quinta-feira, 2 de novembro de 2023

José Feldman (Analecto de Trivões) 16

Criação JFeldman com Microsoft Bing
 

Mensagem na Garrafa – 22 –

Criação JFeldman com Microsoft Bing

Odair Roberto da Silva
Ubiratã/PR

AMAZÔNIA

Oh! Pobre Amazônia!
Berço esplêndido de beleza infinda
Quanto tempo de vida terás ainda?
Teus sequazes predadores não pensam na dor
Que tua destruição provoca em nosso corações.
Humilde berço de um flamejante amor
Galhardeando em tuas razões.

Oh! Linda Amazônia!
Gáudios tempos foram aqueles áureos dias,
Quando a devastação tu ainda não sofrias
E em teu seio reinava a fulgente harmonia natural.
Doiravas ao sol, estrela de imponente ardor.
Deitavas as planícies, esbelta riqueza tropical,
Sonhavas teu futuro num meio de paz e amor.

Oh! Pobres diabos!
Aqueles que em ti cavam a própria sepultura!
Patrimônio da humanidade, berço de tanta agrura.
Falazes homens de monstrengas almas
A podar em ti a vida em seu porvir.
Quando na destruição de tua
existência não te acalmas.
Pobres demônios vêm de tua morte rir.

Oh! Amazônia!
Passado, Presente e futuro.
Vingarás um dia esta realidade dura.
Teus assassinos pagarão dobrado.
Quando na eternidade repousando estiveres,
Encurralados pagarão o alto preço de um pecado,
Chorando ante as memórias de teus caracteres.

A. A. de Assis (Pilates Mental)

Dia desses uma senhora me ligou, meio acanhada, perguntando quanto eu cobraria para escrever uma crônica sobre o avô dela, um dos primeiros moradores de Maringá. Respondi que nutro grande admiração e respeito pelos nossos pioneiros, homens e mulheres de altíssima qualidade, mas não tenho condição de falar de todos eles; por isso tenho escrito apenas sobre alguns com os quais tive ou ainda tenho alguma forma de convivência.

Expliquei também que durante cerca de 30 anos atuei profissionalmente em jornais e revistas, porém hoje ninguém me paga nada pelo que escrevo; faço esta coluna semanal por três motivos: 1. pelo prazer que me traz, 2. por ser um modo de me sentir útil e 3. como uma forma de terapia.

Com 90 anos, tenho consciência de que já estou na gorjeta de Papai do Céu; bem por isso, na esperança de permanecer mais algum tempo entre vocês, procuro seguir mais ou menos à risca o que o juízo manda. A cada seis meses vou lá na clínica do querido amigo médico Dr. Paulo Frascarelli fazer uma revisão geral na máquina. Ao final daquela costumeira bateria de exames, ele me dá um tapinha no ombro e renova as recomendações de praxe – manter uma alimentação prudente, beber bastante água, caminhar um pouco todo dia, fazer ginástica, tomar alguns minutos de sol etc. Na despedida acrescenta, rindo: “Sobretudo continue escrevendo bastante, que isso é bom demais para a saúde”. 

Creio que tal receita sirva para todos os velhinhos como eu. Assim como o corpo precisa ser exercitado, a cabeça também precisa. É o que chamo de “pilates mental”. Meu gosto pela arte de escrever facilita as coisas: enquanto espremo a mente na produção de uma crônica ou de uma trova, a engrenagem cerebral funciona a toda e com isso “enferruja” menos. Além disso, a concentração do pensamento naquilo que estou escrevendo não deixa espaço para grilos.

Sei que nem todos têm como hobby a literatura, no entanto há muitas outras formas de massagear os neurônios, ou seja, muitos meios de não dar moleza à massa cinzenta. Tenho vários amigos idosos que estão sempre alegres, serelepes, com o raciocínio permanentemente alerta, e imagino que isso se deva ao recreio mental que costumam praticar.

Há, por exemplo, os que gostam de jogar truco, xadrez, damas. Pensem no quanto a cabeça deles trabalha durante as horas que passam numa roda de amigos tentando um ganhar do outro. Saem dali felizes da vida, ninguém reclamando de cansaço ou dor nas costas, muito menos se queixando de que anda esquecendo os nomes das pessoas e das coisas.

Há também muitas senhoras com mais de 90 anos que, por conta das suas atividades mentais, continuam numa boa. Estão sempre lendo alguma coisa, vendo televisão, ouvindo música, fazendo bordados ou palavras cruzadas. Outras ainda participam de trabalhos sociais voluntários. O importante é estar o tempo todo com a cabeça ocupada.

Daí que, enquanto conseguir fazê-lo, continuarei brincando de tecer letrinhas.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo, em 05.10.2023)

Luiz Damo (Trovas do Sul) L

A dor se estampa no rosto
de abastados e oprimidos,
não maior do medo imposto
pela voz de uns estampidos.
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A escalada rumo à morte
começa no nascimento,
tanto o fraco quanto o forte,
tem seu fim no passamento.
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As chuvas que o céu derrama
são bênçãos de aroma e cores,
que Deus na terra esparrama
sobre os canteiros de flores.
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Assumindo um compromisso
não deixe de executá-lo,
no entanto, se for omisso,
a história pode julgá-lo!
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Combate os teus inimigos,
não vaciles ao surgirem,
doma-os e enfrenta os perigos
como leões a rugirem.
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Da queda, sempre guardamos,
as recordações do fato
e a marca que dela herdamos
nos tira do anonimato.
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Muito mais que a luz do dia,
tens Deus a te acompanhar,
pede-Lhe a paz e harmonia
e o brilho a te iluminar.
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Não quero manchar meu nome,
diz o avô em atroz lamento,
nem ver um neto com fome
sem escola e sem provento.
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Nasce à sombra de um segredo
o anseio de desvendá-lo,
mas também esconde o medo,
da punição ao quebrá-lo.
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No apear da montaria
pisando o solo molhado.
o cavaleiro diria:
preferia andar montado.
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Nunca estou só, no caminho,
há passos de outros e os meus,
sempre ao me sentir sozinho,
paro e sinto, estou com Deus!
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Nunca falte ao paladar
todo o sabor do alimento
e ao solo a missão de dar
seu fruto, nosso sustento.
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O exemplo de um paladino,
o velho quis demonstrar,
esqueceu que era franzino
não pode o sonho alcançar.
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O homem se acha soberano
sob o universo da lei,
erige um trono mundano
sem nunca chegar a rei.
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O tempo desvela a história,
destrona qualquer reinado,
Junta arestas da memória,
pra remontar seu passado.
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Presente, ou futuro incerto,
ao passado se afastando,
enluta a alma, quando perto,
vê-se a morte, aproximando.
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Quando o presente não for
bem vivido e respeitado,
o esforço perde o valor
em recompor o passado.
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Se a luta perde o sentido
a vida entra em convulsão,
o esforço acaba perdido,
sem forças à propulsão.
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Se à manhã, café não tem,
porque alguém, se tem, tomou,
no almoço e janta, também
só come se ontem sobrou.
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Se ao deitar não conquistei
tudo o que ao sol persegui,
é porque nem despertei,
só sonhei, mas não vivi.
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Se ignorar é não saber,
há quem sabe e desconhece,
o valor incluso ao ser
sobre o ter que só padece.
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Sempre, à vida siga avante,
nunca, falte o foco à vista,
passando de coadjuvante
a um feliz protagonista.
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Sempre que algo triste ocorre
pra denegrir a existência,
nunca à dor a vida morre
só se abala em sua essência.
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Se optares viver em tendas,
entenderás as agruras,
longe de serem contendas
mas as vivências são duras.
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Silenciosa madrugada
quebrada pela estesia,
de uma noite enluarada
sempre surge o novo dia.
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Sonhar em fugir do ninho
nos galhos do cotidiano,
é querer ser passarinho
no corpo de um ser humano.
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Fonte: Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021. Enviado pelo autor.

Marques de Carvalho (O banho da tapuia)

Clareara há pouco a manhã e o dia anunciava-se formoso, na serena pompa das galas equatoriais. Todo o céu escancarava a limpidez da abóbada de turqueza, à espera do sol. Tênue viração suspirava nas ramarias do mato, de onde vinham o papaguear dos periquitos, arrulhos de rolas, trinados de aves invisíveis. Pela praia arenosa, as garças, pousadas sobre folhagens rasteiras, nos milharais grandes, estranhas flores de imaculada alvura. E rente à agua, atravessando o rio caudaloso, um bando de marrecos desdobrava a escura fita do seu voo compassado, quase de margem a margem.

No alto da ribanceira, ao fim do caminho do sítio, entre dunas verdejantes de ajurús (tipo de árvore pequena), apareceu Hortência, a jovem tapuia. Vinha estremunhada ainda. Nas pálpebras, que longos cílios ensombravam, demoravam-se preguiças de sono. A úmida polpa dos lábios tinha esboços de bocejos. O farto cabelo, preso pelo pente de tartaruga ao alto da cabecinha doidivana, a custo se fixava ali, não tão bem que, rebelde, não formasse dos dois lados da nuca, sobre os ombros, pesadas quedas sedosas.

Deteve-se a rapariga, mordiscando folhas silvestres. Seu olhar devassou o listrão serpeante do rio deserto de embarcações e foi-se para o alto, a mirar o nascente enrubescido. Mas a frescura da riba fustigou-lhe os tenros membros mal vestidos pelo saiote curto e pela camisinha branca, de decote rendado. Estremeceu Hortência num arrepio e, alongando os braços, gemeu voluptuosa no derradeiro espreguiçamento matinal. E, já deslaçando o cós da saia, desceu a correr para a água, pregozando a delícia do banho.

Minutos depois, caindo pelos quadris a camisinha cheirosa, Vênus tapuia ostentava na claridade da manhã o encanto irresistível da sua juventude, a triunfal perfeição de sua nudez.

No matagal, houve como um redobramento de canto de passarinhos, ao tempo que o sol, vencendo a floresta, mordia com a tepidez dos primeiros raios as carnes morenas de Hortência. Chapinharam os pequeninos pés; a frialdade líquida provocou brandos ofegos: começara o banho da tapuia.
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Um tempo demorado esteve a rapariga dentro da água. Quem pode resistir à tentação de um banho ao ar livre, na costa marajoara, pela manhã? Já o sol, aguçando os quentes dardos, vencera larga distância pelo espaço. A ela, porém, pouco importavam os insidiosos ataques do astro. Sem parar um momento, ora percorria consideráveis extensões a nado, à flor do rio, ora caprichava em experimentar o próprio fôlego, com aturados mergulhos. Quando emergia a formosa cabeça atrás da qual a correnteza espalhava a negra cabeleira, tinha nos olhos uma jucunda expressão de gáudio, tentadoramente. Ali estava uma das mais requestadas mulheres de Soure, ignorante dos próprios méritos, apenas interessada no desfrute das sensações de bem-estar proporcionadas pela imersão no rio. No entanto, descrer da existência das sereias amazônicas certo não poderia quem a visse então, no banho, erguendo sobre a superfície das águas o bronzeado busto palpitante, de que se destacavam, numa sedução vertiginosa, as linhas corretíssimas dos pequenos seios virginais.

Tais eram, por certo, as reflexões que também estava a fazer, mirando-a, o negro Manoel, por entre as folhagens que limitam o areal da praia. Filho de africanos, enamorado, atrevera-se a amar Hortência. Feio e boçal, bem compreendera a impossibilidade desta paixão pela criatura que tantas vezes repudiara varonis caboclos das fazendas e até dengosos brancos da cidade. Mas o que não pudera evitar e ninguém no mundo conseguiria impedi-lo, era essa cotidiana emboscada, para a ver no banho. Cada dia, não trinavam ainda os primeiros pipilos dos pássaros, já ele estava entre os montículos de areia, agachado na verdura, à espera da tapuia. Enxerga-la nua, era a sua alegria suprema. Não lhe perdia um gesto; nem uma só linha daquele corpo desejado deixava de ser perscrutado, beijado, deflorado pela sua lascívia de hotentote. Concentrava nos olhos todos os arrancos de um vigoroso anseio de posse. Os apetites libidinosos da sua raça ferviam-lhe no peito, à vista da rapariga. Entretanto, jamais ousara sair-lhe ao encontro. É que o receio de uma repulsa quase certa e a consequente descoberta do seu criminoso recurso, detinham-lhe o atrevimento, limitando-o hoje à mesma observação inerte de muitos meses antes. E quem o divisasse mais de uma vez ali parado perante a conturbativa visão, diria erroneamente que, à força de a admirar com respeito, o negro ao fim depurara os desejos, transmudando-os em culto á beleza incoercível.

O momento, porém, que ele, o africano sórdido, mais prezava, era aquele em que Hortência, saindo da água, vinha secar aos toques da brisa a nudez amena do corpo. Ei-la justamente que nada para a beira, fatigada enfim dos prolongados brincos. Já tomou pé e a pouco e pouco vêm aparecendo os braços, o busto com os seios e a doce curva abdominal, os quadris salientes, as roliças pernas, toda a perfeição de linhas femininas; já palmilha sobre a areia, que lhe cobre os pés como com um par de sandálias de missanguinhas brilhantes. E agora, o mádido corpo fica ereto aos beijos do vento, enquanto os longos cabelos pendem sobre as costas, gotejantes. É esta a feroz alucinação do negro. Toda a formosura da virgem ali está patente à sua vista, na majestade do quadro paraense, saudado pelo trinar das aves. Bastar-lhe-ia dar alguns passos, reflete, e estender as mãos, para alcançar e possuir tamanha perfeição. Detém-no, contudo, o receio de trair-se. E o medo de perder a posse mental da tapuia que o inibe de saltar para junto dela, bramando como sátiro silvícola.

Inocente e tranquila, sem desconfiar da luxuriosa surpresa, a banhista, num gesto peculiar, que desvenda o emocionante emaranhamento das axilas, toma os cabelos, torce-os à direita, esgotando-os e os enastra (ata com fita) em trança farta, que prende sobre a cabeça. Veste depois a camisa, passando por último a saia de riscado azul. E ainda amarrando-lhe o cós, dirige-se cantando por entre as dunas cobertas de ajurús, até o caminho que leva ao sítio.

Só então, o negro Manoel sai do matagal, corre à praia, ao ponto onde, momentos antes, estivera a tapuia. Tem os olhos injetados de sangue, os lábios entreabertos: arqueja. O rosto, coberto de ralos pelos que se juntam em ponta bipartida sobre o mento (queixo), é bem o de um fauno espicaçado pela animalidade da berra (cio). Revolve-se no chão, gemendo em ansioso deliquio (prostração) de erotômano. E, para acalmar o veemente anelo insatisfeito, espoja-se, crava os dentes no solo, — esfrega as faces e a fronte no lugar onde a água, escorrendo do corpo da rapariga, tinha ensopado a areia, enchendo-a de frescura.

Do seio da mata, sobe, expirando à distancia, o canto jovial da tapuia; e ali perto, qual ironia da floresta, uma ave sibila persistente a escarninha palavra que lhe deu o nome:

— Bem te vi!

Fonte:
João Marques de Carvalho. Contos do Norte. Belém/PA: Typographia Elzeveriana, 1907. Disponível em Domínio Público. Convertido para o português atual por JFeldman.

Estante de Livros (“Thais”, de Anatole France)


Thaís é um livro de Anatole France. Publicado pela primeira vez em 1889. 
A obra se passa no Egito, parte da literatura francesa e uma crítica aos costumes da época.

Com um estilo fluente, cético e sarcástico Anatole France foi um dos escritores mais característicos da literatura francesa. Nascido em Paris, foi coerente com sua paixão e, por isso, adotou o pseudônimo France. Mas, seu nome verdadeiro era Anatole Jacques Thibault. Crítico feroz aos costumes e instituições do seu tempo, fez-se a voz da cidade, daquela Paris herdeira e centro da cultura da sabedoria e da arte do mundo ocidental. Anatole France – um filósofo epicurista – produziu várias e sucessivas obras-primas, e em 1912 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura.

Thais é a obra que assinala o zênite da força criadora do autor. Ambientada no Egito, é a história de uma meretriz e de um monge. O triunfo do corpo sobre a alma – Epícuro contra o estoicismo – foi mais finamente traçado, com tanta beleza e melodia de estilo.

Thais se passa na Alexandria, é a história de uma meretriz, que no livro é chamada de ''comediante'', e de um monge, Paphnucio, que se enamora dela, mas logo entra em conflito com suas convicções religiosas por conta desse amor. Ora, Paphnucio é um cristão primitivo, e um de seus objetivos na vida se trata de obter um tal grau de pureza espiritual que o obrigaria a passar por caminhos que pressupunham privações extremas, não só a supressão dos desejos carnais, como também os cuidados básicos de higiene, insistindo em ver no sofrimento causado por infecções, causadas por prolongados jejuns, uma forma de aproximar-se de Deus. Chega mesmo a fazer do alto de uma das colunas de um velho monumento em ruínas, o seu lar, para se elevar acima do resto da humanidade e chegar mais perto de Deus.

Pode-se perceber que Paphnucio, bastante radical, não aceita a beleza, a saúde e o bem-estar como algo bom, mas como coisas que afastam o ser humano do divino. O monge originava-se de uma abastada família de Alexandria, e foi educado para seguir o princípio do prazer; porém curiosamente, desvia-se do caminho que sua família havia traçado para ele, e resolve seguir uma nova e ainda estranha para muitos, filosofia: o Cristianismo, que então já começava a se espalhar entre as classes mais ricas, sofrendo nessa época, menor perseguição do que em seus primórdios.

Thais, jovem e bonita, desfruta de tudo o quanto a vida e a sua beleza podem oferecer; riqueza, fama, homens, arte. O monge, por sua vez, vive uma vida de castidade e preces no deserto até o momento em que, perturbado por pequenos demônios, decide deixar o monastério e ir para a cidade, em busca de Thais.

Paphnucio em seu afã, exagera em sua convicção, que se torna bastante radical, e acaba por destruir a própria vida e a da mulher amada.

Na obra, o monge faz de seu objetivo de vida fazer com que a meretriz Thaís abandone a vida devassa e, dessa forma, conseguisse a salvação de sua alma. Entretanto, o monge se apaixona pela meretriz e depois que percebe que a alma dela está salva, percebe que não era isso que ele queria.

O enredo é muito bem construído, com certa dose de crítica e sátira (que ao meu ver é incomum para a época - 1890), e é de uma leitura gostosa, muito embora tenha um vocabulário um tanto quanto rústico.

De um modo geral o autor redige a trama com doses de entranhamento filosófico e um toque de sátira sem perder um estilo artístico e literário mais refinado. De maneira objetiva, também retrata muito bem o cristianismo, ainda nos seus primeiros séculos de existência (aproximadamente em 300 d. C.)
Fontes:
Ana Ruppenthal, disponível em skoob 

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Encerrado envio de trovas do Concurso

 

Encerrou-se ontem à meia noite o prazo para o envio das trovas do Concurso realizado pelo blog Singrando Horizontes.

Foram recebidas quase 400 trovas da maioria dos estados do Brasil, Portugal, Canadá, França, Japão.

Após o feriado, a comissão julgadora composta por juízes de vários estados dará as notas.

Não havendo nenhum obstáculo, creio que até no máximo, ao final do mês, o resultado será divulgado e os diplomas serão enviados aos premiados.

José Feldman
editor do blog e promotor do concurso

domingo, 29 de outubro de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 32


 

Alcântara Machado (Armazém Progresso de São Paulo)

O armazém do Natale era célebre em todo o Bexiga por causa deste anúncio:

Aviso às Excelentissimas Mães de Família!
o
Armazém Progresso de São Paulo
DE NATALE PIENOTTO
TEM ARTIGOS DE TODAS AS QUALIDADES
DÁ-SE UM CONTO DE RÉIS A QUEM PROVAR O CONTRÁRIO

N. B. - Jogo de bocha com serviço de restaurante nos fundos.

Isso em letras formidáveis na fachada e em prospectos entregues a domicílio.

O filho do doutor da esquina, que era muito pândego e comprava cigarros no armazém mandando-os debitar na conta do pai, com outro nome bulia todos os santos dias com o Natale:

- Seu Natale, o senhor tem pneumáticos-balão aí?

- Que negócio é esse?

- Ah, não tem? Então passe já para cá um conto de réis.

- Você não vê logo, Zêzinho, que isso é só para tapear os trouxas? Que é que você quer? Um maço de Sudan Ovais? E como é na caderneta?

- Bote hoje uma Si-Si que é também pra tapear o trouxa.

O Natale achava uma graça imensa e escrevia:

Duas Si-Si pro Sr. Zézinho - 1$200.

O Armazém Progresso de São Paulo começou com uma porta no lado par da Rua da Abolição. Agora tinha quatro no lado ímpar.

Também o Natale não despregava do balcão de madrugada a madrugada. Trabalhava como um danado. E Dona Bianca suando firme na cozinha e na bocha.

- Se não é essa coisa de imposto, puxa vida!

Mas a caderneta da Banca Francese ed Italiana per l'America del Sud ria dessa coisa de imposto.

- Dá ai duzentão de cachaça!

O negro fedido bebeu de um gole só. Começou a cuspir.

No quintal o pessoal da bocha gritava que nem no futebol. Entusiasmos estalavam:

- Evviva il campioníssimo!

O Ferrúcio entrou de pé no chão e relógio-pulseira.

- Mais duas de Hamburguesa, Seu Natale.

Meninas enlaçadas passeavam na calçada. O lampião de gás piscava pra elas. A locomotiva fumegando no carrinho de mão apitava amendoim torrado. O Brodo passou cantando.

Natale veio à porta da rua estirar os braços. Em frente a Confeitaria Paiva Couceiro expunha renques de cebola e a mulher do proprietário grávida com um filhinho no colo. Esse espetáculo diário era um gozo para o Natale. Cebola era artigo que estava por preço que as excelentíssimas mães de família achavam uma beleza de preço. E o mondrongo coitado tinha um colosso de cebolas galegas empatado na confeitaria. Natale que não perdia tempo calculou logo quanto poderia oferecer por toda aquela mercadoria (cebolas e o resto) no leilão da falência: dez contos, talvez sete, quem sabe cinco. O português não aguentaria mesmo o tranco por mais tempo.

- Dona Bianca está chamando o senhor depressa na cozinha.

Resolveu primeiro apertar o homem no vencimento da letra. E acendeu um Castro Alves.

A roda de pizza chiava na panela.

- Con molte alici, eh dama Bianca!

- Si capisce, sor Luigi!

Natale entrou.

- Vem aqui no quarto.

Natale foi meio desconfiado.

- Que é?

Bianca quando dava para falar era aquela desgraça.

- José Espiridião, o mulato, o do Abastecimento, ora, o da Comissão do Abastecimento...

- Já sei.

... estava ali no quintal assistindo a uma partida de bocha. Conversando com o Giribello, o sapateiro, o pai da Genoveva...

- Já sei.

Bianca foi levar lá um prato de não sei o quê e o sem-vergonha do mulato até brincara com ela. Disse umas gracinhas. Mas ela não ficou quieta não. Que esperança. Deu uma resposta até que o Espiridião ficou até assim meio...

- Já sei.

Pois é. Ela ficou ali espiando a bocha porque era a vez do Nicola jogar. E como o Nicola já sabe é o campeão e estava num dia mesmo de...

- Sei!

Pois é. Ela ficou espiando. E também escutando o que o Espiridião estava dizendo para o Giribello. Não é que ela fazia questão de escutar o que ele falava. Não. Mas ela estava ali perto - não é? - então..

- SEI!

O Espiridião falava assim para o Giribello que a crise era um fato, que a cebola por exemplo ia ficar pela hora da morte. O pessoal da Comissão do Abastecimento andava até...

- SEI!

Ela então não quis ouvir mais nada. Veio correndo e mandou o Ferrucio chamá-lo para lhe dizer que desse um jeito com o português.

- Já sei...

Se não aproveitasse agora nunca mais. O homem que desse em pagamento da letra as...

- Dona Bianca! Venha depressa que o Dino quer avançar nas comidas!

- Mais um copo, Seu Doutor.

José Espiridião aceitava o título e a cerveja.

- Pois é como estou lhe contando, Seu Natale. A tabela vai subir porque a colheita foi fraca como o diabo. Ai, ai! Coitado de quem é pobre.

Natale abriu outra Antártica.

- Cebola até o fim do mês está valendo três vezes mais. Não demora muito temos cebola aí a cinco mil-réis o quilo ou mais. Olhe aqui, amigo Natale: trate de bancar o açambarcador. Não seja besta. O pessoal da alta que hoje cospe na cabeça do povo enriqueceu assim mesmo. Igualzinho.

Natale já sabia disso.

- Se o doutor me promete ficar quieto - compreende? - e o negócio dá certo o doutor leva também as suas vantagens...

Espiridião já sabia disso.

Dona Bianca pôs o Nino na caminha de ferro. Ele ficou com uma perna fora da coberta. Toda cheia de feridas.

Então o Natale entrou assobiando a Tosca. A mulher olhou para ele. Percebeu tudo. Perguntou por perguntar:

- Arranjou?

Natale segurou-a pelas orelhas, quase encostou o nariz no dela.

- Diga se eu tenho cara de trouxa!

Deu na Dona Bianca um empurrão contente da vida, deu uma volta sobre os calcanhares, deu um soco na cômoda, saiu e voltou com meio litro de Chianti Ruffino. Parou. Olhou para a garrafa. Hesitou. Saiu de novo. E trouxe meia Pretinha.

Dona Bianca deitou-se sem apagar a luz. Olhou muito para o Dino que dormia de boca aberta. Olhou muito para o Santo Antonio di Padova col Gesù Bambino bem no meio da parede amarela. Mais uma vez olhou muito para o Dino que mudara de posição. E fechou os olhos para se ver no palacete mais caro da Avenida Paulista.

Fonte: Alcântara Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda. Publicado em 1927. Disponível em Domínio Público

Solange Colombara (Ramalhete de Versos) 5

Talvez a velha saudade
seja apenas um embalo
do vento olhando a lua.
O rascunhar de um poema
nas estrelas, o sorriso
desenhado, o pranto solto,
quem sabe o doce bailar
das águas idolatrando
o amor, cálido, sereno,
na sua poesia nua.
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Sou uma leve brisa,
o beijo do dia.
Uma lágrima na noite
fria, solidão sombria.
Sou doce perfume,
suave sangria.
Gargalhada aprisionada
ou veneno, sua alforria.
Sou a rosa do tango,
drama na alegria.
Rodopiando na valsa
sorrio, faço poesia.
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Nas folhas do tempo
ouço o som do vento.
Às vezes lamento,
outras, só fragmento.

As folhas farfalham,
no vento gargalham.
Pedaços se espalham
no tempo, embaralham.

As folhas se agitam
no tempo, levitam
os restos, hesitam.
Os ventos, excitam.
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Um olhar pode eternizar um momento
mas uma noite não dura para sempre.
Um sorriso às vezes é aconchego, ou
pode ser um retrospecto, um lamento.
Mas na noite... O sonho torna-se cura.
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As folhagens agitadas
sentem o frescor
do crepúsculo
que vai de encontro
ao horizonte, enquanto
gaivotas repousam
no pôr do sol.
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Ouvia-se os respingos
caindo inertes, sem emoção.
Não era chuva, orvalho,
tampouco pranto.
Somente borrifadas...
Talvez poesia,
talvez um nada no chão.
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Expresso com poesia
as emoções ilusórias
alvoroçadas no vento,
acolhidas no baú do tempo.
Em meus versos sou rimas,
a brisa girando o catavento.
Demonstro na poesia, a flor
do beija-flor em sutil alento.
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A madrugada jaz fria
no concreto da cidade
e teu corpo incendiado
aquece os lençóis vazios.
A flor grita, em euforia
nos canteiros agitados;
muda, sente calafrios,
chamas da maturidade.
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Lágrimas Sombrias no Vento 

Sou no ar frio do outono
sentimento alvorecendo,
a procura da guarida
em caquinhos coloridos,
os raios da tempestade
tecendo gritos em ecos.

Sou no ar frio do outono
a leveza em benquerer,
o olhar na sombra perdida,
distante em silencioso
pranto, a prece aquecendo
corações em cacarecos.
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Memórias da Saudade 

Nas pálpebras pesadas
o vento pousou...
Em folhagens abafadas
sentiu o peso, sussurrou
herege, o pranto secou.
Lápides esquecidas
no amarelado passado
sentem o abafo, ressequidas.
Ouço um apelo cansado...
Um elo pagão, embaçado.
É só um velho balanço
levado pela brisa fria.
Em um breve relanço
aquela que outrora sofria
veste no espelho sua alforria.

Fonte: Solange Colombara. Caramanchão de Palavras. São Paulo: Ed. do Autor. Maringá/PR: Voo da Gralha Azul Publicações, 2021.

Maria Amália Vaz de Carvalho (O Tio Sebastião)

I
Não havia coisa que mais alegrasse o tio Sebastião, um velhinho que conheci em uma aldeia perto de Braga, do que falarem-lhe no filho que estudava em Coimbra.

Sorriam-se-lhe os olhos, e um contentamento intraduzível espelhava-se-lhe no rosto.

Quando lhe elogiavam o caráter, o talento, a bondade e a aplicação do rapaz, ele fingia que não acreditava, dizia que não era tanto assim... e repetia:

— Favores, meu amigo, favores...

Mas lá no íntimo agradecia aquilo tudo, e tinha vontade de apertar nos braços a pessoa que falava com tamanho louvor do filho estremecido.

Quando ele descobria o seu fraco, era quando lhe elogiavam na presença outro rapaz, outro estudante.

— Sim, sim, mas como o meu! Não é porque o rapaz seja meu filho, mas disse-me o prior, e olhe que o prior não é nenhum tolo, pois disse-me o prior que o meu pequeno era o melhor estudante que andava nas aulas de Braga, que lhe tinham dito os próprios mestres. Aquilo tem uma memória! E então ler! Às vezes estava horas e horas a ouvi-lo, fazia gosto. O talho da letra já foi melhor, isso foi, mas o prior, a quem eu disse isto, consolou-me, dizendo-me que todos os doutores tinham má letra. Assim será, mas as primeiras cartas que o pequeno me escreveu, quando foi para o estudo, podem mostrar-se... Quer você ver uma dessas cartas?...

Toda a gente da aldeia gostava do velho, e não havia uma só pessoa que para o lisonjear, ao encontra-lo, lhe não perguntasse pelo filho.

— Obrigado, vai bem! – e com um sorriso doce, enternecido e caridoso envolvia o da pergunta.

O tempo das férias, sobretudo as do Natal, que é quando se mata o porco, e se fazem filhós (bolo de farinha e ovos), e se conversa animadamente em volta da lareira, era ansiosa e impacientemente esperado pelo velho; todas as noites ia ao baú, que tinha à cabeceira da cama, e pondo uma cruz no dia que findara, dizia jubiloso:

— É de menos um!

Na véspera da chegada do filho, era uma azáfama, um revolver as velhas arcas de onde se exala um forte cheiro de maçãs camoezas, e um andar tudo numa poeira naquela casa.

— Esta cama não tem bastante roupa, Joanna, dizia para a criada; vá buscar mais um cobertor!

E alisava a colcha, endireitando a fronha do travesseirinho, e repetindo:

— O estudante é muito mimoso, e depois faz frio que não é brincadeira!

Ia à cozinha, era preciso comprar isto e mais aquilo. Examinava os armários, passava revista aos frascos das compotas, e punha de banda as garrafas de vinho antigo.

— Não que ele gosta do que é bom!

Na rua não esperava que lhe perguntassem pelo filho:

— Chega amanhã, chega amanhã!

As ansiedades eram no dia da chegada. Vinha para a porta, esfregando as mãos, rutilante de prazer. Todo o pobre que passava tinha uma esmola, todo o transeunte um cumprimento benévolo e afável. Os vizinhos exploravam aquele grandíssimo e sagrado afeto.

— Com que então é hoje, hein?

— É verdade, pelo menos assim o espero. Queira Deus que lhe não suceda alguma no caminho. Isto de rapazes...

— Há rapazes e rapazes. O seu é uma joia...

— Sim, sim, mas há más companhias...

— Qual! E então o juízo e o talento para que servem? Eu tenho ido com ele algumas vezes a Braga, e bem vejo as pessoas com quem o seu menino se dá. É tudo gente da melhor. E não lhe fazem favor. Todos me gabam a sabedoria do seu estudante, todos...

— E eu que o diga. – afirmava outro.

— Então porque não entram? Vejam se apanham uma tosse! Está muito frio. Ó Joanna, traze duas tigelas daquele vinho que sabes, e não te esqueças de trazer uma talhada de presunto. Vão beber pinga de substância! Este é do tal que faz peito, hê, hê, hê!

— Com que então, — diziam os biltres — á saúde do sr. doutor!

— Que Deus fará! – Tornava o bom do lavrador, com as lágrimas nos olhos. – Mas eu não tenho tigela, traze-me também uma, que quero beber à saúde aqui dos amigos.

E bebia de um trago, valentemente, com alma.

O estudante às vezes, na vinda de Coimbra, chegava a Braga, onde tinha amigos e condiscípulos antigos, e ficava mais um dia. De forma que o velho esperava, e ia deitar-se cheio de cuidados; não pregava olho toda a noite.

A Joanna, que bebera o mesmo leite que Sebastião, ouvindo-o gemer e suspirar, erguia-se, e perguntava-lhe:

— Tem alguma coisa, sô Sebastião?

— Que é? O estudante chegou? Já me levanto, traze-me a candeia!

E era preciso que a velha lhe explicasse tudo, e que o embalasse carinhosamente com aquelas doces palavras com que as mães adormecem os filhos rabugentos.
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O tio Sebastião, quando casou, tinha cinquenta anos, uns cinquenta anos limpos e rijos como não há aí muitos trinta.

Enquanto a mãe foi viva, não lhe quis dar nora.

— Nada! – dizia às pessoas que lhe aconselhavam o casamento, nada! – Que lucro eu com isso? A velhinha podia não se dar com o gênio da mulher que eu trouxesse para casa e isso era o inferno para mim. Quem manda naquela casa é minha mãe, e há de mandar em quanto for viva. Ela ralha, ela grita, ela dá por paus e por pedras, por dá cá aquela palha. Deixa-a! Quando rabuja demais, saio de casa, e a Joanna que a ature! São mulheres, e lá se entendem. Se eu me casasse, tinha de acudir por uma ou por outra... Nada! boi solto lambe-se todo...

E ainda solteiro fechou os olhos da mãe que lhe morreu nos braços.

Joanna ficou senhora de tudo. Era ela que olhava pela casa, que dava ordens, a verdadeira dona da casa, enfim. Aquele novo modo de vida, porém, começou a pesar-lhe, entrou a ter saudades do antigo jugo, queria receber ordens e não dá-las; a domesticidade era para ela um hábito de que não havia de desacostuma-la.

— Sabe o que mais, sô Sebastião? – disse ela um dia ao patrão. – O tempo das rapaziadas passou. Por que não toma estado? Moças é que não faltam. É verdade que o mundo vai perdido de todo, mas ainda há raparigas perfeitas e tementes a Deus.

— Endoideceste, Joanna! Eu lá caso nesta idade! Só se for contigo...

— Lá começa ele com as tolices de costume.

Água mole em pedra dura...

O tio Sebastião entrou um dia em casa com noiva. Era órfã de pai e mãe, era pobre, não tinha parentes a não ser um irmão que fora para o Brasil, e de quem não havia notícias há muito tempo; contava trinta e tantos anos, mas era madrugadora como um galo, direita como um vime, e valia por dois homens no cultivo da vida.

Quando o tio Sebastião lhe falou em casamento, ela fez-se vermelha como uma papoula, hesitou um momento, e atirando com a foice com que andava a cegar feno, lançou-se-lhe nos braços, e num amplexo formidável de leoa, rompeu com isto:

— Esperava esta felicidade há dez anos. Abrace-me, sô Sebastião, que se não fosse consigo, não me casava senão com a cova.

Vinha de longe o afeto desta mulher pelo bondoso homem.

O pai de Carlota caiu entrevado; o tio Sebastião ao passar-lhe um dia à porta ouviu choros e lamentações; entrou e soube que havia ali necessidade e quase fome; a filha única do inválido, Carlota, tinha de ficar à cabeceira do catre; as últimas economias haviam-se extinguido pouco a pouco.

O tio Sebastião socorreu aquela gente, mandou chamar o médico à Vila Verde, pagou os remédios da botica e por fim o enterro do infeliz.

Entre as poucas pessoas que acompanharam à igreja o modesto ataúde, ia o tio Sebastião curvado, melancólico, com o seu rosto barbeado, e cheio de bondade e lhaneza.

Carlota, que chorava a um canto do albergue, com as mãos atadas à cabeça despenteada, ao ver entrar o benfeitor, não lhe agradeceu as esmolas com palavras ociosas — arrastou-se para ele de joelhos, e agarrando-lhe nas mãos beijou-as com devota sofreguidão.

Passados tempos o tio Sebastião esquecera-se daquele episódio, e nem sequer reparou que a melhor cantora do lugar, que inquestionavelmente era a Carlota, deixava de cantar todas as vezes que ele passava por uma certa azinhaga...

Se ele volvesse o rosto veria no meio das ervas altas e úmidas, ou em cima dos castanheiros folhudos e entrelaçados de pâmpanos (Haste da videira coberta de folhas e de frutos), um vulto de mulher voltado para ele, a devora-lo com o olhar, a segui-lo, a banha-lo na luz carinhosa de um longo olhar enamorado.

Não deu por tal o tio Sebastião; Joanna, porém, que era amiga de Carlota, adivinhou o segredo, e o resultado sabe-o o leitor.
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Três anos depois do casamento o tio Sebastião enviuvara.

Ficou-lhe um filho, uma criancinha loura e adorável, o retrato vivo da mãe.

O lavrador concentrava no pequeno todos os afetos, amava-o até a insanidade.

O rapaz cresceu rodeado de carícias, de mimos e de ternos cuidados.

Não havia vontade que se lhe não fizesse. Era um pequeno rei despótico a cuja voz o pai e a velha Joanna se curvavam com cega obediência.

Ao completar seis anos, por conselho do prior, começou o pequeno a estudar as primeiras letras com o professor régio da freguesia.

— Temos homem, dizia o prior ao velho; o rapaz vai bem, estuda e aprende com facilidade.

— Quando me lembro que posso morrer sem o ouvir cantar a missa nova, parece-me que estalo de pena.

— Ó senhor prior, o meu rapaz dava ou não dava um padre de mão cheia?

Era para padre que o velho destinava o filho, sonhava todas as noites com a sua primeira missa, via-o com as vestimentas engomadas e duras do sacerdócio, diante do altar da igreja da freguesia, no meio de nuvens de incenso, enquanto os padres cantarolavam ao som plangente e arrastado do órgão, e os sinos tangiam alegres repiques, e subiam ao ar as girândolas de foguetes impregnando de um espesso cheiro de pólvora o adro enramilhetado de murtas...

Pronto nas primeiras letras, foi o pequeno Sebastião para Braga onde se matriculou no Liceu.

Neste entrementes chegou do Brasil o irmão de Carlota. Foi à aldeia natal, procurou os parentes, e soube que todos tinham falecido, restando-lhe tão somente um sobrinho.

O brasileiro era solteiro, e doente; não vinha milionário, mas tinha mais do que o suficiente para dar uma bonita carreira ao estudante.

— Olhe, mano, disse ao cunhado, deixe isso ao meu cuidado, eu me encarrego do menino. O bem que desejava fazer a meus pais, que infelizmente não encontrei, hei de reverte-lo em favor de meu sobrinho. Uma condição exijo: não quero que o rapaz se ordene. Quero dizer, se isso for da sua vontade, dele, não me oponho, mas deixemos o tempo ao tempo. Cá a minha opinião é que ele deve estudar medicina. Os médicos ganham muito dinheiro em toda a parte, e no Brasil sobretudo, onde o mais relés tem carruagem. Está certo isto? O rapaz quando acabar os estudos em Braga vai para Coimbra?

O tio Sebastião custou a descer daquele sonho em que andara tantos anos embevecido. Mas por fim cedeu.

O brasileiro demorou-se alguns anos ainda em Portugal. A quebra, porém, de uma casa importante do Rio chamou-o ao Brasil, para onde partiu deixando ao sobrinho, que até então se havia portado com singular e exemplaríssimo discernimento, ordem franca para receber tudo que lhe fosse preciso numa das casas mais acreditadas do Porto.
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Um dos estudantes que mais dinheiro gastava em Coimbra por aqueles tempos era Sebastião Alves, a quem a convivência com os rapazes oriundos das mais nobres famílias de Portugal empavonara e envaidecera extremamente.

No seu quarto, que ele adornara com excessivo e inaudito luxo para um estudante, reuniam-se todos os que sobressaiam em Coimbra pela fidalguia, pela força, e pela estroinice.

Sebastião começou a ser explorado; pediam-lhe dinheiro que nunca era restituído, vestiam-lhe o fato, calçavam-lhe as botas, e comiam-lhe ceias abundantes e regadas de vinhos caros.

Com aquela vida era incompatível o estudo e a reflexão. Deixou de ir às aulas. Enganava o tio e o pai, enviando-lhes certidões falsas dos atos que nunca fizera.

Havia dois anos já que não ia à aldeia, cujo viver lhe aborrecia e se lhe figurava mesquinho e chato.

Quando os estudantes partiam para férias, contentes e alegres para os abraços da família, Sebastião Alves deixava também Coimbra, percorria as praias, ia ao Porto, a Cintra, ao Bussaco.

Aquela vida inútil e vária era de quando em quando remordida pelo remorso, todas as vezes que o vadio recebia as cartas do pai que, apesar de não terem ortografia, e de serem escritas com uma letra grotesca e pesada, lhe avivavam o entranhado amor com que ele era querido por aquele amantíssimo coração de velho.

II
O brasileiro voltara a Portugal. Em Santa Apolônia comprou bilhete para Coimbra, mas adormecendo profundamente só acordou quando ouviu um empregado gritar: Granja!

— É o mesmo, disse consigo. Até é melhor. Fico no Porto, e escrevo ao Sebastião que venha ter comigo se quer ir ver o filho a Coimbra.

Escreveu. Se o tio Sebastião queria ir a Coimbra! Nisso pensava ele havia semanas, porque já não podia com as saudades.

— Já cá estão dois carros e uns pozinhos, dizia ele, se não fosse isto, quem ia ver o rapaz era o filho de minha mãe...

O convite do cunhado alvoroçara-o de alegria e de desusado contentamento. Ria alto, andava radiante, cantava:

À uma hora nasci,
Às duas fui batizado,
Às três andava de amores,
Às quatro estava casado.

— Queres tu vir daí, Joanna? – dizia ele para a criada que lhe arranjava a mala. – É verdade, ó Joanna, não te lembras assim de uma coisa que o estudante goste? Uma coisa bonita...

A criada que era gulosa, lembrava-lhe marmelada, doce de ginja, peras em calda...

— Upa! coisa melhor...

— Quer saber? – disse a velha, com os olhos acesos de quem achou um tesouro, – e a mim que não me lembrou logo! Eu cá se fosse o sô Sebastião comprava uma medalha de ouro como a que o sr. Morgado traz no cordão do relógio; metia-lhe dentro o retrato da falecida, e levava isso ao menino que há de ficar no céu ao ver a mãezinha que Deus lhe levou.

O tio Sebastião aprovou a ideia. O retrato foi tirado da parede, tinha sido feito em Braga, logo nos primeiros tempos do casamento. Representava Carlota vestida com uma saia de seda preta, lustrosa, cheia de vincos, com grossas arrecadas, e uns enormes grilhões no peito largo e arfante, os pés nus numas chinelas bicudas de verniz. Na mão direita tinha um lenço cheio de bordados, tufado. À esquerda descansava nas costas de uma cadeira, e os grossos dedos dessa mão pendiam para a palhinha, lanzudos, reluzentes de anéis. Nos olhos de Carlota havia o espanto de quem vê bruxaria, uma espécie de pavor disfarçado.

O lavrador pegou no retrato, e esteve a olhar para a mulher. Não chorou, nem teve saudades, estava absorvido por um sentimento superior.

— Ó Joanna, mas o retrato é grande e a medalha pequena. Eu não tenho alma de degolar o retrato...

A criada sorriu-se.

— Pois leve o retrato e a medalha ao menino, e ele lá que o mande arranjar...

Na manhã seguinte almoçava o tio Sebastião com o cunhado, e partia nessa mesma tarde para Coimbra, onde chegaram de noite. O brasileiro, cheio de cansaço, adoentado, propôs que se adiasse a visita ao estudante para o outro dia. Que eram horas dele estar a estudar; que não era bom distraí-lo das suas obrigações. O tio Sebastião, porém, não se convenceu. Disse que iria só, que não podia esperar, que não dormiria bem sem dar um abraço no filho. Partiram ambos.

Os viajantes bateram à porta da casa de Sebastião Alves, maravilhados de verem as janelas abertas e a casa completamente às escuras. Ninguém lhes respondeu.

Bateram de novo.

Uma vizinha com a sua voz fina e cantada perguntou o que desejavam, e explicou que o sr. Sebastião Alves tinha ido cear com uns amigos em uma hospedaria da baixa.

Perguntou o brasileiro onde era essa hospedaria, e para lá se encaminhou com o ansioso companheiro, que ao vê-lo meditativo resmungava como que para atenuar a extravagância:

— Rapazes! Um dia não são dias.

As ruas da alta estavam solenemente silenciosas, os transeuntes eram raros.

Ao passarem por uma casa, cujo primeiro andar tinha as janelas abertas, viram um estudante com a cabeça encostada às mãos, absorvido e com os olhos em uns livros...

— Aquele também é rapaz, tornou o brasileiro com gesto sentencioso, mas faz a sua obrigação. Quem vem para aqui é para estudar...

Ao subirem as escadas da hospedaria ouviram um grande rumor, vivas, e hurras frenéticos e entusiásticos; os criados açodados, vermelhos, passavam com largas travessas fumegantes...

— Desejamos saber, disse o brasileiro a um dos criados, se o sr. Sebastião Alves está aqui.

— Está, sim senhor, se lhe querem falar, vou dar-lhe parte...

O brasileiro tirou meia coroa da bolsa de prata, e dando-a ao criado continuou:

— Não queremos perturbar o sr. Sebastião, falar-lhe-emos depois. O que desejamos é um quarto onde possamos esperar até que finde a ceia. Faça favor de lhe não revelar que estamos aqui, é uma surpresa que queremos fazer ao estudante; e sorriu contrafeito.

O criado conduziu-os a uma sala, separada daquela em que os estudantes ceavam simplesmente por uma porta.

O tio Sebastião tinha o coração aos pulos dentro do peito.

— Eu vou lá; dizia baixo com a voz tremula, quero vê-lo.

O cunhado conteve-o.

— Espreite pelo buraco dessa fechadura que já o vê.

O velho curvou-se e olhou.

— Lá está ele! Lá o vejo. Está mais magro... aquilo talvez seja do estudo. Coitado! Mas que valentão que ele anda! Os outros ao pé dele parecem uns pobretões! Um até tem as vestes toda rota e cheia de nódoas. Aquilo que eles trazem é assim a modo de batina de padre... pois não é? Espera, ó mano! Lá vai o meu filho levantar-se. Ó meu rico filho da minha alma!

Sebastião levantara-se de fato para fazer um brinde.

Tinham bebido à saúde das mulheres, do amor, da glória, do talento...

Sebastião, um tanto inflamado de repetidas libações, fez uma saúde a um velho que estava sentado à mesa, um pouco distanciado do grupo dos estudantes.

O brinde foi estrepitosamente aceito.

O velho agradeceu nestes termos:

«Muito obrigado, meus senhores! Reconhecido pela deferência com que me honram, consintam que beba à saúde do pai do cavalheiro que me brindou.»

O brasileiro disse:

— Tome, mano! Aquilo é consigo!

— Mas eu vou lá, vou dar um abraço naquele honrado homem que se lembrou de mim...

Os estudantes ergueram os copos.

— Á saúde de teu pai, clamaram.

— Que infelizmente está longe, disse comovido pelo vinho Sebastião Alves.

— Longe! qual longe, nem meio longe, tartamudeou o tio Sebastião, e ia para lançar-se pelo corredor afora, quando o brasileiro de novo o reteve.

— Espere homem! O rapaz talvez fique envergonhado se lhe aparecermos assim de repente.

— É verdade, meus senhores, disse um dos da roda, um que passava por orador e que gostava de fazer estilo.

«O pai de Sebastião está longe, vive em plagas distantes, em terra de Santa Cruz nesse país fecundo, monstruoso, gigante, que se chama Brasil, e onde os nossos recebem uma hospitalidade tão franca e tão generosa. Brindando ao pai de Sebastião, brindo aos nossos irmãos de além-mar.»

— O que diz ele? resmungou o tio Sebastião, que eu estou no Brasil? Não é má!... e continha o riso.

O brasileiro compreendeu tudo e murmurou: canalha!...

Um dos rapazes que fora condiscípulo de Sebastião em Braga, voltando-se para este, disse:

— É verdade, ó Sebastião, aquele velhinho que uma vez te acompanhou à mala posta, e que eu vi a chorar como uma criança na rua da Conega quando se despediu de ti, era teu avô? Muito gostei eu do velhinho. Parece que o estou a ver a acenar-te com o lenço, correndo com as suas pernas trôpegas e cansadas atrás da carruagem, a dizer: O Senhor vá na tua companhia!

Sebastião avincou o rosto, um rubor súbito incendiou-lhe as faces, e partindo uma noz, respondeu:

— Esse velho era caseiro de uma quinta que meu pai comprou quando esteve ultimamente em Portugal.

O tio Sebastião voltou-se para o brasileiro. Estava lívido, tinha os lábios apertadamente unidos, os olhos injetados de sangue. Esteve um segundo, com os olhos fitos nos do cunhado, sem poder articular uma palavra, bamboleando a cabeça, respirando ofegantemente pelas narinas palpitantes e dilatadas; depois caiu nos braços do cunhado e prorrompeu num soluçar dilacerante e pungente:

— Ingrato! ingrato!
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Quando o tio Sebastião chegou em sua aldeia, vinha pálido, desfeito, parecia desenterrado.

A velha Joanna assustada perguntou-lhe:

— Que foi? Que foi? E o menino?

— Morreu!

Fonte: Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880. Convertido para o português atual por J. Feldman. Disponível em Domínio Público.