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sábado, 19 de janeiro de 2013

Paula Ney (1858 – 1897)


A Produção Poética de Paula Nei. Artigo de Bruno Scomparim Pereira (Cuiabá/MT)

   O nome de Francisco de Paula Ney (Vila de Aracati, CE, 2/2/1858 – Rio de Janeiro, RJ, 13/10/1897) é mencionado nos meios literários, atualmente, máxime e somente como partícipe da vida boêmia que marcou o Rio de Janeiro da belle époque, e na qual figuraram nomes que acabaram se imortalizando, como é o caso de Aluízio Azevedo e  Olavo Bilac, e outros que a Crítica de hoje situa em posição menos elevada – são exemplos Coelho Neto, Guimarães Passos, Luís Murat, e muitos outros.

   Figura de enorme popularidade no Rio de Janeiro de sua época, Paula Ney nunca pretendeu se dedicar seriamente à literatura, e muito menos viver dela – passou sua mocidade vivendo do que lhe rendia sua atividade na imprensa diária, bem como dos freqüentes favores que lhe faziam seus colegas e conhecidos. Sua vida apenas conheceu relativa estabilidade após seu casamento, quando o status de pai de família, o emprego público e a saúde cada vez mais fragilizada impediam-lhe de viver no mesmo desregramento de antes.

   Não obstante fugir da carreira literária, que considerava avessa ao seu gênio turbulento e ansioso por movimento, Paula Ney, em sua curta existência (faleceu aos 37 anos de idade), acabou deixando à posteridade, além das linhas que anonimamente escreveu nos jornais, também algumas modestas produções poéticas, que, juntamente com alguns discursos de sua lavra (Paula Ney foi brilhante orador, ficando famosa sua capacidade de improvisação, sendo que nos  restou algumas transcrições de seus discursos nos jornais da época), compõem seu reduzido acervo literário.

   É mais pelo seu valor histórico e bibliográfico que tomamos a iniciativa de reunir, em um só corpo, o que já foi possível reunir-se das poesias escritas por Paula Ney, e que constam das duas biografias que tiveram por objeto a vida do ilustre boêmio: "A Vida Boêmia de Paula Ney", da lavra do minucioso biógrafo Raimundo de Menezes, que também dedicou-se ao estudo da vida de outros escritores contemporâneos à Ney, como Aluízio Azevedo, Guimarães Passos e Emílio de Menezes; e "No Tempo de Paula Ney", esmerado livro de autoria de Ciro Vieira da Cunha, que com sua obra conquistou o Prêmio Carlos de Laet de 1949, promovido pela Academia Brasileira de Letras, e que também é autor de um curioso opúsculo intitulado "100 Piadas de Paula Ney", que reúne o formidável anedotário do boêmio cearense.

   As poesias de Paula Ney, desconsiderados os versos satíricos que ele arquitetava espontaneamente em meio as suas palestras, e que raramente eram registradas em papel, não passam de meia dúzia, e não primam pelo estilo. Nem dele seria razoável esperar o contrário, pois nos parece que seus versos foram esboçados, in totum, de improviso, à  mesa das confeitarias em que ele tomava assento para escrever suas reportagens e descobrir novas matérias para elas. Percebe-se a influência do parnasianismo predominante no momento: o uso do soneto como molde de manifestação poética, algumas figuras de linhagem, e elementos outros que não merecem ser mencionados nesta pequena resenha.

   Não obstante, sua linguagem destoa do formalismo e do rigor da Escola de Bilac – a singeleza das figuras que Paula Ney invoca, e a simplicidade dos termos e das construções de que se utiliza reportam uma influência maior do Romantismo – em seus versos prevalece a emotividade e os exageros românticos, em detrimento da emoção contida e contemplativa dos parnasianos.

   Quanto à qualidade dos poemas, em seu conteúdo, não se pode tirar nenhum juízo que olvide o fato de que, se Paula Ney foi poeta em algumas ocasiões, foi-o de improviso, sem maiores pretensões e veleidades. Isso talvez escuse as deficiências que hora ou outra se encontram pelos seus parcos versos, como o emprego de figuras poéticas já exaustivamente conhecidas, o uso excessivo de vocativos, etc. Não obstante, inegável que seus versos emanam certa beleza, muito dela devida à simplicidade e espontaneidade que neles transparecem. Exemplo maior disso é o soneto "A Fortaleza", que ganhou considerável notoriedade em sua época, a ponto de que a capital cearense fosse, como ainda é, batizada de "loira desposada do sol", feliz inspiração de Paula Ney em uma faceta pouco conhecida de sua vida – a de Poeta.

   Por fim, convém notar, antes que se julgue que os poemas a seguir pertencem tão-somente à poeira do Passado, que, curiosamente, até mesmo na internet é possível encontrar os versos de Paula Ney, embora algumas transcrições pequem pelo descuido, sendo que de uma pequena análise que fizemos na web, verificamos diversas imprecisões quanto à grafia das palavras, quanto à acentuação, ocorrendo até mesmo omissões e inversões de termos, desconfigurando alguns versos.

   Essas deficiências não obscurecem a importância, porém, que há no ato de se dar publicidade aos versos de uma figura que anda esquecida dos estudos literário que têm enfoque nos autores do final do século XIX. E é essa publicidade que, se os versos do boêmio cearense não possuíram no papel, possuem agora, na rede mundial de computadores, acessível para milhões de brasileiros que presentemente podem conhecer, ainda que em pequena dose, um pouco dessa figura literária tão cativante, como é a de Paula Ney.

Fonte:
http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/44129

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Nemésio Prata Crisóstomo / CE (Tributo a Ademar Macedo)



Este Tributo a Ademar
feito com delicadeza,
creio, a ele vai chegar,
e, disso, tenho certeza,
pelas boas mãos de Deus,
que não nega aos filhos Seus
quando pedem com firmeza!

Potiguar de nascimento,
Poeta por vocação,
Ademar, do firmamento,
tornou-se seu cidadão!


De boné, muleta e barba

lá no céu apareceu
um Trovador arretado
era o Ademar, "ôh meu!";
lá foi fazer suas trovas
matutinas, sempre novas,
com o dom que Deus lhe deu!

Silente, chora o Brasil
a morte do Menestrel
Ademar, que já partiu
pra fazer versos no céu!

De boné, barba e muleta
apareceu lá no céu
um porreta de um Poeta
fazendo grande escarcéu
era o Ademar Macedo
que pra Deus partiu mais cedo
pra receber seu laurel!

Cacei, mas não encontrei
as trovas que o Ademar
me mandava, então lembrei:
elas não vão mais chegar!

Muleta, barba e boné:
era a marca registrada;
Poeta de grande fé,
logo pela madrugada
nos mandava, todo dia,
um manjar de poesia...
agora não vem mais nada!

Na campina o cantador
canário pôs-se a trinar
um canto de muita dor
pela morte de Ademar!

Saudades, deixou em muitos!
Mesmo quem não conhecia
o Poeta cara a cara
dele gostava, e sabia
ser Ademar um modelo,
pelo grande amor e zelo
aos versos, que bem fazia!

O Brasil está de luto
pela perda inesperada
daquele que foi um duto
da trova, na Pátria amada!

Arcanjos e querubins
serafins e outros tais
fazem festa nos jardins,
e nas ruas de cristais;
pra receber Ademar
que acabara de chegar
nas mansões celestiais!

Peço a Deus, de coração,
pra Ele bem receber
o nosso querido irmão
Poeta do Amanhecer!

Fonte:
Enviado pelo autor

domingo, 14 de outubro de 2012

Nilto Maciel (O Que Significa Talento?)


Em literatura (e nas demais artes) há os imitadores. Não sabem (não conseguem) ir além dos modelos. Há também os que nem isso conseguem, mas insistem nessa labuta de sísifo. Alguns deles estão em jornais e revistas, academias, catálogos de editoras, nos festins, nas congratulações. Arremedam os descobridores, os inventores e os próprios copiadores. Não vão além dos modelos, dos moldes. São conformados. Aceitam tudo como destino. Reverenciam, sorridentes, a seleção natural, a evolução das espécies, a reprodução. Se são cachorros, nunca se veem gatos. Ou não se sentem aves. Apenas latem.

Capazes de tudo, aprendem, com louvor, as normas gramaticais; leem todos os clássicos; conhecem idiomas (pelo menos dois: o de sua pátria e o das multidões); sabem tudo de cinema, teatro, arqueologia, mitologia, filosofia. Dão lições de quase tudo: o uso da vírgula, o desuso de palavras, a morte de Sócrates, a vida de Platão. Não admitem, nem em sonho, a pecha de medíocres, copistas, conformados. Irritam-se, com facilidade, se criticados. Odeiam os críticos. Sentem-se pares dos descobridores e dos inventores. Nunca dizem “eles”, mas “nós”. Formam grupinhos, reúnem-se todas as noites. São gregários. Elogiam-se, riem muito, contam piadas, armam estratégias. Frequentam, juntos, bares e restaurantes, assim como salões de academias de letras, de retórica, de língua. São amigos uns de outros. Visitam-se amiudamente. Levam mimos para as esposas dos amigos, bonequinhas e bolinhas para os filhinhos dos compadres. Os de fora são os “bestas”, os “metidos”, os “doidos”. Os de fora são os talentosos, descobridores e inventores da nova literatura.

Irmão gêmeo do típico escritor comum é o “gênio incompreendido”, que escreve como se desenhasse labirintos. Para ele, é mais do que preciso enredar o leitor, confundi-lo, atá-lo com nós, sufocá-lo e matá-lo. O leitor é seu principal inimigo. E bate no peito: duvido da existência de alguém capaz de entender o que escrevo. Para ele, Fernando Pessoa é muito simples e, portanto, imitável: “Meu coração é um almirante louco / que abandonou a profissão do mar”. Bom, é verdade, mas deveria ter sido mais complexo. Mais plexo, mais exo, mais lexo, mais oxel, mais xelo, mais loxe. Para deixar o leitor, o crítico, o estudioso completamente enredados nas teias da grande aranha do verbo.

À mesa desses privilegiados seres, sempre farta e barulhenta, sentam-se os seus seguidores, os seus bajuladores. São os incapazes de ler cem páginas de um clássico. Muito cansativo! Os que não conseguem aprender nada e gritam: Abaixo a ditadura da gramática! Os que envelhecem e não passam do versinho adocicado. Os que veem em letras de samba ou de rock a poesia mais soberba. Os que acham que romance é uma história comprida. São os pobrezinhos da literatura, os miseráveis, os indigentes, os mendigos das letras. Destes, no entanto, nem é preciso dizer muito.

Os escritores comuns somos quase todos nós que convivemos com os pobres sonhadores e também com os talentosos. Com muita dedicação (e porque conduzem no cérebro algum gene diferenciado), alguns conseguem até engendrar uma ou outra obra valiosa. Assim como os talentosos geram muita mediocridade. Quase todos nós, porém, não passamos do soneto bem medido e rimado, do conto arrumadinho que constará de antologia estadual ou nacional, do romance estudado (por algum tempo) na Universidade.

Ao nosso lado, vivem os descobridores da boa literatura. “Viver ao lado” é modo de dizer. Sim, vivem na mesma cidade, são nossos vizinhos, mas não se misturam muito conosco. Em vez da vida social, preferem os livros. Nada inventam, porém sabem descobrir modelos (que a maioria nem percebe), artifícios de linguagem, entradas e saídas (de labirintos), técnicas de narrar e compor poemas, etc. São os chamados “escritores talentosos”, os capazes de fugir da pura imitação, do plágio e das lições da escola a que pertencem. São românticos que encontram o realismo (Machado de Assis), parnasianos que conseguem alcançar o simbolismo ou o modernismo (Augusto dos Anjos, Jorge de Lima), regionalistas que chegam ao universalismo (Graciliano Ramos, Guimarães Rosa). Não são muitos, razão pela qual são pouco vistos. E, quando percebidos, ninguém sabe sequer seus nomes.

Mais raros ainda são os inventores ou reinventores de literaturas. Também são chamados de gênios. Escrevem nova poesia, como Fernando Pessoa. Novo romance (ou nova prosa de ficção), como Kafka. Estes não vemos por aí, a não ser como estátuas ou em livros. Seria o caso também de James Joyce? Muito escritor torce o nariz: “Eu faço melhor do que ele. Invento coisas tão indecifráveis que até os hieróglifos do Egito se farão (faraós) fáceis (fósseis) diante delas. Nem Jean-François Champollion seria capaz de decifrar os meus finnegans wakes”. E completa: “Na verdade, somos muito parecidos, eu e Joyce. Ele, por seus estudos; eu, por meus…”

Deixemos, porém, esses devaneios para trás. E concluamos este verborrágico passeio com algumas perguntas: Inventar e reinventar são verbos da mesma classe? Joyce reinventou Homero? Quem inventou a Grécia? É possível imitar o gênio? O que significa talento?

Fonte:

Nilto Maciel (Tonho França: o adeus do cais)


Eu não deveria iniciar esta crônica com um chavão, mas não temerei a cara feia de ninguém: A Internet é uma maravilha. Pronto, está escrito o chavão. E por que isto?  Porque, não fosse a Internet, eu não teria conhecido dezenas de escritores. Ora – dirão os eternos insatisfeitos –, muitos não valem nada, não sabem escrever, são uns principiantes. Pois tenho tomado conhecimento de centenas de bons escritores, primeiro na tela do computador, depois em livros. Esta semana foi a vez de Tonho França, que mora em Guaratinguetá, São Paulo, nasceu em 1965, publicou quatro obras e, com outro jovem escritor, Wilson Gorj, criou a Editora Penalux. (No prelo, mais um manuscrito meu. Umas memórias literárias. Porém, isto é assunto para depois).

             Não fosse o prazer de conhecer escritores jovens ou velhos, a Internet ainda me deu (e dará) a felicidade de me aproximar de pessoas maravilhosas. Sem ela, não teria me abeirado de Sofia Correia. Conto como foi: Acordei um dia cedinho (costumo sair da cama com o sol a meio caminho do zênite), liguei o computador e fiz uma busca: Sophia Loren. Por que isso? Porque horas antes tivera um sonho: encontrava-me com a atriz em Roma. Caminhávamos pela Via Appia, chovia fininho, fazia frio, era noite. Súbito, aparecia um sujeito com cara de Marlon Brando jovem e se punha a me chamar de vagabondo, plebeo, gaglioffo. E eu despertava. Como observou o eterno William, pelos lábios de Hamlet: 

“There are more things in heaven and earth, Horatio, 
Than are dreamt of in your philosophy”. 

Pois não é que outra Sofia me apareceu naquela mesma manhã? Assim: deixei a Loren de lado e passei ao correio eletrônico (todo dia leio primeiro as mensagens de meus amigos e da gente nova, depois de deletar as armadilhas dos hackers). E lá se achava, na primeira linha, certa Sofia Correia. Em três dias de mensagens curtas, eu já sabia trinta curiosidades dela: amava os Beatles e os Rolling Stones, lia Julio Cortázar todo dia, gostava muito de meus “textos”, tinha uma cadela chamada Teresa, etc.

Volto ao assunto principal desta crônica: recebi semana passada, de Tonho França, seu mais novo rebento: O bebedor de auroras (Rio de Janeiro: Futurarte Poesias, julho de 2009). A capa, de Luiza Romar (em azul, preto, branco e amarelo), é um primor. O prefácio vem de meu amigo Tanussi Cardoso. O impresso tem 80 páginas: versos, prefácio, posfácio (de Igor Fernandes), sumário, etc. Li-o em seis dias, entre um gole de Hamlet e um naco de Cortázar. No sétimo dia, deu-se o pecado: a menina dos Rolling Stones surgiu em traje de ninfeta aos meus olhos cansados de letras. E pus-me a ler para ela os tantras de Tonho França: “Na soleira, deixo minhas rotas e meus mapas antigos”. Ela bateu palmas: O viajante, o explorador, o aventureiro, o poeta que parte livre. Sim, deve ser isso – exaltei-me, e corri à geladeira para lhe trazer suco de uva. Ela pediu para ler em voz alta: 

“Não percebo mais minha estrela polar 
e todas as preces que sabia”. 

Tentei dar uma opinião. Ela me fez calar e eu me embasbaquei. Pensei: Para que servem guias e pedidos de proteção? Ela continuou a leitura, enquanto molhava os lábios de roxo: 

“A mesma xícara de todos os dias 
onde me sirvo numa entrega plena, completa 
num ritual todo íntimo 
como cabe à solidão e ao poeta”. 

Pensei em fugir. Fiquei e balbuciei: Eu não disse? 

Deixo de novo a doçura de lado e me atenho ao que Tanussi Cardoso anotou (a essência da arte de Tonho): “Distanciando-se de um tipo de poesia, ora anódina e de conteúdo inócuo, ou de uma outra, que considera a realidade objetiva como tese de poesia e não de prosa, os poemas de Tonho França têm a propriedade de iluminar o cotidiano”.

De volta à realidade, sugeri a Sofia uma leitura mais amena, como o “Cântico dos cânticos” de Salomão. Ela recusou a troca: Hoje prefiro este poeta. E voltou a ler: 

“Tenho nas mãos uma lua e duas moedas antigas 
brinco de jogar pedrinhas”. 

Fiz nova interrupção: É a brincadeira, a infância, a pureza, que é poesia, que é metáfora. Ela fechou o volume: E há poesia sem pureza? Sim, há. Pois o que é o absurdo, o “demoníaco”, o inaceitável? Ela se levantou do sofá: Este poeta prefere ser divino e, ao mesmo tempo, visível. Abriu de novo o tomo: 

“o vento que toca em meus cabelos longos 
é íntimo conhecedor de destinos”. 

Olhei para o céu, pela porta entreaberta: Ora, pois, é o vento (são os ventos) quem nos conduz.

Quando ela se retirou, reli o prefácio de Tanussi: O bebedor de auroras “tem certos motivos preponderantes: emoção à flor da pele, poemas autobiográficos, preocupação existencial e social, visão ambígua do cotidiano, musicalidade, boa escolha vocabular, imaginação vertiginosa, a imensa solidão do poeta, o fazer literário, e uma eterna ‘viagem’ como símbolo abstrato de uma liberdade, mais sensorial do que real, em que o poeta se debate, entre ‘estrelas e luares’ e o caos urbano”. Ufa! Sim, ufa. No entanto, era isto o que eu queria dizer.

Não sei se por culpa de Sofia, saí da leitura de O bebedor de auroras como quem entra num outro mundo, numa outra dimensão. Como se tivesse morrido e aqui estivesse para constatar a enorme diferença entre vida e morte, entre ser e não-ser, entre o real e o sensorial. Lembro-me de ter lido para ela: 

“Há os que precisam ancorar 
Há os que desejam se perder”. 

E ela comentou, muito séria: Chegar e partir. Aportar ou sair aos mares. Li trecho do posfácio de Igor Fagundes: “Tonho França parece bastante ciente de que a poesia, então, não é uma fuga à realidade, a um reino da fantasia que se lhe opõe, mas, arrebatadoramente, significa o encontro intensivo como o que, na realidade, persevera com sua potência e vigor”.  

Encerramos aquela tarde (eu ia dizer fagueira, mas pareceria tão fora de moda o adjetivo, que me calo) com mais versos de Tonho: “Um ponto no horizonte, as dores nunca mais, / Quem dera pudesse, o adeus do cais...”

A fagueira (agora ouso usar este romântico adjetivo) Sofia Correia, tão adornada de rubros lábios, se despediu de mim e saiu. Guardei os saltérios de Tonho numa estante e fui dormir. Talvez sonhasse com Sophia Loren, sem Marlon Brando por perto.

Fortaleza, 3 de outubro de 2012.

Fonte:

domingo, 30 de setembro de 2012

Vicência Jaguaribe (Complô no Reino da Fantasia)


Uma palavra para o leitor

Esta história não deve, de maneira alguma, causar-lhe estranheza, leitor, pois o fenômeno não é novo: não é a primeira vez que personagens de ficção saem das páginas dos livros, ganham autonomia e penetram no mundo real. Vou dar só um exemplo: na peça teatral Seis personagens à procura de um autor, do italiano Luigi Pirandello, seis personagens, ao serem rejeitadas por seu criador, entram na vida real e tentam convencer um diretor de teatro a encenar suas histórias.

**********

Conta-se — mas eu não assino embaixo — que, certa vez, viu-se, no castelo do Príncipe Rodolfo, herdeiro do reino da Appelândia, uma movimentação desusada: há três dias, cavalariços sonolentos limpavam as cocheiras e reorganizavam as baias para receber mais animais; fornecedores chegavam a todo momento para abastecer as despensas; criados domésticos limpavam e arejavam os aposentos fechados e com cheiro de mofo, trocando a roupa de cama, acendendo lareiras e enchendo as grandes tinas de banho, com uma água que talvez nem fosse usada — dizia-se, em surdina, que a maioria dos príncipes não gostava de banho —; chefes de cozinha de fama internacional começavam a preparar pratos que, só de olhar, despertavam não apenas a fome, mas a vontade de comer.

Sua Alteza Real receberia em seu castelo os príncipes que tinham suas vidas e aventuras registradas e deturpadas nos tradicionais contos de fada. Ele próprio fora atingido no papel que desempenha no conto “Branca de Neve e os sete anões”. Mas isso vamos deixar para depois.

Tudo pronto, o príncipe Rodolfo vestiu sua roupa principesca, com manto de príncipe, sapato de príncipe, chapéu de príncipe e tudo o mais de príncipe, e esperou. Se alguém duvidava ser ele um príncipe de verdade, a dúvida acabava ali, naquele momento. Ser príncipe estava em seu corpo e em sua alma: no jeito de olhar, de falar, de andar, de dar ordens, de amar e de odiar. Dizem que os príncipes fazem tudo isso diferente de nosotros. Não confirmo nem nego essa afirmação porque nunca em minha vida vi um príncipe de verdade.

Os convidados fizeram-se anunciar um a um para imprimir à entrada mais pompa e circunstância: 

Sua Alteza Real o Príncipe Nicolau, do Reino da Hipnolândia e da história “A Bela Adormecida”;

Sua Alteza Real o Príncipe Alexandre, do Reino da Cindelândia e da história “Cinderela”;

Sua Alteza Real o Príncipe Aníbal, do Reino da Ferolândia e da história “A Bela e a Fera”;

Sua Alteza Real o Príncipe Orlando, do Reino da Ursolândia e da história “Branca de Neve e Rosa Vermelha”;

Sua Alteza Real o Príncipe Alberto, do Reino da Bravolândia e da história “O príncipe que não temia coisa alguma”;

Sua Alteza Real o Príncipe Ambrósio, do Reino da Sapolândia e da história “Rei Sapo ou Henrique de Ferro”.

E foram anunciados outros príncipes de terras longínquas, cujas histórias eram pouco conhecidas. O príncipe Rodolfo encaminhou suas altezas a um grande salão decorado de espelhos e de lustres feitos do cristal mais puro. 

Todos entraram e a porta foi fechada. Aquela era uma reunião cuja pauta devia ficar em completo sigilo. Príncipes de reinos mais pobres olhavam aparvalhados para tanta beleza e luxo. Os do Oriente admiravam-se com a diferença do gosto e da noção de beleza. Os dos países mais próximos observavam tudo com uma pontinha, deste tamainho, de inveja.

Quando todos se acomodaram, o Príncipe Rodolfo, sentado na cabeceira da enorme mesa, abriu a reunião, falando o maravilhês, língua usada por todos os que vivem na dimensão da magia e do maravilhoso.

— Meus amigos, dignos Príncipes dos reinos vizinhos e dos reinos longínquos, vocês devem ter ficado curiosos e também preocupados com o meu convite. Deixem-me dizer-lhes o motivo pelo qual eu, presidente da Associação dos Príncipes dos Contos de Fada — APCF —, convoquei-os para esta reunião: rever a posição e a caracterização dos príncipes nos contos de fadas. Relendo, há pouco tempo, algumas obras famosas, tomei consciência de como somos tratados nas histórias. E não gostei do que descobri.

(Vamos dizer a verdade sobre o despertar da consciência crítica do Príncipe Rodolfo. Não foram os livros que ele diz haver lido, mas algo muito mais sério. Um dia, quando admirava aquela sala e seus lustres, acompanhado do pai, o Rei William, ouviu dele a informação do encantamento que envolvia o aposento: se uma pessoa tivesse certeza do que queria, se estivesse disposta a corrigir os erros de uma situação, ao fixar-se em um dos espelhos teria o senso crítico intensificado. Na primeira oportunidade, o Príncipe voltou ao salão e, ao mirar-se em um dos espelhos, enxergou a própria vida e a de muitos dos seus pares, como elas eram retratadas nas histórias. E não gostou do desvelamento feito pelo seu senso crítico agora aguçado.)

— Nossas vidas são exatamente como vou aqui expor. Digo, sem titubeio, que não temos nenhuma importância, nenhum carisma e, principalmente, não temos caráter ou personalidade.

— Vossa Alteza nos chamou aqui para nos falar de nossos defeitos e fraquezas? — Ouviu-se a vozinha fraca do Príncipe Sapo.

— Não. — Retomou a palavra o Príncipe Rodolfo. — Chamei-os para alertá-los sobre a maneira como os escritores nos apresentam em suas histórias. Eles desvalorizam nossas figuras. Esse é um ponto que atinge todos os príncipes dos contos maravilhosos, que só existem neles e por eles. Nesses contos, não temos nem nomes; somos conhecidos pelo nome da protagonista da história, que geralmente está presente no título da narrativa — o príncipe de “Branca de Neve”; o príncipe de “Rapunzel”, e assim por diante. Cada um de nós é simplesmente o Príncipe, como se não fôssemos indivíduos, mas entidades sociais ou pessoas jurídicas. Você, por exemplo, Príncipe Nicolau, seu nome não aparece uma única vez na história da Bela Adormecida. E, o que é mais, grave: amputaram o seu conto. Ele termina no seu casamento com a princesa ex-adormecida. Nada daquele final macabro, que faz até jacaré chorar.

— É verdade que o cortaram nesse ponto?! E o que fizeram com o restante?

— Ora! Amassaram e jogaram no lixo. Não vê que agora, no mundo do reality show, é proibido contar para as crianças certos detalhes das histórias. Também inventaram um tal de politicamente correto, que está levando os novos escritores a deformar as histórias tradicionais.

— Como pode ser isso? — Perguntou o Príncipe Ambrósio.

— Pode, meu amigo, no mundo do reality show, as coisas mais estapafúrdias acontecem. E tudo é muito contraditório. A minha história foi alterada: inventaram que  Branca de Neve acordou com um beijo meu. Imaginem se eu beijaria uma defunta ou uma quase! Os deuses me protejam! A verdade é que, quando a vi deitada no esquife, bela como eu jamais pensara que uma princesa pudesse ser, apaixonei-me. Tentei comprar o esquife, mas os anões negaram-se a vendê-lo. Quando, porém, entenderam que eu ficara profundamente apaixonado pela garota e ouviram minha declaração de amor — Dai-me, então, como um presente, pois não posso viver sem ver Branca de Neve.  —, tiveram piedade de mim e mandaram-me levar o caixão. Os servos que traziam o esquife para o meu castelo tropeçaram. A urna não caiu, mas balançou muito, o que fez a princesa expelir o pedaço da maçã envenenada preso em sua garganta. Imediatamente após o incidente, pedi a princesa em casamento.

E com sua história — “Rei Sapo ou Henrique de Ferro” —, Príncipe Ambrósio, ainda foi pior. Nem príncipe aparece. Em uma das versões modernas da história, o sapo se transforma, vejam só, em um corretor de imóveis, que planeja construir, na bela floresta do reino da Sapolândia, o que eles chamam de shopping- center. Outro detalhe: até o criado tem nome — Henrique. E Vossa Alteza, nada.

— Mas qual a razão de fazerem isso com a minha história?

— Acho que foi para denunciar a destruição das florestas que está acontecendo por lá, pelo mundo da realidade.

— E o que houve com minha história? — A pergunta vinha do príncipe Alexandre.

— A sua história, Alteza, já é ridícula desde que foi inventada — falou o príncipe Rodolfo, com sua franqueza habitual. Quem já viu um príncipe de sangue real ir de casa em casa com um sapato na mão, procurar a dona desse sapato, que poderia até ser uma plebeia, para com ela se casar! E, ainda por cima, Vossa Alteza prepara a festa, dança com a jovem desconhecida e ninguém sabe, nem a jovem, muito menos o leitor da história, que seu nome é Alexandre.

— Suas palavras me ofendem, príncipe Rodolfo. 

— Desculpe-me. É esta minha boca que insiste em ser sincera, por isso exagera na verdade.

— Desculpas aceitas, Príncipe Rodolfo.

— E sabe, Príncipe Alexandre  —, continuou o Príncipe Rodolfo — que os estudiosos descobriram uma versão da sua história muito mais antiga do que a europeia que conhecemos? E, talvez, bem mais interessante. É chinesa e parece ter sido a primeira versão escrita do conto “Cinderela” ou “Branca de Neve”.

— Interessante, muito interessante! Mas humilhante para este Príncipe aqui, que nem original é. — Choramingou o Príncipe Alexandre.

— Bem — retomou a palavra o Príncipe Rodolfo — para encerrar nossa reunião, um detalhe dos mais graves: todos nós, os príncipes, parecemos, nos contos de fada, uns idiotas. Apaixonamo-nos, à primeira vista, pela primeira jovem bonitinha que aparece e, rápido como a queda de um raio, contratamos casamento. E ainda somos apresentados como uns imbecis e preguiçosos, que levam a vida caçando, passeando e tentando encontrar dragão. Não temos nenhum papel no reino, a não ser procurar uma noiva e defendê-la dos dragões e das maldições das bruxas. Isso me deixa desolado. E tem mais: aquele felizes para sempre já está tão fora de moda! Quem é feliz para sempre, principalmente casando com as princesas mofinas dos contos de fada? Princesas que não fazem nada de proveitoso, não conseguem nem vestir-se sozinhas, passam os dias esperando a chegada de seus falsos heróis. São tão sensíveis, mas tão sensíveis mesmo, que sentem o desconforto causado por uma ervilha colocada sob vários colchões. Me dá vontade de falar como falam os príncipes e os não príncipes do mundo real: Minha amiga, me dá um tempo. Que tal se garantir um pouco e esperar menos?  Afinal de contas, o que as pessoas do mundo do reality show pensam que nós, moradores do mundo paralelo da fantasia, somos, para nos representar assim?

— É, a situação é grave e vergonhosa. O que Vossa Alteza sugere que façamos? — Perguntaram os príncipes ao mesmo tempo.

— Sugiro uma crise de ilustrações. Sem ilustrações, nada de livro para criança. Cada um de nós se encarregará de achar alguém com o poder de fazer desaparecerem todas as ilustrações das histórias que foram alteradas. Vamos marcar outra reunião para de hoje a um mês.

Satisfeitos, Suas Altezas dirigiram-se à sala onde serviriam o almoço, que foi digno dos deuses. Depois do almoço, repousaram uma meia hora e foram à caça. O Príncipe Rodolfo, com seu senso crítico hipertrofiado pela permanência na sala mágica, pensou um pensamento tão estranho quanto polêmico: Será que os contadores de histórias não estão certos na caracterização — ou falta de caracterização — dos príncipes? Parece que somos todos iguais: parasitas em busca de aventuras e de um amor instantâneo, feito leite em pó.

**********

P.S. A partir daquele dia, as editoras que trabalhavam com livros infantis foram processadas e tiveram que pagar boas indenizações aos clientes, por venderem livros cujas ilustrações se apagaram.

Fonte:
A Autora

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Nemésio Prata (Poetas de Quartel)

Casernas deviam ter
poetas de prontidão,
em serviço; pra trazer
aos quartéis sua missão!

Se, Poeta ou Trovador,
Literato ou Repentista,
Menestrel ou Cordelista,
Seja lá o que Você for,
Cante sempre com Amor!
Na paixão do teu cordel
Ao amor, darás quartel.
O fogo do teu repente
Alegra a vida da gente,
Do Soldado ao Coronel!

Falar no quartel inteiro,
Seguindo a tal hierarquia,
Pra não virar anarquia,
Vou chamar, como primeiro,
Nosso CABO CORNETEIRO.
Bom de toques e de verso,
No direto, e no reverso;
Cada nota sua, aponta,
Ser um Trovador, que conta,
As belezas do universo!

Literato e Repentista,
Encontramos o Sargento.
De poetas, é um rebento,
Fez-se grande Cordelista
Que vive dando entrevista!
Tecedor de belas trovas,
Sempre canta as boas novas,
Com beleza sem igual.
É trovador genial;
Disto já deu boas provas!

Nas fileiras do quartel,
O Cadete, já Tenente,
Anda com desejo ardente
De mostrar ser Menestrel,
Soltando versos ao léu!
No rutilo da palavra,
Os versos de boa lavra,
Adoçam seu coração;
E numa bela oração,
O sublime amor deslavra!

Passando tropa em revista,
Coberto de galardão,
O garboso Capitão
Mostra, também, ser artista,
Renomado Repentista.
A cantar, com todo ardor,
Seus versos, com destemor;
Na bandeira, desfraldada,
Fez, pra sua namorada,
Sublimes trovas de amor!

Nem menor e nem maior,
Bem no meio das “patentes”,
Trazendo seus bons repentes,
Encontramos, pra melhor,
Nosso brioso Major!
Neto de bom cordelista,
No conjunto é vocalista!
Canta sempre uma canção
Que marcou seu coração!
Viva o nosso Repentista!

Como todo militar,
Ele fica no comando,
Não sempre, de vez em quando,
No lugar do titular,
Se este não vem trabalhar!
É, o sub do Quartel,
Um “finório” Menestrel,
Que canta, com galhardia,
Os seus versos, todo dia:
O Tenente-Coronel!

Também grande Trovador,
Ele canta sempre o Amor!
Repentista renomado,
Prefere de ser chamado,
Simplesmente: Cantador!
É o nosso Coronel,
Comandante do Quartel!
No fogo do seu repente,
Incendeia toda gente;
Tem paixão pelo cordel!

Até mesmo o General,
Comandante da Brigada,
Ante a sua "namorada"
E companheira fanal,
Declara-lhe amor total.
Fazendo, tal Trovador,
Lindas poesias de amor,
No peito, marca a batida
Do coração, que na vida,
Pulsa forte, sedutor!

Quanto ao pequeno Recruta,
O “menor” na hierarquia,
Nos versos, é “autarquia”;
Mostrando ser um Batuta,
No Quartel, onde labuta!
Assim o Soldado Dimas,
Vai tecendo as obras primas,
Que até mesmo o “MARECHAL”
Das Patentes, “maioral”,
Não resiste às suas rimas!

Fontes:
Nemésio Prata - CE
Imagem = http://www.eb1-sta-vitoria.rcts.pt/aventura/historia.htm

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Vicência Jaguaribe (A Casa do Topo da Colina)

Sempre que ela saía, passava em frente à casa de Laura. E, como a casa ficava em uma curva, o motorista da limusine diminuía a velocidade. E a madame estranha, dona daquele carrão comprido que lembrava à menina um enorme cachorro linguiça, ficava bem visível.

Ela morava na casa grande e bonita, mas sinistra, construída em uma colina. Laurinha não sabia nada sobre aquela mulher. Fazia pouco tempo que sua família se mudara para aquele bairro, por isso não conhecia quase ninguém. Mas estava se coçando, com a curiosidade à flor da pele. Ah! Já sabia o que fazer: ia falar com Carlos, um colega de escola, seu amigo, com quem ela gostava de conversar. Se Carlos não soubesse alguma coisa, ninguém mais saberia. Ele conhecia todo mundo, afinal, nascera e se criara naquele bairro. Era a ele que ela ia especular — assim a vovó falava, lembrou-se — sobre a estranha madame.

Naquela sexta-feira, a aula terminou mais cedo e ela chamou o Carlos:

— Carlos, vamos sentar na praça que eu quero lhe perguntar umas coisas.

Sentaram-se no banco de madeira, velho, mas inteiro.

— Carlos, você conhece a dona da casa grande da colina?

— Conheço, mas nunca me aproximei dela. Os adultos dizem que é uma mulher muito perigosa. Mas falam baixinho, para ela não saber. Se souber que alguém faz comentários sobre a vida dela, ê, ê, o tempo fica feio.

— Mas o que é que ela faz de tão terrível?

— Vou lhe contar o que ouvi durante os dez anos da minha vida. Dizem que ela vem de uma família muito antiga. Tão antiga que está ameaçada de extinção, como os animais pré-históricos. Resta uma única herdeira: ela. Aquela mansão do alto da colina foi construída por seus avós há mais de um século, quando saíram da fria Europa do Norte e vieram para a América — vieram fazer a América, como se diz —, fugindo dos credores.

— Isso quer dizer que a família estava devendo muito dinheiro, e as pessoas a quem eles deviam começaram a cobrar?

— Isso mesmo, Laurinha.

— Então, ela é americana por causa de uma negociata da família que deu errado? — Perguntou a menina rindo.

— É. Mas que jeito engraçado você tem de falar! O que significa negociata?

— Ora, Carlos, eu conheço essa palavra porque meu pai é advogado e defende muita gente que entra em negociata. É um negócio suspeito, em que há trapaça, roubalheira.

— Ah! Entendi. Mas continuando: a família não chegou à nova terra desendinheirada, não. Os negócios na Europa foram à bancarrota, mas os donos continuaram endinheirados, como quase sempre acontece.

— Agora sou eu que pergunto: o que é bancarrota?

— Ah! Essa palavra eu ouvi de uma cliente do meu pai, que é contador. Achei o som dela tão engraçada, que fui ao dicionário: significa quebra, falência.

— Certo. Mas, voltando à madame. Como é mesmo o nome dela? E ela não tem marido, nem filho, nem irmão, ninguém? E quantos anos ela tem?

— Calma, vamos por parte. O nome dela é Malvina Cruela. Mas ninguém sabe exatamente a sua idade. Alguns dizem que tem pra lá de cem anos.

— Mas ela parece tão jovem!

— Aí é que está. Muitos acreditam que ela é uma bruxa e toma um elixir da longa vida que ela mesma criou. E, como já lhe disse antes, é a última representante da família. Depois dela, ninguém.

— Mas ela é rica? Em que ela trabalha?

— Parece que é muito rica, riquíssima. Mas não trabalha.

— E o que faz na vida?

— Ela faz uma coisa muito ruim, que é até proibido por lei: rouba e cria animais que tenham o couro apropriado para fazer roupa. Parece também que exporta madeira nobre.

— O que também é proibido.

— É. E ela já foi presa por causa disso.

— Carlos, você tem coragem de ir comigo espiar a casa dela?

O menino tomou o maior susto da vida dele. Nunca pensara em fazer uma coisa daquelas. Será que a Laurinha era corajosa assim?

— Não será perigoso?

— Que nada! A gente tem cuidado. Que tal amanhã, que é sábado?

— Tá fechado. Passo na sua casa às oito horas. Mas o que vamos dizer para sua mãe? Vamos mentir?

— Não, a gente diz que você vai me mostrar a colina, que eu ainda não conheço.

No dia seguinte, mais preciso do que os relógios de Cabo Canaveral, exatamente às oito horas, estava Carlos no portão da menina. Sem perda de tempo, dirigiram-se à colina, mas, em vez de passear ou apreciar a bela paisagem que se perdia por falta de quem a admirasse, foram fuçar a casa da Malvina Cruela. Ela ainda não havia acordado, mas os empregados já estavam na labuta. Os dois aproveitaram a saída de uma criada que deixara a porta aberta e, de repente, viram-se dentro daquela casa imensa, sem saber o que fazer nem para onde ir?

— E agora, Carlos, o que é que a gente faz, para onde a gente vai? — Tremia a voz da Laurinha.
— Eu não sei, não. Não foi você que quis vir! Pois agora diga o que fazer.

Ninguém falasse assim com aquela menina. Ouvir alguém duvidar de seus conhecimentos e de sua coragem era o mesmo que engolir um pouco do espinafre do marinheiro Popeye. Ela criava coragem e adquiria força. Nunca lhe dissessem que ela não sabia fazer alguma coisa.

— Vamos, vamos procurar os cachorros. — Era a fala da Laurinha, bastante aborrecida. — Se estamos aqui, vamos fazer alguma coisa útil.

— Mas como vamos encontrar esses cães?

— Abrindo os olhos e aguçando o faro, ora. — E a Laurinha saiu com uma cara de dar medo, tendo o Carlos atrás dela.

Andando com muito cuidado para não fazer barulho atravessaram uma grande sala e entraram em um comprido corredor meio penumbroso. Até agora tinha sido fácil. Os serviçais encontravam-se na cozinha ou no quintal da mansão, esperando que a patroa acordasse. Au, au, au... au, au... Os dois pequenos audaciosos ouviram os latidos e seguiram na direção deles, que pareciam vir de um lugar distante. Mas não, eles vinham do interior da casa... do...

— Do subsolo. — Disseram os dois um para o outro, bem baixinho.

À frente deles havia um porão, cuja porta não estava trancada. Desceram uma primeira escada, uma segunda e uma terceira. Aí viram um quadro muito triste: vários dálmatas, muitos dálmatas, incontáveis dálmatas dentro de jaulas recebendo raios de sol artificial. Aliás, tudo ali, como os meninos iriam constatar, era artificial: o sol, a lua, as estrelas, a comida, a água... Algumas máquinas dispostas no imenso calabouço produziam a ilusão do sol e da lua; água e comida em forma de cápsulas e imitavam até o som de outros animais para acalmar os cães.

— Será que não vai aparecer ninguém por aqui? — Perguntou Laurinha mais para si mesmo do que para o Carlos.

— É melhor a gente sair daqui. Vamos. — Disse Carlos com um medo evidente.

— Não. Vamos tentar soltar os cães.

Mal a Laurinha terminou de falar, ouviu-se um clique e apareceu uma grande tela na parede e, na tela, a figura de Malvina Cruela. Uma voz grave, que fazia estremecer, preencheu o aposento.

— Ah! Então são vocês os invasores da minha casa, detectados pelo radar, hein. Que vieram fazer aqui? — Perguntou a malvada, mas não deu aos meninos tempo de dizer nada. — Seja o que for que vieram fazer, não interessa. São meus prisioneiros. Lembram-se da história de João e Maria? Vocês vão ser bem alimentados e, quando estiverem bem gordinhos vão ter serventia... Ah, ah, ah, ah, ah...

Horrorizados, os meninos escutaram a batida de uma porta e o barulho de uma chave na fechadura. Carlos quis chorar, mas Laura deu-lhe força:

— Não vamos ficar muito tempo aqui. Nossos pais vão nos resgatar.

Há dois dias os pais das crianças e alguns policiais as procuravam. A única pista: eles haviam subido a colina para passear.

—Só podem ter entrado na casa da Cruela, concluíram os soldados. E a bruxa os aprisionou. Vamos esperar que anoiteça e escalar o muro de pedra da mansão.

— Mas a casa tem alarme e radar. — Avisaram os pais do Carlos.

— Sim, mas o radar só detecta alguém ou alguma coisa a partir de determinada altura. E o alarme é fácil desativar. Temos um aparelho eletrônico que faz isso com a maior facilidade.

Assim que anoiteceu, os soldados e os pais subiram a colina e conseguiram entrar na casa por uma janela dos fundos. Com as armas destravadas, alcançaram a sala de jantar, onde se refastelava a Cruela com uma bela e suculenta lagosta ao molho, e à cozinha, onde se encontravam reunidos todos os empregados, esperando um chamado da patroa. Os serviçais foram obrigados a dizer onde estavam os meninos. Enquanto os soldados e os pais resgatavam as crianças, deixaram a bruxa amarrada a uma cadeira. Minutos depois, quando voltaram à sala, ouviram o barulho de um helicóptero. Procuraram a Cruela, mas não a encontraram. Ora, o campo ficou livre. Ela, então, assoviou o assovio combinado com o piloto do helicóptero, que não estava com os empregados, mas escondido. Ele entrou e d esamarrou a patroa. Correram os dois para o heliporto disfarçado, e a máquina voadora, pilotada com perícia, e com as luzes momentaneamente apagadas, confundiu-se com a escuridão.

Malvina Cruela deu uma gargalhada e disse para o piloto:

— Vamos tirar umas longas férias no Caribe. Aqui os meus advogados resolverão tudo. Quando voltarmos, a tempestade já terá passado e começarei tudo de novo.

Enquanto o helicóptero transportava a bruxa para as férias antecipadas, as crianças foram levadas, cada uma para sua casa. Os cães ainda ficariam presos por uma noite. No dia seguinte bem cedo, a carrocinha iria apanhá-los. E começaria a luta por adoção. Como eram muitos animais, despachariam alguns para outros estados.

Carlos e Laura iriam ajudar no resgate, e cada um ganharia um dálmata bebê.

Fonte:
A Autora

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Nemésio Prata / CE (Verdade seja dita...)

O sujeito apaixonado
não enxerga com firmeza;
ante a "feia", este coitado,
só, bem, vê: “rara beleza"!

Ao meu prezado oculista-
poeta, peço explicação:
será que tem jeito, a "vista"
do apaixonado em questão?

Rogo, ao poeta potiguar,
que neste tema é doutor,
para que venha explicar
esta "cegueira de amor"!

Por fim, ao poeta José
Feldman, suplico que explique
de fato, como é que é
esta "arrumação" da psique!

Aqui deixo o meu palpite,
lavrado, por dedução;
deve ser uma neurite
nos "olhos" do coração!
------
Nota:
Poeta Oculista - Francisco Pessoa (CE)
Poeta Potiguar - Ademar Macedo (RN)

Fonte:
O Autor

Rachel de Queiroz (Marmota)

Aqui ninguém duvida de que marmota existe. Quase todo o mundo já viu. De noite, nas conversas do terreiro, é raro quem não tenha seu caso a contar. Marmota não é bem fantasma, pode ser alma do outro mundo, ou é uma aparência, uma coisa do mato, quem sabe? Às vezes é um bicho. Em geral é um vulto; e também um ruído, uma chama. Aparece de noite ou de dia.

Todo mundo encara as marmotas como realidades do cotidiano, que fazem um medo desgraçado, mas com as quais se tem que contar. E há delas passageiras, como há outras muito antigas. No caminho de chegada à fazenda de minha irmã, no Choró, existe uma pedra grande, escura, bem na descida de um alto. O povo a chama "Pedra do Bicho", porque ali costuma aparecer uma marmota; e já faz mais de cem anos que ela se mostra. Milhares de pessoas já a encontraram. Pode ser do tamanho de um porco, ou do tamanho de um cavalo, mas é sempre preta e com uma barriga mole, se arrastando. Às vezes se encontra cascavel morta junto da pedra, às vezes um preá. É o bicho que mata. Alguns falam que há muitos anos apareceu ali uma ossada de gente, ainda com as carnes. Engraçado, nesses anos todos nunca mudaram o caminho.

No corte da estrada de ferro, na saída da lagoa da Carnaúba, compadre Chico Barbosa vinha uma noite com o seu filho Eliseu e de repente lhes surgiu à frente aquele vulto preto, de andar arrastado, como um bicho grande e disforme, tomando o caminho. Eles desviaram à esquerda, o bicho também, desviaram à direita, o bicho também bandeou. Chico trazia um facão, brandiu o ferro, a marmota nem se importou. Riscaram um fósforo, sacudiram em cima, o bicho nada. Afinal resolveram fechar os olhos e o pai esgrimindo com o facão, o filho açoitando o ar com uma vara, correram em frente, com bicho e tudo. Não sabem como atravessaram nem como chegaram em casa. Mas ainda hoje ficam com as carnes tremendo quando se lembram.

Pedro Ferreira vinha de uma noitada de jogo, sozinho, pela meia-noite. Eis que numa vereda lhe apareceu a marmota - alta, de braços abertos, no sistema de uma pessoa. Ele trazia um pau grosso na mão, plantou o pau no bicho, facheou o pau todo, a visagem não se espantou. Pedro sentiu que o cabelo lhe crescia na cara, na nuca. Sentou-se no chão, ficou de olhos fechados, esperando, com vontade até de chorar. Afinal olhou - a marmota tinha sumido. E o pau, que ele largara no chão, ao seu lado, tinha sumido também.

Comadre Delurdes ia de manhã ao roçado, levar ao marido o “sonhim” de pão de milho. Junto à capoeira velha deu com uma coisa - não era bem uma marmota, era mais uma aparência, um rasgar forte de pano, e um rufar de asas grandes, uma coisa agitando o ar, aquele sorvo, que não se via mas se sentia. Ela correu tanto que ao chegar em casa teve uma oura, quase morreu. O marido zombou, no outro dia foi com ela - e aí quem correu foi ele. Ninguém da família vai mais sozinho ao roçado.

Certa noite um bando de gente vinha de uma festa, pela rodagem do Quixadá. Zéza, a hoje finada Dora, Terezinha, seu marido Chico Ferreira, e outros. Ao passarem perto do local onde foi encontrada a ossada de Chico Preto (morto misteriosamente há alguns anos), viram um vulto agachado ao pé de uma imburana. A coisa olhava de um lado e de outro da árvore, como quem brinca com criança. Chico Ferreira soltou um uivo e desabou; e as mulheres correram atrás, lutando para ver se chegavam na frente dos homens. E, se a visagem quisesse tinha até apanhado um menino, coitadinho, que ficou por último na disparada. Na hora do medo parece que até coração de mãe se esquece.

O mesmo Pedro Ferreira tem outra recordação do seu tempo de jogador. Vinha em noite escura, por um caminho que passa perto da represa do açude velho do Junco, cansado, com fome e frio. Nisso avistou um fogo e se alegrou - deviam ser uns amigos que planejavam uma pescaria. Parece que tinham tocado fogo num toco e as suas sombras iam e vinham ao redor. Pedro chamou, ninguém respondeu. Aí a chama baixou e voou brasa pra todo lado, como se alguém batesse com uma vara no fogo, estilhaçando-o. Assustado ele parou - firmou a vista - agora não tinha mais toco, nem fogo, nem brasa, só um escuro mais escuro, como um vulto, no lugar onde o fogo estivera. O chapéu lhe subiu nas alturas; ele sentiu que o vulto se deslocava em sua direção. Correu, botando a alma pela boca. Mas o bicho, lerdo, não o perseguiu.

E até mesmo aqui perto de casa, antes de se atravessar o riacho do açude, tem uma moita de mofungo, junto a um pé de violeta, onde o povo sempre encontra uma marmota. Tem dia em que ela balança a moita, e solta gemidos, aqueles ais. Ou se divisa um vulto por baixo da moita, e então se escuta um ruído forte de dentes, como um cachorrão quebrando ossos.

As pessoas que contam esses casos nunca mentem em outras coisas. São gente de respeito, nem é impressão de bebida - como se diz: "visagem de bêbedo fede a cachaça". Será que elas mentem só nesses casos? Ou se enganam, ou sonham?

Fonte:
Governo da Paraíba – A União.

sábado, 25 de agosto de 2012

Caio Porfírio Carneiro (Maria Viviane)

Caio Porfírio Carneiro
Fivela prendendo os cabelos não bem penteados e de fios prateados, vestido azul desbotado, mancando da perna, ela percorria as vielas estreitas do cemitério, tentando, os olhos meio fechados da miopia, ler as lápides dos túmulos, alguns quase capelinhas, outros ao pés-do-chão. Desorientava-se. Via-se perdida entre cruzes. Ia e vinha, tentando ler.

Viu o homem que passava empurrando o carro-de-mão cheio de tijolos.

- O senhor sabe onde é que está a Maria Viviane?

- Maria de quê?

- Viviane.

- Não sabe o número da quadra?

- De quê?

- Da quadra.

- Não.

- Vá na administração. Lá eles informam.

- Onde é?

- Logo na entrada.

Perdeu-se muito para encontrar o pequeno escritório. O homem calvo examinava o livro aberto sobre o balcão, fazia anotações, não compreendeu bem o que ela dizia:

- O que é mesmo, minha senhora?

- A cruz de Maria Viviane.

- Maria de quê?

- Viviane.

- Como é o nome completo dela?

- Eu não sei.

- Não sabe qual a quadra, o número da rua? Tem lápide? - Tem o quê?

- Lápide. Nome dela gravado, data do nascimento e morte, essas coisas.

- Não sei.

- Assim fica difícil. Como é mesmo o nome completo dela?

- É Maria Viviane.

- Nome bonito. Mas deve ter sobrenome. Não sabe mais nada sobre ela, data da morte?...

Ela saiu desnorteada, sem saber onde encontrar Maria Viviane naquele oceano de túmulos e cruzes. O homem calvo ainda a chamou:

- Volte aqui. Vamos ver...

Foi crescendo dentro dela uma pena enorme de Maria Viviane, perdida no oceano de cruzes. Resolveu ir embora, manquitolando, apressada. O homem calvo chamou-a:

- Ei, minha senhora. Encontrei o nome dela. Sei onde está.

Não lhe deu atenção. Atravessou o grande portão, apressada, manquitolando junto ao muro alto do cemitério, amparando-se nele, uma angústia enorme no coração.

Desapareceu na esquina no vestido azul desbotado, a fivela prendendo os cabelos não bem penteados e de fios prateados.

 Fonte:
O Conto Brasileiro Hoje – vol. II

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Francisco José Pessoa (Caderno de Trovas)

À minha mulher confesso:
“- Na atual encarnação,
para apressar teu progresso
sou a tua expiação!”

À tardinha, todo dia,
assisto o chegar do trem,
esperando por Maria
só que Maria não vem.

A poça d’água na rua
de repente se prateia...
espelho tosco da lua
em noite de lua cheia.

As estrêlas não fenecem
perante à luz que encandeia,
mas docemente adormecem
se a noite é de lua cheia.

Eis o grande desafio
para quem se diz cristão:
ter que dizer, renuncio,
em favor de um outro irmão!

Esta vidinha da gente
tal a serra é mesmo assim...
ora subida ou vertente
num sobe e desce sem fim.

“Faça-se a luz”! e ao fazê-la
com muito amor e carinho,
Deus colocou uma estrêla
a clarear meu caminho.

Homem com muitos trejeitos,
mulher com muita feiúra
para mim são dois defeitos
que nem com reza tem cura!

Mãe é palavra seleta
por si só uma obra prima,
pois mesmo o maior poeta
procura e não acha rima!

Mesmo que lhe desagrade,
dentre os sabores prefira
o amargo de uma verdade
ao doce de uma mentira.

Minha mãe, quanta lembrança,
quem me dera tal jaez...
eu voltar a ser criança
começar tudo outra vez.

Na solidão com frequencia
escutamos uma voz...
deve ser nossa consciência
querendo falar por nós!

Nas veredas tortuosas
dessa vida em desalinhos,
nas retas eu colho as rosas
nas curvas tiro os espinhos.

Noitinha volto da roça
e Rosa com seu pudor,
apaga a luz da palhoça
pra gente fazer amor.

Nos quatro dias de momo
ante tanta bebedeira,
eu estarei, não sei como,
quando chegar quarta-feira!

Nossas faces, pergaminho,
rastro do tempo que, algoz,
não apagou o carinho
que ainda existe entre nós!

Nos trigais do sentimento
que contra o vento eu transponho,
cozi o pão sem fermento
no forno quente de um sonho.

O amor seria fecundo
como tal se espalharia,
se toda mãe que há no mundo
tivesse um nome...Maria!

O intenso amor que nos une
e nos completa, querida,
faz a nossa vida imune
às incertezas da vida.

O meu amor quis safar-se
de mim, então me escondi;
de rosa era seu disfarce...
fui, sorrateiro, e a colhi!

O nosso amor passageiro
tal orvalho evaporou...
nasceu e morreu ligeiro,
que nem saudade deixou.

O pó que emana do giz
e o salário sem valor,
tornam bem mais infeliz
a vida do professor!

Os gritos de liberdade
abafados por censuras,
viram ecos de piedade
nos porões das ditaduras.

O sol, gigante centelha,
torna-se mais colossal,
quando nascendo se espelha
nas águas do pantanal.

Por mais que em ti não pensasse
uma lágrima escorria,
irrigando a minha face,
onde eu plantei nostalgia.

Quando o sol arquiva o dia
e o expediente se encerra,
ecoa a Ave-Maria
nos escritórios da serra!

Quantos banquetes regados
a vinho, trufa e salmão...
quantos irmãos relegados
sem água, sem luz, sem pão!

Quem diz ter brilho e alardeia
desdenhando o semelhante,
esqueçe que a lua cheia
tem seus dias de minguante!

Quem faz da vida um disfarce
e finge viver a esmo,
de tudo pode safar-se
mas não engana a si mesmo!

Sem usar pincel ou tinta
apenas com seu clarão,
a lua cheia repinta
as veredas do serttão.

Todo indivíduo que é tolo
mas que de sábio se arvora,
é tal um pão sem miolo...
só tem a casca por fora!

O Autor