segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Trovadorismo

Literatura Medieval - o Trovadorismo

Para conhecer a literatura medieval, precisamos, antes, conhecer um pouco da Idade Média, relembrar as aulas de História.

A Idade Média foi o tempo em que nasceram as nações européias como as conhecemos hoje. Para que isso ocorresse, foi necessário encerrar o período feudalista, em que o poder estava nas mãos dos senhores feudais, e restabelecer o poder dos reis, reconhecendo neles a autoridade de governo. Isso só foi possível graças ao Renascimento Comercial.

As viagens dos mercadores ao Oriente colocaram os europeus em contato com uma realidade diferente. No Oriente, havia cidades prósperas, bonitas, e um comércio intenso de produtos requintados há muito tempo ignorados pelos europeus. Ao poucos, os mercadores intensificaram o comércio com o Oriente, inicialmente pelo Mediterrâneo, a partir das cidades italianas de Gênova e Veneza. Por mar e por terra, as rotas comerciais se expandiram em todas as direções, fazendo surgir novas cidades e enriquecendo uma nova classe social: a dos burgueses comerciantes.
A força do dinheiro dos burgueses chamou a atenção dos reis, que logo se aliaram a eles, enfraquecendo o poder da nobreza (senhores feudais) e da igreja. Apoiados pelo dinheiro dos burgueses, recolhido na forma de impostos, os reis quiseram demonstrar a sua força: organizaram exércitos sob o seu comando, instituíram leis para todo o país, estabeleceram uma língua única e deram vida nova às suas cortes.

A formação de Portugal se deu numa época de transição em que se percebe o sistema feudal em crise e, em contrapartida, o crescimento das atividades mercantis em áreas urbanas. Como afirmam Oscar Lopes e Antônio J. Saraiva no livro História da literatura portuguesa: “Na época em que Portugal se constitui como estado independente, em meados do século XII, encerra-se a chamada “Idade das Trevas”, isto é, a idade em que a economia, a sociedade, a vida política e a cultura estiveram dominadas pela economia rural de auto-subsistência. Começa a desenvolver-se a economia mercantil; em face dos castelos brotam as vilas e cidades povoadas de “burgueses”. Os produtos da terra começam a ser lançados e procurados nos mercados pela gente citadina. Entre o senhor, que usufrui do rendimento da terra, e o servo que o produz, novas classes se instituem, quer ligadas ao trabalho rural, como os pequenos proprietários e os rendeiros livres, quer a novas atividades econômicas, como os mercadores e os negociantes de dinheiro.”

Muito característico também dessa época é o espírito de intensa religiosidade. Grande parte das atividades sociais estava relacionada à Igreja, o homem medieval vivia sob o medo e o temor de Deus, a produção cultural estava, pois, toda ela sujeita à aprovação do clero. Enfim, Deus estava no centro de todas as preocupações.
É por isso que se denomina essa época de teocêntrica.

Seria interessante, também, lembrar as relações de vassalagem entre o senhor feudal e os servos. Essa mesma rigidez e distanciamento vão ser transportados para o relacionamento amoroso na poesia, sob a denominação de amor cortês. Todas essas marcas estarão visíveis na produção artística da época, especialmente na literatura.

Cantigas e Trovadores

É nessa época que surgiram os primeiros textos literários: as cantigas trovadorescas, assim chamadas porque eram compostas e cantadas pelos trovadores, que eram acompanhados por instrumentos musicais como o alaúde, a flauta, a viola, a gaita etc.

Essas composições eram poesias feitas para serem cantadas nas feiras ou nos castelos, só mais tarde foram reunidas em cancioneiros, sendo os mais importantes: o da Ajuda, o da Biblioteca Nacional e o do Vaticano. (As cantigas têm um correspondente na arte popular brasileira: as trovas dos repentistas do Nordeste, que tanto divertem os turistas nas feiras e nas praias).

O texto mais antigo desse período, segundo Carolina Michaelis, é a Canção da Ribeirinha (também conhecida como Canção de Guarvaia), de Paio Soares de Taveirós.

Tipos

Compostas e cantadas no idioma galego-português (comum a Portugal e à Galícia, pois o português propriamente dito ainda não se desenvolvera), as cantigas se dividem em dois tipos: líricas (cantigas de amor e de amigo) e satíricas (de escárnio e maldizer).

As cantigas de escárnio e maldizer eram feitas para ridicularizar alguém, numa linguagem simples, popular e, muitas vezes, obscena.

As cantigas de amor tiveram origem em Provença, no sul da França. Chegaram a Portugal nos contatos entre as cortes e por meio dos romeiros e peregrinos em viagem aos lugares santos. Como se adivinha pelo nome, tratam do relacionamento amoroso e inauguram a forma do amor cortês, em que os trovadores declaram seu amor a uma dama (de posição social superior), pedindo-lhe que aceite sua devoção e colocando-se, submisso, à sua disposição – em uma relação muito parecida com a suserania e vassalagem, percebida na estrutura social medieval.

As cantigas de amigo, ao contrário, tiveram origem na própria Península Ibérica e apresentam uma diferença fundamental em relação à cantiga de amor, o trovador compõe sua cantiga como se fosse uma mulher contando o seu sofrimento à espera do namorado (chamado amigo). Nessa composição, os elementos da natureza (flores, árvores, praias etc.) aparecem assim como pessoas do ambiente familiar (mãe, amigas etc) atribuindo à cantiga um caráter popular. (Modernamente, Chico Buarque de Holanda, em muitas de suas composições, dá voz a uma mulher que canta seus sofrimentos de amor).

A TROVA

Segundo o trovador paranaense A. A. de Assis, a língua portuguesa nasceu cantando trovas, isso há mais de mil anos, na voz dos jograis e menestréis que iam de cidade em cidade espalhando os seus versos.Cultivara-se a trova inicialmente no sul da França, de lá se espalhando por toda a Europa, até encontrar na Espanha e, finalmente, em Portugal, o seu mais fértil canteiro.

Nas cortes portuguesas a trova alcançou grande esplendor. Era a poesia dos reis, como o célebre Dom Dinis; dela se serviram Gil Vicente e Camões; mais recentemente, cantaram em trovas Augusto Gil, Antônio Correia de Oliveira, Fernando Pessoa.

Ao Brasil a trova chegou nas caravelas de Cabral. Facilmente aclimatou-se, caiu no gosto do povo, e até hoje perdura, ganhando a cada dia mais adeptos. Cultivou-a José de Anchieta; passou por Gregório de Matos; pelos árcades (Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto, Cláudio Manuel da Costa); pelos românticos (Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Castro Alves); pelos parnasianos (Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Vicente de Carvalho); pelos simbolistas (Cruz e Souza, Alphonsus de Guimarães; pelos modernistas (Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drumonnd de Andrade)...

Mas a grande expansão da trova no Brasil, com repercussão imediata em Portugal, deu-se mesmo a partir de 1956, com o lançamento de "Meus irmãos, os trovadores", uma coletânea de duas mil trovas organizada por Luiz Otávio, na época o trovador mais conhecido em todo o país. No livro aparecem, entre centenas de outros autores, alguns poetas já consagrados e que se especializaram em trovas: Adelmar Tavares (o primeiro trovador a ingressar na Academia Brasileira de Letras), Bastos Tigre, Belmiro Braga, Lilinha Fernandes.

Tamanho foi o sucesso da obra, que a trova ganhou espaço na maioria dos jornais e revistas e também em numerosos programas de rádio. Em 1959, Luiz Otávio e J. G. de Araújo Jorge, com apoio do jornal carioca "O Globo", lançaram os I Jogos Florais de Nova Friburgo, ponto de partida para a consolidação do movimento literário mais amplo e bem organizado de que se tem notícia da literatura brasileira.

Os Jogos Florais foram muito populares na Idade Média. Era um torneio cultural promovido anualmente em Toulouse, França, inspirado em tradições originárias da Roma antiga. Por se realizar na primavera, esse torneio, que envolvia várias modalidades literárias, oferecia prêmios (troféus) em forma de flores, daí o nome "Jogos Florais".

Os I Jogos Florais de Nova Friburgo constaram de um grande concurso de trovas, com o tema "amor". A festa de premiação, em maio de 1960, reuniu na bela cidade serrana fluminense, além dos vencedores do concurso, outros ilustres intelectuais, entre os quais Antônio Olinto, Eneida, Jorge Amado, Manuel Bandeira. Dali por diante, dezenas de outras cidades passaram a promover torneios semelhantes, alguns com o nome de Jogos Florais, outros simplesmente como concursos de trovas. Na maioria dessas cidades, a festa hoje faz parte do calendário de eventos, constituindo importante atração turística.

O concurso de trovas propõe um ou mais temas, a partir dos quais trovadores de todo o Brasil e também de Portugal produzem seus versos. Ao final do prazo estabelecido para remessa dos trabalhos, uma comissão julgadora seleciona as trovas premiadas (vencedoras, menções honrosas e menções especiais).

Os autores das trovas contempladas são convidados a comparecer à cidade promotora do concurso para uma festa que dura de um a três dias. Nessa ocasião, além de passeios, recitais e outros programas, faz-se uma reunião solene para entrega dos prêmios (diplomas, troféus e medalhas). Não há prêmio em dinheiro. Quando há recursos disponíveis, os premiados ganham hospedagem e refeições, mas as despesas de transporte correm por conta de cada um. Por ser um movimento literário que se caracteriza pela fraternidade, tal costume é aceito tranqüilamente.

A União Brasileira de Trovadores tem seções e delegacias em todo o país, congregando cerca de 5 mil trovadores. A trova moderna define-se como um poema composto de quatro versos de sete sons (setissílabos), rimando o primeiro verso com o terceiro e o segundo com o quarto. Assemelha-se ao haicai, pela concisão; porém é mais acessível ao público geral, pela sua musicalidade e simplicidade. Adelmar Tavares a resumiu assim:
"Oh linda trova perfeita",
que nos dá tanto prazer...
Tão fácil, depois de feita...
tão difícil de fazer!"

Classificam-se as trovas em três grupos principais: filosóficas, líricas e humorísticas.

Exemplo de trova filosófica:

Redimindo os pecadores,
conduzindo-os para a luz,
o maior dos sonhadores
morreu pregado na cruz!
Aparício Fernandes

Exemplo de trova lírica:

Eu vi minha mãe rezando
aos pés da Virgem Maria:
- Era uma Santa escutando
o que outra santa dizia!
Barreto Courinho

Exemplo de trova humorística:

Minha sogra não reclama
pelo trato que lhe dou.
Até de filho me chama...
só não diz que filho eu sou!

Elton Carvalho

O trovador carioca Sérgio Bernardo, em artigo A Trova: Origem, Trajetória, Rumos, enfatiza que a trova, desde sua origem até este início do séc. 21, tem estado presente em todos os movimentos literários surgidos. No Trovadorismo dos séc. 13 e 14, como visto, encabeçou os tipos poemáticos chamados cantigas (de amor, amigo e de escárnio e maldizer).

Nos séc. 15 e 16 eram compostas isoladamente ou retiradas do trovário popular — coleção de trovas anônimas — para que os poetas as glosassem, desenvolvendo poemas mais extensos, de várias estrofes, cujo conteúdo era centrado na temática da trova-mote. Os autores já não tinham de estar presos, porém, a temas fixos como nas cantigas, podendo os versos ser de exaltação a campanhas militares, feitos reais ou mesmo um relato da vida cotidiana das cidadelas fortificadas.

Ao tempo de Camões, Sá de Miranda e Diogo Fernandes, entre outros, as trovas eram largamente referidas por estes poetas, recolhidas do povo, como esta que critica a cessão de Portugal ao trono da Espanha, no séc. 16:

Viva El Rei Dom Henrique
Lá no inferno muitos anos,
Pois deixou em testamento
Portugal aos castelhanos!

A esta altura, com o surgimento do Brasil na geografia mundial, vem a trova na bagagem dos primeiros portugueses. Difícil é ser encontrada documentalmente, já que o governo português proibia a impressão gráfica na nascente colônia. Mesmo assim, há referência dela utilizada como estribilho em poemas de, por exemplo, José de Anchieta (1543-1597).

No séc. 17, já com uma literatura brasileira mais expressiva, surgem nossos primeiros livros, impressos em Portugal, um deles o Compêndio Narrativo do Peregrino da América, de Nuno Marques Pereira (1652-1734?), em que as trovas estão presentes. Historicamente, trata-se do primeiro livro brasileiro contendo trovas intencionais (isoladas).

Sem conta, peso ou medida,
vivo no mundo, de sorte
que não sei, chegando a morte,
que conta darei da vida.

Com o florescimento do Arcadismo, no século seguinte, imperaram as composições poéticas com metros e estrofes de maior extensão, mas muitas trovas podem ser derivadas, como esta que encerra um poema de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), o célebre autor de Marília de Dirceu:

Não sei, Marília, que tenho,
depois que vi o teu rosto,
pois quando não é Marília
já não posso ver com gosto.


Antônio Bersane Leite, amigo de Bocage, que veio para o Brasil em 1807 e aqui morreu, foi outro que escreveu muitas trovas intencionais, sobretudo satíricas. O séc. 19 foi riquíssimo em movimentos literários — o Romantismo, Parnasianismo, Simbolismo — e em grandes vozes poéticas. Todos os poetas situados dentro destes períodos cederam aos encantos da trova, entre eles, Castro Alves (romântico):

As nuvens ajoelhadas
nos claustros ermos e vãos
passam as contas doiradas
das estrelas pelas mãos!

Ou Olavo Bilac (parnasiano):

O amor que a teu lado levas
a que lugar te conduz,
que entras coberto de trevas
e sais coberto de luz?


Ou ainda Alphonsus de Guimaraens (simbolista):

O cinamomo floresce
em frente do teu postigo...
Cada flor murcha que desce
morre de sonhar contigo!


Com a chegada do séc. 20, surgem os primeiros trovadores autênticos, começando a encarar a trova com mais seriedade e escrevendo-a conscientes de estar criando uma peça literária, com o cuidado formal e estilístico que esta merece. Destacam-se Américo Falcão, Belmiro Braga e Adelmar Tavares, primeiro trovador a pertencer à Academia Brasileira de Letras (ABL).

Também em letras de música — nas modinhas, lundus, chorinhos — a trova se fez presente.

Dos grandes poetas desse século, praticamente todos mostraram-se sensíveis à trova e em dado momento a produziram. Podem ser citados, entre tantos, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles. Desta última ficou uma linda trova:

Em barca de nuvens sigo...
E o que vou pagando ao vento
para levar-te comigo
é suspiro e pensamento.


Em 1956, Luiz Otávio (1916-1977) compilou e publicou a antologia Meus irmãos, os trovadores, contendo 2 mil trovas de autores brasileiros e portugueses, de Gregório de Matos aos atuantes na época. Este livro é considerado o marco de criação do movimento trovadoresco atual, pois, a partir dele, trovadores e mais trovadores foram aparecendo por todo o Brasil, numa verdadeira febre pelas quadras de 7 sílabas. De tal porte foi este surto trovístico, que a ocasião tornou-se propícia para se criar o primeiro concurso de trovas com congraçamento de trovadores, os I Jogos Florais de Nova Friburgo, em 1960.

Daí por diante, outras cidades compraram a idéia e passaram a promover seus concursos e jogos florais, que foram se espalhando por todo o País, de Belém, PA, a Porto Alegre, RS. Centenas de milhares de trovas já foram escritas, milhares delas antológicas, a partir do que é possível reafirmar-se: a trova é o gênero poético de forma fixa mais cultivado hoje no Brasil. E talvez mesmo no mundo, podendo ser até que ganhe do haicai, poema de 3 versos originário do Japão e largamente produzido naquele país.

Rumos

Em pleno séc. 21, era da supremacia tecnológica, do comportamento globalizado e do vanguardismo a qualquer preço, a trova resiste e continua ativa, efervescente e fazendo brotar novos talentos. No País, a União Brasileira de Trovadores é a entidade responsável, administrativamente falando, pela sua consolidação, divulgação e perpetuação, através da coordenação de concursos ou realização de oficinas em escolas e instituições públicas, visando a despertar o interesse pela trova, sobretudo no tocante às novas gerações. Trovas escritas por jovens do ensino fundamental e médio, em muitas cidades brasileiras onde estas oficinas são ministradas, dão a certeza de que a UBT caminha em bom rumo. E de que a trova ainda tem muito a contribuir com nossa literatura poética, enquanto num mundo cada vez mais assediado pela máquina houver coragem para se falar de sentimento.

Fontes:
ASSIS, A.A. de. Falando sobre Trovas. Disponível em http://ubtportoalegre.portalcen.org/leitores.htm

BERNARDO, Sérgio. A Trova: Origem, Trajetória, Rumos. Disponível em http://www.falandodetrova.com.br/v5/atrovaorigem

SANTOS, Eberth. MOURA, Josana de. Literatura e Filosofia (Palavra em Ação). 2.ed. Uberlândia: Ed. Claranto, 2004.

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