domingo, 8 de julho de 2018

Guimarães Passos (Poemas Avulsos) II


DEPOIS...

Tão profundamente triste 
fiquei depois daquele beijo 
que já não era desejo e sim hábito 
de todos os nossos encontros 

era verão e eu não sabia 
que certas coisas não tem fim 

passei noites em claro procurando entender 
o que enfim não se explica 
chamam vida e é assim

MEA CULPA

Não é tua alma o lírio imaculado,
Que à luz de uns olhos puros se levanta,
Pois não fulgura em teu olhar a santa
Chama, que brilha isenta do pecado.

Se o teu seio palpita apaixonado,
Se a voz do amor nos teus suspiros canta,
Não me ilude o queixume, que à garganta,
Quebras, para me ver mais desgraçado!

Eu bem sei quem tu és... Mas, que loucura
Arrasta-me a teus pés como um cativo!
Mostra-me o inferno a aberta sepultura:

E abraçado contigo, ó pecadora!
Eu desço-o tão feliz como se fora
Um justo ao claro céu subindo vivo.

NO EXÍLIO

Longe da terra pátria!... Os longos dias
Do exílio amargam, mas não há no mundo
Desgraçado tão grande que, no fundo,
Não encontre um prazer nas agonias.

Que o céu alheio aclara-me jucundo,
Se os teus olhos de mim já não desvias,
Se o calor do teu peito a cinzas frias
A saudade reduz em que me afundo!

Ouvir-te o coração apaixonado
Chegar-te aos lábios num prazer tamanho,
Compensa a dor ao mais desesperado.

Bendita a sorte que me uniu contigo:
Mostrou-me a Pátria um coração estranho,
Deste-me, estranha, um coração amigo!

VOLTAS

Mui formosa não vos acho,
Mui feira também não sois;
Dos dons estais entre os dois,
Nem por cima, nem por baixo.
Tendes, sim, muito despacho,
Mas não que as outras demais,
Porque sois todas iguais,

Dizer-vos que, só, mentis,
Seria injustiça tanta
Que, só mentira a garganta,
Mais que as mentiras que ouvis.
Também não sois mais feliz,
Nem mais infeliz que as mais,
Porque sois todas iguais,

Promessas não vos falecem,
Não vos falecem negaças,
Dão-vos perdão vossas graças,
Vossos pecados as crescem.
Se penas vos acontecem,
Mais que as outras não penais,
Porque sois todas iguais.

De amar-vos não me arrependo,
Bem que nunca amado houvera;
Nem vos quero mais sincera,
Tão fementida vos tendo;
Mal éreis, assim não sendo,
Pois não éreis como as mais,
Já que sois todas iguais.

VILANCETE

Sois como as demais mulheres,
Nem menos sois, nem sois mais,
Porque sois todas iguais.

XXIII

Não, nunca saibas a verdade inteira
De minha vida triste e aventurosa,
Porque mais vale uma ilusão fagueira
Que uma realidade dolorosa.

Pensa de mim aquilo que não queira
A mais negra alma sobre si; ditosa
Ou indiferente, ou de qualquer maneira,
No meu estado desgraçado goza.

Faze de mim um péssimo conceito,
Esquece que eu existo e que meu peito
Pelo teu peito pulsa apaixonado.

Antes me odeies, com dó profundo
Digas um'hora: porque veio ao mundo
Quem havia de ser tão desgraçado!

XLI

Sonho que vou contigo ao reino augusto,
À encantada região da eterna glória,
E ante as ardentes vibrações da história,
Trêmulo, os passos triunfantes susto.

Não sei que clarins de ouro de vitória
Estalam no ar, enchendo-nos de susto,
E eu próprio vejo sobre um sol meu busto,
Enquanto os deuses louvam-me a memória.

O teu amor me conduziu a tanto;
Chego à maior de todas as alturas,
Vencendo os mais intérminos caminhos.

Desperto - e os olhos enchem-se de pranto:
Vejo, em vez de venturas, desventuras,
Em vez de louros, vejo só espinhos.

Malba Tahan (O Sinal de Ramanita)

Há poucos anos, quando visitei Calcutá, tomei para guia, a fim de melhor conhecer as curiosidades religiosas da índia, um brâmane chamado Marichipa, que me fora indicado pelo gerente do Hotel Dakka.

Uma tarde, quando percorríamos o templo de Parvati, passou junto de nós, acompanhada de diversos turistas ingleses, uma mulher loura, elegantemente trajada, e que despertava a atenção de todos pelas linhas incomparáveis de sua formosura.

— Quem será essa encantadora estrangeira? — perguntei ao guia. — Dificilmente poderíamos encontrar, sob o céu da Ásia, criatura mais sedutora!

— É uma das hóspedes do Grande Hotel — explicou-me Marichipa. — Disseram-me que veio da América e que pretende chegar, numa excursão de automóvel, até Alahabad. É rica, muito destemida e percorre o mundo à procura de ídolos exóticos para uma coleção.

Ao meu espírito de muçulmano causou não pequena admiração aquela criatura maravilhosa que abandonava o conforto da civilização para vir caçar manipansos entre os adoradores do Ganges. Parecia-me impossível que se me deparasse outra vez na vida tão original colecionadora de ídolos.

— Por Allah! — exclamei, com entusiasmo. — Essa americana do Grande Hotel é a verdadeira perfeição.

Marichipa sorriu, exibindo os seus dentes amarelos.

— Verdadeira perfeição... — repetiu ele. — Só mesmo um cego ou um apaixonado deixará de notar que aquela mulher traz no rosto o sinal de Ramanita!

Fitei o guia hindu sem disfarçar o grande interesse que as suas palavras haviam despertado em mim. Já não era a primeira vez que me acontecia ouvir referir-se alguém ao sinal de Ramanita. Declarei-lhe, pois, que não hesitaria em gastar meia libra para ouvir uma explicação minuciosa a tal respeito.

O ouro torna eloquente o indivíduo mais tímido e acanhado. A meia libra prometida operou o milagre. O guia contou-me, numa linguagem obscura, cheia de realismos grosseiros uma interessante lenda que poderia ser intitulada “O Sinal de Ramanita”.

Vou tentar traduzi-la.

No país de Navayanta vivia uma jovem chamada Ramanita, que possuía as sete virtudes, os quinze atributos e era, além do mais, de boa casta e de origem nobre.

Os brâmanes disseram-lhe um dia: — Queres agradar ao incomparável Indra (1), deus do ar? Vem servir no templo. Poderás acompanhar pelas ruas as vacas sagradas e receber, nos dias de festas, as dádivas dos fiéis.

A formosa Ramanita não atendeu ao convite dos sacerdotes. Para servir no templo de Indra seria ela obrigada a renunciar ao amor do jovem  Deybek,  príncipe  do  Adjimir. E a menina, embora venerasse Shiva e temesse Indra, não se sentia com coragem para tão grande sacrifício. Na Índia é assim: a mulher apaixonada põe o seu amor acima dos próprios deuses!

— Verdadeira perfeição!... — repetia ele. — Só mesmo um cego ou um apaixonado deixará de notar que aquela mulher no rosto o sinal de Ramanita!

E os deuses hindus são poderosos; alguns há que possuem quatro e até oito braços!

Vivem no mundo — assim afirmam os adeptos de Indra — certos seres gigantescos e perversos chamados Rakshassas (2). E aconteceu que o pai de Ramanita caiu gravemente enfermo, ferido pela maldade sem limites de um desses demônios.

Os brâmanes procuraram novamente a jovem:

— Ó Ramanita! O teu velho pai sofre a influência dos espíritos maus! Queres salvá-lo? Já vimos um Deityas rondando tua casa com o rosto coberto com véu preto!

— Que devo fazer? — perguntou Ramanita.

— Bem sei que os Deityas são mensageiros da morte!

— Vem servir em nosso templo durante um ano — aconselharam os brâmanes. — Intercederemos junto a Indra por teu pai e, é certo, ele ficará, em consequência de nossas preces, são e salvo. Pelas quatro faces de Brama, ó Ramanita, salva teu pai!

As palavras dos sacerdotes calaram fundo no coração da jovem. O apelo feito — pelas faces do Grande Deus — não foi em vão e Ramanita resolveu servir ao templo durante um ano e assim o fazia somente para livrar seu pai das garras impiedosas dos Rakshassas.

Como esquecer, porém, durante tão largo período, aquele que era o seu único amor?

E uma noite, quando Ramanita, já presa no templo, fiel à sua palavra, lamentava o seu triste destino, viu surgir na sua frente a figura deslumbrante de Laidasa, que é uma das muitas ninfas, — denominadas apsaras — que habitam o céu de Indra.

— Por que choras. Ramanita? — perguntou, com voz carinhosa, Laidasa. — Aqui estou, por ordem de Indra, para auxiliar-te. Dize, pois, o que desejas. Tudo farei para servir-te.

— Tenho saudades de meu noivo — soluçou Ramanita. — E, além dessa saudade vive dentro de mim um ciúme torturante. Assalta-me o receio de que as mulheres, durante a minha ausência roubem o coração daquele que será meu esposo.

 — Que queres que eu faça? — perguntou a ninfa.

    — Bondosa apsara — acudiu a jovem apaixonada. — sei que és dotada, como todos os gênios que pertencem ao paraíso de Indra, de um poder extraordinário. Só poderei permanecer tranquila neste templo se for atendida no pedido que te vou fazer. Não quero que apareça no mundo, enquanto eu estiver afastada do meu noivo, mulher alguma que seja dotada de uma beleza impecável. Deixarás, bem visível, em todas as mulheres, por mais formosas que sejam, um traço qualquer de imperfeição.

— Assim farei, minha filha — respondeu a enviada celeste. — Conserva em paz o teu coração, pois enquanto estiveres presa ao serviço de Indra, não aparecerá no mundo mulher alguma que possa dizer como Ramanita: “A minha formosura é impecável!”

E tendo pronunciado tais palavras, Laidasa desapareceu.

Alguns meses depois soube Ramanita que o príncipe Deybek havia perecido nas garras de um tigre, durante uma caçada.

A infeliz serva do templo não resistiu a esse golpe da fatalidade.

E quando ela morreu, o seu corpo adorável, conduzido pelos sacerdotes, foi atirado ao Ganges.

Desaparecia com Ramanita, nas ondas do rio sagrado, a última mulher perfeita do mundo.

E sabe por quê?

Porque o deus Indra, fiel à sua promessa, continuou a imprimir em todas as mulheres, por mais formosas que pretendam ser, um traço qualquer de imperfeição. Uma tem os olhos excessivamente pequenos; outras apresentam as faces descoradas; uma terceira não sabe disfarçar o nariz defeituoso. Esta tem o queixo saliente; envergonha-se aquela da pele toda manchada. Queixa-se uma da boca demasiadamente grande; lamenta a outra a pequenez ridícula do colo. Se algumas são baixas demais, outras há exageradamente altas. Vesga é uma; parece-nos gagá a outra. Uma é formosa e não tem caráter: outra e linda, mas estúpida e pouco inteligente. Ali encontramos uma que é deslumbrante, mas tem o grave defeito de ser fria e inexpressiva: acolá surge-nos outra que é interessante, cheia de encantos, mas é pérfida e desonesta. Todas têm, enfim, no corpo, ou resvalando para o espírito, o infalível sinal de Ramanita.

Quando o guia terminava a sua curiosa narrativa, passou novamente pelo lugar em que nos achávamos a sedutora americana do Grande Hotel — a original aventureira que caçava ídolos pela índia.

Olhei atentamente para o rosto da linda excursionista e reparei que ela tinha, realmente, sobre a face direita, uma pequena mancha escura que descendo do nariz vinha formar uma curva sinuosa junto ao lábio.

Era, com certeza, o sinal de Ramanita, — o sinal terrível que toma mil formas, um milhão de aspectos, mas que, felizmente para as mulheres, os homens apaixonados nunca chegarão a ver.
_____________________
NOTAS
1- Indra — Um dos deuses da mitologia hindu. Vide nota 3 incluída no conto “Minha vida querida”.

2 - Rakshassas — São gênios que só se preocupam com o mal que podem fazer aos mortais. São tidos, por isso, como verdadeiros demônios.

Fonte: 
Malba Tahan. Minha vida querida.

Augusto Gil (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol.3) IV


NOIVA
A João da Silva

«Anda a dor dissimulada
Mas ela dará seu fruto.»
Crisfal

«Vai ser pedida. Casa qualquer dia.»
     (Trecho duma carta)

Tive noticias hoje a teu respeito:
«Vai ser pedida. Casa qualquer dia».
E o coração tranquilo no meu peito
– Continuou a bater como batia...

Surpreso duma tal serenidade,
Todo eu, intimamente, me sondava:
Pois nem ciúme? Nem sequer saudade?!
– E nem ciúmes, nem saudade achava...

Saudades, não; que o teu amor antigo
Guardam-no as cinzas (neste coração)
Como em Pompeia aqueles grãos de trigo
Que após centenas d'annos deram pão...

Saudades! Mas de quê?! Pois não sei eu
A lei antiga como o próprio mundo
De que o prazer mal chega, já morreu,
E só a dor nas almas cava fundo?

Causei-te longas horas d'amargura,
Não consegues voltar a ser feliz;
A chaga que te abri não terá cura,
E se curar – lá fica a cicatriz.

Á luz dum juramento que traíste
Tu hás de ver-me toda a vida pois.
Ergueste-o a Deus num dia amargo e triste
E Deus casou-nos esse dia, aos dois...

Ciúmes também não, por te venderes.
Desgraçadinha! Antes te houvesses dado;
Não descerias tanto entre as mulheres,
Seria mais humano o teu pecado.

Porém, embora a tua falta aponte,
P'ra mim és a que foste (ou que eu supus);
O sol desaparece no horizonte
– E a gente vê-o ainda a dar-nos luz...

Pode a desgraça erguer em frente a mim
Altas montanhas d'elevados cumes.
O sol do amor doura-las-a, e assim,
Vendo-o tão alto, não terei ciúmes.

Ciúmes! - Ele - é que há de te-los, quando,
Em claras noites de luar silente,
Ouvir vibrar alguma voz, cantando
Os versos que te fiz devotamente.

Versos para te ungirem os ouvidos
E os lábios d'anêmica e de santa,
Tão pobres, tão ingênuos, tão sentidos,
Que o povo humilde os acolheu e os canta.

Então, se te olhar bem, logo adivinha...
Logo sombriamente se convence
De que a tua alma se fundiu na minha
– E apenas o teu corpo lhe pertence.

DE PROFUNDIS CLAMAVI AD TE DOMINE
À Léo

Ao charco mais escuso e mais imundo
Chega uma hora no correr do dia
Em que um raio de sol, claro e jocundo,
O visita, o alegra, o alumia;

Pois eu, nesta desgraça em que me afundo,
Nesta contínua e intérmina agonia,
Nem tenho uma hora só dessa alegria
Que chega ás coisas ínfimas do mundo!...

Deus meu, acaso a roda do destino
A movimentam vossas mãos leais
Num aceno impulsivo e repentino,

Sem que na cega turbulência a domem?!
Senhor! Não é um seixo o que esmagais;
Olhai que é – “o coração dum homem”!...

QUANDO AS ANDORINHAS PARTIAM...
A Cassianno Neves

Boca talhada em milagrosas linhas,
A luz aumenta com o seu falar.

Esta manhã um bando de andorinhas
Ia-se embora, atravessava o mar.

Chegou-lhes ás alturas, pela aragem,
Um adeus suave que ela lhes dissera,

– E suspenderam todas a viagem,
Julgando que voltara a primavera...

A PARÁBOLA DO PÚCARO D'ÁGUA

Acreditaram os românticos que a arte residia principalmente na disformidade. Se através das próprias dores descessem às profundas realidades da vida, teriam observado que... o viver do povo encerra em si uma poesia sagrada. Senti-la e mostra-la não é tarefa de maquinista; para tal, não é necessário juntar-lhe efeitos teatrais.

... O que é preciso é ter olhos para ver na sombra, na pequenez e na humildade, é um coração que auxilie a vista nestes recessos do lar, nestas sombras de Rembrandt.
(MICHELET. “O Povo”)

A Manuel Penteado

Buscava em algum assunto adrede
A versos que inculcassem novidade,
Quando uma intensa e irreprimível sede
Me fez voltar do sonho á realidade.

E pedi água (já se vê) que veio
Consoante é d'uso cá por entre o povo
Num púcaro de barro ingênuo e feio,
Servindo-lhe de salva um prato covo.

Bebi o liquido dum trago só;
E dito o «Deus te pague» habitual,
Subi de novo a escada de Jacó
No heroico intuito de escalar o ideal...

Mas o idealismo é como a névoa ondeante
Que os rios erguem pela madrugada;
O olhar distingue-a, quando está distante,
E da que nos rodeia – não vê nada...

De que serve afinal tentar a gente
Reter, dentro das mãos, fumo de palha,
Se aqui, aos nossos olhos, no existente,
Há tanta coisa que os atraia e valha?...

A água vinda neste vaso frágil
Que um ignorado artista modelou
Num gesto – já mecanizado e ágil -
Á força d'imitar o que encontrou,

É um assunto cheio de beleza,
Cheio de claro e alto ensinamento.
Assim na branda fala portuguesa
O desse eu, como o tenho em pensamento!...

A água é como a esp'rança
Que a tudo se sujeita...
Onde quer que se deita
Lá fica humildemente acomodada,
Seja a concha da mão duma criança,
Ou a taça lendária da balada...

Tanto sacia
Num vaso tirreno dos da antiga Roma
(Que um só valia
O rútilo ouro d'avaro banqueiro)
Como a que se toma
Na argila porosa,
Alegre trabalho dum simples oleiro...

E é
Até
Bem mais saborosa
No barro suarento
Deixado à janela,
Que num opulento
Copo lavrado
Que seja pertença de rica baixela
E sonho gentil, cinzel fantasista
Dalgum grande artista
Dos raros d'agora, ou do tempo afastado...

Bichos humanos, feras em pé,
Sede bondosos como a água o é...

No luzente alcantil da magnitude,
Ou no áspero declive da pobreza,
Nunca cerreis o espirito á virtude,
Nunca fecheis os olhos á beleza.
Que todo o coração,
Desde o sábio de gênio ao cavador,
Seja o Cálix de paz e de perdão
Contendo a água límpida e lustral
Dum irmanado e perpetuo amor...

Água que limpe a mácula do mal
E mitigue a miséria, a ânsia, a mágoa
Desta cruenta e impiedosa guerra
Em que tantas criaturas se consomem.

      Nem só da água
      Que vem da terra
      Tem sede o homem...

Nasce uma fonte
Rumorejante
Na encosta dum monte;

E mal que do seio
Da terra brotou,
Logo o seu veio
Transparente
E diligente
Buscou e achou
Mais baixo lugar...

E sempre descendo,
E sempre a cantar,
Vai andando,
Galgando,
Vencendo,
(Ou tenta vencer...)
Folha, raiz, areia, o que tolher
A sua descida...

Ao brotar da dura frágua
– É uma lágrima d'água...

Mas esse humilde fiozinho,
Que um destino bom impele,
Encontra pelo caminho
Um outro que é como ele...

Reúnem-se, fundem-se os dois,
Prosseguem de companhia,
E fica dupla depois
A força que os leva e guia...

Junta-se aos dois um terceiro,
Outros confluindo vão,
E o regato é já ribeiro
E o ribeiro é rio então...

E nada agora o domina
Ao fiozinho da fonte.
Entre colina e colina,
Ou entre um monte e outro monte,

Caminha sem descansar,
Circula através do mundo
– Até á beira do mar
Onipotente e profundo...

Da altura em que estejais (ou vos pareça;
A vaidade é uma amante enganadora)
Que o mais alto de vós se humilhe e desça
Como se humilde e pobre sempre fora...

E que os demais desçam também de todo
O orgulho e mando sobre escravas gentes
Até ao vale, de lágrimas e lodo
Onde a miséria brada e range os dentes.

E como as águas que se vão juntando
E juntas, e cantando, vão descendo,
Reuni o choro derramado, quando
Atravessardes esse vale horrendo.

E o atoleiro que se havia feito
No val, dantesco, pútrido, sombrio,
Mudar-se-ha no irrigante leito
Dum fertilizador e claro rio;

E o rio, andando, andando, há de alargar
– Com bilhões de lágrimas vertidas -
Num infinito e luminoso mar
De novas e amplas e cantantes vidas!

Fonte:
Augusto Gil. Luar de Janeiro. 
Lisboa/Portugal: A Lanterna, 1909

sábado, 7 de julho de 2018

Poemas Premiados sobre a Natureza

Trova premiada no XIV Concurso de Trovas de Pindamonhangaba/ 2004


SEI DE UMA ILHA…

Eu sei,
que não me isolei
na ilha dos meus sonhos.

Tropecei,
na ternura de um bailado
entrelaçado de silêncios
e ornado de jardins suspensos.

Fiquei,
emocionado ao mergulhar
na seiva dos versos florais,
que embalam as ondas do mar
cantando a primavera dos corais.

Escalei,
ao íngreme da montanha
na ânsia de um novo olhar,
de esvoaçar no rasto do vento
e me deixar levar, pela claridade adentro.

E voei
no grito alvoraçado
de um bando de aves marinhas,
por um céu de fogo pincelado
e matizado de esperanças minhas.

Inventei,
cascatas escorrendo
pelas rochas escarpadas,
nas águas onde me vou lendo
pela pureza que me lava a alma,
na aprazível frescura das palavras…

Eu sei,
que sobre isso nada direi
até que algum poente me doa,
numa tábua do tempo, carcomida.

Sou ainda muito novo para estar só
e eu gosto do lado mais romântico da vida…

Pensei,
ir mais para sul,
em latitudes de azul…

e por momentos,
encontro meus pensamentos
espalhados por um extenso areal,
a céu aberto estendidos
por entre todos os sentidos
e banhados por um mar emocional…

e essa ilha
essa força selvagem,
que tenho em mim e em mim fervilha,
é o meu refúgio, o meu porto de ancoragem.

(Medalha de Bronze no V Concurso de Literatura da Natureza. Categoria Poesia)


ÁRVORE DA VIDA

Um toque de frescura
Reflete a gota de orvalho
Do meu querido carvalho
Unindo beleza e ternura.

No aconchego de tuas folhas
Junto ao doce perfume das flores
Que prima lindas cores
Os ventos dançando maravilhas.

Dentro de si
Uma luz que não se alcança
Uma sombra que traz a lembrança
Dos frutos que já vivi.

Da minha estimada infância
A árvore da vida
Minha amiga querida
Guarda os segredos da esperança.

(Medalha de Prata no V Concurso de Literatura da Natureza. Categoria Poesia)


O SORRISO DA NATUREZA

Olha o azul do infinito
E o azul-turquesa dos mares!
Olha o verde da campina
E o colorido bonito
Dos jardins e dos pomares!

Olha a fonte borbulhante
D'água pura e cristalina
A correr de monte a monte!
Olha o encanto da floresta
Com seus brados e rumores!

Olha as aves multicores
Nos seus voos e gorjeios
Numa alegria de festa!
Olha a lua, a branca lua
A tingir de prata os seios
Da moça a banhar-se nua!

Olha a beleza e a fragrância
Do lírio da cor da neve
Tremulando à brisa leve
E a recender à distância!

Olha o frescor e a pureza
Dos campos e pinheirais
E neles a singular reza
Que é o pipilar dos pardais!

E o sol rubro no poente
Caindo no azul do mar
Muito, muito lentamente.
Visão de encanto e magia
Não é noite, não é dia
É cena que faz sonhar!

Tela imensa de riqueza
Divina tela florida
Em que a alegre natureza
Tem mais graça, tem mais vida.

(Medalha de Prata no V Concurso de Literatura da Natureza. Categoria Poesia)


NO RANCHO

Aqui, sim, a vida é bela
Na sombra deste ranchinho,
Sentado à beira do mato,
Meu mais doce e casto ninho,
Como se, na vida, eu fosse
Um liberto passarinho.

Contemplo campos e serras
Azuladas, muito além...
No panorama do sul
Vejo a cidade também,
Mas ali, como nos campos,
Belezas tantas não tem.

Lá existem belas praças
Que os namorados desejam,
Mas as flores mais viçosas
Que os beija-flores beijam
Não têm o mesmo perfume
Das flores que aqui vicejam.

Há festas e diversões,
Parece um mar de orgia,
Porém ali na cidade,
Palco de tanta alegria
Não tem a sombra do rancho
Onde eu escrevo poesia.

 Lá não tem a melodia
Da passarada que canta,
Nem cheiro virgem da terra
Que a chuva do chão levanta,
Por isso que do matuto
A felicidade é tanta.

O povo ali da cidade
Se do caboclo faz troça,
É porque aquela gente
Nunca veio aqui na roça
Para também ser feliz
Na sombra duma palhoça.

(Medalha de Ouro no IV Concurso de Literatura da Natureza. Categoria Poesia)


ARACURI

Teu canto é guerra,
Defende a terra,
Que é ventre e é seio,
Que é berço e é pão.

É o canto da fauna
Em serestas vigias,
Para a ecologia
A pedir proteção.

Deixai que nas matas,
Cantem os pássaros,
E os peixes nas águas
Possam viver.

Deixem nos campos
Andarem as emas,
E entre os serrados
A vida nascer.

Que as gralhas azuis
E os patos –arminhos,
Teçam seus ninhos
Sem nada temer.

Que as aves cativas,
cortem os ares,
Sobre os jaguares
Andantes da paz.

Que o canto de todos
No meio ambiente,
Impeçam na terra
A vida morrer.

Que os passarinhos
Cantem a beleza
Da natureza
Em doação.

(Medalha de Ouro no IV Concurso de Literatura da Natureza. Categoria Poesia)


O VENTO E A LUA

Lá fora o vento assovia
Uma canção ao luar.
À lua reverencia.
Ela não quer escutar.

Olhando através do frio
Pela janela se vê
Vê-se a lua num navio.
Delírio, só pode ser.

Em meio às nuvens navega
Em águas muito serenas.
Pobre vento: ora sossega
Ora expõe as suas penas.

Mas a lua, indiferente,
Continua a navegar.
O barco vai sempre em frente
Até o abismo encontrar.

Escura nuvem o apaga
Nenhum olho o pode ver.
Do vento o assovio vaga
Vai saudar o alvorecer.

Nós também vemos fugir
Em um navio fantasma,
Sem sequer se despedir,
O amor que nos cegava.

Somos ventos que assoviam
Para a pessoa que amamos
Que nem sempre desconfia
Do quanto a idealizamos.

(Medalha de Ouro no IV Concurso de Literatura da Natureza. Categoria Poesia)


O TAPETE DA VIDA

Que a morte venha ternamente
e a vida se esvaia lentamente,
para que eu possa, em placidez,
assistir aos meus últimos momentos.

Que sejam como os das flores
e das folhas do outono,
que ao soçobrarem,
quando dos galhos se desgarrem,
flutuem bailando no ar,
até pousarem num tapete,
casual e úmido,
de flores murchas,
 folhas mortas
e húmus.

(Medalha de Ouro no IV Concurso de Literatura da Natureza. Categoria Poesia)

Fonte: