segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Trova LVII

Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro sobre a Génese dos Heterónimos



(foi mantida a grafia original da carta)

Lisboa, 13 de Janeiro de 1935

Meu prezado Camarada,

Muito lhe agradeço a sua carta, a que vou responder imediatamente e integralmente. Antes de, propriamente, começar, quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de cópia. Acabou-se-me o decente, é domingo, e não posso arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau papel que o adiamento.

Em primeiro lugar, quero dizer-lhe que nunca eu veria «outras razões» em qualquer coisa que escrevesse, discordando, a meu respeito, sou um dos poucos poetas portugueses que não decretou a sua própria infalibilidade, nem toma qualquer crítica que se lhe faça, como um acto de lesa-divindade. Além disso, quaisquer que sejam os meus defeitos mentais, é nula em mim a tendência para a mania da perseguição. Á parte isso, conheço já suficientemente a sua independência mental, que, se me é permitido dizê-lo, muito aprovo e louvo. Nunca me propus ser Mestre ou Chefe – Mestre, porque não sei ensinar, nem sei se teria que ensinar; Chefe, porque não sei estrelar ovos. Não se preocupe, pois, em qualquer ocasião, com o que tenha de dizer a meu respeito. Não procuro caves nos andares nobres.

Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz com um livro de natureza da Mensagem. Sou, de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso, muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a Mensagem não as inclui.

Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que consegui, não sei porquê, ter organizado e pronto. Como estava pronto, devo dizer, com os olhos postos no prémio do Secretariado, embora nisso não houvesse pecado intelectual de maior. O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até, que não poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para a entrega dos livros, que primitivamente fora até ao fim de Julho, fora alargado até ao fim de Outubro. Como, porém, em fim de Outubro já havia exemplares da Mensagem, fiz entrega dos que o Secretariado exigia. O livro estava exactamente nas condições (nacionalismo) de concorrer. Concorri.

Quando ás vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do género de Mensagem figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar por um livro de versos grandes – um livros de umas 350 páginas -, englobando as diversas subpersonalidades de Fernando Pessoa ele mesmo, ou se deveria abrir com uma novela policiaria, que ainda não consegui completar.

Concordo consigo, disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz com a publicação da Mensagem. Mas concordo com os factos que foi a melhor estreia que eu poderia fazer. Precisamente porque esta faceta – em certo modo secundária – da minha personalidade não tinha nunca sido suficientemente manifestada nas minhas colaborações em revistas (excepto no caso do Mar Português, parte deste mesmo livro) – precisamente por isso convinha que ela aparecesse, e que aparecesse agora. Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou incapaz de premeditação prática), com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se completou por conversa, fora exactamente talhado, com a Esquadria e o Compasso, pelo Grande Arquitecto.

(Interrompo. Não estou doido nem bêbado. Estou, porém, escrevendo directamente, tão depressa quanto a máquina mo permite, e vou-me servindo das expressões que me ocorrem, sem olhar a que literatura haja nelas. Suponha – e fará bem em supor, porque é verdade – que estou simplesmente falando consigo.)

Respondo agora directamente às suas três perguntas: (1) Plano futuro da publicação das minhas obras, (2) génese dos meus heterónimos, e (3) ocultismo.

Feita, nas condições que lhe indiquei, a publicação da Mensagem, que é uma manifestação unilateral, tenciono prosseguir da seguinte maneira. Estou agora completando uma versão totalmente remodelada do Banqueiro Anarquista; essa deve estar pronta em breve e conto, desde que esteja pronta, publicá-la imediatamente. Se assim fizer, traduzo imediatamente este escrito para inglês, e vou ver se o posso publicar em Inglaterra. Tal qual deve ficar, tem probabilidades europeias. (Não tome este frase no sentido de Prémio Nobel imanente.) Depois – e agora respondo propriamente à sua pergunta, que se reporta a poesia – tenciono, durante o Verão, reunir o tal grande volume dos poemas pequenos do Fernando Pessoa ele mesmo, e ver se o consigo publicar em fins do ano em que estamos. Será esse o volume que o Casais Monteiro espera, e é esse que eu mesmo desejo que se faça. Esse, então, será as facetas todas, excepto a nacionalista, que a Mensagem já manifestou.

Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando (ver mais acima) me for dado o Prémio Nobel. E contudo – penso-o com tristeza – pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental vestida de música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!

Creio que respondi à sua primeira pergunta.

Se fui omisso, diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais planos não tenho, por enquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão os meus planos, é caso para dizer, Graças a Deus!

Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.

Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histeroneurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos – felizmente para mim e para os outros – mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com os outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas – cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia…

Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já não me lembro – os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.

Desde criança, tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.

Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou antes, o meu primeiro conhecido inexistente – um certo Chavalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já não me ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era não sei quê, um rival do Chevalier de Pas… Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida – ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.

Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem eu suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura – cara, estatuto, traje e gesto – imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, ouço, sinto, vejo. Repito: ouço, sinto, vejo… E tenho saudades deles.

(Em eu começando a falar – e escrever à máquina é para mim falar -, custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz.)

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia irregularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)

Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente… Foi o regresso de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sai própria inexistência como Alberto Caeiro.

Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo individuo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.

Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim, e parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.

Quando foi da publicação de Orpheu, foi preciso, à última hora, arranjar qualquer coisa para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema «antigo» do Álvaro de Campos – um poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi, dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive de desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão…

Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido – estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito lúcido - , diga, que de bom grado lho darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais Monteiro!

Mais uns apontamentos nesta matéria… Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e do mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão, nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso) não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais dois cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos – o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de vago moreno mate; Campos, entre o branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma – só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem a Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.

Como escrevo em nome destes três? Caeiro, por pira e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc. Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis – ainda inédita – ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea em verso.)

Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a incoerência com que o tenho escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para que possa escrever imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu conseguir escrever.

Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo. Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes nesses mundos, em existências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando-se até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos co-existam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Externa do ocultismo, ou seja a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria Anglo-Saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se ele é Criador ou simplesmente Governador, do mundo. Dadas essas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho esse extremamente perigoso, em todos os sentido; o caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandesriscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epigrafe ao meu poema Eros e Psyche, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente – o que é facto – que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência, desde cerca de 1888. se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do ritual, pois se não devem citar (indicando a origem) trechos de Rituais que estão em trabalho.

Creio assim, meu querido Camarada, ter respondido, ainda com certa incoerência às suas perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em fazê-las. O que poderá suceder, e isso me desculpará desde já, é não responder tão depressa.

Abraça-o camarada que muito o estima e admira,

Fernando Pessoa.

P.S. (!!!)

Além da cópia que normalmente tiro para mim, quando escrevo à maquina de qualquer carta que envolve explicações da ordem das que esta contém, tirei uma cópia suplementar, tanto para o caso de esta carta se extraviar, como para o de, possivelmente, ser-lhe precisa para qualquer outro fim. Essa cópia está sempre ás suas ordens.

Outra coisa. Pode ser que, para qualquer estudo seu, ou outro fim análogo, o Casais Monteiro precise, no futuro, de citar qualquer passo desta carta. Fica desde já autorizado a fazê-lo, mas com uma reserva, e peço-lhe licença para lha acentuar. O parágrafo sobre o ocultismo, na página 7 da minha carta, não pode ser reproduzido em letra impressa. Desejando responder o mais claramente possível à sua pergunta, saí propositadamente um pouco fora dos limites que são naturais nesta matéria. Trata-se de uma carta particular, e por isso não hesitei em fazê-lo. Nada obsta a que leia esse parágrafo a quem quiser, desde que essa outra pessoa obedeça também ao critério de não reproduzir em letra impressa o que nesse parágrafo vai escrito. Creio que posso contar consigo para tal fim negativo.

Continuo em divida para consigo da carta ultra-devida sobre os seus últimos livros. Mantenho o que creio que lhe disse na minha carta anterior: quando agora (creio que será só em Fevereiro) passar alguns dias no Estoril, porei essa correspondência em ordem, pois estou em divida, nessa matéria, não só para consigo, mas também com várias outras pessoas.

Ocorre-me perguntar de novo uma coisa que já lhe perguntei e que me não respondeu: recebeu os meus folhetos de versos em inglês, que há tempos lhe enviei?

«Para meu governo», como se diz em linguagem comercial, pedia-lhe que me indicasse o mais depressa possível que recebeu esta carta. Obrigado.

F. Pessoa.

Fonte:
http://omj.no.sapo.pt/Carta%20ACM.doc

Erros mais comuns da lingua portuguesa (1)



Erros gramaticais e ortográficos devem ser evitados , veja os mais comuns:

1 – “Mal cheiro”, “mau-humorado”. Mal opõe-se a bem e mau, a bom. Assim: mau cheiro (bom cheiro), mal-humorado (bem-humorado). Igualmente: mau humor, mal-intencionado, mau jeito, mal-estar.

2 – “Fazem” cinco anos. Fazer, quando exprime tempo, é impessoal: Faz cinco anos. / Fazia dois séculos. / Fez 15 dias.

3 – “Houveram” muitos acidentes. Haver, como existir, também é invariável: Houve muitos acidentes. / Havia muitas pessoas. / Deve haver muitos casos iguais.

4 – “Existe” muitas esperanças. Existir, bastar, faltar, restar e sobrar admitem normalmente o plural: Existem muitas esperanças. / Bastariam dois dias. / Faltavam poucas peças. / Restaram alguns objetos. / Sobravam idéias.

5 – Para “mim” fazer. Mim não faz, porque não pode ser sujeito. Assim: Para eu fazer, para eu dizer, para eu trazer.

6 – Entre “eu” e você. Depois de preposição, usa-se mim ou ti: Entre mim e você. / Entre eles e ti.

7 – “Há” dez anos “atrás”. Há e atrás indicam passado na frase. Use apenas há dez anos ou dez anos atrás.

8 – “Entrar dentro”. O certo: entrar em. Veja outras redundâncias: Sair fora ou para fora, elo de ligação, monopólio exclusivo, já não há mais, ganhar grátis, viúva do falecido.

9 – “Venda à prazo”. Não existe crase antes de palavra masculina, a menos que esteja subentendida a palavra moda: Salto à (moda de) Luís XV. Nos demais casos: A salvo, a bordo, a pé, a esmo, a cavalo, a caráter.

10 – “Porque” você foi? Sempre que estiver clara ou implícita a palavra razão, use por que separado: Por que (razão) você foi? / Não sei por que (razão) ele faltou. / Explique por que razão você se atrasou. Porque é usado nas respostas: Ele se atrasou porque o trânsito estava congestionado.

11 – Vai assistir “o” jogo hoje. Assistir como presenciar exige a: Vai assistir ao jogo, à missa, à sessão. Outros verbos com a: A medida não agradou (desagradou) à população. / Eles obedeceram (desobedeceram) aos avisos. / Aspirava ao cargo de diretor. / Pagou ao amigo. / Respondeu à carta. / Sucedeu ao pai. / Visava aos estudantes.

12 – Preferia ir “do que” ficar. Prefere-se sempre uma coisa a outra: Preferia ir a ficar. É preferível segue a mesma norma: É preferível lutar a morrer sem glória.

13 – O resultado do jogo, não o abateu. Não se separa com vírgula o sujeito do predicado. Assim: O resultado do jogo não o abateu. Outro erro: O prefeito prometeu, novas denúncias. Não existe o sinal entre o predicado e o complemento: O prefeito prometeu novas denúncias.

14 – Não há regra sem “excessão”. O certo é exceção. Veja outras grafias erradas e, entre parênteses, a forma correta: “paralizar” (paralisar), “beneficiente” (beneficente), “xuxu” (chuchu), “previlégio” (privilégio), “vultuoso” (vultoso), “cincoenta” (cinqüenta), “zuar” (zoar), “frustado” (frustrado), “calcáreo” (calcário), “advinhar” (adivinhar), “benvindo” (bem-vindo), “ascenção” (ascensão), “pixar” (pichar), “impecilho” (empecilho), “envólucro” (invólucro).

15 – Quebrou “o” óculos. Concordância no plural: os óculos, meus óculos. Da mesma forma: Meus parabéns, meus pêsames, seus ciúmes, nossas férias, felizes núpcias.

16 – Comprei “ele” para você. Eu, tu, ele, nós, vós e eles não podem ser objeto direto. Assim: Comprei-o para você. Também: Deixe-os sair, mandou-nos entrar, viu-a, mandou-me.

17 – Nunca “lhe” vi. Lhe substitui a ele, a eles, a você e a vocês e por isso não pode ser usado com objeto direto: Nunca o vi. / Não o convidei. / A mulher o deixou. / Ela o ama.

18 – “Aluga-se” casas. O verbo concorda com o sujeito: Alugam-se casas. / Fazem-se consertos. / É assim que se evitam acidentes. / Compram-se terrenos. / Procuram-se empregados.

19 – “Tratam-se” de. O verbo seguido de preposição não varia nesses casos: Trata-se dos melhores profissionais. / Precisa-se de empregados. / Apela-se para todos. / Conta-se com os amigos.

20 – Chegou “em” São Paulo. Verbos de movimento exigem a, e não em: Chegou a São Paulo. / Vai amanhã ao cinema. / Levou os filhos ao circo.

Fonte:
http://www.culturatura.com.br/

Antonio Cândido (O Escritor e o Público)



O escritor numa determinada sociedade não é apenas o “indivíduo” capaz de exprimir a sua originalidade, mas alguém desempenhando um “papel social”, ocupando uma posição relativa ao seu grupo profissional e correspondendo as expectativas dos leitores ou auditores. Pode-se dizer que é um panorama dinâmico, pois a obra realizada exerce tanto sobre o público no momento da criação e da posteridade quanto sobre o autor, cuja realidade se incorpora e a fisionomia espiritual se define através dela. Esse dinamismo da obra influencia o comportamento dos grupos e define relações entre os homens.

A literatura é um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A produção da obra literária deve ser inicialmente encarada com referência à posição social do escritor e à formação do público. A posição do escritor dependerá do conceito social que os grupos elaboram em relação a ele, não necessariamente ao seu próprio. Deve-se considerar, relacionando-os ao grupo de fatores que integram o conceito de público. A obra sendo mediadora entre o autor e o público, este é o mediador entre o autor e a obra. O autor só adquire plena consciência da obra através da reação de terceiros, sendo esta necessária para sua autoconsciência. Por isso, todo escritor depende do público, tanto que é a ausência ou a presença dessa reação que decidirá a orientação de uma obra e o destino de um artista.

A cerimônia religiosa, a comemoração pública, foram ocasiões para se formarem os públicos mais duradouros em nossa literatura colonial, dominado pelo sermão e pelo recitativo. Silva Alvarenga foi o primeiro escritor brasileiro que procurou harmonizar a criação com a militância intelectual. Em torno dele formou-se o grupo Sociedade Literária que se prolongou pelos alunos por ele formados como Mestre de Retórica e Poética.

A exemplo de Alcino Palmireno – o escritor começou a adqüirir consciência de si mesmo no Brasil, incubidos como tarefa patriótica definir conscientemente uma literatura mais ajustada às aspirações da jovem pátria, exprimir a sensibilidade nacional, manifestando-se como ato de brasilidade.

Duas características foram decisivas para configuração geral da literatura: Retórica e Nativismo, fundidos no movimento romântico. Os românticos fundiram a tradição humanista na expressão patriótica, fornecendo ao Brasil um temário nacionalista e sentimental, adequado às necessidades de autovalores propiciando a formação de um público incalculável.

A literatura se incorporou ao civismo da Independência, pois foi aceita pelas instituições governamentais: o amparo oficial de D Pedro II, o Instituto Histórico e as Academias de Direito. Sua função consistiu de um lado – acolher a atividade literária como função digna; de outro – podar suas demasias pela padronização imposta ao comportamento do escritor. O Estado reconhecia o papel cívico e construtivo que o escritor atribuía como justificativa da sua atividade.

No segundo reinado são feitos publicações em revistas e jornais familiares, fato este que levou os escritores a escrever para um público feminino ou para serões que se liam em voz alta. No Brasil, embora exista tradicionalmente uma literatura muito acessível, na grande maioria verifica-se ausência de comunicação entre o escritor e o público. Com efeito disso, o escritor se habituou a escrever para públicos restritos e contar com a aprovação dos grupos reduzidos de pequenas elites.

Sendo a grande maioria de iletrados que ainda hoje caracteriza o país, a pobreza cultural nunca permitiu a formação de uma literatura complexa, salvo as devidas exceções. Por isso que quase não há no Brasil uma literatura requintada, seria inacessível aos públicos disponíveis.

Essas considerações apontam algumas condições da produção da Literatura no Brasil, desde o ponto de vista das relações do escritor com o público e dos valores de comunicação.

Segundo o escritor, o ornamento da sociedade pôde definir um papel mais liberto, sem se afastar do esquema traçado de participação na vida e aspirações nacionais. A diferenciação dos públicos permitiu maiores aventuras intelectuais e a produção de obras.

Fontes:
CANDIDO, Antonio. “O escritor e o público”. in Literatura e sociedade.
Marli Savelli de Campos in http://mscamp.wordpress.com/o-escritor-e-o-publico/

domingo, 20 de setembro de 2009

Trova LVI

Trova sobre pintura Paisagem Paranaense de autoria de Kurt Boiger, em 1948.

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Versos dos Meus Poemas)


Eu já fiz verso de amor,
De dor, de felicidade,
Fiz poema para a flor,
Para a angústia e a saudade.

Já viajei pelos prados,
Pelos montes e cidades,
Confessei os meus pecados
Nas rimas que fiz um dia,
Já cantei em um poema
Minha grande travessia.

Falei com a voz da razão
De capela e campanário,
Já cantei o bem-te-vi,
O curió e o canário.
Contemplei o colibri,
Num ambiente de calma
Voando pelo jardim
Que plantei dentro da alma.

Revelei minha conquista,
Falei de amor e paixão,
Abasteci o celeiro,
No meu mundo de ilusão,
Fiz verso de pão dormido,
De arroz, de soja e feijão,
Levei ao homem do campo
Toda minha gratidão!

Escrevi no meu diário
A rota, o rumo da vida,
Cantei a nossa canção
Enfrentando a minha lida,
Rezei naquela capela
Da minha infância querida.

Proseei coisas da roça,
Revelei a minha crença,
Caí no fundo do poço,
Vi na fé a diferença,
Curti só a minha fossa,
Falei do velho e do moço.

Lancei meu velho pião,
Fiz minha pipa voar...
E num surto de paixão
Conjuguei o verbo amar.
Busquei o beijo perdido
Que você não quis me dar.

Contemplei as suas mãos,
Delirei com seu olhar...
Vi meu mundo de ilusão
Naufragando em alto mar
Quando senti nosso abraço
Atado com num laço
Tão de repente afundar.

Embarquei no trem da vida,
Contemplei o sol poente,
Na primavera florida
Senti o sopro da brisa
Roçando o corpo da gente.

Falei também do verão
Que tanta lembrança me traz
Do meu tempo de rapaz
Que jamais vou esquecer...
Fiz poema pra você,
Implorei em verso a paz!

Cantei com garra e amor
O futuro da nação
Que pra mim está nas mãos
Do aguerrido professor.

Falei da beleza do céu,
Da estrela cintilante,
Versejei sobre o andante
Que vive perdido ao léu,
Vi o contraste da vida,
No poema Mel e Fel.

Falei, também, de procuras,
Desejo, alucinação,
Confessei minhas loucuras,
Libertei meu coração...

Falei, enfim, da mulher
Em versos e poeminhas,
Que, pra mim, foi um dilema,
A mais cruel agonia:
Ousei fazer um poema,
Para a própria poesia!
––––––––––––––-

Fontes:
Colaboração do autor.
Imagem = http://edupoisl.blogspot.com/

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (autobiografia)


Existe um antigo adágio popular que diz: de poeta e de louco todos nós temos um pouco.

Nunca acreditei nesse ditado, pois imaginava não ter absolutamente nada nem de louco, nem de poeta. Nunca apresentei qualquer sintoma que me levasse a essa preocupação, embora desde jovem tenha participado de festivais de músicas e poesias. Mas tudo de uma forma muito amadora e descompromissada de qualquer desejo que me levasse a crer que tivesse vocação para esse mister.

O primeiro e único festival de música de São Fidélis (meu pequeno pedacinho de mundo) foi organizado por mim, juntamente com um grande amigo já falecido, Maury Mansur Simão, através do antigo jornal carioca DIÁRIO DE NOTICIAS , do qual era o representante no Norte e Noroeste do estado do Rio de Janeiro, quando tinha apenas 18 anos de idade. Naquela época, o Diário de Notícias era considerado um grande jornal do antigo Estado da Guanabara.

Foi nessa fase que, estimulado por amigos e poetas (talvez bem mais loucos do que eu), comecei a caminhar por essas veredas.

Algumas poesias que apresento neste modesto site nasceram nessa época, nos idos dos anos sessenta, quando o movimento da MPB estava no seu apogeu. Mas sempre escrevia e deixava guardadas comigo. Achava que ninguém ia ligar para um trabalho tão despretensioso.

Com o advento do computador, resisti ao máximo em adquirir o meu primeiro pc. Achava que nada neste mundo substituiria a minha Remington elétrica.

Como fui ignorante!... Hoje não sei se conseguiria trabalhar sem o computador. Nele aprendi a pintar e a bordar. Não uso mais cavaletes, paletas, pincéis, telas e tintas. Meus quadros são projetados no pc. Aqui coloco minha imaginação para, nos finais de semana, fazer minhas pinturas. Nele estou restaurando o teto da nossa Igreja Matriz de São Fidélis, para que fique em arquivo a pintura original que já se apresenta desbotada.

Foi graças ao computador que pude conhecer inúmeros amigos: poetas, escritores, pessoas simples e sofridas e até Reitores de Universidades de países da América e da Europa. Foi aqui que começou a nascer à idéia deste site.

Existem na Internet cirandas de poesias que são encaminhadas com temas pré- determinados. Essas cirandas percorrem o mundo e alguns poemas apresentados nelas são colocados nos melhores sites do gênero

Certo dia fiquei perplexo quando vi um trabalho meu publicado no Google, considerado um grande site de busca da Internet.

E aí continuei a escrever meus pequenos poemas e sonetos. Recebia por parte dos amigos o apelo de colocar um site no ar.

Resisti enquanto pude, até que um dia recebi da amiga Rita de Cássia Bello da Silva três sonetos de um poeta chamado José Antonio Jacob. Nunca havia lido algo igual, os sonetos dele me encheram o coração e a alma. Mostrei os sonetos para minha esposa, que é professora da língua portuguesa. Ela também ficou encantada com a beleza sutil dos sonetos do escritor.

E a Rita de Cássia continuou insistindo em que deveria escrever um site de poesias. Um dia ela me cobrou tanto que fui obrigado a condicionar o lançamento do meu site ao parecer do grande poeta e escritor José Antonio Jacob, sobre o meu trabalho.

Fiquei surpreso com o que ele escreveu, e foi aí que achei que tinha dentro de mim um pouco de poeta, ou então dentro do Jacob um pouco de loucura.

Depois de suas considerações não resisti e resolvi colocar este site no ar, isso graça à insistência da querida amiga Rita de Cássia (que ainda não conheço pessoalmente, apesar do estreito laço de amizade que já nos une), uma pessoa extraordinária que conheci fazendo formatações e que me deu de presente a felicidade de tê-la como amiga e grande parceira nessa tarefa.

Acho que o brilho maior deste site está nas suas belas formatações e nas poesias dos amigos José Antonio Jacob, poeta e escritor mineiro (que ainda não tive também o prazer de conhecer pessoalmente), Sôchico Caçadô (Renan Abreu poeta sertanejo, escritor e tio muito querido), Antonio Roberto Fernandes (grande amigo, escritor e poeta fidelense) e Pedro Emílio de Almeida e Silva ( poeta fidelense cantado em prosa e verso, casado com a minha irmã Maria Paulina Sardenberg Silva).

Feito esse comentário, quero dizer que nasci em Santo Antonio de Pádua / RJ , mas que me considero Fidelense, pois vim para cá com apenas quatro meses de idade. Aqui vivi toda a minha vida e duvido de que exista melhor lugar no mundo.

Aqui tive uma infância extraordinária. Tínhamos a liberdade dos pássaros, nossa piscina era o majestoso Rio Paraíba do Sul, e nosso campo de futebol eram os areais desse rio.

Meus avós maternos : Manoel P. de Abreu e Corezina Perlingeiro de Abreu nos brindaram com dez tios maravilhosos (Renan, Aloysio, José, Geraldo, Dirley, Jairo, Hevaldo, Auxiliadora, Ritta e Helmo).

Tenho inúmeros primos (de sangue e agregados) , alguns deles viveram a feliz infância comigo em Ipuca, 2º distrito de São Fidélis.

Meus pais já falecidos: Aggeo Paulino Sardenberg e Niette Perlingeiro Abreu Sardenberg me proporcionaram a felicidade de ter mais seis irmãos (João Guido, Maria Therezinha, Maria Paulina, José Geraldo, Maria Lúcia e Izabel).

Costumo dizer que sou um homem com hábitos rurais, feito a machado e a enxó e talhado com a formação rigorosa que nos foi imposta pela criação rígida e religiosa de nossa Avó Corezina Perlingeiro Abreu, tratada por todos da família como “ABELHA MESTRA”.

Casei-me aos 26 anos com Marlene Rangel Sardenberg, minha amiga e companheira com quem construí uma linda família, com dois filhos maravilhosos: Matheus e Andrezza . Ele médico veterinário e ela médica endocrinologista. Vejo na família o porto seguro da vida.

Sou advogado especializado em direito de família e consultor.

Participei do Rotary Clube de São Fidélis e com ele criei diversas instituições sem fins lucrativos, tendo sido presidente e secretario da governadoria do Rotary Club, distrito 457.
Hoje participo de um trabalho que vem sendo realizado pela Ecos Rio Paraíba, uma ONG com sede em São Fidélis e que tem como presidente o amigo Mário Aurélio da Cunha Pinto.

Através dessa ONG temos levado às escolas de cinco município vizinhos a orientação pedagógica sobre defesa do meio ambiente, inclusive com o plantio de milhares de árvores nas margens do Rio Paraíba do Sul

Pretendo, brevemente, se a Ecos Rio Paraíba autorizar, colocar aqui uma página sobre o trabalho belíssimo que a instituição vem desenvolvendo.

Mas, na verdade, o que me encanta na vida é a simplicidade das pessoas, o amor à natureza, o respeito aos semelhantes e a inabalável fé em DEUS.

Quero transcrever aqui um poema que foi feito em homenagem ao meu tio mais novo – HELMO PERLINGEIRO ABREU –, que acompanhava os sobrinhos nas peladas e pescarias . Esse poema, na realidade, foi a minha recaída e reintrodução na poesia.

Nele procuro descrever como foi minha infância na pequena Vila de Ipuca, 2º distrito de São Fidélis, onde vivi, juntamente com meus irmãos, tios e primos dias tão felizes, apesar da vida simples e modesta de nossa família.

Como tio, um irmão...
Dos irmãos o benjamim.
Puçá, caniço, pião,
Lagosta, robalo, ilusão,
Na nossa Ipuca de então
Vivíamos a vida assim:

Pescaria no Paraíba,
Peladas no areal,
Chute de bico na bola,
Peixe fisgado no anzol.

E no quarto da vovó,
Às seis horas, todo dia,
A família de joelhos,
Aos pés da Virgem Maria,
Agradecia ao Bom Deus
Toda a fé que nos unia.

Na festa do Padroeiro,
Nosso São Sebastião,
Foguetórios e retretas,
Quermesse, missa, leilão...
Nossos pés andando juntos
Percorrendo a procissão.

Mas na vida, cada um,
Tal e qual o andarilho,
Vai buscar o seu caminho,
Pés bem ficados no trilho!

E o tempo vai passando,
Cada um vai pro seu lado,
Pois o mundo é mesmo assim:
Saudade manda recado,
A gente ouve sua voz,
Ela entrando no peito,
Coração doendo em nós.

Mas quando nos reunimos,
Os olhos voltam a brilhar
Ao recordar um passado
Que nunca vai acabar.
Puçá, caniço, pião,
Peladas no areal,
Festa do padroeiro,
Novena e procissão...
Vovó Zizi, nossos tios...
Tio Helmo, nosso irmão!
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Nota: Recomendo que conheçam o site de Sardenberg.
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Fonte:
Alma de Poeta. http://www.sardenbergpoesias.com.br/

sábado, 19 de setembro de 2009

Trova LV

Pedro Emílio de Almeida e Silva (Madrugada)


Dois cigarros acesos no silêncio da madrugada:
- o meu e o teu cigarro.
Uma tragada um beijo, um beijo e uma tragada...
Teu braço é o meu travesseiro quente e macio:
- dois pássaros que a tempestade da noite separa
E se juntam em manhã dourada de estio.

Preciso partir! Antes que eu diga mais nada
Prendes-me nos braços e entre beijos e abraços
Pede-me para ficar.

E, num delírio louco de amor, começas a falar:
- Não, não vá embora! Deixa que o sol desponte
E os pássaros comecem a cantar lá fora.
Deixa que a névoa adormecida no colo azul
Das montanhas distantes desapareça
Ao toque sutil da aurora.

- Que será do resto da manhã se te fores?
Não vês que ficarei sozinha morrendo de amores?
Esquece a vida, querido, e me entregue a luz do teu olhar
Num sonho eterno e perdido...

Somente, agora, o sol debruça em nossa janela
Com ar de malícia, vem nos dar bom dia
Louvar nosso amor nessa manhã tão bela:
- Esquece a vida, querido, e me entregue a luz do teu olhar
Num sonho eterno e perdido...
- O que será do resto do dia se te fores?
Não vês que ficarei sozinha morrendo de amores?
Esquece a vida, querido, e me entregue a luz do teu olhar
Num sonho eterno e perdido...

- O que será do resto da tarde se te fores?
Não vês que ficarei sozinha morrendo de amores?
Esquece a vida, querido, e me entregue a luz do teu olhar
Num sonho eterno e perdido...

- Deixe que a tarde caia serena a encher de sombras
e odores os caminhos por onde há de passar sozinha:
- Esquece a vida, querido, e me entregue a luz do teu olhar
Num sonho eterno e perdido...
Somente agora a Lua vem nascer
Como um pintor em fina tela
Imagens vem tecendo...

Dois cigarros acesos no silêncio da madrugada:
- o meu e o teu cigarro...
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Sílvia Araújo Motta (Trovas: Sou Guerreira)


Se não sou mulher rendeira,
sou eleita mulher forte,
sempre chamada guerreira
que luta para ter sorte.

Desde os seis anos, menina,
Belovalense, mineira,
nos desafios da sina,
venço na linha primeira.

Não tenho medo de nada,
nem à noite, nem de dia,
trago uma garra danada,
busco o brinde da alegria.

Santa Guerreira não fui,
pois conheço meu pecado,
meu pensamento polui,
só quando fico ao teu lado.

Fico a pensar em querer
teu amasso, beijo, abraço...
porém não deves saber
deste segredo que faço.

Eu sou guerreira do amor
quando me rendo aos teus laços,
venço a batalha da dor,
com o remédio dos teus braços.

Sou guerreira da alegria
que apresenta seus encantos...
nas notas da sinfonia
já não desafinam prantos.

Sou guerreira, sou Rainha
do meu lar que tanto amo,
sou mãe e tia Silvinha;
do passado não reclamo.

Sou guerreira, sou escrava
do achego do meu bem,
mulher ciumenta, brava
que defende o amor também.

Sou guerreira e sou amante
que sabe bem o que quer...
Valorizo cada instante
com carinhos de mulher.

Sou guerreira, mas minha arma
é carregada de amor,
minha luta não alarma:
-Encontro Paz no Senhor.

Sou guerreira, sou amada
por tanta gente real,
até recebi cantada
na mensagem virtual.

Sou guerreira, rumo o Norte,
faça o vento que quiser,
terei sempre o pulso forte
quando o meu amor vier.

Sou guerreira mãe de três
rapazes, prontos à vida...
Entrego-os ao Deus que os fez
junto à porta de saída.

Sou uma guerreira estudante
vou aos livros todos dia,
só não quero ser “pedante”
pois Sócrates é meu guia.

Sou guerreira que conduz
a espada de Cristo-Rei,
pela Fé, acendo a luz
e não esqueço o que sei.

Sou guerreira contra o mal,
sei acalmar sofrimento,
vou à luta contra o tal
do preconceito, em lamento.

Sou guerreira consciente
para vencer meu defeito,
procuro ser paciente:
-“O ser humano é imperfeito.”

Sou guerreira de verdade,
quando estou a navegar
enfrento a dificuldade
na calmaria do mar.

Sou uma guerreira felina
se precisar da defesa
pra tentar mudar a sina
tenho garras, com certeza.

Sou guerreira da vontade
para atingir o ideal,
não desisto, na verdade,
torno meu sonho real.

Sou guerreira, sem tombar,
diante das tribulações,
procuro Deus...sei orar,
evito lamentações.

Sou guerreira, e se cair,
eu tentarei levantar...
Se acaso, não conseguir,
minha alma? Sei entregar.

Sou guerreira, por opção,
quero vencer pelo amor,
os braços, não cruzo, não,
por isso, não ligo à dor.

Eu tenho a Alma guerreira!
Os céus me abrem caminho,
“quem busca a glória altaneira
quer chegar ao fim da linha.”

Sou uma guerreira valente,
Carrego amor e leladade,
a espada com sangue quente
esfria qualquer maldade.

Sou guerreira, com razão
é o amor que me conduz,
perdôo qualquer decepção
porque Cristo dá-me luz.

Sou guerreira e tenho um sonho:
-Quero lutar até o fundo...
pela Paz, eu me proponho;
sou uma POETA del MUNDO.

Sou guerreira e com ternura
com o sabre da Fé que rege
na barreira da bravura
tenho o “poder” que elege.

Sou guerreira na área urbana,
sentinela audaciosa,
contra a cobiça que emana
a vida dispendiosa.

Sou guerreira, com coragem,
útil à sobrevivência,
já recebi a homenagem
pela minha experiência.

Sou guerreira inteligente
protetora da cultura,
das Artes, em toda mente,
que muita doença cura.

Sou guerreira da Esperança
na lição da natureza,
que floresce na lembrança,
da semente, com certeza.

Sou guerreira, sou vulcão,
que explode chamas de amor,
brilhante, na erupção,
ao magma, dou meu sabor.

Da mágoa, fui prisioneira,
mas quis minha liberdade,
por isso, hoje, sou guerreira,
por perdão e dignidade.

Sou guerreira da justiça,
tenho ferro em minha mão,
na balança da injustiça
ponho o prato do perdão.

Sou guerreira permanente,
contra a fome mundial,
violência inconsequente
torna a dor universal.

Sou guerreira da Paixão
que encanta qualquer amante,
luto contra a solidão,
mas pelo amor triunfante.

Sou mulher, forte guerreira
que não tem medo de nada,
Belovalense, mineira,
sinto-me perfeitamente, amada,

Sou guerreira e pelo amor
luto em qualquer estação,
no outono ou inverno da dor,
na primavera ou verão.

Sou guerreira e dou a volta
por cima ou passo por baixo...
só não aceito a revolta,
do rebelde contra-baixo.

Reconheço ser guerreira,
“osso duro de roer”
sei que não sou feiticeira,
“Só faço o que dá prazer.”

Sou guerreira diferente,
sei lutar e persistir,
sou madeira, sou valente,
sem depressão, sei reagir.

Sou guerreira e quem diria:
-Quero ser frágil em teus braços,
ser feliz da noite ao dia
e ter teus beijos e amassos.

Sou guerreira que acredita
até o fim de uma jornada...
Tenho a esperança bendita
que põe Fé, na caminhada.
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Marcos Martins (A Morte do Jumento)


Sábado, dia de feira-livre em Nova Canaã, interior da Bahia. A cidade brandia no movimento efêmero de mascates, que se deslocavam de diversas regiões do Município para vender a sua mercadoria no largo público. Às quatro horas da madrugada já se podia ouvir o prantear mórbido das rodas de carroças levando produtos trazidos da zona rural, que seriam ali comercializados.

Ao alvorecer, cavalos e burros desfilavam pomposamente pela cidade, transportando gente e levando as colheitas feitas no dia anterior pelos produtores rurais. Como esse comércio era feito pelos próprios rurícolas, quase não se via ali atravessadores, o que tornava o preço bastante atrativo.

Naquele local se misturavam as mais diversas gentes de diferentes regiões e classes sociais: Negros, brancos, mestiços, ricos, pobres, políticos, estudantes, intelectuais, analfabetos... Enfim, uma infinidade de pessoas que, em tempos de feira, se faziam semelhantes, trocavam idéias, contavam estórias, vendiam, compravam, permutavam, etc.

Àquela época, meado da oitava década do século XX, ainda era comum a prática do escambo. Muitos comerciantes aceitavam parte do pagamento das compras feitas pelos moradores da zona rural em troca de mercadorias produzidas pelos seus assíduos fregueses – requeijão, manteiga, café, feijão, ovos, farinha...

Dentre as muitas faces que por ali circulavam, as negras irmãs “angolanas” embelezavam a feira com a sua graça magnificente. Altas e esbeltas, estavam sempre elegantes e perfumadas, agasalhadas com vestidos estampados em cores gritantes e pó de arroz nos rostos, destacando-se dentre as mulheres ali presentes.

Naquela oportunidade também era possível ver homens e mulheres simples e trabalhadores diversos, que costumeiramente preenchiam aquele cenário, abrilhantando ainda mais o espetáculo do agitado dia-de-sábado, quer seja vendendo, quer seja comprando, ou somente marcando presença na esplanada.

Os vendedores de pipoca, quebra-queixo, doces, etc., eram desses pequenos, mas não desapercebidos comerciantes, que, de forma estratégica, estacionavam o seu tabuleiro ou carrinho numa esquina qualquer de acesso à praça da feira ou em meio à multidão, atraindo a sua fiel clientela, formada principalmente de jovens e crianças.

Havia também diversos outros comerciantes mais bem-posicionados, que eram donos de entrepostos comerciais ali no centro da cidade, como um italiano radicado no Brasil, dono de uma mercearia local, que chamava a atenção pela posição em que usava a suas calças, sempre esticada acima do umbigo.

Não podemos nos esquecer dos bares, que eram freqüentados pelos beberrões e jogadores de bilhar, onde cristãos, mulheres descentes e crianças eram proibidos de entrar. Salões de beleza e lojas de confecções também atraiam um grande número de clientes, aquecendo ainda mais o pequeno comércio local.

Convém não deslembrar igualmente dos pedintes, que buscavam alguma dádiva no meio do tumultuoso agrupamento da feira, acrescentando ainda mais rumor ao alarido maquinal produzido pela massa concentrada.

Dada a presença de um grande número de pessoas reunidas em um espaço tão curto, era muito comum surgirem brigas, entre socos e xingamentos, que lançavam tanto mais anarquia àquela confusão oficializada. As crianças tratavam logo de anunciar o arranca-rabo:

- “Ói” briga na rua da formiga! “Ói” rolo na rua do besouro!

A seguir, um círculo de curiosos se formava em torno dos desordeiros para assistir à rinha (pois chamavam essas chinfrinadas de “brigas de galos”). Alguns se aproveitavam da algazarra para tentar a sorte em apostas sobre quem sairia vencedor, principalmente quando a luta livre se dava entre garotos.

Os carros davam um espetáculo à parte: Pick-ups, caminhões, ônibus e carros de passeio desfilavam pelas principais ruas da cidade, trazendo e levando pessoas e alçando muita poeira. Para a zona rural, o veículo mais utilizado no transporte de pessoas e mercadorias era o caminhão do leite, em que os “passageiros” viajavam sentados sobre baldes e sacas de alimentos, numa arriscada viagem de ida e volta.

Dentre os carros de passeio que se exibiam no local havia o Fusca, o Corcel, o Jeep, a Kombi, a Rural e o mais majestoso de todos – a Opala, sonho de consumo de nove entre cada dez jovens da urbe. Este último era muitas vezes utilizado por alguns “filhos-de-papai” na prática de “pegas” ou de manobras arriscadas, tipo “cavalo-de-pau” e “rabiadas”. Havia muita reclamação do delegado aos seus pais, mas logo tudo acabava bem.

Diante dessa balbúrdia circunstancial, eis que se achegava o “Seu” Manoel Domingues escoltando a pé o fiel companheiro no labor dessa incansável atividade de mascate. Passivo, embora atrasado, Seu Manoel tocava o animal – um asno velho e dócil – tão despreocupadamente, que causava letargia só de olhar. E ninguém os olhava! Já o asno parecia haver incorporado a personalidade apática do seu dono, tão mansamente circulava por entre carros, casas, animais e pessoas.

Vislumbrando-se aquela cena extenuante, tinha-se a sensação de que o Tempo havia diminuído a marcha para dar-lhes passagem. Já eram quase sete da manhã, mas a pressa não parecia ter alcançado aquelas duas criaturas. Lá seguiam ambos – o senhor e o acéfalo – trafegando pela momentaneamente agitada Rua do Pombal com demasiada tranqüilidade e indolência, que mais os assemelhava com o personagem Milkau e o cavalo molenga que alugara para viajar. Se houvesse assistido àquela cena, Drummond certamente exclamaria:

- Êta vida besta, meu Deus!

Manoel Domingues tinha uma feição rude e crua, olhos fundos, nariz afinalado, pele morena, barba por fazer e cabelos lisos e negros, assemelhados aos dos indígenas, com mechas grisalhas resultantes da passagem do tempo. De estatura mediana, com aparentemente cinqüenta anos de idade, era magro feito cipó. Não era homem de muitas palavras, não sorria, não chorava e só falava o essencial. Frio de temperamento, morava sozinho numa choupana de fazenda, mas como mero agregado. Exceto o jumento, não possuía bens, família e amigos, tampouco era visto entre pessoas civilizadas, a não ser aos sábados, quando necessariamente teria que vender a sua escassa colheita na cidade.

Afinal, depois de algum tempo (não me pergunte se um minuto ou um século) os dois se aproximaram da praça da feira. Seu Manoel, que acabara de enrolar um cigarro de palha, quase nem percebera quando o animal parou à sua frente. Com o seu temperamento fleumático, digno de um legítimo Phileas Fogg, enxotou o animal fazendo um sonido estralado entre os lábios, imitando o som de um prolongado e sonoroso beijo.

Pela primeira vez em anos de parceria, o quadrúpede desatendera uma ordem do seu dono. Indiferentemente, Seu Manoel estralou os lábios mais uma vez e bateu levemente na anca do animal, tentando empurrá-lo à frente. O velho amigo não esboçou qualquer reação. Seu Manoel manteve-se, então, inativo, paciente, apenas fumando o seu cigarro tranqüilamente, como se nada estivesse acontecendo (e, de fato, não acontecia). Permaneceu assim por cerca de cinco ou seis minutos, que até mesmo o Tempo, na sua clássica paciência com aquele cidadão, perdeu as estribeiras.

Bem, se algum apressado resolvesse olhar para aquela cena, acreditaria que o Prefeito decidiu ornamentar a via pública com uma escultura realística da vida bucólica no Município. E seria uma merecedora homenagem aos bravos cidadãos que movimentavam a economia local, cujas memórias pós-morte iam caindo no esquecimento.

Seu Manoel não se abalava jamais. Com a sua distintiva pachorra e frigidez, encaminhou-se à frente do animal e, alisando-o a fronte, conversou mansamente com o companheiro:

- Vamos “migão”, só faltam alguns passos.

O animal manteve-se estável, sem reação, parecendo não estar ali. Seu Manoel novamente cochichou palavras de incentivo ao velho asno, porém em vão. O Tempo agora resolvera manter a sua celeridade natural, pois já não lhe convinha mais se refrear para ajudar aquelas duas pobres criaturas, esquecidas da vida. E os minutos foram passando, passando e... De repente, o asno soltou um estranho urro e quedou-se ao chão, deixando cair parte da carga que transportava nos dois panacuns, fixados em cada lado da cangalha.

Seu Manoel não acreditava no que via. Eis que o seu velho amigo, membro real da sua família, único patrimônio que possuía – se é que se podia considerá-lo assim, pois, como bem lembrado por Luis Gonzaga, para o nordestino o jumento é seu irmão – partia desta vida para uma melhor. E o que é pior: em plena atividade laboral, sem direito a um descanso ou ao cuidado do seu amo.

Um plangente e culminante gemido se ouviu no paço municipal. Todos paralisaram as suas atividades para ver o que estava acontecendo. Seu Manoel, não se agüentando nas pernas, sentou à beira do meio-fio e ali permaneceu, choroso e abatido. Não podia acreditar no que presenciara: a morte do seu único amigo e companheiro de luta.

Tão triste foi ver aquele episódio, que o luto do Seu Manoel logo contaminou as pessoas ali presentes. Um longo silêncio se fez em meio àquele tumulto. Só se ouvia o choro do desgraçado feirante. Como era de praxe, logo um círculo de curiosos se formou em torno do Seu Manoel e do corpo do animal, já sem vida. Naquele meio era até possível ver a irônica “Dona” Morte, que se ria sem piedade da miséria do nosso infeliz personagem.

Quanta desolação, meu Pai! Quanta tristeza se via no rosto daquele pobre senhor, de quem jamais se ouvira falar maiores detalhes sobre a sua vida, origem e família. Durante o episódio, duas caridosas almas cristãs saíram do meio da multidão para tentar consolar o mísero vivente. Não demorou muito e logo Seu Manoel colocara-se novamente de pé, embora ainda choroso. Olhava consternado para o amigo morto e dizia repetidamente:

- E agora, o que vou fazer?

Para encurtar a história, pois eu mesmo me emociono só de lembrar, um bondoso fazendeiro local se comprometeu a presenteá-lo com um dos animais da sua fazenda, à escolha do Seu Manoel. Logo a vida dele voltaria ao normal. Porém a nostálgica lembrança do velho amigo de longas datas não lhe sairia mais da cabeça, como a de um verdadeiro irmão que se foi.

A carcaça do animal foi enterrada junto à choupana onde morava o Seu Manoel, ali na zona rural. Enquanto vivesse, não permitiria que aquela lembrança caísse no ostracismo, pois tinha uma enorme dívida de gratidão ao seu falecido companheiro. Durante anos, o Seu Manoel contou as estórias do seu velho amigo às crianças e jovens da região, e assim conseguiu preservar-lhe a memória por muitos e muitos anos. Também foi dessa forma que o nosso personagem fez-se sentir unido ao seu herói, jazendo agora no ventre da Terra, de todos nós viemos e aonde um dia retornaremos.

Que descanse em paz!

Fonte:
Academia Poçoense de Letras e Artes
Imagem = http://gazetaweb.globo.com/

Livros no Domínio Público


Relação de alguns livros que constam no site http://www.dominiopublico.org.br/

1. A Divina Comédia -Dante Alighieri
2. A Comédia dos Erros -William Shakespeare
3. Poemas de Fernando Pessoa -Fernando Pessoa
4. Dom Casmurro -Machado de Assis
5. Cancioneiro -Fernando Pessoa
6. Romeu e Julieta -William Shakespeare
7. A Cartomante -Machado de Assis
8. Mensagem -Fernando Pessoa
9. A Carteira -Machado de Assis
10. A Megera Domada -William Shakespeare
11. A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca -William Shakespeare
12. Sonho de Uma Noite de Verão -William Shakespeare
13. O Eu profundo e os outros Eus. -Fernando Pessoa
14. Dom Casmurro -Machado de Assis
15. Do Livro do Desassossego -Fernando Pessoa
16. Poesias Inéditas -Fernando Pessoa
17. Tudo Bem Quando Termina Bem -William Shakespeare
18. A Carta -Pero Vaz de Caminha
19. A Igreja do Diabo -Machado de Assis
20. Macbeth -William Shakespeare
21. Este mundo da injustiça globalizada -José Saramago
22. A Tempestade -William Shakespeare
23. O pastor amoroso -Fernando Pessoa
24. A Cidade e as Serras -José Maria Eça de Queirós
25. Livro do Desassossego -Fernando Pessoa
26. A Carta de Pero Vaz de Caminha -Pero Vaz de Caminha
27. O Guardador de Rebanhos -Fernando Pessoa
28. O Mercador de Veneza -William Shakespeare
29. A Esfinge sem Segredo -Oscar Wilde
30. Trabalhos de Amor Perdidos -William Shakespeare
31. Memórias Póstumas de Brás Cubas -Machado de Assis
32. A Mão e a Luva -Machado de Assis
33. Arte Poética -Aristóteles
34. Conto de Inverno -William Shakespeare
35. Otelo, O Mouro de Veneza -William Shakespeare
36. Antônio e Cleópatra -William Shakespeare
37. Os Lusíadas -Luís Vaz de Camões
38. A Metamorfose -Franz Kafka
39. A Cartomante -Machado de Assis
40. Rei Lear -William Shakespeare
41. A Causa Secreta -Machado de Assis
42. Poemas Traduzidos -Fernando Pessoa
43. Muito Barulho Por Nada -William Shakespeare
44. Júlio César -William Shakespeare
45. Auto da Barca do Inferno -Gil Vicente
46. Poemas de Álvaro de Campos -Fernando Pessoa
47. Cancioneiro -Fernando Pessoa
48. Catálogo de Autores Brasileiros com a Obra em Domínio Público -Fundação Biblioteca Nacional
49. A Ela -Machado de Assis
50. O Banqueiro Anarquista -Fernando Pessoa
51. Dom Casmurro -Machado de Assis
52. A Dama das Camélias -Alexandre Dumas Filho
53. Poemas de Álvaro de Campos -Fernando Pessoa
54. Adão e Eva -Machado de Assis
55. A Moreninha -Joaquim Manuel de Macedo
56. A Chinela Turca -Machado de Assis
57. As Alegres Senhoras de Windsor -William Shakespeare
58. Poemas Selecionados -Florbela Espanca
59. As Vítimas-Algozes -Joaquim Manuel de Macedo
60. Iracema -José de Alencar
61. A Mão e a Luva -Machado de Assis
62. Ricardo III -William Shakespeare
63. O Alienista -Machado de Assis
64. Poemas Inconjuntos -Fernando Pessoa
65. A Volta ao Mundo em 80 Dias -Júlio Verne
66. A Carteira -Machado de Assis
67. Primeiro Fausto -Fernando Pessoa
68. Senhora -José de Alencar
69. A Escrava Isaura -Bernardo Guimarães
70. Memórias Póstumas de Brás Cubas -Machado de Assis
71. A Mensageira das Violetas -Florbela Espanca
72. Sonetos -Luís Vaz de Camões
73. Eu e Outras Poesias -Augusto dos Anjos
74.. Fausto -Johann Wolfgang von Goethe
75. Iracema -José de Alencar
76. Poemas de Ricardo Reis -Fernando Pessoa
77. Os Maias -José Maria Eça de Queirós
78. O Guarani -José de Alencar
79. A Mulher de Preto -Machado de Assis
80. A Desobediência Civil -Henry David Thoreau
81. A Alma Encantadora das Ruas -João do Rio
82. A Pianista -Machado de Assis
83. Poemas em Inglês -Fernando Pessoa
84. A Igreja do Diabo -Machado de Assis
85. A Herança -Machado de Assis
86. A chave -Machado de Assis
87. Eu -Augusto dos Anjos
88.. As Primaveras -Casimiro de Abreu
89. A Desejada das Gentes -Machado de Assis
90. Poemas de Ricardo Reis -Fernando Pessoa
91. Quincas Borba -Machado de Assis
92. A Segunda Vida -Machado de Assis
93. Os Sertões -Euclides da Cunha
94. Poemas de Álvaro de Campos -Fernando Pessoa
95. O Alienista -Machado de Assis
96. Don Quixote. Vol. 1 -Miguel de Cervantes Saavedra
97. Medida Por Medida -William Shakespeare
98. Os Dois Cavalheiros de Verona -William Shakespeare
99. A Alma do Lázaro -José de Alencar
100. A Vida Eterna -Machado de Assis
101. A Causa Secreta -Machado de Assis
102. 14 de Julho na Roça -Raul Pompéia
103. Divina Comedia -Dante Alighieri
104. O Crime do Padre Amaro -José Maria Eça de Queirós
105. Coriolano -William Shakespeare
106. Astúcias de Marido -Machado de Assis
107. Senhora -José de Alencar
108. Auto da Barca do Inferno -Gil Vicente
109. Noite na Taverna -Manuel Antônio Álvares de Azevedo
110. Memórias Póstumas de Brás Cubas -Machado de Assis
111. A 'Não-me-toques'! -Artur Azevedo
112. Os Maias -José Maria Eça de Queirós
113. Obras Seletas -Rui Barbosa
114. A Mão e a Luva -Machado de Assis
115. Amor de Perdição -Camilo Castelo Branco
116. Aurora sem Dia -Machado de Assis
117.. Édipo-Rei -Sófocles
118. O Abolicionismo -Joaquim Nabuco
119. Pai Contra Mãe -Machado de Assis
120. O Cortiço -Aluísio de Azevedo
121. Tito Andrônico -William Shakespeare
122.. Adão e Eva -Machado de Assis
123. Os Sertões -Euclides da Cunha
124. Esaú e Jacó -Machado de Assis
125. Don Quixote -Miguel de Cervantes
126. Camões -Joaquim Nabuco
127. Antes que Cases -Machado de Assis
128. A melhor das noivas -Machado de Assis
129. Livro de Mágoas -Florbela Espanca
130. O Cortiço -Aluísio de Azevedo
131. A Relíquia -José Maria Eça de Queirós
132. Helena -Machado de Assis
133. Contos -José Maria Eça de Queirós
134. A Sereníssima República -Machado de Assis
135. Iliada -Homero
136. Amor de Perdição -Camilo Castelo Branco
137. A Brasileira de Prazins -Camilo Castelo Branco
138. Os Lusíadas -Luís Vaz de Camões
139. Sonetos e Outros Poemas -Manuel Maria de Barbosa du Bocage
140. Ficções do interlúdio: para além do outro oceano de Coelho Pacheco. -Fernando Pessoa
141. Anedota Pecuniária -Machado de Assis
142. A Carne -Júlio Ribeiro
143. O Primo Basílio -José Maria Eça de Queirós
144. Don Quijote -Miguel de Cervantes
145.. A Volta ao Mundo em Oitenta Dias -Júlio Verne
146. A Semana -Machado de Assis
147. A viúva Sobral -Machado de Assis
148. A Princesa de Babilônia -Voltaire
149. O Navio Negreiro -Antônio Frederico de Castro Alves
150. Catálogo de Publicações da Biblioteca Nacional -Fundação Biblioteca Nacional
151. Papéis Avulsos -Machado de Assis
152. Eterna Mágoa -Augusto dos Anjos
153. Cartas D'Amor -José Maria Eça de Queirós
154. O Crime do Padre Amaro -José Maria Eça de Queirós
155. Anedota do Cabriolet -Machado de Assis
156. Canção do Exílio -Antônio Gonçalves Dias
157. A Desejada das Gentes -Machado de Assis
158. A Dama das Camélias -Alexandre Dumas Filho
159. Don Quixote. Vol. 2 -Miguel de Cervantes Saavedra
160. Almas Agradecidas -Machado de Assis
161. Cartas D'Amor - O Efêmero Feminino -José Maria Eça de Queirós
162. Contos Fluminenses -Machado de Assis
163. Odisséia -Homero
164. Quincas Borba -Machado de Assis
165. A Mulher de Preto -Machado de Assis
166. Balas de Estalo -Machado de Assis
167. A Senhora do Galvão -Machado de Assis
168. O Primo Basílio -José Maria Eça de Queirós
169. A Inglezinha Barcelos -Machado de Assis
170.. Capítulos de História Colonial (1500-1800) -João Capistrano de Abreu
171. CHARNECA EM FLOR -Florbela Espanca
172. Cinco Minutos -José de Alencar
173. Memórias de um Sargento de Milícias -Manuel Antônio de Almeida
174. Lucíola -José de Alencar
175. A Parasita Azul -Machado de Assis
176. A Viuvinha -José de Alencar
177. Utopia -Thomas Morus
178. Missa do Galo -Machado de Assis
179. Espumas Flutuantes -Antônio Frederico de Castro Alves
180. História da Literatura Brasileira: Fatores da Literatura Brasileira -Sílvio Romero
181. Hamlet -William Shakespeare
182. A Ama-Seca -Artur Azevedo
183. O Espelho -Machado de Assis
184. Helena -Machado de Assis
185. As Academias de Sião -Machado de Assis
186. A Carne -Júlio Ribeiro
187. A Ilustre Casa de Ramires -José Maria Eça de Queirós
188. Como e Por Que Sou Romancista -José de Alencar
189. Antes da Missa -Machado de Assis
190. A Alma Encantadora das Ruas -João do Rio
191. A Carta -Pero Vaz de Caminha
192. LIVRO DE SÓROR SAUDADE -Florbela Espanca
193. A mulher Pálida -Machado de Assis
194. Americanas -Machado de Assis
195. Cândido -Voltaire
196. Viagens de Gulliver -Jonathan Swift
197. El Arte de la Guerra -Sun Tzu
198. Conto de Escola -Machado de Assis
199. Redondilhas -Luís Vaz de Camões
200. Iluminuras -Arthur Rimbaud
201. Schopenhauer -Thomas Mann
202. Carolina -Casimiro de Abreu
203. A esfinge sem segredo -Oscar Wilde
204. Carta de Pero Vaz de Caminha. -Pero Vaz de Caminha
205. Memorial de Aires -Machado de Assis
206. Triste Fim de Policarpo Quaresma -Afonso Henriques de Lima Barreto
207. A última receita -Machado de Assis
208. 7 Canções -Salomão Rovedo
209. Antologia -Antero de Quental
210. O Alienista -Machado de Assis
211. Outras Poesias -Augusto dos Anjos
212. Alma Inquieta -Olavo Bilac
213. A Dança dos Ossos -Bernardo Guimarães
214. A Semana -Machado de Assis
215. Diário Íntimo -Afonso Henriques de Lima Barreto
216. A Casadinha de Fresco -Artur Azevedo
217. Esaú e Jacó -Machado de Assis
218. Canções e Elegias -Luís Vaz de Camões
219. História da Literatura Brasileira -José Veríssimo Dias de Matos
220. A mágoa do Infeliz Cosme -Machado de Assis
221. Seleção de Obras Poéticas -Gregório de Matos
222. Contos de Lima Barreto -Afonso Henriques de Lima Barreto
223. Farsa de Inês Pereira -Gil Vicente
224. A Condessa Vésper -Aluísio de Azevedo
225. Confissões de uma Viúva -Machado de Assis
226. As Bodas de Luís Duarte -Machado de Assis
227. O LIVRO D'ELE -Florbela Espanca
228. O Navio Negreiro -Antônio Frederico de Castro Alves
229. A Moreninha -Joaquim Manuel de Macedo
230. Lira dos Vinte Anos -Manuel Antônio Álvares de Azevedo
231.. A Orgia dos Duendes -Bernardo Guimarães
232. Kamasutra -Mallanâga Vâtsyâyana
233. Triste Fim de Policarpo Quaresma -Afonso Henriques de Lima Barreto
234. A Bela Madame Vargas -João do Rio
235. Uma Estação no Inferno -Arthur Rimbaud
236. Cinco Mulheres -Machado de Assis
237. A Confissão de Lúcio -Mário de Sá-Carneiro
238. O Cortiço -Aluísio Azevedo
239. RELIQUIAE -Florbela Espanca
240. Minha formação -Joaquim Nabuco
241. A Conselho do Marido -Artur Azevedo
242. Auto da Alma -Gil Vicente
243. 345 -Artur Azevedo
244. O Dicionário -Machado de Assis
245. Contos Gauchescos -João Simões Lopes Neto
246. A idéia do Ezequiel Maia -Machado de Assis
247. AMOR COM AMOR SE PAGA -França Júnior
248. Cinco minutos -José de Alencar
249. Lucíola -José de Alencar
250. Aos Vinte Anos -Aluísio de Azevedo
251. A Poesia Interminável -João da Cruz e Sousa
252. A Alegria da Revolução -Ken Knab
253. O Ateneu -Raul Pompéia
254. O Homem que Sabia Javanês e Outros Contos -Afonso Henriques de Lima Barreto
255. Ayres e Vergueiro -Machado de Assis
256. A Campanha Abolicionista -José Carlos do Patrocínio
257. Noite de Almirante -Machado de Assis
258. O Sertanejo -José de Alencar
259. A Conquista -Coelho Neto
260. Casa Velha -Machado de Assis
261. O Enfermeiro -Machado de Assis
262. O Livro de Cesário Verde -José Joaquim Cesário Verde
263. Casa de Pensão -Aluísio de Azevedo
264. A Luneta Mágica -Joaquim Manuel de Macedo
265. Poemas -Safo
266. A Viuvinha -José de Alencar
267. Coisas que Só Eu Sei -Camilo Castelo Branco
268. Contos para Velhos -Olavo Bilac
269. Ulysses -James Joyce
270. 13 Oktobro 1582 -Luiz Ferreira Portella Filho
271. Cícero -Plutarco
272. Espumas Flutuantes -Antônio Frederico de Castro Alves
273. Confissões de uma Viúva Moça -Machado de Assis
274. As Religiões no Rio -João do Rio
275. Várias Histórias -Machado de Assis
276. A Arrábida -Vania Ribas Ulbricht
277. Bons Dias -Machado de Assis
278. O Elixir da Longa Vida -Honoré de Balzac
279. A Capital Federal -Artur Azevedo
280. A Escrava Isaura -Bernardo Guimarães
281. As Forças Caudinas -Machado de Assis
282. Coração, Cabeça e Estômago -Camilo Castelo Branco
283. Balas de Estalo -Machado de Assis
284. AS VIAGENS -Olavo Bilac
285. Antigonas -Sofócles
286. A Dívida -Artur Azevedo
287. Sermão da Sexagésima -Pe. Antônio Vieira
288. Uns Braços -Machado de Assis
289. Ubirajara -José de Alencar
290. Poética -Aristóteles
291. Bom Crioulo -Adolfo Ferreira Caminha
292. A Cruz Mutilada -Vania Ribas Ulbricht
293. Antes da Rocha Tapéia -Machado de Assis
294. Poemas Irônicos, Venenosos e Sarcásticos -Manuel Antônio Álvares de Azevedo
295. Histórias da Meia-Noite -Machado de Assis
296. Via-Láctea -Olavo Bilac
297. O Mulato -Aluísio de Azevedo
298. O Primo Basílio -José Maria Eça de Queirós
299. Os Escravos -Antônio Frederico de Castro Alves
300. A Pata da Gazela -José de Alencar
301. BRÁS, BEXIGA E BARRA FUNDA -Alcântara Machado
302. Vozes d'África -Antônio Frederico de Castro Alves
303. Memórias de um Sargento de Milícias -Manuel Antônio de Almeida
304. O que é o Casamento? -José de Alencar
305. A Harpa do Crente -Vania Ribas Ulbricht
306. A Casa Fechada -Roberto Gomes Ribeiro
307. As Asas de um Anjo (Comédia) -José de Alencar
308. Béatrix -Honoré de Balzac
309. Diva -José de Alencar
310. A Melhor Amiga -Artur Azevedo
311. A Confissão de Lúcio -Mário de Sá-Carneiro
312. CONTOS AVULSOS -Alcântara Machado
313. Poemas Humorísticos e Irônicos -João da Cruz e Sousa
314. Cantiga de Esponsais -Machado de Assis
315. Quincas Borba -Machado de Assis
316. Brincar com fogo -Machado de Assis
317. Helena -Machado de Assis
318. Dentro da noite -João do Rio
319. O Livro da Lei -Aleister Crowley
320. Caramuru: poema épico do descobrimento da Bahia -José de Santa Rita Durão
321. Conto de Escola -Machado de Assis
322. Memórias de um Sargento de Milícias -Manuel Antônio de Almeida
323. Poemas Malditos -Manuel Antônio Álvares de Azevedo
324. Ao Entardecer (contos vários) -Visconde de Taunay
325. Felicidade pelo Casamento -Machado de Assis
326. Noite na Taverna -Manuel Antônio Álvares de Azevedo
327. Cartas Chilenas -Tomáz Antônio Gonzaga
328. O Mulato -Aluísio de Azevedo
329. Farsa do Velho da Horta -Gil Vicente
330. Amor com Amor se Paga -Joaquim José da França Júnior

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Trova LIV

Renato Modernell (Elogio da miopia (e do binóculo))



A inquietude do jornalista ao lidar com um mundo fluido, massificado e globalizado pode ensejar suposições enganosas. Uma delas, por exemplo, é a de que antes não era assim. Teria havido um tempo feliz em que a realidade era virgem, e não virtual; e a poesia estava em cada esquina da cidade, pronta para ser colhida. Outra suposição perigosa é a de que a platitude dos dias de hoje teria sua fonte nos fatos e nos objetos, e não em nossa maneira pouco poética, quase burocrática, de olhar para eles. Se folheamos jornais antigos, encontramos coisas surpreendentes.

Em 11 de novembro de 1900, Machado de Assis publicava em “A Semana” uma crônica confessional: “Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto. Daí vem que, enquanto o telégrafo nos dava notícias tão graves como a taxa francesa sobre a falta de filhos e o suicídio do chefe de polícia paraguaio, cousas que entram pelos olhos, eu apertei os meus para ver cousas miúdas, cousas que escapam ao maior número, cousas de míopes. A vantagem dos míopes é enxergar onde as grandes vistas não pegam.”

Feita a ressalva (ou, se quisermos, o elogio da miopia), Machado envereda machadianamente por assuntos prosaicos do Rio de Janeiro naquele começo do século 20. Seu poder de sedução faz com que, ao final do texto, tenhamos a impressão de que as tais “cousas miúdas” não são aquelas das quais ele trata, mas sim as que “entram pelos olhos” dos consumidores de jornais – no caso, a curiosa notícia telegrafada da França e a tragédia pessoal transmitida do Paraguai. Porém Machado, nesse parágrafo de abertura da crônica, está dizendo muito mais que isso. Anuncia que há um mundo lá fora, indiferente ao filtro representado pelo telégrafo, que clama por ser visto com outros olhos. Olhos raros, embebidos de certa condição poética. Raros, mas existentes. Era o caso de Lima Barreto, que cobriu para o “Correio da Manhã” a lendária demolição do Morro do Castelo, em 1905, texto depois publicado em forma de folhetim. E foi o caso também de outro escritor-jornalista, João do Rio, que anos depois mergulharia com os cinco sentidos no que chamou poeticamente de “alma encantadora das ruas”.

O que valia era a experiência direta das coisas, a entrevista, o incidente de esquina, pequeno mas carregado de significado. De resto, o telégrafo (na época, o supra-sumo da tecnologia da comunicação) dava conta das “cousas que entram pelos olhos”, ou seja, do cenário oficial ou, pelo menos, objetivo. Vamos fazer de conta, para todos os efeitos, que o suicídio do chefe da polícia paraguaia importasse mais ao cidadão carioca do que os camelôs que, já nos tempos machadianos, atravancavam o encanto das ruas.

Machado sugere que nas ruas de sua cidade (e, por extensão, nas de qualquer outra) em se colhendo, tudo dá. Era natural pensar assim, numa época em que também os peixes e as árvores pareciam inesgotáveis. O jornalista que enveredasse por algum beco obscuro e infecto, afastando-se dos corredores dos palácios ou das calçadas da Rua do Ouvidor, esquivando-se da notícia imposta pelo telégrafo, com certeza encontraria assunto.

Imaginamos que antes era mais fácil meter o nariz em trilhas não trilhadas, para quem se dispusesse a isso. Supomos que nem Machado, nem Lima Barreto, nem João do Rio encontrariam as mesmas facilidades se vivessem em nossos dias. Enfim, o mundo não é mais aquele.

Em crônica publicada em 22 de fevereiro de 2001, no semanário italiano “L’Espresso”, Umberto Eco adverte para o fato de que as ruas principais das grandes cidades do mundo se parecem cada vez mais umas às outras. Com engenhosa argumentação, mostra que nós, de certo modo, viajamos sempre para o mesmo lugar. O elemento “achatador” da realidade já não é mais o telégrafo, como no tempo de Machado, mas outro engenho que leva no nome o mesmo prefixo. É fácil: aquele caixote barulhento e despótico, com uma face de vidro, que fica em frente ao sofá da sala, onde está o controle remoto. Controle? Não temos controle de nada, exceto duns botõezinhos. “Conhecemos o mundo por meio da televisão, que com freqüência não o capta tal como é”, escreve Eco, e cita como exemplo a cobertura da Guerra do Golfo. “Vemos cada vez mais simulacros da realidade. No entanto, na nossa época, as pessoas se põem a viajar como nunca aconteceu antes. Cada vez mais gente, cujos pais se moveram no máximo a uma cidade próxima, me dizem ter visitado lugares com os quais eu, viajante compulsivo, diria até profissional, limito-me apenas a sonhar. Nenhuma praia exótica, nenhuma cidade perdida permanece inacessível.”

Conheço tal situação por experiência direta, por trabalhar em “Terra”. Ao longo de dez anos de existência, a revista consolidou seu prestígio com base em uma atitude de desbravamento. Mostrava lugares incomuns, remotos e inexplorados pelo turista tradicional. Agora, porém temos um dilema: quase já não existem mais (pelo menos no Brasil) esses lugares tidos como “virgens” ou “exóticos” que constituíram a própria identidade da revista perante o leitor.

Se pensássemos numa “alma encantadora das praias”, com a licença de João do Rio, teríamos de reconhecer que Jericoacoara se parece mais a Copacabana do que uma década atrás. Uma avenida de Calcutá cruza a nossa São João, e ninguém percebe. A crônica de Eco explora essa ironia contemporânea de que, quanto mais nos movemos, mais os lugares se parecem uns com os outros.

Onde meter o nariz, se tudo já foi farejado e visto? Transmitir o que, se tudo já foi retransmitido?

Para nós, jornalistas do século 21, modestos súditos de Machado, longínquos filhotes de Lima Barreto e João do Rio, saudosos sucessores de Marcos Faerman, só resta uma saída: a grandeza das “cousas miúdas”, a nitidez das “cousas de míopes”. Enfim, aquelas “cousas” que o telégrafo não dizia e a televisão, hoje, continua não dizendo. Lima Barreto, João do Rio, Marcão. O que cada um desses homens teria descoberto (ou captado, eis a melhor palavra) se por acaso vivesse no Paraguai, em novembro de 1900, sobre o suicídio daquele chefe de polícia? Cirrose oculta? Traição amorosa? E com que tintas teriam pintado o quadro? Vamos lá: o que fez o chefe de polícia nesse último dia de vida? Afinal, que “cousas” são essas, além do suicídio, que o tornaram diferente de todos os outros chefes de polícia do Paraguai? Marcão não estava lá.

Por isso essa notícia, aos olhos de Machado, perdeu-se no caudal diário da Grande Imprensa, que sempre percorre as mesmas avenidas, assim como nós viajamos para os mesmos lugares. Pegando carona com Umberto Eco, poderíamos dizer que, quanto mais se noticia, em volume e rapidez, menos as notícias se distinguem umas das outras, como as ruas e as cidades. A alma encantadora do mundo dá lugar a uma vertigem. Estamos a bordo de um carrossel em aceleração crescente, que no fim das contas não vai a lugar nenhum. É preciso saltar fora para voltar a captar as “cousas miúdas” de Machado, para “catar o mínimo e o escondido” que poderiam devolver o frescor que já não encontramos na realidade, por falta de condição poética.

Precisamos de olhos míopes – no sentido machadiano, não oftalmológico, evidentemente. Míopes no sentido de dissonantes, assim como os músicos mais ousados buscaram caminhos para além do sistema tonal, no momento em que o consideraram esgotado. Para se livrar da aceleração do carrossel, que paralisa os sentidos, o jornalista precisa redescobrir a alma encantadora das ruas, onde Marcão gastou muitas e muitas solas de sapatos.

O repórter precisa compreender e, nem que seja de vez em quando, experimentar um sentimento do mundo semelhante ao que o poeta polonês Czeslaw Milosz expressa no texto “A Condição Poética”, traduzido por Ana Cristina Cesar e Grazyna Drabik: “Como se tivesse, em vez de olhos, binóculos ao contrário, o mundo se distancia e as pessoas, árvores, ruas, tudo diminui, mas nada, nada perde a clareza, fica mais denso. Já tive antes momentos assim, escrevendo poemas; conheço então a distância, a contemplação desinteressada, sei assumir um eu que é não-eu, mas agora é sempre assim e me pergunto o que significa isso, se entrei numa permanente condição poética. As coisas antes difíceis agora são fáceis, mas não sinto desejo forte de transmiti-las por escrito. Só agora estou sadio, e era doente, porque o meu tempo galopava e afligia-me o medo do que viria. A cada momento o espetáculo do mundo é para mim de novo surpreendente e tão cômico que não entendo como a literatura podia querer dominá-lo. Sentindo fisicamente, ao alcance da mão, cada momento, amanso o sofrimento e não suplico a Deus que queira afastá-lo de mim: por que o afastaria de mim se não o afasta dos outros? Sonhei que me encontrava numa estreita borda sobre o oceano onde se viam nadando enormes peixes marinhos. Tive medo de que, se olhasse, cairia. Virei então, agarrei-me nas asperezas da parede rochosa, e movendo-me lentamente, de costas para o mar, cheguei a um lugar seguro. Eu era impaciente e irritava-me a perda de tempo com coisas triviais, incluindo entre elas a faxina e a preparação da comida. Agora corto com cuidado a cebola, espremo os limões, preparo vários tipos de molho.”

Fonte:
http://www.renatomodernell.com.br/texto1_ensaios.php?id=121

Renato Modernell (1953)



Renato Modernell nascido na cidade do Rio Grande/RS, em 19/08/53 é escritor, jornalista e professor.

Desde a infância em sua terra natal já produzia narrativas. Em 1972 radicou-se em São Paulo onde se formou em jornalismo pela Faculdade de Comunicações da Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP em 1975. Tão logo começou a exercer a profissão de jornalista. Mais tarde dedicou-se à literatura passando a dirigir oficinas de escrita.

Tornou-se mestre em jornalismo pela Universidade de São Paulo – USP e doutor em letras pelo Mackenzie. A partir de então inaugurou uma fase de vida itinerante.

Morou em Roma, atuando como colaborador regular do jornal “Folha de S. Paulo”. Passou temporadas em Londres, frequentando cursos de História, e mais tarde em Barcelona, trabalhando em um romance histórico sobre imigrantes.

Desde 1978, Modernell tem produzido textos ficcionais com regularidade, em paralelo à atividade jornalística.

Como escritor, publicou nove livros. Por suas obras literárias recebeu vários prêmios no Brasil, entre outros o Jabuti, pelo romance "Sonata da última cidade". Sua primeira obra de ficção a circular em edição comercial - “Che Bandoneón”, biografia romanceada do músico argentino Astor Piazzolla foi premiada pela Academia de Ciência de Lisboa.

Em 2001 foi premiado na Itália pelo romance histórico “Viagem ao Pavio da Vela”, que tem Marco Polo como protagonista. Em mais de duas décadas de carreira jornalística, Modernell atuou e colaborou em vários dos principais órgãos de imprensa do país. Dedicou-se sobretudo às áreas de cultura, ciências e viagens.

Recebeu um prêmio da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) por uma reportagem em defesa do patrimônio histórico nacional. Visitou cerca de 30 países, tendo residido em Roma e Barcelona.

Trabalhou nas revistas Época, Globo Ciência, Terra e Quatro Rodas, e também no Jornal da Tarde e Zero Hora, entre outras publicações. Hoje atua como jornalista autônomo.

Publica crônicas regularmente no blogue Adjazzcências. Dirige oficinas de escrita em universidades, empresas, ONGs, sindicatos e outras instituições. Colabora em projetos de comunicação corporativa.

Fonte:
http://rio-grandinos.blogspot.com/search/label/*%20RIO%20GRANDINOS%20EM%20DESTAQUE