNTO político é a preocupação do momento. Hoje todos os olhos estão voltados para a casa dos legisladores. Que viria fazer a poesia, a poesia que não vota nem discute, no dia em que o congresso da nação está reunido para discutir e votar? Não estranhem, pois, os leitores destas revistas, se não fazemos hoje nenhuma apreciação literária. Apenas mencionaremos a próxima chegada do poema épico do Sr. Porto Alegre, Colombo, impresso em Berlim, onde se acha o ilustre poeta. Os que cultivam as letras, e os que as apreciam, já conhecem por terem lido e relido, alguns belos fragmentos do poema agora publicado. Muitos dos principais episódios têm vindo à luz em revistas literárias.

O talento do Sr. Porto Alegre acomoda-se perfeitamente ao assunto do poema; tem as energias, os arrojos, os movimentos que requer a história de Cristóvão Colombo, e o feito grandioso da descoberta de um continente. Nenhum assunto oferece mais vasto campo à invenção poética. Tudo conspirou para levantar a figura de Colombo, até mesmo a perseguição, que é a coroa dos Galileus da navegação, como dos Galileus da ciência. Descobrindo um continente virgem à atividade dos povos da Europa, atirando-se à realização de uma idéia através da fúria dos elementos e dos obstáculos do desconhecido, Colombo abriu uma nova porta ao domínio da civilização. Quando Vítor Hugo, procurando a mão que há de empunhar neste século o archote do progresso, aponta aos olhos da Europa a mão da eterna nação yankee, como dizem os americanos, presta indiretamente uma homenagem à memória do grande homem que dotou o XV século com um dos feitos mais assombrosos da história. Tal é o herói, tal é a história, que o Sr. Porto Alegre escolheu para assunto do poema épico com que acaba de brindar as letras pátrias.

O assunto de Colombo devia ser tratado por um americano; folgamos de ver que esse americano é filho deste país. Não é somente o seu nome que fica ligado a uma idéia grandiosa, mas também o nome brasileiro. 

Como se houve o Sr. Porto Alegre na concepção do poema? Já conhecemos alguns fragmentos, que, embora formosos, não nos podem dar todo o conjunto da obra. Mas o nome do Sr. Porto Alegre é uma fiança. O autor das Brasilianas é um espírito educado nas boas doutrinas literárias, robustecido por fortes estudos, afeito à contemplação dos modelos clássicos. Junte-se a isto um grande talento, de que tantas provas possui a literatura nacional. Estamos certos de que as nossas esperanças serão magnificamente realizadas. Os fragmentos conhecidos são primorosos; por que o não será o resto?

Um poema épico, no meio desta prosa atual em que vivemos, e uma fortuna miraculosa. Pretendem alguns que o poema épico não e do nosso tempo, e há quem já cavasse uma vasta sepultura para a epopéia e para a tragédia, as duas belas formas da arte antiga. Não fazemos parte do cortejo fúnebre de Eurípedes e Homero. As formas poéticas podem modificar-se com o tempo, e é essa a natureza das manifestações da arte; o tempo, a religião e a índole influem no desenvolvimento das formas poéticas, mas não as aniquilam completamente; a tragédia francesa não é a tragédia grega, nem a tragédia shakespeariana, e todas são a mesma tragédia. Este acordo do moderno com o antigo era o pensamento de Chénier, que muitos séculos depois de Ovídio e Catulo ressuscitava o idílio e a alegria da antiguidade.

Findou a idade heróica, mas os heróis não foram todos na voragem do tempo. Como fachos esparsos no vasto oceano da história atraem os olhos da humanidade, e inspiram os arrojos da musa moderna. Casar a lição antiga ao caráter do tempo, eis a missão do poeta épico. Os estudos e o talento do Sr. Porto Alegre revelam uma índole apropriada para uma obra semelhante.

Apreciaremos o novo poema nacional com a consciência e imparcialidade que costumamos usar nestes escritos, o que não exclui a admiração e a simpatia pelo autor. A nossa máxima literária é simples: aprender investigando. Um livro do Sr. Porto Alegre dá sempre que investigar e que aprender.

Temos o dever de ser breve. Como dissemos acima, a preocupação do momento é o assunto político. A atenção pública está voltada para a reunião das duas casas do parlamento. As musas, num dia destes recolhem-se à colina sagrada.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Oliveira Caruso (Como se Proteger do Plágio)


Caros e queridos escritores, é com muita preocupação que venho adverti-los sobre algo que percebo sempre ocorrer. Não raro, próprio sítio onde publicamos nossos textos nos adverte acerca da necessidade de registrarmos os mesmos na Biblioteca Nacional (FNB). É só procurar!

Esta é a ÚNICA forma de o autor se resguardar no que tange aos direitos de autoria. Eu já recebi emails de colegas que tiveram obras plagiadas. A única forma de provarmos a autoria de nossos próprios textos é registrando-os na repartição pública mencionada, sendo que eu pessoalmente sempre sigo os mesmos passos:

1. A cada montante de poemas escolhido (no meu caso, como sou louco por escrita, o montante é de 1.240 poesias a cada 2 meses, aproximadamente) eu imprimo tudo já revisado por mim mesmo. Sempre tem que ser por gênero (ou prosa ou poemas (sonetos, haikais, indrisos, rondéis etc), não podendo ser misturados os gêneros jamais. 

2. Entro no site da Fundação Biblioteca Nacional e imprimo a GRU (guia de pagamento), pondo o meu nome, CPF e o valor de 20,00 (já que somos pessoas físicas). IMPORTANTE: Não importa o número de textos que você tenha e queira registrar, se 2 textos ou 2.400 ou 53.245.245. O valor é sempre 20,00, desde que num calhamaço só. 

3. Imprimo, do mesmo site, o formulário para o registro de obra. 

4. Preencho o formulário com os meus dados (endereço, identificação, pseudônimo, nome da obra, número de páginas etc.). 

5. Pago a taxa no Banco do Brasil (os ditos 20,00) em favor da Fundação Biblioteca Nacional. 

6. Rubrico todas as páginas (não pode haver mais que um texto por página nem texto no verso das folhas). 

7. Assino a última página. 

8. Numero todas as páginas. 

9. Agora passou a ser proibido encadernar a obra. Se ficar muito grossa a obra, não dando pra encadernar, eu furo toda ela e passo o barbante pelos dois furos. A seguir... 

10. ...Eu compro uma pasta (dessas de escola, pra pôr material dentro) e ponho tudo dentro. Se o material for extenso demais (e é), eu não compro pasta, mas sim um arquivo de revistas.  Eu pessoalmente colo velcro nas pontas e o grampeio no arquivo, para dar firmeza e não soltar todo o material no chão (porque aí nem barbante adiantaria pra prendê-lo, já que o peso é estupidamente grande). 

11. Ah, claro, antes faço capa e índice. 

12. Depois disso tudo eu tiro cópia da identidade, CPF e comprovante de residência. 

13. Levo tudo à Biblioteca Nacional, no Centro do Rio, no meu caso. Levo inclusive os originais dos documentos e o comprovante de pagamento.  

14. Entrego tudo lá e pego o protocolo. Em até 90 dias eu receberei o certificado de registro.

Eu bolei este passo a passo porque vi pessoas desesperadas por terem publicado centenas de textos sem registrá-los antes. Quanto mais cedo se der o registro, melhor. Ainda há tempo! Mesmo porque hoje em dia até poemas as pessoas plagiam como se elas as tivessem parido!!!

Fonte:
http://reinodosconcursos.com.br/index.php?pagina=1501491402

Soares de Passos (Saudade)


Assim, pálida lua, assim teu rosto
Fulgurava tranquilo nessa noite
Em que o adeus lhe murmurei sentido;
Quando, após os momentos preciosos
Em que inda pude vê-la, inda escutá-la,
Afoutando meu ânimo indeciso,
Sua trémula voz me disse: parte...
Entanto que uma lágrima furtiva
Lhe escorria na face melindrosa,
Mais pálida que a tua...

Astro saudoso
Astro da solidão, quanto me aprazes!
Eu amo o teu silêncio, amo o teu brilho,
Mais que do sol os importunos raios.
Que me importa desse astro a luz e a vida,
Se a luz e a vida me ficaram longe?
Se em meio do rumor que o dia espalha,
A voz não ouço que responde à minha?

Estes vales, e selvas, estes montes,
À luz do dia, são talvez formosos;
«ias não é este o ar que ela respira,
Não são estes os sítios que ela encanta
Com seu mago sorriso. O dia é mudo;
Porém tu surges, solitária amiga,
Tu vens falar-me dela, astro saudoso.

Lua, desse áureo trono onde campeias,
Tu vês os sítios caros. Que faz ela?
Acaso; como pomba fatigada,
Repousa adormecida? Verte, ó lua,
Verte-lhe em torno o perfumado alento
Que a noite rouba às orvalhadas flores.
«ias não; talvez agora em mim pensando,
Agora mesmo sobre o teu semblante
Ela fixa também os olhos tristes,
« nossos pensamentos, nossas vistas
Se confundem em ti. Oh! não podermos,
Adejando como eles nesse espaço,
Embora por momentos, confundir-nos
Em teu regaço, deslembrando a ausência!
Ao menos, astro amigo, ordena, ordena
Que o anjo da saudade, que em ti mora,
Desça, e lhe diga o que minha alma sente.

Oh! quando solto d'importunos laços,
Demandando outros céus, hei-de já livre
Vê-la, ouvi-la, falar-lhe? Quem o sabe?
Mas tu entanto, confidente meiga.
Em cada noite vem falar-me dela;
E em meu peito sombrio e solitário
Derrama, envolto no teu doce brilho,
O bálsamo suave da esperança.
Assim possas tu ser, benigna deusa,
A invocada dos tristes; e se acaso
Amas também. se algum remoto lago
Entre floridas margens escondido
Te prende as feições, possas tu sempre
No cristalino azul das suas águas
Sem nuvens espelhar teu rosto ameno!

Fonte: 
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Antônio Martins (Memória Viva de São Luís em Xeque)


 Antônio Martins de Araújo nasceu em São Luís do Maranhão, numa meia-morada situada na rua dos Afogados, esquina com a rua do Ribeirão, tendo em frente a Fonte do Ribeirão, no dia 1º de agosto de 1932. O escritor é Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, tendo se aposentado como professor de Língua Portuguesa por essa instituição. É considerado o maior expert, no Brasil, no que se refere à obra de Arthur Azevedo. Ocupa atualmente a presidência da Academia Brasileira de Filologia - ABF e é membro da Academia Maranhense de Letras - AML, trabalhando ainda como professor do Instituto de Língua Portuguesa do Liceu Literário Português. Entre suas principais obras é possível mencionar: Arthur Azevedo – a palavra e o riso, Noel Rosa – língua e estilo (em parceria com Castelar de Carvalho), A herança de João de Barros e outros estudos, Chão do Tempo, e O peito do Pelicano - ensaios maranhenses. Numa bela manhã do início de setembro deste ano, Antônio Martins de Araújo concedeu ao Guesa Errante a entrevista que publicamos abaixo. O intelectual maranhense mora no Rio de Janeiro.

Paulo Melo Sousa - Caro mestre Antônio Martins, quais as recordações mais antigas da sua infância, vividas em São Luís? 

Antônio Martins de Araújo - Eu me lembro bem da casa na qual nasci, local em que meu pai manteve um comércio durante a segunda guerra mundial. Em 1938 ele abriu falência, eu tinha seis anos de idade, foi quando ele perdeu a Mercearia Gaúcha. Ele vendia a crédito para os garis da prefeitura de São Luís e, na época, sofreu um calote de 30 contos de réis. As compras dos garis eram descontadas dos salários deles, por intermédio de meu padrinho, um maçon chamado seu Cruz. Aí o governo mudou em 1938, e o substituto de seu Cruz, Agenor Vieira, não honrou os compromissos assumidos com a mercearia. Então, meu pai foi obrigado a vender tudo e fomos embora para Viana, terra natal do meu pai. Lá eu estudei no Colégio Municipal entre os seis e os sete anos de idade. Tenho muitas saudades do lago de Viana, das mocorocas e das enchentes. Dessa época tenho uma recordação magnífica, lembro de histórias que conto no meu livro “Menino do Ribeirão”, que ainda não publiquei, já que existem dois capítulos da obra nos quais relato as minhas primeiras experiências sexuais, e como as meninas ainda estão vivas, uma delas casada, o livro só será publicado trinta anos depois da minha morte (risos).

Em seguida, a sua família retornou a São Luís... 

Sim, e aí eu estudei aqui no Colégio Justo Jansen, que funcionava num sobradão situado na rua da Cruz, esquina com a rua dos Afogados. Ali, tive uma experiência muito boa, pois estudava pela manhã e, na parte da tarde, quatro portas além da minha casa, tinha aula particular com a professora Maria de Lourdes Garrido. A ela devo a minha orientação para fazer o exame de admissão ao Colégio Marista, no qual fui aprovado de imediato, aos 11 anos de idade. Poucos anos depois, aos 15 anos, comecei a dar aulas de Português e História do Brasil na Escola Champagnat, uma espécie de escola supletiva, que funcionava à noite. No entanto, na minha formação, eu digo que a minha primeira universidade foi o Teatro Arthur Azevedo, o mundo recontado através da arte.

Como aconteceu esse seu contato com o teatro? 

Entre os meus 5 anos e os 15 anos de idade, a minha madrinha, Edith Barbosa Pinto, mãe de criação da minha mãe, Edith Raposo Martins Araújo, era quem me levava ao teatro. Ela vendia cafezinho e mingau de milho aos atores e para alguns outros fregueses. Dessa forma, eu assisti de graça aos espetáculos de todas as companhias de teatro que passaram por São Luís de 1937 a 1947. Quando digo que a minha primeira formação superior aconteceu no Arthur Azevedo é porque ali tive o privilégio de assistir às apresentações de nomes magistrais do teatro, tais como a Companhia dos Estudantes de Coimbra, as operetas dos irmãos Vicente Celestino, peças com Pascoal Carlos Magno, Eva Tudor, Iracema de Alencar, Henriette Morineau, Lenita Bruno. Em homenagem a essa atriz, que, entre 1937 e 1947, brilhou intensamente por mais de uma vez no Teatro Arthur Azevedo, e me dedicava, eu menino ainda, um carinho muito especial, sugeri à minha mãe que pusesse o nome de Lenita à minha segunda irmã, o que foi feito. Foi na nossa principal casa de espetáculos que, sob o prisma da arte cênica, o universo à minha volta se revelou a mim.

Esse seu interesse pelo teatro continuou quando você foi morar no Rio de Janeiro... 

É verdade. O ator Delorges Caminha, marido da atriz francesa Henriette Morineau, foi o meu primeiro diretor na Escola de Teatro Martins Pena. Tive também lá como meus diretores, entre outros, o brilhante ator José Wilker e o excelente bailarino Klaus Viana. As aulas de Impostação da Voz eu só ministrei duas ou três vezes, após fazer um curso intensivo, nos anos 60, com a professora cearense Glória Beutmuller, radicada no Rio, há muitos anos. Eu também lecionava sobre História do Espetáculo, mas, não recuava até 5 mil anos antes de Cristo quando, na ilha de Bali, praticamente nasceu o teatro. Ainda hoje os atores representam nessa ilha o espetáculo do embate entre o bem e o mal, e, quem faz o papel do demônio se deixa atravessar por uma espada e não sangra, já que o golpe desferido não atinge os órgãos vitais. Trata-se de uma cultura milenar, diante da qual devemos tirar o chapéu. Lá é que nasceu realmente o teatro. Isso pode não ter tido influência alguma sobre o teatro greco-romano, mas, é uma ilusão. Quando se diz que Monteiro Lobato foi um grande contador de estórias, isso é conversa fiada, já que ele recontou estórias que La Fontaine já contava. E aí quando se diz que La Fontaine era um grande contador de estórias, fábulas, isso também é conversa fiada, já que ele bebeu nas fábulas de Esopo...

 Isso nos lembra a ideia do eterno retorno, de Nietzsche, e ainda de Jorge Luís Borges, na obra “História da Eternidade”; ali, num pequeno ensaio intitulado “A doutrina dos ciclos”, ele escreve que “num tempo infinito, o número de permutações possíveis deve ser alcançado, e o universo deverá se repetir”... Sim. E então poderíamos pensar que a cultura greco-romana é o berço da nossa cultura. Nesse particular específico do fabulário, a história nos ensina que a literatura europeia ocidental, grosso modo, possui origem nas estórias de animais encontradas nos livros sagrados hindus do Mahabharata e do Rig Veda, que são muito anteriores à cultura helênica. Assim também, quando se fala de gíria, muita gente pensa que é criação tupiniquim, quando, na verdade, foi a tribo dos bazigares oriundos, creio, que da Hungria, que a teria criado. Procurei mostrar como chegou até nós esse gosto pela gíria em meu ensaio “Arthur Azevedo: a Palavra e o Riso”, co-editado em 1988 pela prestigiosa Editora Perspectiva e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Então, nós temos que tirar o nosso chapéu para a lei de Lavoisier, que diz que “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. O Chacrinha tinha uma paráfrase do Lavoisier: “na vida nada se perde, nada se cria, tudo se copia”...(risos!).

Mestre Martins, fale-nos sobre a sua inserção no movimento cultural maranhense de então..

Muito me agrada a sua pergunta. Nós nos reuníamos no Centro Cultural Gonçalves Dias, cujas sessões eram realizadas no Grêmio Lítero Recreativo Português, ali em frente à praça João Lisboa, aonde assisti a declamações de poesia de Ferreira Gullar, que hoje tem ódio ao seu livro de estréia, “Luta Corporal”. No entanto, acho que esse livro marca a trajetória ascensional do Gullar. Nós nos reuníamos também no Café do Chico, em frente à João Lisboa, situado na esquina da rua de Nazaré, de onde se defrontava a Livraria Moderna. Ali nós líamos os nossos poemas uns para os outros e, quando um dizia que era para se rasgar o texto, que estava uma merda, nós rasgávamos o poema na mesma hora, respeitávamos a opinião dos amigos, todos bem informados. Ali se encontrava o Sarney, o Tobias Pinheiro, o Gullar. Também havia encontros na galeria do Paiva, na Movelaria Guanabara, situada na rua do Sol. Nós, um pouco mais jovens, nos reuníamos na casa de Zé Mário Santos, grande orador, que ficava no Campo de Ourique, perto da praça Deodoro. Eu era liderança da “Agremiação Liberal Acadêmica - ALA” e ele era líder do “Movimento Nacionalista Acadêmico - MNA”, e nessa casa eu me reunia com Manoel Lopes, Clóvis Sena, que faleceu recentemente.

No entanto, os encontros sempre estavam ligados a questões culturais... 

Sempre. Eu me lembro que nós tivemos a oportunidade de receber por lá a visita de Darcy Ribeiro e de um parente do famoso escritor Aldous Huxley, o antropólogo Francis Huxley, de procedência inglesa. Então, ele resolveu declamar um trecho de Shakespeare, que era muito onomatopaico. Na sua declamação, ele fazia ohhhhh, aliado a uns trejeitos meio estranhos e nós nos danamos a rir, foi um surto de riso vexaminoso (risos), que pegou muito mal. O rapaz estava querendo fazer uma homenagem a nós, declamando da melhor forma possível, mas, os trejeitos dele eram muito cômicos (risos). Um dia nós fomos almoçar num restaurante que ficava nos fundos da atual Academia Maranhense de Letras, e eu fiquei admirando o tamanho dos sapatos do Darcy. Então, ele me disse: “já sei, Antônio, você está achando o sapato exagerado, mas, é que eu e o Francis vamos pisar na tribo dos índios Urubus-Kaapor, e tenho que me proteger dos tocos do mato, né? Por isso os sapatões que usamos”. Então, essa geração nos deu muitas alegrias.

Até que idade você morou em São Luís, e qual a razão da sua partida? 

A minha partida daqui se deveu a uma experiência altamente frustrante, ao mesmo tempo em que foi altamente redentora. Eu acabara de fundar, quando tinha uns 27 anos de idade, um colégio chamado Ginásio Operário Getúlio Vargas, no âmbito da Campanha Nacional de Educandários Gratuitos, no bairro do Lira. Dr. Elói Coelho Neto era o presidente dessa instituição, no Maranhão, da qual eu era Secretário Geral. Nós fundamos vários colégios pelo interior do Maranhão, em Codó, Coroatá e outros municípios. Quando eu estava prestes a me tornar diretor da instituição, o governador Newton Belo me convidou para ser diretor do Liceu Maranhense, eu tinha apenas 28 anos de idade. Nos quatro anos em que permaneci ali, com um grande amigo, meu compadre, padrinho de um filho meu, o saudoso Merval Lebre Santiago, eu tive experiências ‘magníficas’, já que grandes ‘amigos’ que eu ajudei a colocar no Liceu me traíram posteriormente, disputando a diretoria, como é o caso de um pernambucano mau caráter chamado Gildo Cordeiro Rosa, que reprovava os alunos para depois ensinar matemática aos mesmos alunos, de forma particular, para poder aprová-los. Eu vivia recebendo pauladas do Jornal Pequeno, do meu amigo Bogéa, e do Neiva Moreira, que era diretor do Jornal do Povo. Faltava energia e no outro dia surgia a manchete: ‘diretor irresponsável do Liceu suspende as aulas’... Como é que se poderia dar aulas com velas? Era na época do João Goulart, greve atrás de greve, jogavam bombas na porta da escola, então eu mandava os alunos para casa.

Período conturbado... 

Pois é, e aquilo me cansou a beleza, eu já tinha 32 anos. Então, resolvi fazer concurso para professor no Rio de Janeiro. Na ocasião, falei com o grande comandante, grande amigo meu, Renato Archer, que tinha grande trânsito junto à Panair. O Renato me ajudou com a passagem, eu era pobre, e fui fazer concurso na Escola Técnica Federal, na Universidade Gama Filho e na Escola Naval. Então, fui aprovado e me transferi para o Rio de Janeiro. Foi o início da minha redenção, pois eu dava 72 horas de aula no Maranhão, acumulava a direção do Liceu durante a manhã e à noite. Durante a tarde, funcionava a Escola Normal, sob o comando de Oceanira Galvão, descendente do grande poeta maranhense Trajano Galvão. Então, no Rio de Janeiro passei a trabalhar oito horas a menos e a ganhar seis vezes mais. Vivi durante dois anos na rua Maranhão, perto da escola Maranhão, da farmácia e da padaria Maranhão, para não fugir à tradição...(risos). Então, não cortei de uma vez o cordão umbilical com a minha terra, fui me despedindo do Maranhão aos poucos. Depois de dois anos comprei meu apartamento na rua do Copacabana Palace, onde moro até hoje.

Depois de tanto tempo fora do Maranhão, as suas vindas a São Luís são sempre marcantes... 

São Luís é sempre um encantamento. Essa prosápia, essa fidalguia, esse orgulho que o Maranhão tem de praticar o melhor português do Brasil, sem favor nenhum, porque o Maranhão já nasce com essa vocação para respeitar o idioma pátrio, que é uma prova de bom caráter, realmente me impressiona. Havia um sujeito pichando uma das paredes da cidade e quebraram o maior pau em cima dele não por causa da pichação, mas, em razão de ele ter escrito à bessa com dois esses em vez de à beça, desrespeitando a língua portuguesa; só mesmo no Maranhão existem essas coisas.

E seus planos futuros? 

Ano que vem vou fazer pela quarta vez 20 anos de idade...(risos)...não ria não porque a coisa é séria...(risos)...já estou descendo a ladeira...(risos)...mas vou descendo e também subindo, agora mesmo estou dando aulas para um curso de mestrado em Cruzeiro do Sul, perto de Rio Branco, formando uma turma de 50 mestrandos. Em maio ministrei aulas de Linguística Aplicada ao Ensino de Letras Neolatinas, área da minha formação, e tenho textos inéditos à espera de publicação; enfim, continuo escrevendo, produzindo sempre.

Fonte:
Suplemento Cultural & Literário JP Guesa Errante. Ano X. Edição 238. 5 de outubro de 2011.

Eça de Queiros (O Mandarim) Parte 7


O sonho de Vladimira era habitar Paris; e fazendo ferver delicadamente as folhas de chá, pedia-me histórias ladinas de cocottes, e dizia-me o seu culto por Dumas filho...

Eu arregaçava-lhe a larga manga do casabeque de seda cor de folha morta, e ia fazendo viajar os meus lábios devotos pela pele fresca dos seus belos braços; – e depois sobre o divã, enlaçados, peito contra peito, num êxtase mudo, sentíamos as lâminas de cristal ressoar eolicamente as pegas azuis esvoaçarem pelos plátanos, o fugitivo ritmo do arroio corrente...

Os nossos olhos humedecidos encontravam às vezes um quadro de cetim preto, por cima do divã, onde em caracteres chineses se desenrolavam sentenças do Livro Sagrado de Li-Nun «sobre os deveres das esposas». Mas nenhum de nós percebia o chinês... E no silêncio os nossos beijos recomeçavam, espaçados, soando docemente, e comparáveis (na língua florida daqueles países) a pérolas que caem uma a uma sobre uma bacia de prata... – Oh suaves sestas dos jardins de Pequim, onde estais vós? Onde estais, folhas mortas dos lírios escarlates do Japão?...

Uma manhã, Camilloff, entrando na Chancelaria, onde eu fumava o cachimbo da amizade de companhia com Meriskoff, atirou o seu enorme sabre para um canapé, e contou-nos radiante as notícias que lhe dera o penetrante príncipe Tong. – Descobrira-se enfim que um opulento mandarim, de nome Ti Chin-Fu, vivera outrora nos confins da Mongólia, na vila de Tien-Hó! Tinha morrido subitamente: e a sua larga descendência residia lá, em miséria, num casebre vil...

Esta descoberta, é certo, não fora devida à sagacidade da burocracia imperial – mas fizera-a um astrólogo do templo de Faqua, que durante vinte noites folheara no céu o luminoso arquivo dos astros...

– Teodoro, há-de ser o seu homem! – exclamou Camilloff.

E Meriskoff repetiu, sacudindo a cinza do cachimbo:

– Há-de ser o seu homem, Teodoro!

– O meu homem... – murmurei sombriamente.

Era talvez o meu homem, sim! Mas não me seduzia ir procurar o meu homem ou a sua família, na monotonia de uma caravana, por essas desoladas extremidades da China!... Depois desde que chegara a Pequim, eu não tornara a avistar a forma odiosa de Ti Chin-Fu e do seu papagaio. A Consciência era dentro em mim como uma pomba adormecida. Certamente, o alto esforço de me ter arrancado às doçuras do bulevar e do Loreto, de ter sulcado os mares até ao Império do Meio, parecera à Eterna Equidade uma expiação suficiente e uma peregrinação reparadora. Certamente Ti Chin-Fu, acalmado, recolhera-se com o seu papagaio à sempiterna Imobilidade... Para que iria eu, pois, a Tien-Hó? Porque não ficaria ali, naquele amável Pequim, comendo nenúfares em calda de açúcar, abandonando-me às sonolências amorosas do Repouso Discreto, e pelas tardes azuladas, dando o meu passeio pelo braço do bom Meriskoff, nos terraços de jaspe da Purificação ou sob os cedros da Templo do Céu?... 

Mas já o zeloso Camilloff, de lápis na mão, ia marcando no mapa o meu itinerário para Tien-Hó! E mostrando-me, num desagradável entrelaçamento, sombras de montes, linhas tortuosas de rios, esfumados de lagoas:

– Aqui está! O meu hóspede sobe até Ni Ku-Hé, na margem do Pei-Hó... Daí, em barcos chatos, vai a My-Yun. Boa cidade, há lá um Buda vivo... Daí, a cavalo, segue até à fortaleza de Ché-Hia. Passa a Grande Muralha, famoso espectáculo!... Descansa no forte de Ku Pi-Hó. Pode lá caçar a gazela. Soberbas gazelas... E com dois dias de caminhada está em Tien-Hó... Brilhante, hem?... Quando quer partir? Amanhã?...

– Amanhã – rosnei, tristonho.

Pobre generala! Nessa noite, enquanto Meriskoff, ao fundo da sala, fazia com três oficiais da Embaixada o seu whist sacramental, e Camilloff, ao canto do sofá, de braços cruzados, solene como numa poltrona do Congresso de Viena, dormia de boca aberta – ela sentou-se ao piano. Eu ao lado, na atitude de um Lara, devastado pela fatalidade, retorcia lugubremente o bigode. E a doce criatura, entre dois gemidos do teclado, de uma saudade penetrante, cantou revirando para mim os seus olhos rebrilhantes e húmidos:

L'oiseau s'envole,
Là bas, là bas!...
L'oiseau s'envole...
Ne revien pas...

– A ave há-de voltar ao ninho – murmurei eu enternecido.

E, afastando-me a esconder uma lágrima, ia resmungando furioso:

– Canalha de Ti Chin-Fu! Por tua causa! Velho malandro! Velho garoto!...

Ao outro dia lá vou para Tien-Hó – com o respeitoso intérprete Sá-Tó, uma longa fila de carretas, dois cossacos, toda uma populaça de coolies.

Ao deixar a muralha da Cidade Tártara, seguimos muito tempo ao comprido dos jardins sagrados que orlam o templo de Confúcio.

Era no fim do Outono; já as folhas tinham amarelecido; uma doçura tocante errava no ar...

Dos quiosques santos saía uma sussurração de cânticos, de nota monótona e triste. Pelos terraços, enormes serpentes, venerandas como deuses, iam-se arrastando, já entorpecidas da friagem. E aqui e além, ao passar, avistávamos budistas decrépitos, secos como pergaminhos e nodosos como raízes, encruzados no chão sob os sicômoros, numa imobilidade de ídolos, contemplando incessantemente o umbigo, à espera da perfeição do Nirvana...

E eu ia pensando, com uma tristeza tão pálida como aquele mesmo céu de Outubro asiático, nas duas lágrimas redondinhas que vira brilhar, à despedida, nos olhos verdes da generala!... 

VI

Já a tarde declinava, e o Sol descia vermelho como um escudo de metal candente, quando chegámos a Tien-Hó.

As muralhas negras da vila erguem-se, do lado do sul, ao pé de uma torrente que ruge entre rochas: para o nascente, a planície lívida e poeirenta estende-se até a um grupo escuro de colinas onde branqueja um vasto edifício – que é uma missão católica. E para além, para o extremo norte, são as eternas montanhas roxas da Mongólia, suspensas sempre no ar como nuvens.

Alojámo-nos num barracão fétido, intitulado Estalagem da Consolação Terrestre. Foi-me reservado o quarto nobre, que abria sobre uma galeria fixada em estacas; era ornado estranhamente de dragões de papel recortado, suspensos por cordéis do travejamento do tecto; à menor aragem aquela legião de monstros fabulosos oscilava em cadência, com um rumor seco de folhagem, como tomada de vida sobrenatural e grotesca.

Antes que escurecesse fui ver com Sá-Tó a vila: mas bem depressa fugi ao fedor abominável das vielas: tudo se me afigurou ser negro – os casebres, o chão barrento, os enxurros, os cães famintos, a populaça abjecta... Recolhi ao albergue – onde arrieiros mongóis e crianças piolhosas me miravam com assombro.

– Toda esta gente me parece suspeita, Sá-Tó – disse eu, franzindo a testa.

– Tem Vossa Honra razão. É uma ralé! Mas não há perigo: eu matei, antes de partirmos, um galo negro, e a deusa Kaonine deve estar contente. Pode Vossa Honra dormir ao abrigo dos maus espíritos... Quer Vossa Honra o chá?...

– Traz, Sá-Tó.

Bebido o chá, conversámos do grande plano: na manhã seguinte eu ia levar a alegria à triste choupana da viúva de Ti Chin-Fu, anunciando-lhe os milhões que lhe dava, depositados já em Pequim: depois, de acordo com o mandarim governador, faríamos uma copiosa distribuição de arroz pela populaça: e à noite iluminações, danças, como numa gala pública...

– Que te parece, Sá-Tó?

– Nos lábios de Vossa Honra habita a sabedoria de Confúcio... Vai ser grande! Vai ser grande!

Como vinha cansado, bem cedo comecei a bocejar, e estirei-me sobre o estrado de tijolo aquecido que serve de leito nas estalagens da China; enrolado na minha peliça, fiz o sinal-da-cruz, e adormeci pensando nos braços brancos da generala, nos seus olhos verdes de sereia... 

Era talvez já meia-noite quando despertei a um rumor lento e surdo que envolvia o barracão – como de forte vento num arvoredo, ou uma maresia grossa batendo um paredão. Pela galeria aberta, o luar entrava no quarto, um luar triste de Outono asiático, dando aos dragões suspensos do tecto formas, semelhanças quiméricas...

Ergui-me, já nervoso – quando um vulto, alto e inquieto, apareceu na faixa luminosa do luar...

– Sou eu, Vossa Honra! – murmurou a voz apavorada de Sá-Tó.

E logo, agachando-se ao pé de mim, contou-me num fluxo de palavras roucas a sua aflição: – enquanto eu dormia, espalhara-se pela vila que um estrangeiro, o Diabo estrangeiro, chegara com bagagens carregadas de tesouros... Já desde o começo da noite ele tinha entrevisto faces agudas, de olho voraz, rondando o barracão, como chacais impacientes... E ordenara logo aos coolies que entrincheirassem a porta com os carros das bagagens, formados em semicírculo à velha maneira tártara... Mas pouco a pouco a malta crescera... Agora vinha de espreitar por um postigo: e era em roda da estalagem toda a populaça de Tien-Há, rosnando sinistramente... A deusa Kaonine não se satisfizera com o sangue do galo preto!... Além disso ele vira à porta de um pagode uma cabra negra recuar! ... A noite seria de terrores!... E a sua pobre mulher, o osso do seu osso; que estava tão longe, em Pequim!...

– E agora, Sá-Tó? – perguntei eu.

– Agora... Vossa Honra! Agora...

Calou-se: e a sua magra figura tremia, acaçapada como um cão que se roja sob o açoite.

Eu afastei o cobarde, e adiantei-me para a galeria. Em baixo, o muro fronteiro, coberto de um alpendre, projectava uma funda sombra. Aí com efeito estava uma turba negra apinhada. Às vezes uma figura, rastejando, adiantava-se no espaço alumiado, espreitava, farejava as carretas e, sentindo a lua sobre a face, recuava vivamente, fundindo-se na escuridão: e como o tecto do alpendre era baixo, faiscava um momento à luz algum ferro de lança inclinada...

– Que querem vocês, canalha? – bradei eu em português.

A esta voz estrangeira um grunhido saiu da treva; imediatamente uma pedra veio ao meu lado furar o papel encerado da gelosia; depois uma flecha silvou, cravou-se por cima da minha cabeça, num barrote...

Desci rapidamente à cozinha da estalagem. Os meus coolies, acocorados sobre os calcanhares, batiam o queixo num terror; e os dois cossacos que me acompanhavam, impassíveis à lareira, cachimbavam, com o sabre nu nos joelhos. 

O velho estalajadeiro de óculos, uma avó andrajosa que eu vira no pátio deitando ao ar um papagaio de papel, os arrieiros mongóis, as crianças piolhosas, esses tinham desaparecido; só ficara um velho, bêbedo de ópio, caído a um canto como um fardo. Fora ouvia-se já a multidão vociferar.

Interpelei então Sá-Tó, que quase desmaiava, arrimado a uma viga: nós estávamos sem armas; os dois cossacos, sós, não podiam repelir o assalto: era necessário pois ir acordar o mandarim governador, revelar-lhe que eu era um amigo de Camilloff, um conviva do príncipe Tong, intimá-lo a que viesse dispersar a turba, manter a lei santa da hospitalidade!...

Mas Sá-Tó confessou-me, numa voz débil como um sopro, que o governador decerto é quem estava dirigindo o assalto! Desde as autoridades até aos mendigos, a fama da minha riqueza, a legenda das carretas carregadas de ouro inflamara todos os apetites!... A prudência ordenava, como um mandamento santo, que abandonássemos parte dos tesouros, mulas, caixas de comestíveis...

– E ficar aqui, nesta aldeia maldita, sem camisas, sem dinheiro e sem mantimentos?...

– Mas com a rica vida, Vossa Honra!

Cedi. E ordenei a Sá-Tó que fosse propor à turba uma copiosa distribuição de sapeques – se ela consentisse em recolher aos seus casebres, e respeitar em nós os hóspedes enviados por Buda...

Sá-Tó subiu à sacada da galeria, a tremer; e rompeu logo a arengar à malta, bracejando, atirando as palavras com a violência de um cão que ladra. Eu abrira já uma maleta, e ia-lhe passando cartuchos, sacos de sapeques – que ele arremessava aos punhados com um gesto de semeador... Em baixo havia por momentos um tumulto furioso ao chover dos metais; depois um lento suspiro de gula satisfeita; e logo um silêncio, numa suspensão de quem espera mais...

– Mais! – murmurava Sá-Tó, voltando-se para mim ansioso.

Eu, indignado, lá lhe dava outros cartuchos, mais rolos, molhos de moedas de meio real enfiadas em cordéis... Já a maleta estava vazia. A turba rugia, insaciada.

– Mais, Vossa Honra! – suplicou Sá-Tó.

– Não tenho mais, criatura! O resto está em Pequim!

– Oh Buda santo! Perdidos! Perdidos! – clamou Sá-Tó, abatendo-se sobre os joelhos.

A populaça, calada, esperava ainda. De repente, uma ululação selvagem rasgou o ar. E eu senti aquela massa ávida arremessar-se sobre as carretas que defendiam a porta em semicírculo: ao choque todo o madeiramento da Estalagem da Consolação Terrestre rangeu e oscilou...
–––––––––––
Continua…

Fonte:
http://leituradiaria.com