segunda-feira, 15 de maio de 2023

Humberto de Campos (Os colchetes)

Eram cinco horas da tarde, quando, fechado o escritório, o Dr. Godofredo entrou no seu palacete do Flamengo, para levar a mulher a passeio. Enveredando pela casa com a sua liberdade de marido jovem, foi ele encontrar a encantadora senhora de pé, diante do "psyché", recebendo os últimos retoques no seu vestido novo, pronta para sair. Ajoelhada no tapete de pelúcia cor de ouro, a costureira, a boca repleta de alfinetes, pregava aqui, repregava ali, endireitava acolá, ajustando, como o artista ao seu quadro, as últimas curvas, as últimas ondulações da fazenda naquela maravilhosa estátua de carne.

Sentando-se no canapé do quarto de "toilette", o moço olhava, em silêncio, a meticulosidade da costureira, a perfeição do seu trabalho e a paciência do seu modelo, quando, diante daqueles toques e retoques infindáveis, lhe aflorou à boca uma observação:

- Silvia, dizes-me uma coisa?

- Que é? - atendeu a moça, sem voltar-se, com os olhos no espelho.

- Por que é que os vestidos das mulheres, em geral, abotoam para trás?

A costureira riu, cuspindo os alfinetes na mão, estranhando a pergunta; a estátua que ela retocava apressou-se, porém, em explicar-lhe o caso, sorrindo-lhe pelo cristal do "psyché".

- Você, então, não sabe?

E explicou:

- O momento mais glorioso da vida da uma mulher, é aquele em que ela se prepara para sair. Diante do espelho, refletindo-se na lâmina lisonjeira, ela se glorifica a si mesma, olhando-se, mirando-se, namorando-se. Antes de agradar aos outros, ela quer agradar-se a si mesma; e daí as horas que passa diante do espelho, mirando-se, remirando-se, quando lhe seria mais vantajoso estar na rua, no salão, no passeio, recebendo ou fazendo visitas, para ser vista, louvada, admirada.

E depois de uma pausa, forçada por uma recomendação à costureira:

- Com essa paixão por si mesma, pelas suas "toilettes", pelo namoro da sua própria figura, a mulher não poderia admitir, evidentemente, que, ao ir vestir-se, outra mulher se pusesse entre ela e o espelho, para abotoá-la. Seriam momentos de auto-contemplação que ela perderia, e que ela evitou, relegando para trás os botões, os colchetes, os alfinetes, as pressões, e, com eles, a costureira, que deixa de lhes fazer sombra diante do espelho.

Horas depois regressavam os dois do passeio, durante o qual o jovem advogado estivera a meditar sobre a vaidade feminina, refletindo sobre o que lhe dissera a esposa em relação à origem do feitio dos vestidos, quando compreendeu que era mentira tudo quanto ela, à tarde, lhe contara. Foi quando a mulher, preguiçosa e risonha, lhe voltou as costas. pedindo:

- Desabotoa aqui?

A origem daquele costume era, positivamente, aquela. As mulheres puseram os colchetes e pressões dos vestidos para trás, unicamente para os maridos lhes beijarem as espáduas…

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) – 13 –


 A DUAS MÃOS

Quis escrever um poema a duas mãos,
Mas tua mão... num "sem querer" indesculpável...
Roçou a minha, de maneira tão palpável,
Que o inefável nos tornou bem mais que irmãos.

Bastou apenas que o teu verso, após o meu,
Tomasse um rumo passional inusitado,
Que o meu lirismo se tornou tão... desvairado...
Que a estrutura do poema se perdeu.

As nossas bocas rabiscaram o escrito
E o poema que estava tão bonito,
Tornou-se apenas um desenho abstrato

E as duas mãos formaram um rascunho aflito
Do que seria um prenúncio de infinito,
De um doce drama resumido num só ato.
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CORAÇÕES

Uma simples figurinha desenhada
No formato de um modesto coração,
Faz a minha distração emocionada
Mais calada, transformar-se em pulsação.

Se esse coração já vem acompanhado
De um recado cheio de felicidade,
Meu olhar se torna tão inebriado,
Que o meu riso reina em plena liberdade.

O que importa é que quem lê o que criamos,
Com a mínima ternura... e nos responde...
Não esconde que entende o que amamos

Pois quem sente, com amor, o que que enviamos,
Também sabe que os sonhos repousam onde
Também mora o coração que abençoamos.
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COZENDO O DESENCANTO

Meus olhos tão cansados, molhados com este pranto,
Evocam teus encantos, quando eu estou sozinho...
Procuro acalantos, mas nenhum passarinho
Desperta algum carinho ou traz-me um novo canto.

O amor é um bom vizinho, mas ele me dói tanto,
Que quando me aquebranto, sou pássaro sem ninho,
Partida sem espanto, riacho sem moinho,
Costura em desalinho, cozendo o desencanto.

Tatuado no meu peito, teu jeito insinuante
É como um diamante brilhando a luz do dia...
O amor, por ironia, desfaz-se em meu semblante

E a dor mais relevante inunda o meu olhar,
O amor brinca de amar com a hipocrisia
Vendo a vida vazia... eu volto a prantear.
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QUANDO O AMOR DIZ O QUE PENSA

Só um poeta se desmente quando mente:
Ele mistura, em si mesmo, o ser humano
E enquanto um deles faz da arte um novo plano,
O outro apenas se abstrai, sublimemente.

Ninguém descobre, de verdade, o que ele sente,
Poeta é gente e toda gente se difere,
Por isso, tudo que a razão sempre sugere,
O coração transforma em arte... simplesmente.

A emoção é propulsora do sinta
Um coração, quando ele faz, do raciocínio
Uma mistura que repousa no fascínio

Que o dom produz, quando o poeta sonha... e pinta
na tela plana da razão, a arte intensa,
Que sonho faz, quando o amor diz... o que pensa
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VOO SOLO

Quando ao me leres, ganhas asas e te lanças
com teu voo solo, nos azuis que eu invento,
Teu coração, com emoção, baila no vento
Do meu amor e assim, menina, como danças!

Dou-te os azuis da minha doce consciência
De ser feliz... porém te oferto outras cores
Para que possas construir, com teus amores,
O amor que move a leveza da inocência.

Quando te leio, também sou um passarinho,
Que faz seu ninho no teu doce coração
Para que eu ouça teu amor reger baixinho

A harmonia que repousa nos poetas.
É assim que sinto, com a mais pura emoção,
Teu coração pulsar no meu... bem de mansinho.

Fonte:
Luiz Poeta. Nuvens de Versos. Campo Mourão/PR: Ed. J.Feldman, 2020.

JG de Araújo Jorge (A Lua dos Poetas aos Astronautas)

A lua foi sempre território dos poetas e dos namorados.

Há um aparente paradoxo em nosso tempo: enquanto cientistas, físicos e astronautas devassam os espaços com seus projéteis e se apropriam da lua, os poetas  se  voltam  para  a  terra, lançam   raízes  e  procuram  o homem.  Ainda ontem, pensando nisto, escrevi este poeminha:

TEMPOS

Qualquer dia destes
os homens vão encontrar Deus...

Mas não serão os filósofos,
serão os astronautas...

Os astronautas, esses seres fantásticos, caminhando pelo espaço sideral, fora das cápsulas, como escafandros do céu, em levitação, serão os primeiros habitantes do romântico satélite. E entre eles, se houver mesmo algum poeta, leremos algum dia o  primeiro poema lunático, que a terra  há  de  inspirar...   Mas  a  verdade  é  que, enquanto isto ainda não acontece, a lua continua a musa  em atividade.  Os poetas sempre   foram   tidos  como  homens  que  vivem "no mundo da lua".   E  quando alguém tem um ar de abstração e de sonho, é um poeta.

A lua já foi símbolo de boa, da melhor poesia brasileira de todos os tempos.  Desde a poesia de rua, dos trovadores, dos violeiros, dos seresteiros, até a poesia dos livros, dos grandes literatos.

Quem não se lembra, por exemplo, daqueles versos que acordaram tantas namoradas, enquanto o violão lá fora, pela madrugada, era dedilhado ao luar?

"Lua, manda a tua luz prateada
 despertar a minha amada
 quero matar meus desejos
 sufocá-la com meus beijos. . . "

E os grandes poetas brasileiros, como os de todo o mundo, não ficaram insensíveis à beleza da rainha da noite, ao seu mistério e aos seus encantos.  Mesmo  com os pés no chão, olham para o alto.  E se a lua vai-lhes sendo roubada, restam-lhes as estrelas, aquelas mesmas que Bilac ouvia, recomendando:

"Amai, para entendê-las
pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas."

Eu já a vi simbolizando a própria poesia:

"Tudo é trova, a flor, a onda,
a nuvem que passa ao léu
e a lua, trova redonda,
que a noite canta no céu..."

As  mais  curiosas  e lindas imagens ocorreram aos românticos, parnasianos, simbolistas,  modernos,   líricos  de  todas  as  escolas.  Para Alberto de Oliveira, o hierático parnasiano, o

"luar era um cortinado
 todo lírios na barra, e em cima estrelas".

Catulo, o nosso Catulo, que enriqueceu a poesia com imagens simples, num típico linguajar sertanejo, diz que:

"o céu parecia uma tigela
 cumo  o fundo azu imborcado
 todo ismartado de novo
 adonde a lua tão bela
ia boiando, amarela
cumu uma gema de ovo"

Até o nosso singularíssimo Augusto dos Anjos contribuiria com uma imagem, bem a seu jeito:

"Do observatório em que estou situado
a lua magra, quando a noite cresce
vista, através do vidro azul, parece
um paralelepípedo quebrado."

Está claro que esta não seria a visão dos românticos ou dos simbolistas. Para Cruz e Souza, ela se transfiguraria:

"Ó monja branca dos espaços
parece que abre para mim os braços
fria, de joelhos, trêmula, rezando."

E Alphonsus de Guimarães, das altas montanhas mineiras, como que completaria a estrofe:

"... Parece que se ouve o leve passo
da lua pobre morta que passeia
nos castelos hieráticos do espaço."

Castro Alves havia de associá-la a lembranças de amor. E ei-lo  declamando:

"Entre rendas sutis, surge medrosa
a lua plena, qual moreno seio."

Olegário Mariano, outro amoroso, teria impressões semelhantes:

"Entre as árvores surge a lua
como uma náiade nua
mostrando em suaves coleios
o torso, os braços
os seios."

Seriam  infinitas as   citações.   Antigos  ou  modernos, os poetas de todas as épocas  se  enfeitiçaram pela  beleza  sua  beleza.  Não poucas vezes foi invocada  como testemunha de amor.

Desde o  idílio de Romeu e Julieta, no drama shakespeariano:

"Linda! Por esta lua que tem zelos
por ti, por este límpido luar,
que é menos puro do que teus cabelos
que brilha menos do que teu olhar..."

E a réplica, bem feminina de Julieta:  "Não jures pela lua que é inconstante!"

Certa vez coloquei como epígrafe de meu livro "A Outra Face", este pensamento: 

"O poeta em mim, é como aquela face da lua que ninguém vê, voltada sempre para o infinito."

Não faz sentido mais. Hoje os astronautas e os foguetes teleguiados já fotografaram até a "outra face " da  lua. Nosso  lindo satélite não posa mais de "odalisca", com veuzinho no rosto.

Sinal dos tempos. Aviso de despejo. A lua pertence agora aos seus novos donos. Contentem-se os namorados com o luar, e os poetas, com a saudade.

"Se o cotidiano te parece pobre, não o acuse: acusa-te a ti próprio de não seres bastante poeta para conseguires te apropriar de suas riquezas."

Como quem diz: não desesperes. Colhe o mundo ao teu redor.

Aí estão o homem e suas fronteiras. Aí está, portanto, a poesia.

Rejubila-te, enquanto os foguetes sobem. A poesia sobreviverá ao ano 2000 e a todos os tempos. E por isto justamente: porque está dentro de ti e em tudo que te cerca, é que ela é imortal.

A lua dos verdadeiros poetas é a sua poesia, e esta é um satélite onde só eles podem chegar. Mas cujo luar pertence a todos nós...

Fonte:
JG de Araujo Jorge . No Mundo da Poesia. RJ: Edição do Autor, 1969.

Irmãos Grimm (O Velho Sultão)


Um pastor tinha um cão muito fiel, chamado Sultão, que já estava muito velho, e havia perdido todos os dentes. E um dia, quando o pastor e a sua esposa estavam diante da casa, o pastor disse: "Vou matar o velho Sultão amanhã de manhã, porque ele não tem mais utilidade." Mas a sua esposa falou: "Pelo amor de Deus, deixe a pobre e fiel criatura viver, ele nos serviu durante tantos anos, e nós temos que oferecer a ele um jeito dele viver para o resto dos seus dias." "Mas o que poderemos fazer com ele?" disse o pastor, "ele não tem nem um dente na boca, e os ladrões nem se preocupam com ele mais, com certeza ele nos serviu muito, mas ele fazia isso para ganhar o seu sustento, amanhã será o último dia dele, e isso já está decidido.”

O pobre Sultão, que estava sentado perto deles, ouviu tudo o que o pastor e a sua esposa diziam um para o outro, e ficou muito assustado ao pensar que amanhã seria o seu último dia, então, à noite ele foi até o lobo, que era seu grande amigo, e que morava na floresta, e contou a ele todas as suas preocupações, e como o seu dono pretendia matá-lo na manhã seguinte. 

"Fique tranquilo," disse o lobo, "Eu vou lhe dar alguns bons conselhos. O seu dono, como você sabe, sai todas as manhãs bem cedinho com a esposa e vão para o campo, e eles costumam levar seu filhinho com eles, e o deixam atrás da sebe debaixo da sombra enquanto eles trabalham."

"Então, você deve ficar perto da criança, e fingir que a está vigiando, e eu vou sair da floresta e fugirei com ela, você deve correr atrás de mim o mais rápido que puder, então eu vou deixá-la cair, e você a levará de volta, e eles pensarão que você salvou a criança, e ficarão tão gratos a você que eles vão tomar conta de você enquanto viver." 

O cachorro achou que o plano era muito bom, e tudo ficou combinado. O lobo correu com a criança pelo caminho, o pastor e a sua esposa começaram a gritar, mas o Sultão logo o alcançou, e trouxe o pobrezinho de volta para o seu dono e a sua dona. 

Então, o pastor bateu levemente na sua cabeça, e disse: "O velho Sultão salvou a nossa criança do lobo, e portanto, ele viverá e nós tomaremos conta dele, e daremos muita comida para ele. Mulher, vá até lá em casa, e dê para ele um bom jantar, e deixe que ele durma na minha almofada velha enquanto ele viver." 

E então, desse dia em diante Sultão teve tudo o que sempre desejou.

Pouco depois, o lobo veio e lhe desejou felicidades, e disse: "Agora, meu bom amigo, você não precisa mais ficar contando histórias, apenas vire a cabeça para o outro lado quando eu quiser saborear uma das deliciosas e gordas ovelhas do velho pastor." 

"Não," disse o Sultão, "eu tenho que ser sincero para o meu dono." 

Todavia, o lobo achou que ele estava brincando, e uma noite ele se aproximou de uma deliciosa guloseima. Mas o Sultão tinha contado ao seu dono o que o lobo pretendia fazer, então o dono ficou esperando o lobo atrás da porta do celeiro, e quando o lobo estava distraído procurando uma ovelha bem gorda, ele levou uma porretada bem forte nas costas, que a sua crina ficou toda eriçada.

Então, o lobo ficou muito bravo, e chamou o Sultão de "velho trapaceiro" e jurou que ele se vingaria. Na manhã seguinte, o lobo mandou que o javali desafiasse o Sultão para que viesse até a floresta para resolver o problema. Agora, o Sultão não tinha ninguém para lhe apoiar, com exceção do gato com três pernas do velho pastor, então ele levou o gato consigo, e enquanto o coitadinho ia se lambendo com alguma dificuldade, o gato ia caminhando com a cauda levantada para o ar.

O lobo e o javali foram os primeiros a chegar, e quando eles espiaram os inimigos que estavam chegando, e viram a longa cauda do gato levantada no ar, eles acharam que ele estava carregando uma espada para o Sultão lutar, e cada vez que o gato se lambia, eles achavam que o gato estava pegando pedras para atirar neles, então eles disseram que eles não queriam mais esse tipo de luta, e o javali foi se esconder atrás de um arbusto, e o lobo pulou para cima de uma árvore. Sultão e o gato logo apareceram, e olharam ao redor e ficaram perguntando porque não havia ninguém ali.

O javali, todavia, não havia se escondido totalmente, pois as suas orelhas ficaram para fora do arbusto, e quando ele chacoalhou uma delas por um momento, o gato, vendo que algo estava se movendo, e pensando que fosse um rato, pulou em cima dele, e mordeu e arranhou, de modo que o javali saltou para fora e grunhia, e fugiu, e saiu gritando "Olhe lá em cima da árvore, lá está o culpado." 

Então eles olharam para cima, e viram o lobo sentado no meio dos galhos, e eles o chamaram de "patife covarde", e não permitiram que ele descesse dali até que sentisse muita vergonha de si mesmo, e prometesse voltar a ser amigo do velho Sultão.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. 

Live Análise do Conto “O Mineirinho”, de Clarice Lispector (dia 18 de maio, quinta, 19hs)



Fonte:
Texto enviado por Jaqueline Machado

domingo, 14 de maio de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 24

 

Marques de Carvalho (Rio abaixo)


Ao dr. Gaspar Costa

A canoa seguia mansamente, por si só, impelida pela correnteza.

Sentado à proa, fumando num cachimbo de longo taquary (bambu), o caboclo fitava com o olhar indolente os altos e esguios açaisseiros e as longas folhas das bananeiras dum verde-claro alegre, beijados pelos últimos raios do sol, que escondia-se por traz da ilha das Onças.

Na popa, debaixo de um toldo de palha de ubim (espécie de palmeira), estava o senhor moço, abanando-se com uma ventarola de penas vermelhas, ao lado da senhora moça, que espreitava para fora, por um dos pequenos postigos laterais. A seus pés, dormitava o cão Mururé, com um pedaço de língua escarlate caída para o lado esquerdo, entre os dentes meio visíveis.

O cheiro acre da maresia saturava o toldo. Periquitos gritavam nos matagais da ilha próxima; cantos sonoros de pássaros chegavam até a embarcação, numa suavidade docemente melancólica, que fazia sorrir de alegre ternura os dois viajantes.

— Que bonita paisagem, Antonio!

— É certo! Razão tinha eu dizendo-te que gostarias imensamente da viagem.

— Quando chegamos ao sítio?

— Ás 9 horas, isto é, daqui a três ou quatro.

— É pena chegarmos tão cedo!

— Dizes bem: vamos tão contentes....

E beijaram-se num ímpeto de prazer extraordinário.

O caboclo, que, por acaso estava a olhar para eles desde alguns momentos, voltou o rosto, embaraçado, sentindo queimar-lhe as tostadas faces um ardor de sangue equatorial em ebulição. Puxou do cachimbo demorada fumaça, para tranquilizar-se.

Os outros, os dois recém-casados, — porque Antonio e Luiza eram noivos: tinham-se matrimoniado quinze dias antes, — experimentavam, debaixo do toldo, uma sensação de inefável bem-estar ao verem-se naquele majestoso sossego, sobre o Tocantins, dentro da embarcação. Felicitavam-se mutuamente, — com o olhar cheio de carícias, — por haverem podido esquivar-se à vida agitada que levavam em Belém, sempre rodeados de visitas, cujas conversações banais, nulas, pouco interesse lhes davam. Mas agora, — como iriam viver felizes durante aquela quinzena de fuga, na tranquilidade bucólica da roça, sozinhos, passeando sem companheiros importunos, ao longo do rio, tirando caranguejos da lama, lavando reciprocamente as mãos na agua azulada e murmurosa dos igarapés!.... E que festas fariam à hora do jantar, comendo peixinhos pescados por Luiza, e pacas, roliças de gordas, caçadas pelo Antonio nas matas do sítio?!....

Sugeridas pelo sopro de sossego que parecia rodea-los no meio do rio, estas ideias levaram-nos a conversar animadamente, risonhamente, sem atentarem a que o sol não mais vibrava os látegos luminosos no dorso da corrente, e que, portanto, poderiam sair para o centro da canoa, afim de gozarem da viração fresca e cheirosa que agitava num movimento descompassado as velas mal colhidas ao mastro.

Sempre assentado à proa, fumando sempre no cachimbo de longo taquary, o caboclo olhava agora para o poente, como confidenciando mentalmente com o sol, que deixara um rastro avermelhado no céu, onde agrupavam-se em desordem nuvenzinhas cor de nácar, violetas, azuladas, plúmbeas, cor de pérola. Do lado oposto, levantava-se a noite, num andar manso, matemático, extinguindo pouco e pouco o crepúsculo bruxuleante.

O gorjeio dos pássaros cessara na ilha das Onças, que já tinha ficado atrás, à longa distância; só chegavam à canoa os compassos em andante do canto de um carachué (sabiá) que saudava a noite duma pequena ilha, rente á qual passou a embarcação.

— Vê aí no meu relógio que horas são, José, ordenou Antonio ao caboclo.

— Seis e trinta e oito, senhor.

— Oh! então saiamos daqui, filha, vamos tomar fresco.

Vieram para fora.

Luiza soltou uma exclamaçãozinha, sonora como um soneto de Paulino de Brito, engraçada como uma sátira de Júlio Cezar, com a sua voz dum timbre argentino como um filete de água morna caindo numa banheira de ouro lavrado:

— Ah! — fez ela.

E deixou-se ficar de pé, encostada ao ombro do marido, extasiada, em frente ao pitoresco panorama que apresentava-se-lhe aos olhos.

Largo naquele sítio, achamalotado pela brisa, o rio abraçava numerosas ilhotas rasas, cobertas duma vegetação opulenta, que esbatia-se em uns tons escuros, quase indecisos, no limite do horizonte. Um sossego de tabernáculo reinava por toda a parte, sob o azul ferrete (quase negro) do céu, onde as estrelas começavam a cintilar como as pedras preciosas de um manto de rainha antiga. Nem uma nuvem ocupava nesse instante um espaço do firmamento. Ao longe, à direita da terra firme, tremulava uma pequena luz. A água do rio, no fim da vazante, esgueirava-se pelo costado da canoa num murmúrio dolente. Súbito, na solenidade do silêncio, ressoou um grito de ave noturna.

— Acende a lanterna, José, — disse Antonio ao caboclo, que obedeceu logo, voltando depois à sua posição habitual na proa, fumando.

Antonio e Luiza tinham-se assentado sobre a mala que havia no centro da embarcação, entre dois paneiros de farinha sobrepostos, e uns grandes jarros com roseiras floridas.

Como tivesse refrescado o vento, Luiza sentiu frio, estremeceu. O marido foi à popa buscar um xale, cobriu-lhe com ele os ombros, aconchegando-lhe muito ao pescoço, amorosamente.

Depois sentou-se ao lado dela. Era profunda a escuridão. Do lugar em que achavam-se, apenas viam na proa um ponto vermelho como um carbúnculo: o tabaco a arder no cachimbo do caboclo. Este se tornara invisível na densidade das trevas.

Antonio e Luiza sentiram-se bem naquela solidão: entraram a conversar baixinho, muito unidos, de mil coisas que lhes compunham o passado de tão agradáveis recordações. Era para ambos uma inarrável felicidade poderem pairar, assim a sós, das peripécias do curto namoro, dos longos anos que ele passou a ama-la silenciosamente, das emoções e impaciências do dia do casamento, quando aproximava-se a hora em que o pároco de Sant’Anna teria de uni-los.

Soltavam risadinhas indiscretas, acariciavam-se com amor, com delicias, numa excitação dos sentidos. Um movimento instintivo, — inconsciente, talvez; cheio de afeto e volúpia, com certeza, — uniu-lhes os lábios num prolongado beijo de paixão, vibrante como um coro juvenil.

Ouvindo-o, o velho caboclo estremeceu, mudou de posição.

Pôs-se a pensar nas passadas e saudosas épocas da sua felicidade, fruída com a finada mulata, a quem tanto queria, no meio da vegetação selvagem e cheia de grandiosidade das florestas amazônicas...

E um suspiro profundo, traduzindo uma saudade dolorosíssima, respondeu àquele beijo nascido de duas bocas amantes no silêncio de tão linda noite paraense.

Entretanto, a canoa seguia mansamente, rio abaixo, impelida pela correnteza.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
João Marques de Carvalho. Contos Paraenses. PA: Pinto Barbosa e C., 1889.
Atualização do português por J. Feldman

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) XXIV


A fonte, com seus arranjos,
regendo a orquestra das matas,
transmite o coro dos anjos
nos bandolins das cascatas!
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A mãe tece os sapatinhos
na janela debruçada,
ao sentir os dois pesinhos
da vida de outra alvorada!
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Ao pôr do Sol, que ironia!
Uma nuvem soluçava,
com dó da melancolia,
que ao lado dela, chorava!
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A ruga, aos poucos prepara,
furtivamente, sem voz,
o tempo mostrando a cara
no rosto de todos nós!
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As folhas secas sem dono,
pisoteadas pelo chão,
lembram que o rosto do outono,
tem cara de solidão!
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De nada, o tempo reclama,
apaga tudo que alcança;
ah, se ele poupasse a chama
da luz de minha esperança!
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De te esperar não se cansa,
minha alma sofrida e boa.
Alma que tem esperança,
tem coração que perdoa!
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Dizem que a justiça é cega;
não creio nessa premissa,
quando a verdade se nega
na voz da própria justiça!
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É quando o amor desaquece
e diz adeus, sem razão,
que o coração permanece
preso à mesma solidão!
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É triste ver que o perjuro
santifica a tirania.
Se acerta os passos no escuro,
tropeça na luz do dia!
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Minha fé não se desfaz.
E, enquanto a sorte não vem,
segue o meu barco da paz,
dando paz a quem não tem!
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Na igrejinha abandonada,
por mais que a vida não veja,
quanta fé desmoronada,
entre os entulhos da igreja!?...
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Não desistas do teu sonho,
que a sonhar, tudo se alcança;
vê, que em tudo que componho,
ponho sonhos de esperança!
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Não sou capaz de explicar,
quem o adeus mais apavora:
Se é quem parte sem chorar,
ou se é quem fica e não chora!
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Não sou tecedor de sonhos,
nem sei tecer madrigais;
deixo os dias mais risonhos,
pondo remendo em meus ais!
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Não te pervertas na vida;
que essa honradez de aparência,
é existência pervertida,
nesta e, na eterna existência!
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Na vida, há muitas surpresas;
mesmo depois da queimada,
pode haver brasas acesas
por sob a cinza apagada!
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O amor, jamais se revolta;
e onde esse amor se agasalha,
quebra os grilhões e se solta
e em todo canto se espalha!
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O amor, na sua mudez,
tem um poder tão profundo,
que pode banir de vez,
todas as mágoas do mundo!
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O tempo firme em seu posto,
severo, não me deu fuga,
até que eu visse em meu rosto
os pés da primeira ruga!
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Perdido em meio a distância,
de volta ao meu velho ninho,
no templo de minha infância,
chorei no mesmo cantinho!
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Quando a trova, é bem urdida,
a todo instante me acalma.
Tem metro e não tem medida,
é bem maior que minha alma!
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Sozinho, na tarde fria,
minha alma, versos compõe;
tece um verso à nostalgia,
do olhar do Sol que se põe!
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Suplico esmolas de luz
diante da cruz do Senhor,
e em silêncio, aos pés da cruz,
sinto a eterna luz do amor!
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Vem, ó trova, vem agora,
eu sem ti, não me concentro;
se és pequenina por fora
és gigantesca por dentro!
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Fonte:
Enviado pelo trovador.
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça XXXII

Nota do blog: As Carapuças (capítulos) estão sendo publicadas aqui de modo aleatório. Caso tenha interesse em todo o livro (75 carapuças), está disponível no Wikisource, no link: https://pt.wikisource.org/wiki/O_Piolho_Viajante
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Esta pobre moça tinha de passar uma vida bem desgraçada. Acabava de viver com um homem que não lhe deixava a mínima ação livre e veio para este, que todas lhe deixava e não lhe importava nada o que ela fazia. O outro, aborrecia-o por amor de mais. Este mortificava-a por amor de menos. E nem mais nem menos eram as circunstâncias em que se via esta formosura que não encontrava um homem à sua satisfação. Só se mandasse fazer de barro, ou de cera. Eu gostava sumamente dele pela pachorra. Não lhe importava a mulher. Que ela estivesse à janela, que saísse fora, que conversasse com o vizinho, que não lhe aparecesse todo o dia, para ele era o mesmo. Não conhecia o ciúme, nem pela palavra. Era mesmo da terra, gênio e costume dos que falou Camões quando disse:

Ditosa condição, ditosa gente,
Que não são dos ciúmes ofendidos.

A mulher enraivecia-se com isto o mais que podia e dizia a si mesma: — Não serei eu aos olhos deste homem, formosa, não serei discreta, não serei bem-feita? Ele não gosta de mim. Ele não me ama. Ingrato! Morrerei desesperada. Esta indiferença é mais que morte.

Dizia eu cá com os meus botões: — Ah, que se eu fosse homem, assim como sou piolho, havia de fazer comer terra a estas minhas Senhoras, visto saber-lhes a balda (mania). Um pouco caso, um desprezo a tempo, uma meiguice momentânea, uma indiferença com cautela, que não parecesse desprezo, uma confiança certa no seu juízo e virtude! Eu lhe protesto que havia de trazê-la ligada ao amor e à obrigação, que não havia de olhar para ninguém ainda que lhe fizesse festa o Grão-Mogol. Mas alguns homens são uns tolinhos! Estão-lhes ensinando com os seus ciúmes o que elas hão de fazer, duvidam da sua probidade. Ora isto é verdade. Se todos me hão de julgar e chamar ladrão sem eu o ser, neste caso é melhor furtar.

Assim passavam a vida todos três: ele não lhe importando nada; ela dando-se-lhe de tudo e eu na chuchadeira e na observação. Até que ela disse-lhe um dia:

— Meu marido, eu não posso viver assim.

— Pois vive de outra forma. Quem te pega? - respondeu ele. 

— Isso não é resposta que se me dê - tornava ela.

— Pois vê? Que resposta queres? - tornava ele. – Dize-me que eu te darei ao pé da letra.

— Tu não me amas?

— Tu não me amas? Estás satisfeita?

— Não meu marido, não é isso que eu quero de ti. O que eu digo é que tu não gostas de mim, que não me estimas, que te é indiferente não me veres e, enfim, que ainda não te causei um só ciúme.

— Olha, mulher, eu tenho preguiça de responder a tanta coisa. Mas por te dar gosto, por esta vez sem exemplo te responderei a tudo por parcelas e então tu somarás a conta como bem te parecer, contanto, porém, que não me tornes a tomar estas contas. A respeito de eu não gostar de ti, é falso. Se eu não gostasse, não casava. Que não te estimo, é mentira, porque eu dou-te de comer. Que não faço caso de te ver a miúdo, é pela esperança e vontade que tenho de que vivas muito tempo, e como estou com tenção (propósito) de que vivamos muitos anos, temos muitos anos para nos vermos. A respeito de ciúmes, não tenho de que me queixar, pois tu já não podes casar com outro, senão quando eu morrer. Em eu morrendo, não me importa que tu cases e se gostas de alguém que te faça muito bom proveito. Se alguém gosta de ti, que muito bom proveito lhe faça. O homem, quando casa, não é para aborrecer o resto das mulheres, nem a mulher para aborrecer o resto dos homens. É para ter aquele homem por seu, para lhe guardar fé, para o ajudar nos seus trabalhos e ter parte nos seus prazeres. Mas isto não tem nada para viver com o resto do mundo em boa harmonia. Não, mulher, eu não confio mais em ti que tu mesma. Descansa, vive sossegada que eu não caso com outra enquanto tu fores viva. Olha, demais a mais, tu também já não estás muito para cobiçar, vais-te fazendo feia.

Oh, diabo, que tal disseste! Foi o demo em casa do alfacinha (habitante de Lisboa). Gritou, arrepelou-se, bateu com a cabeça pelas paredes, jurou que havia de fazer e de acontecer, botou todo o fato à rua, esbofeteou-se e não acalmou a tormenta senão com uma chuva. Pôs-se a chorar como uma Madalena, mas não arrependida do que tinha dito, porque de quando em quando tornava à mesma e o maganão (sem escrúpulos) do marido pedia-lhe com todo o amor que chorasse para desabafar, que aquilo era tudo melancolia.

Ele era um preguiçoso célebre. Podia-se ser piolho ou pulga em seu poder. Mordesse o que lhe mordesse, não se coçava só para não levantar o braço. Tinha dois funis por onde comia e bebia. Sempre estava deitado. À hora de comer, vinha o criado com o funil largo, metia-lhe na boca e lhe ia botando os bocados. Para beber água vinha o funil estreito. Nunca lavava a cara. Quando vinha o barbeiro fazer-lhe a barba, pedia-lhe que lhe desse uma demão de água pelos olhos e quando chovia punha as mãos de fora da janela e deixava-as ficar até fazer sol, que lhe as enxugasse. Tudo quanto sentia molhado no corpo enxugava ao sol e assim, nem perdia tempo, nem lenha. Se a mulher alguma noite, de raivosa, não dormia com ele, levantava-se mais tarde no outro dia, quero dizer, erguia-se para lhe fazerem a cama. Se a mulher lhe perguntava a razão disto, respondia-lhe que tinha dormido tão consolado por ter estado só, que lhe continuasse o mesmo favor por algumas noites.

Cuidava muito pouco nos seus negócios, nunca saía para fora. E se lhe diziam que por aquele modo não podia ganhar de comer, dizia a isso:

— Quanto menos trabalho, menos como. E demais, como ele me chega para ir vivendo neste prazer de preguiça, e eu não pretendo comer depois de morto, para que é ajuntar dinheiro para mais do que preciso? Isso é tirá-lo aos que precisarem. Para o meu enterro, deixo essa incumbência ao senhorio das casas, se as quiser despejadas. Quando não, que faça o que quiser que eu não hei de ser defunto de cerimônias, quando em vida é coisa que nunca tive. A respeito de minha mulher, pode comer dobrado depois de eu morrer, porque lhe fica uma boca de menos. Com os meus credores, que façam o mesmo quando morrerem. Com os amigos não tenho nada, porque trabalhar para amigos deste tempo é o mesmo que suster água numa peneira. Um amigo de agora o mais que faz, - se o amigo deixa alguém que represente ou dinheiro para representar - é ir ao enterro, pegar no caixão com o lenço no nariz e a cara para a banda. E se não tem nada disto, nem lá vai, dando por desculpa que era muito seu amigo, que não se acha com ânimo de ir àquele ato; e isto quando um destes era capaz de o matar se lhe rendesse um copo de neve. Com que tenho assentado que o trabalhar muito não serve de nada para o que trabalha; é sempre para um que não trabalha nada. Meu pai trabalhou muito, deixou-me que comer. Eu não trabalho nada. Aquele que eu deixar, não lhe ficando nada, trabalhará para comer. Não senhor, o que faz a desordem de uns terem muito trabalho e outros nenhum, é não serem obrigados todos a trabalhar para comer. Estão, muitas vezes, dez ou doze a trabalhar toda a sua vida de pé descalço para um andar em sege (carruagem), quando ele nasceu também para andar descalço. Mas estes abortos duram pouco tempo. Vem muitas vezes um de lá donde nosso Senhor é servido, anda a mourejar, passa por acesso a usurário, deixa um filho carregado com oitenta mil cruzados, este anda de sege, gasta o dinheiro, morre e deixa também um filho que torna a andar descalço como seu Avô. Enfim, somos terra e em terra nos tornamos.

Este era o modo de pensar do meu preguiçoso e ninguém o descia da burra. Vinha muitas vezes um amigo, teimava com ele que fosse tratar de tal ou tal negócio, respondia-lhe ele muito descansado:

— E tratando eu pessoalmente deste negócio, quanto tempo me levará? 

Respondia-lhe o amigo: – Oito dias.

— Suponha você que eu morro amanhã. De que serve ter principiado o tal negócio?

— Mas podes viver! - retrucava-lhe o amigo.

— Então também posso viver seis meses e o Procurador lá cuidará nisso.

— Mas, homem, o Procurador além de demorar, furta. Deixa-o furtar. São os pingos do seu ofício e eu não quero tirar a propina ao Andador.

Numa palavra, nunca o puderam tirar do seu modo de viver. Todas as diligências eram baldadas e eu gostava daquele modo de pensar.

A rapariga estava costumada a ver todos os semestres caras novas. Entrou-se ali a introduzir, em ar de vizinhança, um cavalheiro enfronhado em fidalguia, tolo de todos os quatro costados e ignorante por linha reta. Estas coisas todas deram no gosto à moça. Ele falou-lhe em amor, ela disse que sim. Ele lembrou-lhe que seria bom fugir. Ela não lhe disse que não. Concluídos os ajustes, trataram de os pôr em execução e, numa madrugada, Bolaverunt de Galhetas.

O preguiçoso acordou, não achou a mulher, mas não lhe deu isso cuidado. Não perguntou por ela. Chegou o jantar, o mesmo. A ceia, o mesmo. Até que lhe disse uma criada:

— Senhor, a Senhora fugiu.

— Pois deixe-a fugir. Não invejo a felicidade de quem foi com ela. 

— Foi aqui com o vizinho Morgado.

— Deixá-lo ser. Tomara eu saber onde eles estão para lhe dar o abraço de despedida.

— Diz o moço que sabe onde eles param.

— Oh, isso agora é outra coisa. Só isso me faria vestir.

E, com efeito, assim o fez. Pôs-se a caminho com o criado e foi dar com o melro que ficou de cara amarela, visto não ter bico. Mas o preguiçoso entrou a animá-lo e a dizer-lhe:

— Não esmoreça! Vá avante! Eu não venho incomodá-lo, venho despedir-me e dar-lhe um adeus para sempre e beijar-lhe as mãos por tanto favor. Pode ir com todo o seu vagar. Dê cá esse abraço, dê outro à senhora por mim e façam muito boa viagem.

Ora confesso que desesperei vendo tanta pachorra e ao dar do abraço passei para a cabeça do cavalheiro ignorante, e em abraços passei para estas duas cabeças e nestas verão a minha Carapuça XXXIII.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.

VII Concurso de Trovas de Cachoeira do Sul/RS (Prazo: 31 de agosto)


Para efeito deste concurso, entende-se por TROVA a composição poética (poema) de quatros versos (linhas) setissilábicos, rimando o 1° com o 3° e o 2° com o 4°, expressando um sentido completo.

Tema: 
Nacional/Estadual /Internacional 

Veteranos  e Novos trovadores: 

(Lírica/Filosófica) – LIVRO

Máximo 1 trova

Remessa pelo e-mail: tudoepossivelw7@gmail.com 

A festa de entrega de prêmios ocorrerá em data e local a serem designados pela entidade. 

Haverão 5 trovas Vencedoras, 5 Menções Honrosas e 5 Menções Especiais aos trovadores. 

Juntamente do concurso de trovas, neste ano, a UBT, Seção Cachoeira do Sul, está lançando um concurso paralelo com temática livre, poemas em versos livres, crônicas e contos. Os poemas devem conter no máximo 25 versos. As crônicas, até uma página e meia com fonte 12, e os contos, até 3 páginas.

Os poetas podem participar em uma ou mais categorias. Haverão 5 premiações aos vencedores em prosas e versos livres. 

O corpo de jurados será formado por trovadores de reconhecido valor literário, já premiados em diversos concursos, indicados pela entidade promotora do evento.

Os casos omissos serão resolvidos pela diretoria da entidade promotora do evento.

Jaqueline Machado - Presidente da UBT, Seção Cachoeira do Sul. – RS

Fonte:
enviado por Jaqueline