domingo, 26 de janeiro de 2020

Malba Tahan (Mil Histórias sem Fim) Narrativa 13


I
Em Laristã, na Pérsia, reinava, há muitos séculos, um monarca famoso e rico chamado Senedin. Esse rei (Alá se compadeça dele!) era dotado de uma memória tão perfeita que repetia, sem discrepância da menor palavra, o pensamento, em prosa ou verso, que ouvisse uma só vez. Essa prodigiosa faculdade do soberano os súditos de Laristã ignoravam completamente.

O rei Senedin tinha um escravo, chamado Malik, igualmente possuidor de invulgar talento. Esse escravo era capaz de repetir, sem hesitar, a frase, o verso ou o pensamento que ouvisse duas vezes.

Além desse escravo, o poderoso senhor do Laristã tinha também uma escrava não menos inteligente. Leila - assim se chamava ela - podia repetir, facilmente, a página em prosa ou em verso que tivesse ouvido três vezes.

Quis a vontade de Alá (seja o Seu nome exaltado!) que o rei Senedin tivesse uma filha de peregrina formosura. Segundo os poetas e escritores do tempo, a princesa do Laristã era mais sedutora do que a quarta lua que brilha no mês do Ramadã (1).

Embora vivesse fechada no harém do palácio real, entre escravos que a vigiavam, a fama da encantadora Roxana se espalhou pelo país, atravessou os desertos, transpôs as fronteiras e foi ter aos reinos vizinhos.

Vários príncipes e xeques poderosos vieram a Laristã pedir a formosa princesa em casamento.

O rei Senedin era pai extremoso; tinha pela filha enternecido afeto, e não queria, portanto, separar-se dela, o que fatalmente aconteceria se a jovem e encantadora criatura casasse com um príncipe estrangeiro da Arábia, da Síria ou da China.

Negar, porém, sistematicamente a todos os numerosos pretendentes era um proceder que não convinha à boa política diplomática do Laristã. Na verdade, alguns apaixonados de Roxana eram abastados e poderosos, e faziam-se acompanhar de cortejos tão pomposos e tão bem armados, que menos pareciam caravanas do que exércitos!

À vista de tão respeitáveis e valorosos pretendentes - que uma recusa formal poderia ferir ou melindrar - declarou o rei Senedin que só daria a sua filha em casamento àquele que fosse capaz de recitar, diante dele, uma poesia inédita, desconhecida e original!

Curiosíssimo foi esse certame que agitou durante muito tempo a população inteira do velho país do Islã.

Apresentou-se, em primeiro lugar, o famoso Al-Tamini Ben-Mansul, príncipe de Tlemcen, moço de grande talento, que podia perfilar entre os mais eruditos de seu tempo.

O príncipe Al-Tamini recitou, diante do rei, uma bela e inspirada poesia intitulada “A Estrela”, que havia feito em louvor da princesa:

Vi uma estrela tão alta,
 Vi uma estrela tão fria!
 Vi uma estrela luzindo
 Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão fria!
 Era uma estrela tão alta.
 Era uma estrela sozinha
 Luzindo no fim do dia.

Por que de sua distância
 Para a minha companhia
 Não baixava aquela estrela?
 Por que tão alto luzia?

Eu ouvi-a na sombra funda
 Responder-me que assim fazia
 Para dar uma esperança
 Mais triste ao fim do meu dia. (2)


Ouviu o rei, com grande atenção, a poesia inteira. Mal, porém, o príncipe Al-Tamini havia recitado o último verso, o inteligente monarca observou num tom em que a naturalidade aparecia sob a máscara da ironia:

- É realmente bela e benfeita essa poesia, ó príncipe! Infelizmente, porém, nada tem de original! Conheço-a, já há muito tempo e sou até capaz de repeti-la de cor!

E o rei repetiu pausadamente, sem hesitar, a poesia inteira, sem enganar-se numa sílaba.

O príncipe, que não podia disfarçar a sua imensa surpresa, observou respeitoso:

- Podeis crer, Vossa Majestade, que há forçosamente, nesse caso, um engano qualquer. Tenho absoluta certeza de que essa poesia é inédita e original. Escrevi-a faz dois ou três dias apenas! Juro que digo a verdade, pela memória de Mafoma, o santo profeta de Deus!

- A verdade é amarga! - exclamou o rei. - Há coincidências que perturbam e desorientam os mais prevenidos! Muitas vezes uma poesia que julgamos nova e completamente original já foi escrita, cem anos antes de Mafoma, por Tarafa ou Antar! Quer ter agora mesmo, ó príncipe!, uma prova do que afirmo? Vou chamar um escravo do palácio que talvez já conheça, também, essa poesia.

- Malik!

O escravo que tudo ouvira, escondido cautelosamente atrás de um reposteiro, surgiu, inclinou-se respeitosamente diante do rei, beijando a terra entre as mãos.

- Dize-me, ó Malik!, se não conheces, por acaso, uma ode formosa e popular, cheia de imagens, na qual um poeta beduíno canta uma estrela que luzia no fim do dia?

- Conheço muito bem essa belíssima ode, ó rei dos reis!

O escravo, que já tinha ouvido a poesia duas vezes, repetiu-lhe todos os versos, com absoluta segurança:

Vi uma estrela tão alta.
 Vi uma estrela tão fria!
 Vi uma estrela luzindo
 Na minha vida vazia.
 ........................................
 ........................................
 ........................................

Em seguida o rei mandou que viesse a sua presença a escrava Leila, que se conservara também escondida em discreto recanto do salão.

A esperta rapariga, que três vezes ouvira a poesia do apaixonado príncipe, sendo interrogada, repetiu por seu turno todos os versos do príncipe, do princípio ao fim, com fidelidade impecável:

Vi uma estrela tão alta,
 Vi uma estrela tão fria!
 Vi uma estrela luzindo
 Na minha vida vazia.
 ........................................
 ........................................
 ........................................

Diante de provas tão seguras e evidentes retirou-se humilhado o rico Al-Tamini Ben-Mansul, príncipe de Tlemcen.

II

Muitos outros pretendentes - xeques, vizires, cádis e poetas - foram ter à presença do rei Senedin, mas todos, graças aos recursos e estratagemas do monarca, voltavam desiludidos e convencidos de que os versos que haviam escrito eram velhos, velhíssimos e andavam na boca de soberanos e vassalos! Eram - afirmava sempre o rei - anteriores a Mafoma! (Com Ele a oração e a glória.)

Entre os incontáveis apaixonados da formosa Roxana, havia, porém, na Pérsia um jovem e talentoso poeta chamado Ibrahim Ben-Sofian.

Não podia ele admitir que o rei Senedin conhecesse de cor todos os versos que os inúmeros pretendentes escreviam.

“Há aí algum misterioso estratagema”, pensava ele cogitando o caso.

A desconfiança sugere muitas vezes ao homem ideias e recursos imprevistos; é como a luz do sol, que empresta às nuvens colorações que elas não possuem.

Bem dizem os árabes: “Aquele que desconfia vale sete vezes mais do que qualquer outro.”

Resolvido, portanto, a desvendar o segredo, o poeta Ibrahim escreveu uma longa poesia intitulada “A lenda do Vaso Partido”, empregando, porém, as palavras mais complicadas e mais difíceis do idioma persa. Gastou nessa paciente tarefa muitos meses. Terminado o trabalho, o talentoso poeta apresentou-se à prova diante de Senedin, senhor do Laristã.

Em dia marcado, na presença de vizires e nobres, o rei Senedin recebeu o poeta Ibrahim Ben-Sofian.

O monarca tinha a convicção de que venceria o novo pretendente empregando o mesmo modo e o mesmo artifício com que soubera iludir todos os outros.

Ibrahim leu com vagar os versos tremendos e complicados que compusera com vocábulos quase desconhecidos. Não havia memória capaz de conservar por um momento sequer as palavras esdrúxulas que o poeta proferia.

O rei, ao perceber o recurso singular de que lançara mão o poeta, sentiu que sua privilegiada memória fora, afinal, vencida; não quis, entretanto, confessar-se derrotado.

- Ouvi com agrado os teus versos - declarou com visível constrangimento. - Devo dizer que não os conheço. São certamente originais. E como a minha palavra foi dada, casarás com a minha filha. Desejo, entretanto, fazer-te um pedido. Quero conhecer “A lenda do Vaso Partido”, tantas vezes citada em tua poesia.

- Escuto-vos e obedeço-vos - respondeu o poeta. - Para mim nada mais simples do que narrar essa belíssima história.

continua…
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Notas
1 Ramadã - mês da quaresma muçulmana. Durante esse mês (28 dias) o jejum é obrigatório desde as primeiras horas do dia até o cair da noite.
2 De Manuel Bandeira, Poesias Completas (pág. 167).


Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim. 1928.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 170


Rachel de Queiroz (Ai, Amazonas)


Um nordestino que subia conosco o Amazonas olhava a imensidão do rio alagando a terra plana a caminho de se perder no mar, e deu um suspiro sentido:

— Ah, se a gente pudesse tirar uma levada desta água e ir com ela até ao Rio Grande do Norte!

Não sei se pelo resto do Brasil levada tem o mesmo sentido. Para nós, quer dizer o rego d'água da irrigação. Realmente, se a gente pudesse encaminhar uma levada com um pouco do excesso daquelas águas até às nossas terras secas!

Mas só um pouco. Porque, pelo menos a nós, o efeito que nos causa a visão daquele sem-fim de águas é principalmente o medo. Espanto igualmente. porém o medo é maior que o espanto. Ali, sente-se que toda a vida é a água, mas também a água é toda a morte. Tudo vem da água do rio — o alimento, o transporte, a fartura vegetal das margens, a bebida, a fácil limpeza do corpo; e do rio vêm as doenças, a tremura e a febre, a umidade, a lama: do rio parte a rede dos furos recortando a mata, as águas paradas e malsãs dos igapós. No rio, ou à margem do rio, vivem as feras perigosas. Os homens conseguem sobreviver ali, mas sempre de sobreaviso, permanentemente sitiados por milhares de inimigos. As casas de madeira e palha, leves como gaiolas, são erguidas em jiraus de dois metros de altura, por temor das águas que sobem.

Ali não se anda a pé como é o natural do homem, senão praticamente no quintal de casa. Qualquer percurso maior é uma travessia e se faz na pequena embarcação que é um traste mais indispensável à família do que o fogão. Nos tempos de dantes, os paroaras chamavam de montarias a essas canoas domésticas, hoje não sei se ainda se chamam assim.

O povo é cristão, de longe em longe se levanta uma capela, mas se dirá que o Deus dali é o rio, o pai de tudo. Ou pelo menos será o rio o Olimpo amazônico, porque lá nas águas é que moram todas as entidades fabulosas, a cobra-grande, os botos encantados, as iaras, os caboclos d'água que pastoram as piracemas de peixe.

Mas são divindades familiares, quase todas benéficas, algumas graciosas; as divindades do terror são as da floresta, curupiras e onças que riem, e caiporas, ah, ninguém sabe quantas, sendo que o inimigo pior de todos é a floresta propriamente.

O fato é que o homem amazônico é, a bem dizer, um animal aquático. Nasce por cima d'água na sua casa de palafitas, cria-se sobre a água, come da água, vive literalmente da água, e nem sempre quando morre escapa da água, mesmo que não morra afogado. Tive um exemplo disso num daqueles estreitos em que o grande navio passa tão perto da mata que, no convés, quase se toca na folhagem com as mãos. A certa altura avistou-se um pequeno cemitério, a cavaleiro da barranca. Fora defendido por uma cerca forte e, naturalmente, cada morto ganhara a sua cruz de madeira. Mas isso, antes da enchente. Porque a enchente veio, derrubou a cerca, arrancou as cruzes, e carregou consigo os defuntos plantados mais rasos. Nem morto escapa do rio. Hoje, dizem, o lugar é mal-assombrado.

Ah, o mistério amazônico. A gente anda por lá, dias e dias, pensando que o enfrenta e na verdade mal o roça. Aprende uns nomes, navega sobre as águas largas, vê e conversa com os caboclos de fala doce e face de índio. Da floresta só se enxergam os troncos na barranca e as altas copas, além; e os partidos de palmeiras, as castanheiras de folha escura, aquela espécie de mangue que parece plantado de propósito e não sei como se chama. E os troncos navegando o rio como jangadas vivas.

E na cidade um peixe-boi cativo, uns pequenos jacarés; no mercado o estendal de peixes, alguns maiores que um homem, outros pequenos e lindos como uma mão de prata. E o céu perto e forte, vidrento, duro, que o sol do meio-dia transforma em massa de luz violenta, mas que de repente se dissolve em chuva, que cai aos jorros.

Por toda a parte, água; barrenta no rio-mar, dum sépia transparente no Tapajós, dum preto de vidro esfumado no Rio Negro. E os horizontes. Fora do mar, nunca vi tanto horizonte. Decerto para compensar da floresta, onde horizonte nenhum existe, só a abóbada vegetal sufocando os viventes.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Manuel Du Bocage (Sonetos) IV


Os suaves eflúvios, que respira
A flor de Vênus, a melhor das flores,
Exalas de teus lábios tentadores,
Oh doce, oh bela, oh desejada Elmira;

A que nasceu das ondas, se te vira,
A seu pesar cantara os teus louvores;
Ditoso quem por ti morre de amores!
Ditoso quem por ti , meu bem, suspira!

E mil vezes ditoso o que merece
Um teu furtivo olhar, um teu sorriso,
Por quem da mãe formosa Amor se esquece!

O sacrílego ateu, sem lei, sem siso,
Contemple-te uma vez, que então conhece
Que é força haver um Deus, e um paraíso.
* * * * * * * * * * * * * *

Meu frágil coração, para que adoras
Para que adoras, se não tens ventura?
Se uns olhos, de quem ardes na luz pura,
Folgando estão das lágrimas que choras?

Os dias vês fugir, voar as horas
Sem achar neles visos de ternura;
E inda a louca esp'rança te figura
O prêmio dos martírios, que devoras!

Desfaz as trevas de um funesto engano,
Que não hás de vencer a inimizade
De um gênio contra ti sempre tirano:

A justa, a sacrossanta divindade
Não força, não violenta o peito humano,
E queres constranger-lhe a liberdade?
* * * * * * * * * * * * * *

Os garços olhos, em que o Amor brincava,
Os rubros lábios, em que o Amor se ria,
As longas tranças, de que o Amor pendia,
As lindas faces, onde Amor brilhava:

As melindrosas mãos, que Amor beijava,
Os níveos braços, onde Amor dormia,
Foram dados, Armândia, à terra fria,
Pelo fatal poder que a tudo agrava;

Seguiu-te Amor ao tácito jazigo,
Entre as irmãs cobertas de amargura;
E eu que faço (ai de mim!) como não sigo!

Que há no mundo que ver, se a formosura,
Se Amor, se as Graças, se o prazer contigo
Jazem no eterno horror da sepultura?
* * * * * * * * * * * * * *

Urselina gentil, benigna e pura,
Eis nas asas sutis de um ai cansado
A ti meu coração voa alagado
Em torrentes de sangue, e de ternura;

Põe-lhe os olhos, meu bem, vê com brandura
Seu miserável, doloroso estado,
Que nas garras da morte já cravado
A fé, que te jurava, inda te jura:

Põe-lhe os olhos, meu bem, suavemente,
Põe-lhe os mimosos dedos na ferida,
Palpa de Amor a vítima inocente:

E por milagre deles, oh querida,
Verás cerrar-se o golpe, e de repente
Em ondas de prazer tornar-lhe a vida .
* * * * * * * * * * * * * *

Em veneno letífero nadando
No roto peito o coração me arqueja;
E ante meus olhos hórridos negreja
De morais aflições espesso bando;

Por ti, Marília, ardendo, e delirando
Entre as garras aspérrimas da Inveja,
Amaldiçoo Amor, que ri, e adeja
Pelos ares, co’s Zéfiros brincando;

Recreia-se o traidor com meus clamores -
E meu cioso pranto... oh Jove, oh Nume
Que vibras os coriscos vingadores!

Abafa as ondas do tartáreo lume,
Que para os que provocam teus furores
Tens inferno pior, tens o ciúme.
* * * * * * * * * * * * * *

Oh retrato da morte, oh Noite amiga
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha de meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor, que a ti somente os diga,
Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas,ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga:

E vós, oh cortesãos da obscuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.
* * * * * * * * * * * * * *

Vinde, Prazeres, que por entre as flores,
Nos jardins de Citera andais brincando,
E vós, despidas, Graças, que dançando
Trinais alegres sons encantadores:

Deusa dos gostos, deusa dos amores,
Ah ! dos filhinhos teus ajunta o bando,
E vem nas asas de Favônio brando
Dar força, dar beleza a meus louvores.

Da linda Anarda minha voz aspira
A cantar o natal; tu, por clemência,
O teu fiel cantor, deidade, inspira;

Do trácio vate empresta-me a cadência,
E faze que mereça a minha lira
Os cândidos sorrisos da inocência.

Fonte:
BOCAGE, Manuel Maria Barbosa Du. Sonetos e outros poemas.

Carlos Drummond de Andrade (Jacaré de Papo Azul)


— Jacaré de papo azul, por acaso o senhor já viu um na sua vida? Azul, azulinho ele todo, o papo, não o jacaré. Eu vi. Vi e conferi, que ele ficou meu amigo, pode acreditar. E, eu sei, nesta beira de rio, vez por outra costuma aparecer jacaré-de-papo-amarelo, não faz novidade nisso. A gente está acostumada com ele, sabe lidar com o bichinho, e cai de pau no lombo dele antes que ele ferre a gente com uma dentada ou derrube a canoa com uma rabanada forte. Já experimentou serrilha de rabo de jacaré no corpo, terá coisa pior do que isso neste mundo de coisas piores? Olhe aqui o meu peito, eu falo de jacaré porque jacaré entrou na minha vida desde menino, o primeiro que vi levou a perna de meu pai, outro fez no meu corpo este desenho que o senhor está admirando, pois não é tal qual uma mulher nua costurada na pele, a marca que ele deixou? Se não morri foi porque estava decretado que jacaré nenhum tem poder sobre este afilhado das treze almas sabidas e entendidas, que cortam as forças de meus inimigos. Meu pai, a perna dele não foi propriamente comida por jacaré, ele tirou só um naco, mas o resto apodreceu e no hospital da Januária tiveram que serrar na altura da coxa. E ainda falam que jacaré em terra é uma pasmaceira, não sabe correr nem brigar.

Pois sim. O que aleijou meu pai estava dormindo na quentura da praia, muito do seu natural, como se ali fosse a casa dele. Pai cutucou ele assim com a ponta do pé, fazendo cócega na parte da barriga que estava meio exposta, porque o desgraçado dormia meio de banda, entende. Jacaré fez que não viu nem percebeu, continuou no seu paradeiro, pai cutucou mais, achando graça no sono pesado daquele bicho entregue à vontade da gente, sem defesa, porque jacaré fora d’água… e tal e coisa. Depois de muito cutucar, o velho lascou um pontapé no traseiro do bicho, o bicho achou que aquilo era demais, nhoc! cravou a dentadura afiada na coxa dele. Eu estava perto e disparei porque não sou bobo, pai veio atrás, sangrando e xingando o jacaré, que continuou no mesmo lugar, sem dar confiança. Quando a gente voltou para caçar ele, tinha sumido. Bem, se conto essas coisas ao senhor é pra mostrar como a vida é feita de tira e dá: aqui estou eu ganhando a minha caçando jacaré pra vender o couro. A carne, eu aproveito em casa, o senhor já provou uma boa jacarezada, feita com capricho, muita pimenta e uma branquinha de qualidade pra santificar o total? Lhe ofereço uma se o senhor arranchar aqui mais de uma semana, tempo de aparecer jacaré que anda meio desanimado de descer o rio, sei lá onde se meteu. Não quer? Já sei, o senhor embrulha o estômago só de imaginar bife de jacaré, basta pensar no cheiro, aquele pitiú, e mais o gosto da carne dele. Pois muito se engana, é questão de lavar, salgar, temperar direito. Bem, não se fala mais nisso, não vou lhe oferecer um prato que o senhor não dá o devido valor.

Onde é que a gente estava na direção da conversa? Ah, já sei, na minha vida de caçador de jacaré, que parece feita de aventura e que talvez seja pros outros, pra mim é escrita bem decifrada, não tem mistério, e se ficou esse desenho gozado no meu peito foi porque eu ainda não tinha muita experiência de jacaré, facilitei, pronto: gurugutu, mas aprendi pro resto da vida, é baixo que um me pegue outra vez, minhas treze almas me acompanham no serviço, me adestram na caça, sou capaz até de pegar jacaré a laço de vaqueiro, como diz-que se faz lá no Marajó, me contaram. Ou que nem índio, que pula do galho da árvore em cima do jacaré, monta nele; quando jacaré mergulha, índio mergulha também, com a mão esquerda agarrada na barriga do bicho, com a direita aperta bem os olhos dele e com a terceira mão, que ninguém tem mas nessa hora aparece, amarra o focinho dele com embira que levou presa na boca… O senhor duvida? Quer dizer, isso ainda não fiz, faltou ocasião, mas chegando a hora eu faço. Só que não gosto de judiar dos bichos, mato eles porque o cristão tem de viver à custa de tirar a vida do jacaré, mas no dia que eu achar um diamante, digo até nunca pro meu ofício, por enquanto vou comendo carne, vou vendendo couro. Pagam uma porcaria, sabe? No entanto, qualquer coisa feita de couro de jacaré custa uma nota alta, a vida é assim, também brinca de dá e tira. Estou destaramelando faz tempo e ainda não cheguei ao caso do jacaré de papo azul. Pois eu conto, o senhor fique a cômodo neste tamborete e preste atenção no meu relato.
* * *

Como estava lhe dizendo. De tanto viver assuntando o rio pra ver se tem jacaré, a gente acaba tendo parte com a água, conhece o que ela esconde, sabe o que ela quer dizer. Rio não engana, mesmo se toma cautela de esconder no barro o que é de esconder. Mas pros outros é que esconde, não pra quem nasceu junto dele e carece viver dele. De começo fui pescador de peixe, como todo mundo, mas eu queria outra coisa, queria tirar do rio o mais difícil. Minhocão, diz o senhor? Minhocão sabe pra quem aparece. Meu negócio era com o jacaré, o rio entendeu e me dá o jacaré que eu preciso e não abuso. Tanto que de jeito nenhum eu caço filhote. Brigo com jacaré grande, no poder da valentia dele, e se eu venço, fico agradado de mim; se perco e ele foge, a vez era dele, está certo.

Naquele dia foi diferente. Jacaré botava a cabeça pra fora, eu ia pra cima dele, e nada. Aparecia mais adiante, voltava a afundar, tornava a aparecer, a afundar. Brincando. Isso que eu percebi depois de uma meia hora de perseguição. Estava se divertindo comigo, não fugia, também não se entregava. E era engraçado ver o jacaré tão despachado, tão corredor, na correnteza tão devagar, porque o senhor sabe que este rio aqui não tem pressa de chegar, só mais embaixo ele pega numa disparada que o governo aproveita para fazer uma usina gigante.

Aqui o rio é lerdo, a gente sente melhor o rio, dá pra fazer amizade. Então eu percebi que era isso que o jacaré estava querendo, fazer amizade comigo. O senhor já reparou em boca de jacaré? Parece que ele vive rindo de tudo, até sem motivo. Esse que eu falei ria com o corpo inteiro, às vezes chegava à flor d’água o tempo de eu apreciar ele todo, e rabeava com um jeito moleque, tão gozado que só o senhor vendo. Eu doido de aproveitar e cair em cima dele, mas quem disse? Depois de muito dançar e mergulhar, ele deu um salto e virou de barriga pra cima, a uma distância que não dava pra pegar. Ficou assim, boiando satisfeito da vida, que nem flor. Que nem essa flor, o senhor sabe, grandona e redonda, boiando feito bandeja, lá no fim do Norte, que eu nunca vi de perto, só de figura. Aí eu fui chegando perto, chegando perto, bem de mansinho. Se ele vira de repente e me dá uma rabanada, pensei, adeus canoa e eu sou o finado Marcindírio. Ele não virou, cheguei bem perto e vi. Tinha o papo azul, azul deste céu que o senhor está vendo, azul-claro, limpinho, bom de passar a mão…

Passei. O senhor não credita que passei? Pois o danado gostou, deixando eu fazer esse agrado que a gente faz no pescoço do gato, só que mais forte, o couro é o contrário da macieza do gato. Não tive coragem de fazer mais nada. Ele estava tão feliz de ser tratado assim, tão prosa de mostrar seu papo diferente, lindeza de papo. Aí eu falei assim: “Vou m’embora, jacaré; você é livre de morar no rio, que eu não te causo dano”. Voltei sem ofender aquele bicho-irmão, pois pra mim ele ficou sendo um negócio parecido com irmão, não digo filho porque era tão forte quanto eu, se não mais, e filho da gente, por mais que cresça e apareça, é sempre uma plantinha mimosa, sabe como é. Em casa, minha patroa zombou de mim, achou que eu não estava regulando. Não dormi de noite, pensando no jacaré. Dia seguinte, olha ele outra vez me chamando pra brincar, eu disse:

“Calma, jacaré, não posso passar a vida me distraindo com você, não sou mais menino e você também não é filhote. Todos dois têm que cuidar da vida, que a morte é certa”. Até parece que ele entendeu, ficou com ar meio amuado, afundou. Só apareceu muito tempo depois, de longe, experimentando a mesma sorte de molecagem. Fiquei com pena dele: “Tá bom, eu brinco”. Mas tem propósito um barraqueiro como eu alisando papo de jacaré, só porque ele é azul, me diga, tem propósito? Se a gaiola passasse e os passageiros me vissem, que é que haviam de achar? Eu sei, talvez algum quisesse me convencer que eu devia levar o jacaré pra terra e vender ele pra fazer figura no circo, mas o mais certo era que todo mundo caísse de gozação em cima de mim, podiam mesmo me levar amarrado feito doido pra dormir na cadeia, e depois… Isso tudo passou na minha cabeça enquanto eu acarinhava o jacaré, fiquei com vergonha que pudessem me ver naquela hora, depois fiquei com vergonha de ter sentido vergonha, afinal que que tem o senhor se entender com um bicho com fama de malvado e vai ver não é malvado coisa nenhuma e pede à gente pra gostar dele?

O senhor começou a entender, quer mais um gole de café enquanto eu conto o resto? A fome começou a apertar aqui em casa, por causa de que não vinha mais jacaré na descida das águas, só ficava banzando por lá o de papo azul, que eu não tinha coração de pegar. Até parece que ele afugentava os outros, queria reinar sozinho, virar dono e senhor do rio. Mas tão manso e engraçado que não tinha cara de mandão. Traiçoeiro não podia ser, se bem que a Luisona me prevenisse:

“Toma tento com esse bicho que vai te enfeitiçando, alguma ele te prepara, não vejo nada de bom nessa claridade do rio que deu pra acontecer ultimamente”.

Luisona é a minha patroa, ela tem esse nome porque é uma tora de mulher. Acontece que o rio vinha mesmo se lavando de sua cor de barro carregado, e quando o sol batia na neblina do amanhecer e a gente via a água, era uma água quase azulada, não que chegasse a azul, parava no quase, coisa que eu nunca tinha visto antes e era maravilha. “Mau sinal!”, repetia a Luisona, e as boquinhas dos meninos pedindo comida não davam gosto da gente olhar. Diabo de jacaré, pensei, se eu aproveitar uma ocasião da folia dele e chegar de mansinho e dar nele uma machadada bem certeira, será que morre na horinha e eu não sinto remorso porque não teve tempo de sofrer? Mas se eu errar no golpe? Se o golpe não acertar direto no coração dele, e eu tenho de dar outros golpes e ele me reconhece e crava em mim aqueles olhos redondos e espantados de amigo traído, de irmão assaltado pelo irmão? Não, eu não tinha coragem. E tinha precisão de ter coragem. O rio cada vez azulava mais, ou eu é que enxergava nele a miragem do papo do jacaré tornando tudo em redor uma pintura de quadro de Nossa Senhora? Botei o machado na canoa, rezei treze vezes a oração das minhas treze almas sabidas e entendidas e fui vigiar o rio.

O jacaré apareceu longe, veio chegando aos poucos, não tinha pressa. Boiava e sumia, tornava a boiar e sumir, era a festa de sempre. Cada vez mais perto da minha intenção, do meu machado. Quando chegou bem rente, estendi o braço devagar pra lhe fazer o carinho do costume. Deu uma virada brusca e afundou. Tinha percebido? Apareceu mais adiante. Cheguei lá, repeti o movimento. Ele também. Mas não tinha ar de brincadeira nova, inventada por ele. Era desconfiança, era defesa, era também (devia ser) resolução de evitar que eu acabasse me tornando um assassino igual aos outros, pior que os outros. Pois aquele animal de Deus gostava de mim e eu dele. Eu percebia isso, mas cada vez ia ficando mais enquizilado com aquele jogo em que o jacaré era mais forte porque era melhor do que eu. Não queria propriamente escapar de morrer, queria impedir que eu matasse. Mas eu queria matar. Eu precisava matar. Pra sustentar meu povo e agora também por outro fundamento, provar ao bicho das águas que lição eu não recebia dele, minha lei é fruto de minha cabeça, eu sei o que é necessidade e justiça. A raiva contra o jacaré ia crescendo, agora eu queria é ver o sangue dele tingindo o rio, desmaiando aquela azularia que encantava a cara suja e sincera das águas. Não resisti, pulei da canoa com o machado na mão direita e fui perseguindo o desgraçado, que fugia sempre como quem brinca de esconder e não dá confiança a quem quer pegar. No que ele nadava e eu também, fui sentindo uma tristeza de minha vida depender de matar, e a raiva ficava menor, eu tinha é pena de mim, tão precisado de fazer mal aos outros viventes, pena dos jacarés de papo de qualquer cor, pena de tudo, e o jacaré deu um mergulho, soverti com ele, a perseguição continuava, mas era tão triste, me via tão humilhado diante do poder daquele bruto de tamanha simpatia e delicadeza, eu menor do que ele, muito pior do que ele. O machado caiu da mão, me embolei com o jacaré, resolvido a acabar com aquilo de qualquer jeito, me expondo, desafiando ele a me cortar em postas, mas o riso dele me doía mais do que se fossem os dentes retalhando minha carne, que luta! seu compadre. Eu embrabecido, disposto a tudo, ele maneiro, dentro das regras, escorregando feito sabonete, mostrando que não queria, não precisava morder, queria é me cansar… cansei. Tudo ficou completamente azul dentro d’água, o próprio jacaré ficou todo azul-celeste, eu perdia as forças, me sentia azular por dentro, uma bambeira de sono diferente me encheu por inteiro. Então o jacaré, esticado, veio por baixo, me pegou pelas costas e foi me empurrando pra riba, me livrando do afogamento, me deixou estendido e mole à flor d’água, de barriga pro ar, uma coisa frouxa, tábua. E sumiu. Sumiu de sumiço eterno até a presente data. Não sei quanto tempo fiquei assim naquele paradeiro. Sei que a Luisona veio nadando feito gigante e foi me puxando no rumo da praia, dizendo: “Esperta homem!”.

Espertei. Dia claro, o rio outra vez barrento, reuni as forças, fui cair na rede aqui em casa. Dormi dois dias e duas noites. Quando acordei, fui cuidar da vida, arranjar outro machado, outra canoa, pois pra isso me botaram no mundo: pra caçar jacaré.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 169


A. A. de Assis (O Avião, o Jipe e a Mulher)


Eram meados dos anos 1960. Numa conversa com o agrônomo Aníbal Bianchini da Rocha, ele me disse algo de que nunca mais me esqueci: que três contribuições foram fundamentais na colonização do norte e noroeste do Paraná – a do avião, a do jipe e a da mulher.

No começo, aqui não havia estradas. O avião, cavalo voante do desbravador moderno, pousava em qualquer clareira da mata, despejando gente arrojada em cima da terra que ansiava por parir fartura. Contavam-se proezas incríveis daqueles ginetes do ar, que perturbavam o sono das onças com o ronco festeiro dos seus teco-tecos.

Abertos os primeiros caminhos, o jipe acompanhou o avião no mergulho do homem floresta a dentro. Trotando nos picadões, rosnava qual fera de aço, pulando buracos, amassando espinhos, esmagando cobras, empurrando tocos, desafiando o que surgisse à frente.

Os caminhos viraram arremedos de estradas. E o jipe ainda nelas seguia atravessando túneis de poeira vermelha em épocas de sol, engatando reduzida e calçando correntes em dias de chuva, subindo e descendo aqueles morros escorreguentos que nem quiabo. O avião no céu, o jipe no chão, transportando o agito para o sertão selvagem. O homem invadindo a mata, guloso de plantar para enricar ligeiro.

Mas o homem não teria vencido como venceu, mesmo com os seus aviões malucos e os seus jipes desassombrados, se a seu lado não estivesse a mulher. Só Deus sabe o que enfrentaram aqui aquelas heroicas senhoras, naqueles tempos de total desassistência e desconforto.

Sair de sei lá onde, com as crianças e as panelas nas costas, para viver num lugar sem nenhum recurso, convenhamos que foi coragem das grandes. Os maridos plantando roças e elas em casa criando filhos, cozinhando inhame, lavando roupas que o pó e o barro transformavam numa espécie de encerado. E mais: rezando pra Deus ajudar, que só Deus podia ajudar na completa desproteção daquele fim de mundo.

Olhem que se eu fosse prefeito mandaria erguer um monumento para elas. Outro para o teco-teco. Outro para o jipe. Mandaria mesmo.

Fonte:
A. A. de Assis. Vida, Verso e Prosa.
Livro entregue pelo autor.

Horácio Portella (Versos Diversos)


A CIGARRA E O POETA

(Homenagem ao saudoso mestre e padrinho Olegário Mariano)

Quando a cigarra canta o espírito delira;
e desse canto alegre as notas musicais
criam na mente a forma excelsa de uma lira
em que o poeta canta os sonhos eternais.

O Vate empunha a lira e canta os ideais
que vêm do coração e os leva à etérea pira
eternizando ali, em versos magistrais,
o sonho bom pra ver se a mágoa se retira.

O singular refúgio, onde o poeta canta,
é o paço sideral, perene, é o universo..,
E o canto, mansamente, explode na garganta,

Seu canto é oração - simbólico rosário...
E cada conta dele é delicado verso,
onde reza a cigarra amiga de Olegário.
* * * * * * * * * * * * * *

 A MARCHA DO TEMPO

Sem pressa as horas passam uma a uma,
escorrem para o túnel do passado,
- não se consegue segurar nenhuma -
pois cada qual já deu o seu recado.

Para a memória humana resta a bruma
que pode dar prazer ou desagrado.
Querendo nós ou não assim se esfuma
a vibração do tempo - este é seu fado.

Essa rotina segue sem descanso,
no transcorrer sutil da eternidade,
num caminhar tranquilamente manso.

Assim também os versos do soneto
vão no papel deixando a novidade
envelhecer no último terceto.
* * * * * * * * * * * * * *

A MORTE DO SOL

Rondando o velho Sol pela amplidão do céu,
já moribundo cai, cansado, no horizonte,
enquanto a Noite vem trazendo o negro véu
que à Terra toda envolve, à espera que desponte

a Lua a comandar o imenso povaréu
de Estrelas, para o adeus ao Astro-Rei, insonte,
em silente cortejo até seu mausoléu,
localizado além dos píncaros do monte.

São lágrimas da Noite o orvalho, o desencanto,
enquanto a Lua espelha a sideral tristeza
na intensa palidez de seu argênteo manto.

Mas Deus, que é Luz e Amor e tudo fez do nada,
com Sua Mão gentil tocando a Natureza,
o Sol ressuscitou nos braços da Alvorada.
* * * * * * * * * * * * * *

LUZ DO ALÉM

Inspiração nascida à luz de vela,
que mansamente jorra no papel,
é delicada, meiga, assaz singela,
porém precisa praticar rapel.

Quando a energia foge da procela
galopa o Vate em seu sutil corcel
buscando a gema preciosa e bela,
a gema rara do divino anel.

Cada mensagem que de Deus provém
virá trazer aos corações humanos
a luz que brilha muito além do Além.

Assim, portanto, nasce cada verso,
sagrado, santo, aos olhos dos profanos
provindo do Arquiteto do Universo.
* * * * * * * * * * * * * *

TROVAS

Em métrica setimal
e quatro versos somente
a trova é gentil fanal
que ilumina nossa mente,

Eu creio que não mereço
o valor pago na cruz.
Caro demais foi o preço:
Vida, Sangue, Amor e Luz.

O Saci perdeu a graça
e agora só faz careta
quando diante de nós passa
mas não quer usar muleta.

Quem mantém um passarinho
na gaiola em cativeiro
diz por ele ter carinho
mas é cruel carcereiro.

Trovando com luz de vela,
com certeza, o que acontece:
a trova fica mais bela
pois ganha uns ares de prece.

Fonte:
Lilia Souza (org.). Coletânea: Academia Paranaense de Poesia. Curitiba: APP, 2012.

Contos e Lendas do Mundo (Finlândia: Lippo e Tapio)

Lippo, caçador exímio, foi um dia, com dois amigos, à caça à rena. Percorreram o bosque de manhã à noite e, quando escureceu, procuraram abrigo contra as trevas e o frio numa cabana de troncos. Pernoitaram aí e, ao amanhecer, os três homens voltaram a pôr os esquis. Antes de abandonarem a cabana, Lippo tocou um esqui com o outro e disse:

— Que o dia de hoje me proporcione uma boa presa: uma parte para um esqui, outra para o outro e uma terceira para o meu bastão.

Mal tinham começado a andar, quando se lhes depararam as pegadas de três renas. Seguiram-nas e não tardaram a avistá-las: duas juntas e a terceira um pouco afastada. Lippo disse então aos amigos:

— Podem perseguir as duas. Serão as vossas presas. Eu fico com a que está só.

Proferidas estas palavras, deslizou na neve durante todo o dia, até que a noite o surpreendeu, mas não pôde alcançar a rena, apesar de ser um esquiador muito rápido.

Chegou então a uma fazenda e a rena refugiou-se no estábulo, sempre com Lippo no seu encalço. No pátio, encontrava-se o proprietário, um venerável ancião de cabelo e barba brancos.

— Que é lá isso! — exclamou. — Quem é o filho de um sapo que persegue a minha reprodutora fazendo-a suar?

Lippo aproximou-se, saudou-o respeitosamente e replicou:

— Sou eu, mas como não a consegui capturar, vim parar a esta fazenda.

O ancião, que era o próprio Tapio, dono do bosque em volta, declarou:

— Bem, se perseguiste a minha reprodutora até ao por-do-sol, podes passar a noite nos meus aposentos.

Lippo entrou na casa e ficou maravilhado quando olhou em redor: havia renas, veados, ursos, raposas, lobos e todos os animais selvagens possíveis de imaginar. A seguir, Tapio convidou-o para jantar e serviu-o excelentemente.

Na manhã seguinte, Lippo quis prosseguir viagem, mas não conseguiu encontrar os esquis. Quando perguntou por eles ao dono da casa, este redarguiu:

— Não queres ficar em minha casa e ser meu genro? Tenho uma filha única.

Mas Lippo respondeu:

— Ficaria com o maior prazer, mas sou um homem pobre.

— Isso é comigo! A pobreza não é nenhum defeito. Na nossa casa, terás tudo o que desejares.

E assim, o ancião entregou a filha ao visitante, e o ágil esquiador e caçador ficou como genro na cabana do bosque de Tapio.

Quando haviam passado três anos desde a sua chegada, a filha de Tapio deu-lhe um filho. Lippo quis então visitar a pátria, pelo que pediu ao sogro que o conduzisse lá. No entanto, este último disse:

— Se fizeres uns esquis do meu agrado, autorizar-te-ei a partir.

Lippo dirigiu-se prontamente ao bosque e começou a trabalhar nos esquis. Um pássaro que estava empoleirado no ramo de uma árvore cantarolou:

Ti, ti, apesar de ser uma ave pequena,
dir-te-ei qual é a forma corrente:
afia um ramo apontado ao chão
e cola-lhe a extremidade da frente.


Lippo atirou-lhe uma lasca de madeira, ao mesmo tempo que observava:

— Que estás aí a cantar, animalzinho pateta?

Terminados os esquis, adornou-os o melhor que sabia e foi mostrá-los a Tapio. Este experimentou-os e apressou-se a afirmar:

— Estes esquis não são para mim.

No dia seguinte, Lippo teve de se dirigir de novo ao bosque para recomeçar a trabalhar. O pássaro, que se achava igualmente presente, cantou:

Ti, ti, apesar de ser uma ave pequena,
dir-te-ei qual é a forma corrente:
afia um ramo apontado ao chão
e cola-lhe a extremidade da frente.


— Estás outra vez com as tuas fantasias? — exclamou ele, furioso, atirando-lhe um pedaço de madeira.

Não fazia a menor intenção de seguir o conselho do pássaro, pelo que cortou os esquis segundo o método usual e foi mostrá-los a Tapio.

— Estes esquis não são para mim — voltou o sogro a dizer.

Quando Lippo, no terceiro dia, chegou mais uma vez ao bosque, deparou-se novamente o pássaro, com a sua cantilena:

Ti, ti, apesar de ser uma ave pequena,
dir-te-ei qual é a forma corrente:
afia um ramo apontado ao chão
e cola-lhe a extremidade da frente.


Ele refletiu então: "Está bem, procederei como dizes. Não terás cantado em vão." Pegou num ramo bem nodoso, fixou-o à ranhura estreita da parte inferior do esqui e atou a correia à extremidade da frente, após o que foi mostrar o resultado a Lippo.

— Estes, sim, são meus! — exclamou o sogro, quando os experimentou. — Agora, podes ir à tua pátria.

E acompanhou-o, dizendo:

— Irei à frente e vocês seguirão as minhas pegadas. Onde encontrarem a marca da ponta do meu bastão, deverão pernoitar. Mas constrói a tua cabana com ramos de abeto e paredes espessas, para que não entre a luz das estrelas.

Com estas palavras, Tapio empreendeu o caminho. As ramagens que tinha na parte inferior dos esquis iam produzindo marcas bem nítidas, pelo que Lippo o podia seguir, com a mulher e o filho. Quando começava a anoitecer, viram o sinal do bastão e, junto dele, um veado assado para o jantar. Construíram uma cabana de paredes espessas com folhagem de abeto, cobriram-na com um teto muito firme e colocaram dentro o pequeno trenó com a criança, após o que se deitaram para descansar.

Na manhã seguinte, prosseguiram viagem, levando um pedaço do veado assado para o caminho.

Ao anoitecer, voltaram a encontrar a marca do bastão e uma rena assada ao lado. Tornaram a construir uma cabana de paredes muito espessas com folhagem de abeto e colocaram dentro o trenó com a criança. Depois de repousarem toda a noite, reataram a marcha, até que, ao anoitecer, encontraram a terceira marca do bastão. Desta vez, havia um galo-selvagem assado para o jantar.

— A pátria não pode estar muito longe, se só nos oferecem um galo-selvagem — exclamou Lippo.

Construíram uma cabana assaz diáfana, colocaram dentro o trenó com a criança e depois deitaram-se. Durante a noite, as nuvens dissiparam-se e a luz das estrelas incidiu neles através do teto pouco espesso.

Quando acordou de manhã, Lippo não conseguiu encontrar a esposa em parte alguma. Saiu da cabana e esquadrinhou as cercanias, mas não havia o menor vestígio dos esquis de Tapio, e ficou sem saber que rumo deveria tomar, dada a ausência de qualquer rasto. Sentou-se à porta da cabana com o filho, imerso em cogitações. De súbito, passou perto um veado aos berros. À parte isto, não viu nada ao longo de todo o dia e, quando anoiteceu, reconheceu que não lhe restava qualquer alternativa senão pernoitar ali. No dia seguinte, tornou a haver um galo-selvagem diante da porta e o veado voltou a passar aos berros.

Lippo permaneceu muitos anos com o filho na cabana de ramagens de abeto. Todas as manhãs havia um galo-selvagem assado diante da entrada, e o veado aos berros também nunca faltava. A criança cresceu e converteu-se num mancebo inteligente e sensato. Pediu ao pai que confeccionasse um tubo longo para poderem ver se a pátria estava longe. Nos momentos de ócio, Lippo assim fez e, quando terminou, ofereceu-o ao filho. Este utilizou-o imediatamente e exclamou:

— A pátria não é nada longe! Estamos muito perto da nossa terra!

E, com efeito, quando empreenderam viagem, não tardaram a chegar. O jovem veio a tornar-se o patriarca dos lapões. E, com isto, o conto chegou ao fim.

Fonte:
Contos Tradicionais da Finlândia