segunda-feira, 2 de junho de 2014

Folclore Brasileiro (Mitos Indígenas) Sinaá - inundação e fim do mundo

Sinaá, o mais poderoso pajé da tribo Juruna, era filho de mãe índia e pai onça. Do felino herdara o poder de enxergar também pelas costas, o que lhe permitia observar tudo o que se passava ao seu redor.

Caminhava com sua gente por toda a região, ensinando a seus companheiros serem bons e bravos. Seu povo alimentava-se de farinha de mandioca, raspa de madeira, jabutis e sucuris, cobras imensas que habitam na água.

Certa vez, uma enorme sucuri foi capturada e queimada por haver devorado diversos índios. Inesperadamente brotaram de suas cinzas diversas espécies de vegetais, como a mandioca, o milho, o cará, a abóbora, a pimenta, e algumas plantas frutíferas, até então desconhecidas para aquela tribo.

Foi um pássaro surgido do céu que os ensinou a utilizar e preparar tais alimentos e também fazê-los multiplicar-se. A partir daquele dia, fartas roças se formaram.

Para garantir o sustento de seu povo, Sinaá, face às fortes chuvas e à ameaça de grande inundação, construiu uma imensa canoa, onde plantou mudas de cada espécie. Em poucos dias o rio transbordou e a enchente cobriu toda a região, mas o grande pajé livrou seu povo da fome.

Já mais velho, Sinaá casou-se com uma aranha, que lhe teceu novas vestes para melhor abrigá-lo. Chegando a atingir idade bastante avançada, já ostentava longas barbas brancas. Seus poderes, porém, permitiam-lhe remoçar a cada banho de cachoeira, para que pudesse viver até o fim de seu povo, como tanto queria.

Quando isto ocorresse, Sinaá derrubaria a forquilha de uma enorme árvore que apontava para o céu, sustentando-o. O céu desabaria sobre todos os povos e o mundo teria o seu fim.

Fonte:
Jayhr Gael (Mitos indígenas). www.caminhodewicca.com.br

Alex Nascimento (Rio Grande do Norte Poético)

Castelo de Engady - Caicó/RN
ETERNAMENTE INVERNO

E mais fácil esconder um crime
Do que uma paixão.
Quando você disse que
Não me queria mais,
Senti um frio amargo
Como no dia em que sentei
No batente da calçada
Depois de olhar meu pai morto,

Mas você estava vivo:
A quem enterrar?
Seus olhos molharam
Algumas vezes enquanto falava,
Chorando por mim — senti —,
E eu imóvel, pálida, silente,
Sofrendo por você sofrer,
Encurralada por dentro, pensando
Em que número infinito pararia
A dor de um
Por outro que doía.

Contida parti,
Estranha me encerrei
No quarto,
E tudo ali,
De livros a óperas
A pinturas a roupas
A tudo ali,
Me era tão alheio e inexistente
Quanto a Via Láctea
Antes de você.

Mas era o meu mundo
E sempre havia sido,
E esse sobretipo de mundo
Não se acaba
Pelos antes ou pelos depois
Que a gente cria em sete dias
E então descansa.
Continuei-me quieta e triste.

Tive reflexões de mais cores
Do que pode um prisma suportar.
Pensei sobre minha repulsão
A discutir sobre sentimentos,
Este torneio cansativo de pecados,
Espantosa gargalhada em funeral.
Pensei em Ronald Golias professando:
A águia subiu, subiu, subiu,
Depois desceu, desceu, desceu;
Ó águia, se ias descer,
Pra que subiste tanto?

E pensei que Golias me faz feliz
Até quando sei que não sou.
Pensei que você é
O melhor homem do mundo, e
Pensei coisas belas, medianas e
Vergonhosas.

Pensei que o tempo e eu
Havíamos parado de agonia,
Mas não,
Amanhã faz um século e um minuto
Que senti aquele frio,
Mas só amanhã.

O tempo não foi
Nem santo nem remédio,
Também não é doença
Esta saudade. Quem sabe,
A morte, enganando longamente
O dia seguinte.

Mas isso só amanhã.

SONETO 81

Aqui, das grades deste sanatório,
São vistas criaturas tão normais,
Os eruditos, os intelectuais,
A padronização do envoltório.

Espécie de santinhos de oratório,
Na mão de cada um, um edelvais,
A sisudez como credenciais,
Não faltam bichos ao laboratório.

É cada um de si o próprio herói;
Por tolos tão amorfos, invejados;
De mestres são chamados, como sói,

Pela meiguice ingênua dos tarados,
Que nem mesmo imaginam como dói
Suportar o relincho dos letrados.

SONETO 17

Se é a morte o começo de uma vida
já que a vida é o princípio de uma morte
é o azar o prenúncio de uma sorte
é a chegada o início da partida

Expulsão é intróito de acolhida
cicatriz é prefácio a novo corte
medo fraco é prelúdio a grito forte
limiar é a entrada da saída

Não sei se é amor o que ela sente
não sinto mais amar sem ela perto
não sei se é verdade o que ela mente

Não minto o que seria descoberto
não sei se não saber me faz um crente
não creio que sabendo esteja certo

MULHER

Mulher Obstinada a lutar,
Mulher obstinada a ter,
a querer, ser...

Mulher lutadora da vida.
Mulher que escreve as
Linhas do tempo nas palmas
das mãos.

Ser mulher não é ser frágil
é ser única... Ser sempre
capaz de ver, ouvir, sentir,
buscar, crer, procurar, e
aceitar.

AMAR VOCÊ

Disse ao belo Verso.
Cantai a ele uma canção.
Aos sentimentos escondidos
Que me tocam o coração.

Seja assim e por inteiro
Para sempre uma emoção.
Eterna como o vento,
Latente inspiração.

Um sonho bem vivido.
Meu amor sua canção.
Feito de palavra.
Escritos com paixão.

Pois, agora belo amado.
Um beijo lhe darei.
Desafiando o meu tempo,
Serei seu de mais ninguém.

Gonçalves Dias (Primeiros Cantos) 6

Foi mantida a grafia original.
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O Vate

No Álbum de um Poeta
 
Moi. . . j’aimerai la victoire;
Pour mon coer, ami de toute gloire,
Les triomphes d’autrui ne sont pas un affront.
Poète, j’eus toujours un chanl pour les poétes,
Et jamais le laurier qui pare d’autre têtes
Ne jeta d’ombre sur mon front.
- V. Hugo


Vate! Vate! que és tu? - Nos seus extremos
Fadou-te Deus um coração de amores,
Fadou-te uma alma acesa borbulhando
Ardidos pensamentos, como a lava
Que o gigante Vesúvio arroja às nuvens.
Vote! vote! que és tu? - Foste ao princípio
Sacerdote e profeta;
Eram nos céus teus cantos uma prece,
Na terra um vaticínio.
E ele cantava então: - Jeová me disse,
Majestoso e terrível.
“Vês tu Jerusalém como orgulhosa
“Campeã entre as nações, como no Líbano
“Um cedro a cuja sombra a hissope cresce?
“Breve a minha ira transformada em raios
“Sobre ela cairá;
“Um fero vencedor dentro em seus muros
“Tributária a fará;
“E quando escravos seus filhos, sobre pedra
“Pedra não ficará.”
E os réprobos de saco se vestiam,
Em pó, em cinza envoltos;
E colando co’a terra os torpes lábios,
E açoitando cu’as mãos o peito imbele,
Senhor! Senhor! - clamavam.
E o vate entanto o pálido semblante
Meditabundo sobre as mãos firmara,
Suplicando ao Senhor do interno d’alma.
Foram santos então. - Homero o mundo
Criou segunda vez, - o inferno o Dante, -
Milton o paraíso, - foram grandes!
E hoje!... em nosso exílio erramos tristes,
Mimosa esp’rança ao infeliz legando.
Maldizendo a soberba, o crime, os vicio;:
E o infeliz se consola, e o grande treme.
Damos ao infante aqui do pão que temos,
E o manto além ao mísero raquítico:
Somos hoje Cristãos.

À Morte Prematura

Da Il.ma Sra. D.
(no Álbum de seu Irmão Da. J. D. Lisboa Serra)
On dirait que le ciel aux coeurs plus magnanimes
Measure plus de maux.
- Lamartine


Perfeita formosura em tenra idade
Qual flor, que antecipada foi colhida,
Murchada está da mão da sorte dura.
- Camões (soneto)


Lá, bem longe daqui, em tarde amena,
Gozando a viração das frescas auras,
Que do Brasil os bosques brandamente
Faziam balançar, - e que espalhavam
No éter encantado odor, pureza -
Do que a rosa mais bela, - meiga e casta,
Como as virgens do sol,
Que de vezes não foi ela pendente
Dos braços fraternais em meigo abraço;
Como mimosa flor presa, enlaçada
A tenro arbusto que a vergôntea débil
Lhe ampara docemente. . .
E o Irmão que só nela se revia,
O Irmão que a adorava, qual se adora
Um mimo do Senhor;
Que a tinha por farol, conforto e guia,
Os seus dias contava por encantos;
E as virtudes co’os dias pleiteavam.
E ela morreu no viço de seus anos!...
E a laje fria e muda dos sepulcros
Se fechou sobre o ente esmorecido
Ao despontar de vida
Tão rica de esperanças e tão cheia
De formosura e graças!... _
Campal campa! que de terror incutes!
Quanto esse teu silêncio me horroriza!
E quanto se assemelha a tua calma
À do cruel malvado que impassível
Contempla a sua vítima torcer-se
Em convulsões horríveis, desesp’radas;
Cruas vascas da morte!...
Quem tão má fé te criou?
Tu que tragas o ente que esmorece
Ao despontar de vida
Tão rica de esperanças e tão cheia
De formosura e graças?!
O farol se apagou? a luz sumiu-se!
Como o fugaz clarão do meteoro,
Extinguiu-se a esperança; e o malfadado
Sobre a terra deserta em vão procura
Traços dessa que amou, que tanto o amara,
Da jovem companheira de seus brincos,
Pesares e alegrias.
Ele a procurai... o viajor pasmado
Nos campos de Pompéia, alonga a vista
Pela amplidão do plano,
Destroços e ruínas encontrando,
Onde esperava movimento e vida.
Não poder eu a troco de meu sangue
Poupar-te dessas lágrimas metade!
Oh! poder que eu pudesse! - e almo sorriso.
Que tanto me compraz ver-te nos lábios,
Inda uma vez brilhasse!
E essa existência,
Que tão cara me é, ta visse eu leda,
E feliz como a vida dos Arcanjos!
Infeliz é quem chora: ela finou-se,
Porque os anjos à terra não pertencem:
Mas lá dos imortais sobre os teus dias
A suspirada irmã vela incessante.
Vinde, cândidas rosas, açucenas,
Vinde, roxas saudades;
Orvalhai, tristes lágrimas, as c’roas,
Que hão de a campa adornar por mim depostas
Em holocausto à vítima da morte.
Inocência, pudor, beleza e graça
Com ela nessa campa adormeceram.
Anjo no coração, anjo no rosto,
Devera o amor chorar sobre o teu seio,
Que não grinaldas fúnebres tecer-te;
Devera voz d’esposo acalentar-te
O sono da inocência, - não grosseira
Canção de trovador não conhecido.

Coimbra, junho de 1841.

A Mendiga

Donnez: -
Et quand vous paraîtrez devant juge austère
Vous direz: J’ai connu la pitié sur la terre,
Je puis la demander aux cieux!
- Turquety


I

Eu sonhei durante a noite...
Que triste foi meu sonhar!
Era uma noite medonha,
Sem estrelas, sem luar.
E ao través do manto escuro
Das trevas, meus olhos viam
Triste mendiga formosa,
Qu’infortúnios consumiam.
Era uma pobre mendiga,
Porém, cândida donzela;
Pudibunda, afável, doce,
Amorosa, e casta, e bela.
Vestia rotos andrajos,
Que o seu corpo mal cobriam;
Por vergonha os olhos dela
Sobre ela se não volviam.
Pelas costas descobertas
Cortador o frio entrava;
Tinha fome e sede, - e o pranto
Nos seus olhos borbulhava.
E qual vemos dos céus descendo rápido
Um fugaz meteoro, vi descendo
Um anjo do Senhor; - Parou sobre ela,
E mudo a contemplava. - Uma tristeza
Simpática, indizível pouco e pouco
Do anjo nas feições se foi pintando:
Qual tristeza de irmão que a irmã mais nova
Conhece enferrna e chora. - Ela no peito
Menor sentiu a dor, e humilde orava.

II

De um vasto edifício nas frias escadas
Eu vi-a sentada; - era um templo, diziam,
Secreto concílio de sócios piedosos,
Que o bem tinha juntos, que bem só faziam.
Defronte um palácio soberbo se erguia,
E dele partia confuso rumor:
- A dança girava, e a orquestra sonora
Cantava alegria, prazeres e amor.
E quando ao palácio um conviva chegava,
Rugindo se abria o ruidoso portão;
Eflúvios de incenso nos ares corriam
Da rua esteirada com vivo clarão.
E a triste mendiga ali ‘stava ao relento,
Com fome, com frio, com sede e com dor;
E eu vi o seu anjo, mais triste no aspecto,
Mais baço, mais turvo da glória o fulgor.
E à porta do vasto sombrio edifício
Um vulto chegou.
- Senhor, uma esmola! bradou-lhe a mendiga
E o vulto parou.
E rude no acento, no aspecto severo,
Lhe disse: - O teu nome?
Tornou-lhe a mendiga: - Senhor, uma esmola,
Que eu morro de fome.
- Não, dizes teu nome? lhe torna o soberbo
- Sou órfã, sozinha;
Meu nome qu’importa, se eu sofro, se eu gemo,
Se eu choro mesquinha!”
- Em vis meretrizes não cabe esse orgulho,
Tornou-lhe o Senhor,
Que à noite, nas trevas, contratam no crime,
Vendendo o pudor.
E a porta do templo - erguido à piedade
Com força batia;
Co’o peso do insulto acrescido à crueza,
A triste gemia.

III

Ouvi depois um rodar que a todo o instante
Mais distinto se ouvia; e logo um forte,
Fascinador clarão por toda a rua
Se derramou soberbo. - Infindos pajens
Ricas librés trajando, mil archotes
Nos ares revolviam; - fortes, rápidos,
Fumegantes corcéis, sorvendo a terra,
Tiravam rica sege melindrosa.
Sobre a terra saltou airosa e bela
A dona, em frente do festivo paço;
E a mendiga bradou: - Senhora minha,
Dai uma esmola, dai! - À voz dorida
Volveu-se o rosto d’anjo, porém d’anjo
Não era o coração; - foi-lhe importuno,
Mais que importuno... da mesquinha o grito!
E da mendiga o protetor celeste
Parecia falar em favor dela;
E a rica dona o escutava, como
Se ouvisse a interna voz que dentro mora.
E eu dizia também - Ó bela Dona,
Dai-lhe uma esmola, daí; - de que vos serve
Um óbolo mesquinha, que não pode
Sequer um dixe sem valor comprar-vos?
Ah! bela como sois, que vos importam
Custosas flores, com que ornais a fronte?
Para a salvar do vórtice do crime,
O preço delas, uma só, da coisa,
Que sem valor julgardes, é bastante.
Sabeis? - Além da vida, além da morte,
Quando deixardes o ouropel na campa,
Quando subirdes do Senhor ao trono,
Sem andrajos sequer, também mendiga,
Ali tereis as lágrimas do pobre,
A bênção do afligido, a prece ardente
Do que sofrendo vos bendisse, - ó Dona.
Fechou-se a porta festival sobre ela!
E a donzela se ergueu, corou de pejo,
Lançando os olhos pela rua escusa,
E segura no andar, e firme, à porta
Do palácio bateu - entrou - sumiu-se.
E o anjo, como aflito sob um peso,
Um gemido soltou; era uma nota
Melancólica e triste, - era um suspiro
Mavioso de virgem, - um soído
Subtil, mimoso, como d’Harpa Eólia,
Que a brisa da manhã roçou medrosa.

IV

Dos muros ao través meus olhos viram
Soberba roda de convivas, - todos
Veludos, sedas, e custosas galas
Trajavam senhoris. - Reinava o jogo
Avaro e grave, leda e viva a dança
Em vórtices girava, a orquestra doce
Cantava oculta; condensados, bastos,
Em redor do banquete estavam muitos.
A mendiga ali estava, - não trajando
Sujos farrapos, mas delgadas telas.
Choviam brindes e canções e vivas
À Deusa airosa do banquete; todos
Um volver dos seus olhos, um sorriso,
Uma voz de ternura, um mimo, um gesto
Cobiçavam rivais; - e ali com ela,
Como um raio do sol por entre as nuvens
Lá na quadra hibernal penetra a custo
Quase sem vida, sem calor, sem força,
Menos brilhante vi seu anjo belo.
Nos curtos lábios da feliz mendiga
Passava rápido um sorriso às vezes;
Outras chorava, no volver do rosto,
Na taça do prazer sorvendo o pranto.
Encontradas paixões sentia o anjo:
Parecia chorar co’o seu sorriso,
Parecia sorrir co’o choro dela.

Machado de Assis (Almas Agradecidas) Capítulo III

Um dia de manhã, leu Oliveira, ainda na cama, a notícia da demissão de Magalhães, impressa no Jornal do Commercio. Grande foi a sua mágoa, mas ainda maior que a mágoa foi a raiva que esta notícia lhe causou. Demitir Magalhães! Oliveira mal podia compreender este ato do ministro. O ministro era necessariamente tolo ou tratante.

Havia patronato naquilo. Não seria pagamento a algum eleitor solícito? Estas e outras conjecturas preocuparam o advogado até à hora do almoço. Almoçou pouco. O estômago acompanhava a dor do coração.

Magalhães devia ir nesse dia ao escritório de Oliveira. Com que ansiedade esperou este a hora marcada! Esteve a ponto de faltar a um depoimento de testemunhas. Mas a hora chegou e Magalhães não apareceu. Oliveira estava sobre brasas. Qual a razão da falta? Não atinava com ela.

Eram quatro horas, quando saiu do escritório, e sua resolução imediata foi meter-se num tílburi e seguir para a Glória.

Assim o fez.

Quando lá chegou, estava Magalhães lendo um romance. Não parecia abatido pelo golpe ministerial. Todavia, não estava alegre. Fechou o livro lentamente e abraçou o amigo.

Oliveira não podia conter a sua cólera.

— Lá vi hoje, disse ele, a notícia da tua demissão. É uma patifaria sem nome...

— Por quê? — Ainda o perguntas? — Sim; por quê? O ministro é senhor dos seus atos e responsável por eles; podia demitir-me e fê-lo.

— Mas fez mal, disse Oliveira.

Magalhães sorriu tristemente.

— Não podia deixar de o fazer, disse ele; um ministro é muitas vezes um amanuense do destino, que só parece ocupar-se em me perturbar a vida e multiplicar todos os esforços.

Que queres? Eu já estou acostumado, não resisto; dia virá em que estes golpes terão um termo. Dia virá em que eu possa vencer a má fortuna de uma vez para sempre. Tenho o remédio nas mãos.

— Deixa-te de tolices, Magalhães.

— Tolices? — Mais que tolices; sê forte! Magalhães abanou a cabeça.

— Não custa aconselhar fortaleza, murmurou ele; mas quem tem sofrido como eu...

— Já não contas com os amigos? — Os amigos não podem tudo.

— Muito obrigado! Eu te mostrarei, se podem.

— Não te iludas, Oliveira; não te esforces a favor de um homem que a sorte condenou.

— Histórias! — Sou um condenado.

— És um fracalhão.

— Acreditas que eu...

— Acredito que és um fracalhão, e que não pareces aquele mesmo Magalhães que sabe conservar o sangue frio em todas as ocasiões graves. Descansa, eu tirarei desforra brilhante. Antes de quinze dias estarás empregado.

— Não creias...

— Desafias-me? — Não; bem conheço de que é capaz teu coração nobre e generoso... mas...

— Mas o quê? Receio que a má fortuna seja mais forte do que eu.

— Verás.

Oliveira deu um passo para a porta.

— Nada disso impede que venhas jantar comigo, disse ele, voltando-se para Magalhães.

— Obrigado; já jantei.

— Anda ao menos comigo para ver se te distrais.

Magalhães recusou; mas Oliveira insistiu com tão boa vontade que não havia recusar.

Durante a noite seguinte meditou Oliveira acerca do negócio de Magalhães. Tinha amigos importantes, os mesmos que forcejavam por lhe abrir carreira política. Oliveira pensou neles como os mais próprios para levar a cabo a obra de seus desejos. O grande caso para ele era empregar Magalhães, em cargo tal que despicasse da prepotência ministerial. O substantivo prepotência era a exata expressão de Oliveira.

Não lhe ocultaram os amigos que o caso não era fácil; mas prometeram que a dificuldade seria vencida. Não se dirigiram ao ministro da Guerra, mas a outro; Oliveira pôs em campo o recurso feminino. Duas senhoras de seu conhecimento foram em pessoa falar ao ministro, em favor do feliz candidato.

Não negou o digno membro do poder executivo a dificuldade de criar um lugar para dar ao pretendente. Seria cometer a injustiça de tirar o pão a empregados úteis ao país.

Instavam, porém, os padrinhos, audiências e cartas, pedidos de toda sorte; nada ficou por empregar em favor de Magalhães.

Depois de cinco dias de lutas e solicitações diárias, declarou o ministro que poderia dar um bom emprego a Magalhães na Alfândega de Corumbá. Já era boa vontade da parte do ministro, mas os protetores de Magalhães recusaram a graça.

— O que se deseja de V. Excia., disse um deles, é que o nosso afilhado seja empregado aqui mesmo na corte. Vai nisso uma questão de honra, e uma questão de comodidade.

Tinha boa vontade o ministro, e entrou a cogitar no meio de acomodar o pretendente.

Havia em uma das repartições a seu cargo um empregado que durante o ano faltava muitas vezes ao ponto, e na última peleja eleitoral votara contra o ministro. Caiu-lhe uma demissão em casa, e para evitar empenhos mais fortes, no mesmo dia em que apareceu a demissão do empregado vadio, apareceu a nomeação de Magalhães.

Foi o próprio Oliveira que levou a Magalhães o desejado decreto.

— Dá-me cá um abraço, disse ele, e reza aí um mea culpa. Venci o destino. Estás nomeado.

— Quê! será possível? — Aqui tens o decreto! Magalhães caiu nos braços de Oliveira.

A gratidão de quem recebe um benefício é sempre menor que o prazer daquele que o faz.

Magalhães exprimia todo seu reconhecimento pela dedicação e perseverança de Oliveira; mas a alegria de Oliveira não tinha limites. A explicação desta diferença está talvez neste fundo de egoísmo que há em todos nós.

Em todo caso, a amizade dos dois ex-colegas ganhou com isso maior solidez.

Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 13


Folclore Brasileiro (Mitos Indígenas) Arutsãm, o sapo astucioso

O sapo Arutsãm foi ao encontro de seu cunhado onça, para dele tomar emprestado um arco e uma gaita de bambu.

Aproximando-se de seu território, foi alertado por outros animais, com ironia, do perigo que estava correndo. Mesmo assim prosseguiu.

A onça mostrou-se gentil ao recebê-lo, convidando-o para um banho no lago, cuidando, porém, para que sempre caminhasse atrás do convidado.

Arutsãm desconfiado, manteve-se atento.

Ao anoitecer a onça esperou ansiosa que o cunhado adormecesse, aguardando o momento ideal para devorá-lo. Arutsãm, entretanto, colocou sobre os seus, olhos de um vagalume, ludibriando assim a onça, que o julgava acordado e não ousou atacá-lo.

No dia seguinte, já de posse do arco e da gaita, despediu-se agradecido de seu anfitrião. Esperto que era, espalhou formigas no caminho, que, atacando a onça, faziam com que esta batesse as patas no chão, acusando sua proximidade.

Arutsãm seguia o seu caminho. Passava agora pelo território das serpentes, a quem seu inimigo incansável pediu que o apanhassem. O astuto sapo atraiu-as até o lago, saltando velozmente para outra margem, escapando à sua perseguição.

Chegando à aldeia das cobras, apressou-se em quebrar todas as panelas de barro de suas fêmeas. Ao verem o estrago, estas o perseguiram enfurecidas.

Neste momento, partiu Arutsãm para seu grande salto: como um toque mágico, pulou para a lua, onde, zombeteiro, está eternamente a tocar sua gaita.

Ainda hoje, em noites claras, a onça contempla a lua (Iaê), lamentando o fracasso do seu plano traidor.

Fonte:
Jayhr Gael (Mitos indígenas). www.caminhodewicca.com.br

Machado de Assis (Almas Agradecidas) Capítulo II

Três dias depois, apareceu Magalhães no escritório de Oliveira; falou na sala a um porteiro que lhe pediu o cartão.

— Não tenho cartão, respondeu Magalhães envergonhado; esqueci-me de o trazer; diga-lhe que é o Magalhães.

— Queira esperar alguns minutos, tornou o porteiro; ele está conversando com uma pessoa.

Magalhães assentou-se numa cadeira de braços, enquanto o porteiro assoava silenciosamente o nariz e tomava uma pitada de rapé, que lhe não ofereceu. Magalhães examinou detidamente as cadeiras, as estantes, os quadros de gravuras, os capachos e as escarradeiras. A sua curiosidade era minuciosa e sagaz; parecia estar avaliando o gosto ou a riqueza de seu ex-colega.

Minutos depois, ouviu-se um rumor de cadeiras, e não tardou que viesse da sala do fundo um velho alto e empertigado, vestido com certo apuro, a quem o porteiro fez largos cumprimentos até o patamar da escada.

Magalhães não esperou que o porteiro fosse avisar Oliveira; atravessou o corredor que separava as duas salas e foi ter com o amigo.

— Ora, viva! disse este apenas o viu entrar. Estimo que não lhe houvesse esquecido a promessa. Sente-se; chegou a casa com chuva? — Começou a chuviscar, quando eu me achava a dois passos da porta, respondeu Magalhães.

— Que horas são? — Pouco mais de duas, creio eu.

— O meu relógio está parado, disse Oliveira, lançando o olhar de esguelha para o colete de Magalhães, que não tinha relógio. Naturalmente, ninguém mais me procurará hoje; e ainda que venham, quero descansar.

Oliveira tocou a campainha apenas acabou de proferir estas palavras. Veio o porteiro.

— Se vier alguém, disse Oliveira, não estou cá.

O porteiro inclinou-se e saiu.

— Estamos livres de importunos, disse o advogado, apenas o porteiro virou as costas.

Todas estas maneiras e palavras de simpatia e cordialidade foram angariando a confiança de Magalhães, que começou a parecer alegre e franco com o seu ex-colega.

Longa foi a conversa, que durou até às 4 horas da tarde. As 5 jantava Oliveira; mas o outro jantava às 3, e se o não disse, era talvez por deferência, se não fosse por cálculo.

Um jantar copioso e escolhido não era melhor que o ramerão culinário de Magalhães? Fosse uma ou outra coisa, Magalhães suportou a fome com admirável denodo. Eram 4 horas da tarde, quando Oliveira deu acordo de si.

— Quatro horas! exclamou ele, ouvindo as badaladas de um sino próximo. Naturalmente, já você perdeu a hora do jantar.

— Assim é, respondeu Magalhães; eu costumo jantar às 3 horas. Não importa; adeus.

— Isso é que não; há de ir jantar comigo — Não; obrigado...

— Ande cá, jantaremos no hotel mais próximo, porque a minha casa é longe. Eu ando com ideia de mudar de casa; estou muito fora do centro da cidade. Vamos aqui ao Hotel de Europa.

Os vinhos eram bons; Magalhães gostava de vinhos bons. No meio do jantar, tinha-se-lhe desenvolvido completamente a língua. Oliveira fazia quanto podia para tirar ao amigo da infância toda espécie de acanhamento. Isto e o vinho deram excelente resultado.

Desta ocasião em diante foi que Oliveira começou a apreciar o ex-colega. Era Magalhães um rapaz de agudo espírito, boa observação, conversador ameno, um pouco lido em obras fúteis e correntes. Tinha, além disso, o dom de ser naturalmente insinuante. Com estas prendas juntas não era difícil, era antes facílimo angariar as boas graças de Oliveira, que, à sua extrema bondade, reunia uma natural confiança, ainda não diminuída pelos cálculos da vida madura. Demais Magalhães tinha sido infeliz; esta circunstância era aos olhos de Oliveira um realce. Finalmente, o seu ex-colega já lhe confiara no trajeto do escritório ao hotel, que não contava um amigo debaixo do sol. Oliveira queria ser esse amigo.

Qual importa mais à vida, ser Dom Quixote ou Sancho Pança? O ideal ou o prático? A generosidade ou a prudência? Oliveira não hesitava entre esses dois opostos papéis; nem sequer pensara neles. Estava no período do coração.

Apertaram-se os laços da amizade entre os dois colegas. Oliveira mudou-se para a cidade, o que deu azo a que os dois amigos se encontrassem mais vezes. A frequência veio a uni-los ainda mais.

Oliveira apresentou Magalhães a todos os seus amigos; levou-o à casa de alguns. A sua palavra afiançava o hóspede que, dentro em pouco tempo, captava as simpatias de todos.

Nisto era Magalhães superior a Oliveira. Não faltava ao advogado inteligência, nem maneiras, nem dom para se fazer estimado. Mas os dotes de Magalhães superavam os dele. A conversa de Magalhães era mais picante, mais variada, mais atraente. Há muito quem prefira a amizade de um homem sarcástico, e Magalhães tinha seus longes de sarcástico.

Não se magoava com isto Oliveira, antes parecia ter certa glória em ver que seu amigo obtinha por seu mérito a estima dos outros.

Facilmente acreditará o leitor que estes dois amigos se fizessem confidentes de todas as coisas, principalmente de coisas de amores. Nada esconderam a este respeito um ao outro, com a diferença de que Magalhães, não tendo amores atuais, confiou ao amigo apenas algumas proezas antigas, ao passo que Oliveira, a braços com algumas aventuras, não dissimulou nenhuma delas, e tudo contou a Magalhães.

E foi bem que o fizesse, porque Magalhães era homem de bom conselho, dava ao amigo pareceres sensatos, que ele ouvia e aceitava com grande proveito seu e para maior glória da recíproca amizade.

A dedicação de Magalhães ainda se manifestava por outro modo. Não era raro vê-lo desempenhar um papel de conciliador, auxiliar uma inocente mentira, ajudar o amigo em todas as dificuldades que o amor depara aos seus alunos.
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continua...
 
Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

Gonçalves Dias (Primeiros Cantos) 5

Amor! Delírio – Engano

Y el llanto que en su cólera derrama,
La hoguera apaga del antiguo amor!
- Zorrilla


Amor! delírio - engano... Sobre a terra
Amor tão bem fruí; a vida Inteira
Concentrei num só ponto - amá-la, e sempre.
Amei! - dedicação, ternura, extremos
Cismou meu coração, cismou minha alma,
- Minha alma que na taça da ventura
Vida breve d’amor sorveu gostosa.
Eu e ela, ambos nós, na terra ingrata
Oásis, paraíso, éden ou templo
Habitamos uma hora; e logo o tempo
Com a foice roaz quebrou-lhe o encanto,
Doce encanto que o amor nos fabricara.
E eu sempre a via!... quer nas nuvens d’oiro
Quando ia o sol nas vagas sepultar-se,
Ou quer na branca nuvem que velava _
O círculo da lua, - quer no manto
D’alvacenta neblina que baixava
Sobre as folhas do bosque, muda e grave,
Da tarde no cair; nos céus, na terra,
A ela, a ela só, viam meus olhos.
Seu nome, sua voz - ouvia eu sempre;
Ouvia-os no gemer da parda rola,
No trépido correr da veia argêntea,
No respirar da brisa, no sussurro
Do arvoredo frondoso, na harmonia
Dos astros inefável; - o seu nome!
Nos fugitivos sons de alguma frauta,
Que da noite o silêncio realçavam,
Os ares e a amplidão divinizando,
Ouviam meus ouvidos; e de ouvi-lo
Arfava de prazer meu peito ardente.
Ah! quantas vezes, quantas! junto dela
Não senti sua mão tremer na minha;
Não lhe escutei um lânguido suspiro,
Que vinha lá do peito à flor dos lábios
Deslizar-se e morrer?! Dos seus cabelos
A mágica fragrância respirando,
Escutando-lhe a voz doce e pausada,
Mil venturas colhi dos lábios dela,
Que Instantes de prazer me futuravam.
Cada sorriso seu era uma esp’rança,
E cada esp’rança enlouquecer de amores.
E eu amei tanto! - Oh! não! não hão de os homens
Saber que amor, à ingrata, havia eu dado;
Que afetos melindrosos, que em meu peito
Tinha eu guardado para ornar-lhe a fronte!
Oh! - não, - morra comigo o meu segredo;
Rebelde o coração murmure embora.
Que de vezes, pensando a sós comigo,
Não disse eu entre mim: - Anjo formoso,
Da minha vida que farei, se acaso
Faltar-me o teu amor um só instante;
- Eu que só vivo por te amar, que apenas
O que sinto por ti a custo exprimo?
No mundo que farei, como estrangeiro
Pelas vagas cruéis à praia Inóspita
Exânime arrojado? - Eu, que isto disse,
Existo e penso - e não morri, - não morro
Do que outrora senti, do que ora sinto
De pensar nela, de a rever em sonhos,
Do que fui, do que sou e ser podia!
Existo; e ela de mim jaz esquecida!
Esquecida talvez de amor tamanho,
Derramando talvez noutros ouvidos
Frases doces de amor, que dos seus lábios
Tantas vezes ouvi, - que tantas vezes
Em êxtase divino aos céus me alçaram,
- Que dando à terra ingrata o que era terra
Minha alma além das nuvens transportaram.
Existo! como outrora, no meu peito
Férvido o coração pular sentindo,
Todo o fogo da vida derramando
Em queixas mulheris, em moles versos.
E ela!... ela talvez nos braços doutrem
Com sua vida alimenta uma outra vida,
Com o seu coração o de outro amante,
Que mais feliz do que eu, inferno! a goza.
Ela, que eu respeitei, que eu venerava
Como a relíquia santa! - a quem meus olhos,
Receando ofendê-la, tantas vezes
De castos e de humildes se abaixaram!
Ela, perante quem sentia eu presa
A voz nos lábios e a paixão no peito!
Ela, ídolo meu, a quem o orgulho,
A força d’homem, o sentir, vontade
Própria e minha dediquei, - sujeita
À voz de alguém que não sou eu, - desperta,
Talvez no instante em que de mim se lembra,
Por um ósculo frio, por carícias
Devidas dum esposo!...
Oh! não poder-te,
Abutre roedor, cruel ciúme,
Tua funda raiz e a imagem dela
No peito em sangue espedaçar raivoso!
Mas tu, cruel, que és meu rival, numa hora,
Em que ela só julgar-se, hás de escutar-lhe
Um quebrado suspiro do imo peito,
Que d’eras já passadas se recorda.
Hás de escutá-lo, e ver-lhe a cor do rosto
Enrubescer-se ao deparar contigo!
Presa serás também d’atros cuidados,
Terás ciúme, e sofrerás qual sofro:
Nem menor que o meu mal quero a vingança.

Delírio

Quando dormimos o nosso espírito vela.
- Ésquilo


A noite quando durmo, esclarecendo
As trevas do meu sono,
Uma etérea visão vem assentar-se
Junto ao meu leito aflito!
Anjo ou mulher? não sei. - Ah! se não fosse
Um qual véu transparente,
Como que a alma pura ali se pinta
Ao través do semblante,
Eu a crera mulher... - E tentas, louco,
Recordar o passado,
Transformando o prazer, que desfrutaste,
Em lentas agonias?!
Visão, fatal visão, por que derramas
Sobre o meu rosto pálido
A luz de um longo olhar, que amor exprime
E pede compaixão?
Por que teu coração exala uns fundos,
Magoados suspiros,
Que eu não escuto, mas que vejo e sinto
Nos teus lábios morrer?
Por que esse gesto e mórbida postura
De macerado espírito,
Que vive entre aflições, que já nem sabe
Desfrutar um prazer?
Tu falas! tu que dizes? este acento,
Esta voz melindrosa,
Noutros tempos ouvi, porém mais leda;
Era um hino d’amor.
A voz, que escuto, é magoada e triste,
- Harmonia celeste,
Que à noite vem nas asas do silêncio
Umedecer as faces
Do que enxerga outra vida além das nuvens.
Esta voz não é sua;
É acorde talvez d’harpa celeste,
Caído sobre a terra!
Balbucias uns sons, que eu mal percebo,
Doridos, compassados,
Fracos, mais fracos; - lágrimas despontam
Nos teus olhos brilhantes...
Choras! tu choras!... Para mim teus braços
Por força irresistível
Estendem-se, procuram-me; procuro-te
Em delírio afanoso.
Fatídico poder entre nós ambos
Ergueu alta barreira;
Ele te enlaça e prende... mal resistes...
Cedes enfim. . . acordo!
Acordo do meu sonho tormentoso,
E choro o meu sonhar!
E fecho os olhos, e de novo intento
O sonho reatar.
Embalde! porque a vida me tem preso;
E eu sou escravo seu!
Acordado ou dormindo, é triste a vida
Dês que o amor se perdeu.
Há contudo prazer em nos lembrarmos
Da passada ventura,
Como o que educa flores vicejantes
Em triste sepultura.

Epicédio

Passa la bella donna e par che dorma.
- Tasso


Seu rosto pálido e belo
Já não tem vida nem cor!
Sobre ele a morte descansa,
Envolta em baço palor.
Cerraram-se olhos tão puros,
Que tinham tanto fulgor;
Coração que tanto amava
Já hoje não sente amor;
Que o anjo belo da morte
A par desse anjo baixou!
Trocaram brandas palavras,
Que Deus somente escutou.
Ventura, prazer, ledice
Duma outra vida contou;
E o anjo puro da terra
Prazer da terra enjeitou.
Depois co’as asas candentes
O formoso anjo do céu
Roçou-lhe a face mimosa,
Cobriu-lhe o rosto co’um véu.
Depois o corpo engraçado
Deixou à terra sem vida,
De tênue palor coberto,
- Verniz de estátua esquecida.
E bela assim, como um lírio
Murcho da sesta ao ardor,
Teve a inocência dos anjos,
Tendo o viver duma flor.
Foi breve! - mas a desgraça
A testa não lhe enrugou,
E aos pés do Deus que a crIara
Alma inda virgem levou.
Sai da larva a borboleta,
Sai da rocha o diamante,
De um cadáver mudo e frio
Sai uma alma radiante.
Não choremos essa morte,
Não choremos casos tais;
Quando a terra perde um justo,
Conta um anjo o céu de mais.

Sofrimento

Meu Deus, Senhor meu Deus, o que há no mundo
Que não seja sofrer?
O homem nasce, e vive um só instante,
E sofre até morrer!
A flor ao menos, nesse breve espaço
Do seu doce viver,
Encanta os ares com celeste aroma,
Querida até morrer.
É breve o romper d’alva, mas ao menos
Traz consigo prazer;
E o homem nasce e vive um só instante:
E sofre até morrer!
Meu peito de gemer já está cansado,
Meus olhos de chorar;
E eu sofro ainda, e já não posso alivio
Sequer no pranto achar!
Já farto de viver, em meia vida,
Quebrado pela dor,
Meus anos hei passado, uns após outros,
Sem paz e sem amor.
O amor que eu tanto amava do imo peito,
Que nunca pude achar,
Que embalde procurei, na flor, na planta,
No prado, e terra, e mar!
E agora o que sou eu? - Pálido espectro,
Que da campa fugiu;
Flor ceifada em botão; imagem triste
De um ente que existiu...
Não escutes, meu Deus, esta blasfêmia;
Perdão, Senhor, perdão!
Minha alma sinto ainda, - sinto, escuto
Bater-me o coração.
Quando roja meu corpo sobre a terra,
Quando me aflige a dor,
Minha alma aos céus se eleva, como o incenso,
Como o aroma da flor.
E eu bendigo o teu nome eterno e santo,
Bendigo a minha dor,
Que vai além da terra aos céus infindos
Prender-me ao criador.
Bendigo o nome teu, que uma outra vida
Me fez descortinar,
Uma outra vida, onde não há só trevas,
E nem há só penar.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 12


Folclore Brasileiro (Mitos Indígenas) Igaranhã - a canoa encantada

Um índio da tribo Kamaiúra iniciou a construção de uma canoa com a casca do jatobá. Ao terminá-la retomou para junto de sua mulher, que há pouco dera à luz, permanecendo por alguns dias.

Algum tempo depois, voltando à mata onde havia deixado a canoa, não mais a encontrou. Entristeceu-se e, pensativo, tentou imaginar o que ocorrera. Talvez a tivessem roubado, ou algum animal a tivesse destruído. Como poderia pescar agora? Absorto, despertou com um ruído.

Foi grande o seu espanto ao perceber que em sua direção movimentava-se lentamente, por si mesma, uma canoa, a mesma que ele construíra, agora com vida e olhos na proa.

Talvez houvesse se transformado em um animal, pensou. Dar-lhe-ia então um nome: Igaranhã - o crocodilo. Entrou na canoa, ordenando-lhe que seguisse em direção ao lago.

Assim que Igaranhã tocou a água, cobriu-se com muitos peixes, dos mais variados tipos, cores e tamanhos, que saltavam sem cessar da água para dentro da embarcação.

Os primeiros, a própria canoa devorou, ficando no entanto a maior parte para o índio.

Á sua mulher, maravilhada, falou apenas de um lugar ideal para a pesca, que houvera encontrado.

Dias depois, retomando ao mesmo local, nada encontrou sob a frondosa árvore. Como por encanto a canoa surgiu novamente da mata, dirigindo-se ao lago e o fenômeno repetiu-se.

O índio ambicioso recolheu rapidamente os peixes, sem deixar à Igaranhã sua parcela do alimento. Esta então, muito contrariada, acabou por devorar seu próprio dono.

Fonte:
Jayhr Gael (Mitos indígenas). www.caminhodewicca.com.br