domingo, 27 de dezembro de 2009

Luiz Antonio de Assis Brasil (1945)


Nascido em Porto Alegre, em 1945, Luiz Antonio de Assis Brasil passa parte da infância em Estrela, com a família, que de lá retorna à capital em 1957. Cinco anos mais tarde começa a estudar violoncelo.

Em 1963 termina o Curso Clássico no colégio Anchieta, em Porto Alegre, dos padres jesuítas. Em 1964, ano do golpe militar, ocorre sua entrada no exército, para o serviço militar obrigatório. Um ano mais tarde Luiz Antonio ingressa no curso de Direito da PUCRS e também passa a fazer parte da OSPA - Orquestra Sinfônica de Porto Alegre – como violoncelista, lá permanecendo por 15 anos. Forma-se em Direito em 1970. Advoga por dois anos. Em 1975 ingressa como Professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, função na qual atua até hoje; no mesmo ano inicia a colaborar na imprensa com artigos históricos e literários.

Estréia em 1976 com o romance Um quarto de légua em quadro, lançando-o na 32ª Feira do Livro de Porto Alegre, e que lhe dá o Prêmio Ilha de Laytano. Em 1976 inicia sua trajetória de administrador cultural, primeiramente na Prefeitura de Porto Alegre [Chefe da Secção de Atividades Artísticas] e depois no Estado do Rio Grande do Sul [Diretor do Instituto Estadual do Livro - 1983]; 1978 é também o ano de lançamento de A prole do corvo. Em 1981 publica Bacia das almas. No ano seguinte, Manhã transfigurada. Em 1981 Luiz Antonio de Assis Brasil assume a direção do Centro Municipal de Cultura de Porto Alegre

No inverno 1984/1985 vai à Alemanha, como bolsista do Goethe-Institut [Rothenburg-ob-der-Tauber, na Francônia]. Em 1985 lança aquele que, segundo o autor, é seu livro com maior carga emocional, As virtudes da casa. Começa a coordenar a Oficina de Criação Literária do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS, em atividade até hoje, e que recebeu o Prêmio Fato Literário, da RBS/Banrisul ao completar 20 anos de atividades ininterruptas. Em 1986 sai mais uma obra, O homem amoroso, uma novela com forte acento autobiográfico. Cães da província, em 1987, retoma o ciclo histórico, adotando Assis Brasil o dramaturgo José Joaquim de Campos Leão, o Qorpo-Santo, como personagem e evocando os tenebrosos crimes da Rua do Arvoredo. O romance dá o título de Doutor em Letras ao autor e faz jus ao Prêmio Literário Nacional, do Instituto Nacional do Livro.

Em 1988 Assis Brasil recebe da Câmara Municipal de Porto Alegre o Prêmio Érico Veríssimo pelo conjunto de sua obra. Videiras de cristal, que recria a saga dos Muckers, é lançado em 1990. Nova experiência é o romance em três volumes Um castelo no pampa, que se divide em Perversas famílias [1992 - ganhador do Prêmio Pégaso de Literatura, da Colômbia], Pedra da memória [1993] e Os senhores do século [1994]. Concerto campestre, Breviário das terras do Brasil e Anais da Província-boi saem em 1997, ano em que o romancista é eleito Patrono da 43a Feira do Livro de Porto Alegre.

Em 1998 é palestrante convidado na Brown University, em Providence, USA e em 2000 participa do programa Distinguished Brazilian Writer in Residence, na Berkeley University, Califórnia.

Em 2001 publica O pintor de retratos, que recebe o Prêmio Machado de Assis, da Fundação Biblioteca Nacional.

Em 2003 lança o livro A margem imóvel do rio, o qual é contemplado com três prêmios: Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira [o único romance dentre os três primeiros classificados], Prêmio Jabuti [finalista menção honrosa] e Prêmio Açorianos de Literatura.

Ainda em 2003 acontecem três publicações no Exterior: O pintor de retratos sai em Portugal pela Editora Ambar, do Porto; O homem amoroso é publicado pela Editora l´Harmattan, de Paris [l´Homme Amoureux], e na Espanha, pela Editora Akal, de Madrid, lança a tradução de Concerto campestre [Concierto Campestre]. Também em 2003 publica um livro de ensaios literários pela Editora Salamandra, de Lisboa: Escritos açorianos: tópicos acerca da narrativa açoriana pós-25 de abril. Em 2005 sai na França, pela editora Les temps des Cérises, o Breviário das terras do Brasil [Bréviaire des Terres du Brésil.]

Em 2006, Assis Brasil participa, com conferências na Alemanha [Tübingen, Leipzig, Berlim] de programa oficial do Ministério da Cultura do Brasil.

Música perdida é lançado em 2006, o qual vence, em 2007, a Copa de Literatura Brasileira e recebe indicação ao Jabuti. Em 2008 segue com sua coluna quinzenal no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e publica Ensaios íntimos e imperfeitos, uma coleção de pequenos textos de caráter poético e ensaístico.

Obras
1976 - Um quarto de légua em quadro
1978 - A prole do corvo
1981 - Bacia das almas
1982 - Manhã transfigurada
1985 - As virtudes da casa
1986 - O homem amoroso
1987 - Cães da província
1990 - Videiras de cristal
1992 - Perversas famílias
1993 - Pedra da memória
1994 - Os senhores do século
1997 - Concerto campestre
1997 - Anais da Província-Boi
1997 - Breviário das terras do Brasil
2001 - O pintor de retratos
2003 - A margem imóvel do rio
2006 - Música perdida

Premiações

Entre outros, recebeu os seguintes prêmios:
Prêmio Ilha de Laytano
1977, por Um quarto de légua em quadro

Prêmio Literário Nacional do Instituto Nacional do Livro
1988, por Cães da Província

Prêmio Literário Erico Verissimo
1988, pelo conjunto de sua obra, concedido por unanimidade da Câmara de Vereadores de Porto Alegre

Prêmios Açorianos de Literatura
1994/1995, o melhor romance e melhor obra do ano, com Pedra da Memória e Senhores do século

Prêmio Pégaso de Literatura Latino-americana
1994, Bogotá, Colômbia: Menção especial do júri, por Pedra da memória

Prêmio Machado de Assis
2001, Biblioteca Nacional, por O pintor de retratos

Livro do ano,
pela Associação Gaúcha de Escritores, 2004 (romance) para A margem imóvel do rio

Prêmio Jabuti 2004
2° classificado com A margem imóvel do rio

Prêmio Portugal Telecom 2004
Único romance classificado entre os três vencedores: A margem imóvel do rio

Fato Literário 2005,
Rede Brasil Sul de Comunicações/BANRISUL, pelos 20 anos da Oficina de Criação Literária

Prêmio Jabuti, 2007
Finalista, com Música perdida

Prêmio Copa de Literatura Brasileira 2007
Vencedor, com Música perdida

Adaptações para o cinema
Vários de seus livros foram levados ao cinema:
– Concerto campestre, com o mesmo título;
– Videiras de cristal, com o título de A paixão de Jacobina
– Um quarto de légua em quadro, com o título de Diário de um novo mundo.
– Manhã Transfigurada, com o mesmo título.

Fontes:
– wikipedia
http://www.laab.com.br/bio.html

Luiz Antonio de Assis Brasil em Xeque


O terceiro encontro do projeto Paiol Literário - realizado em parceria entre o Rascunho, o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba - trouxe a Curitiba o escritor gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil.

O prazer da leitura

Eu não sou uma pessoa brilhante. Vocês vão sair muito decepcionados. Estou antecipando isso. Minha vida não tem muita importância. Sou um pouco assim como a República de Andorra. Não tenho história. Mas vou procurar, com a minha ficção, ajudar um pouco isso aí. Essa pergunta, sempre fazem. Principalmente meus alunos, e quando não fazem, eu provoco. E eu penso um pouco sobre aquilo do [Wolfgang] Iser, o teórico. Ele fala das três funções da literatura, que eu acho que, no final, são funções reais.

Que são o prazer da leitura, o prazer que dá ler um romance, um poema, um conto; o conhecimento que a literatura dá, ela aumenta o nosso universo de conhecimento do mundo; e a catarse, a transformação que pode realizar em nós. Então, parece que essas três funções explicam bastante o que é a literatura dentro de uma perspectiva que eu sei que é teórica, mas que também pode ser vista no plano prático. A gente insiste muito na questão do prazer da leitura, e eu vejo muitos professores amargurados porque me dizem:
"Eu não consigo fazer meus alunos terem prazer na leitura".
Eu digo:
"Bom, o que tu dá para eles?"
"Bom, eu estou estudando A pata da gazela."
E eu digo:
"Bom, eu acho que o caminho aí não é tanto do prazer da leitura, mas pode se pensar assim: Vocês lendo esse livro vão conhecer o Rio de Janeiro do Segundo Império".

E quando eu penso no lado transformação, penso em duas obras. Uma do século 18, que é do Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther, e penso numa obra atual, que é O código Da Vinci. Até estou estudando com meus alunos essas duas obras sob o aspecto da recepção. Porque o Werther foi o primeiro best-seller da história. Foram vendidos milhares de exemplares quando foi lançado, no século 18, e eles transformaram pessoas.

Agora, eu me tornei numa espécie de especialista n'O código Da Vinci. Isso me lembra um pouco a história do homem que sabia javanês, o conto clássico do Lima Barreto. Os meus superiores na minha universidade me pediram para fazer uma conferência sobre o Código. Numa das palestras, eu terminei de falar - e falei sobre isso da transformação que a literatura opera - e um jovem me pediu a palavra e disse:
"Olha eu terminei o Código e fui internado num hospício".
Como assim?, eu perguntei.
"É, eu fiquei louco e meus pais me internaram."

E disse o nome da instituição, tradicional em Porto Alegre. Eu disse:
"Como foi isso?"
Ele respondeu:
"Sim, porque me disseram que tudo o que eu pensava sobre a vida, sobre a minha religião, tudo veio por água abaixo, não senti mais apoio em nada e enlouqueci".

Então penso isso: a função catártica da literatura, de transformação, e o prazer da leitura, que vocês conhecem. É aquela coisa de querer voltar para casa, porque aquele livro está lá, nos esperando e estamos loucos de vontade de saber como ele continua, ou nos deliciarmos com um poema.

A descoberta do prazer da leitura

As coisas no meu tempo de infância e adolescência eram um pouco diferentes. Naturalmente. Como só poderiam ser. Os veraneios eram intermináveis. Começavam em dezembro e iam até março. Hoje são 20 dias. Íamos para uma praia, meu pai optou por uma praia onde não havia água, luz, nada. Fora da civilização. Bom, o que eu fazia? Ia à biblioteca do meu colégio, dos jesuítas, no Colégio Anchieta. Naquela época, o Eça de Queirós ainda estava no índice dos livros proibidos pela igreja católica. Mas havia um jesuíta lá, meu professor, que tinha o Eça. E fui pegar uns livros e ele disse:
"Vou te dar o Eça".
E eu, bobo, bom aluno de religião, disse:
"Não é proibido?"
E ele:
"Mas ninguém fica sabendo, põe dentro da tua pasta".

E aí me deu A relíquia, do Eça. Eu tinha 14 anos. Foi realmente espantoso. O prazer da leitura eu nunca vou esquecer. Então, armei uma tenda no meu quarto e ali passei lendo A relíquia. Depois fui ampliando. A literatura realista. Logo pulei para o Machado, e por aí foi. Fundamentalmente romance. Meu pai lia muito conto. Mas tinha uma visão de conto daqueles finais surpreendentes, que viravam tudo e tal. E achava graça naquilo e lia e curtia muito. Mas eu não achava muita graça, não. Aqueles finais eram um pouco, enfim, despropositados e tudo o mais. E vieram os russos. Realmente começou pelo prazer. Depois, a leitura me ampliou o conhecimento do mundo.

Livros marcantes

Acho que foi o Madame Bovary. De uma outra realidade, completamente diferente. E Os irmãos Karamázov. Esses dois livros, como conhecimento, foram espantosos. Depois serviram como conhecimento para escrever romances. Quando comecei a escrever, não existiam oficinas literárias. Por outro lado, os escritores estabelecidos da geração anterior à minha - o Erico Verissimo, o Dyonélio Machado, esse pessoal - tinham muita dificuldade de entender essas coisas. Eu disse:
"Eu tenho de aprender".

Lia muito o Autran Dourado, um belo escritor. E telefonei para o Autran, consegui o telefone dele, miraculosamente, e disse:
"Olha, eu gostaria de fazer uma visita".
E ele:
"Por quê, meu filho?"
"Para discutir alguns romances seus."
"Que curioso", ele disse. "Pode vir hoje de tarde."
"Não, estou em Porto Alegre."

Marcou para uma semana depois. Eu fui de ônibus até o Rio, era um jovem estudante. E o Autran me recebeu muito bem. E fui com os livros dele todos, todos anotados. Muitas coisas ali que eu queria esclarecer com ele. Por que ele usava só o verbo dizer? Perguntei para ele. Fulano disse, disse Fulano, disse a personagem.
"Por que é que o senhor usa só o verbo dizer?"
E ele:
"Ah, você se deu conta disso? Até agora ninguém se deu conta. O que é muito bom. Só uso o verbo dizer porque ninguém o lê. Se eu escrever ‘respondeu, resmungou, exclamou', aparece o meu truque".

O início como leitor

Aos 17 anos, estava fazendo o curso clássico. E no terceiro clássico, nós líamos Lamartine, Victor Hugo, tudo no original. Não se estudava mais a língua portuguesa porque já sabíamos a língua portuguesa. Estudávamos literatura francesa, literatura inglesa. Lemos todo o Paradise lost, do Milton. Foram sete anos de latim, quatro anos do ginásio e três do clássico, com três horas semanais. Então, isso foi realmente decisivo para mim. Minha mãe era musicista; meu pai, veterinário.

O livro não era uma presença muito forte na minha casa, mas na escola sim. Foi lá que tudo começou. Aí comecei a fazer redações e todo mundo gostava. E também, mesmo no curso mais elementar, no curso primário, também eu fazia umas redações boas e havia muito incentivo. Interessante é que em 1956, quando se comemorou o cinqüentenário da aviação, em todas as escolas da rede pública do Rio Grande do Sul, houve um concurso de redação. Todos os estudantes da rede deveriam fazer uma redação no mesmo dia. Ganhei o primeiro lugar. Eu tinha 11 anos. E foi realmente a escola que me levou a isso. Aí veio esse concurso e abandonei a literatura aos 11 anos. Porque eu não tinha mais nada para dizer.

A carreira de músico

Eu era músico da Sinfônica e era músico de estante. Quer dizer, de estante. Então eu tocava ali, na segunda estante, não estava tão longe, mas nem tão perto do maestro. Sinfônicas têm hierarquias muito fortes, os músicos que tocam mais próximos do maestro são teoricamente os que tocam melhor e, portanto, ganham mais. E aí a coisa vai se tornando mais rarefeita. Eu estava ali na segunda estante dos violoncelos. Mas aquilo me incomodava muito. Claro, eu estudava muito, procurava desempenhar bem, mas tinha consciência de que nunca seria um solista, não tinha talento para isso. Os verdadeiros artistas são o compositor e o maestro. O músico é o executante. Aquilo me deixava insatisfeito, porque eu ficava ali entre a criação do compositor e a interpretação do maestro. Onde é que eu fico?, eu perguntava. Aí a literatura voltou. E assumiu uma proporção maior. De modo que eu posso dizer mais com a literatura do que com os meus modestos recursos de músico.

Espaço na literatura

Eu parto do princípio de que na literatura há espaço para todos. Quem gosta de conto, romance, crônica, poesia terá o seu autor preferido. E mais: esse autor preferido é sempre rotativo. Por exemplo, o meu preferido agora é o Pascal Quignard. E chegará um momento em que direi que ele não me diz mais nada.

Na literatura, há mais espaço para todos. E eu noto, ultimamente, especialmente entre jovens escritores, um pouco dessa competição que, às vezes, é até um pouco desleal, mas sinto neles uma determinação que a minha geração não tinha. Eles querem ser escritores. E entram para a oficina e dizem:
"Assis, estou aqui porque quero ser escritor, vou abrir mão de tudo para ser escritor".

Isso não havia. Não. Era: O que vou fazer? Primeiro, achar um emprego para mim. Foi um pouco do que eu fiz. Fiz um curso de Direito. Depois, dar aulas na universidade. Foi uma coisa certa. Mas o fato é que era assim. O Moacyr Scliar é médico. Então todos têm uma profissão decente, têm que ter. De modo que os jovens escritores não pensam assim. Não vou ter um emprego que vai me tirar cinco ou seis horas de prática da minha escrita. Acho interessante, mas é uma opção arriscada.

O ritmo da escrita

Tem uma passagem do Confissões em que Santo Agostinho diz assim:
"Eu estranhava muito porque, quando chegava para ter aulas com Mestre Ambrósio, ele estava olhando para um texto, mas lia com seu coração, porque sua boca não se movimentava".

Então, muitos atribuem a Santo Ambrósio esse aperfeiçoamento que a gente adquiriu, essa conquista da leitura silenciosa. Aliás, isso no desenvolvimento da própria existência humana também é assim. A criança, quando começa a ler, lê sempre em voz alta. Depois lentamente adquire a leitura silenciosa. Então, nós lemos, guardamos dentro de nós resquícios dessa leitura em voz alta. Eu estou por vezes acompanhando com a respiração, e pensando em finais de livro, quando penso: o compositor Rachmaninov assinava seus finais de música sempre com pan-pan-pan-ran-ran.

Eu também tenho procurado isso, especialmente nas últimas frases dos meus livros, gosto de dar uma cadência. Pena que eu não tenha de cor os meus livros, mas, me lembro de O pintor de retratos, por exemplo, em que eu mais trabalhei. Fiquei uma semana com aquela frase final no computador, sozinha, e eu ia e voltava, e mexia, colocava uma palavra, tirava outra e cheguei numa coisa assim:
"E com olhos que tanto viram e tanto amaram, percebeu a solidez terrestre dos campos e a placidez eterna das luzes".

Aí, achei. E tem aquela passagem, tem uma passagem clássica que é uma carta que o Flaubert escreveu para aquela sua apaixonada eterna. Ele estava publicando em folhetim Madame Bovary, antes de publicá-lo em livro, e na carta ele diz assim:
"Imagine que recebi aqui aquele diretor de jornal que veio me pedir humildemente que eu tirasse o nome do seu jornal do meu livro, quando fosse publicá-lo. Eu fiquei indignado com aquele homem. Isso é coisa que se faça?"

Bom, tudo bem. Flaubert está se queixando do cara interferir na criação dele, a gente pensa. Mas aí ele termina assim:
"E as minhas frases, como é que vão ficar?"

Ele estava pensando no ritmo daquelas palavras! Ele construiu frases a que esse ritmo pertencia. Há gente que pensa que o ritmo é só da poesia. Não é. Isso eu vejo com meus alunos.

O escritor e o teórico

Eu vivo literatura 24 horas por dia. Ou dando aula de literatura ou escrevendo. É uma coisa boa. Mas na hora de escrever, procuro fazer com que isso [a teoria literária] não atrapalhe. Mas às vezes, se eu me descuido, realmente me atrapalha. E vou me dando conta. De onde é que surgiu aquilo? Aí vêm aquelas categorias teóricas e tal. Mas tem um dado aí que eu acho muito importante.

Hoje, os escritores estão saindo das universidades. Saem, não se retiram das universidades. Pertencem à universidade, são oriundos da universidade, são acadêmicos. É uma tendência mundial. Veja os escritores americanos, pode pegar qualquer um desses aí, são professores da universidade não sei o quê. Mesmo que seja professor de escrita criativa. Então, os escritores hoje são pessoas ligadas à universidade, que podem refletir sobre o seu próprio trabalho. Há uma maior sofisticação, no mau sentido, do texto, e talvez uma diminuição no número de leitores. Quando a gente vê a chamada literatura pós-moderna, que é sem personagem, sem intriga, sem conflito, sem nada... E depois se queixam de que não têm leitores. É quase sem literatura também! Então não dizem nada, mas nada, rigorosamente nada. Então, normalmente vamos encontrar o acadêmico. Tem essa dupla face da coisa. Ela é boa por um lado, mas é má por outro. Porque esses escritores muitas vezes perdem a vitalidade literária. Aquele componente de certa perversidade, que o escritor tem de ter. Desaparece um pouco. Vira uma coisa meio anódina. E a gente não sabe bem o que está acontecendo, qual é o ponto, o problema, o que está sendo discutido. E muitas vezes não está sendo discutido nada. E eu não penso como Benjamin, quando ele dizia que mesmo a literatura intimista é social na medida em que revela um desconforto do criador. Não acredito nisso.

A morte

A morte é um dos pratos preferidos da literatura. O que aconteceu comigo foi isto: fiquei muito doente. E isso foi há muitos anos. Há mais de três décadas. E eu estava muito mal, precisei ir para o hospital, e estava com um diagnóstico errado, foi uma coisa horrorosa. Um amigo meu, médico, fez umas radiografias, e disse:
"Olha vou ter de fazer uma cirurgia agora".
Eu disse:
"Bom, mas o que tu pensas sobre isso?"
Ele disse:
"Não sei. Estou confuso. Vou ter que intervir".

É duro ouvir isso. Foi uma coisa terrível. Quando acordei, tive aquela sensação: morri, estou no céu, tudo branco em cima, luzes diretamente nos olhos, uma coisa horrorosa. Aí me dei conta de que havia sobrevivido. Naquele tempo, a recuperação cirúrgica era uma coisa lenta. A gente ia para casa e ficava três meses ali, era um horror. E eu estava na orquestra. Via minha mulher sair para trabalhar, minha filha sair para a escola e eu sozinho em casa. Bom, pensei, vou enlouquecer. Tem aquela coisa: depressão pós-cirúrgica. Eu tinha algumas idéias e resolvi pô-las no papel. E aquilo me reacendeu o gosto pela vida. E terminei aquilo e pronto. Nem sabia o que era. E achava uma coisa ruim. Possivelmente era. Até que minha mulher disse:
"E aí, terminaste o livro, e o que tu vai fazer?"
E eu disse:
"Nada, é muito ruim".

Aí ela leu. Ela é uma mulher muito veraz, uma pessoa rara, cruelmente veraz, e ao mesmo tempo é uma leitora excelente. Leu e disse:

"É, realmente não é uma obra-prima. Mas pode ser publicada. É um primeiro livro".
"É, mas mesmo assim, não vou publicar", respondi.

E deixei numa gaveta. E aconteceu. Passados uns três ou quatro meses, recebi uma carta do Instituto Estadual do Livro. Abri e estava escrito assim:
"Caro escritor. Viemos comunicar que seu livro foi aprovado para publicação".

Foi uma traição da minha mulher. Ela tirou uma fotocópia do livro, escondida, e o mandou. Então não é o que eu vejo nos meus jovens alunos. Eu quero ser escritor. Quando penso nos escritores da minha geração, o Sérgio Faraco, o Luis Fernando Verissimo, o João Gilberto Noll, nenhum de nós teve a intenção de ser escritor.

Método de criação

Meu terceiro livro, Bacia das almas, cheguei a escrever 22 páginas num dia. É uma estupidez, uma irresponsabilidade total. Hoje, escrevo cada vez mais lentamente. Cada palavra, eu penso muito antes de pôr no papel. É possível que com isso se perca muito da vitalidade da obra. Acho que ela ganha esteticamente. A partir dessa minha preocupação, que eu acho que começou com O pintor de retratos, é que passei a ter premiações que não tinha antes. O Portugal Telecom, o Jabuti... Ocorreram depois de uma alteração estética bastante forte que eu tive com O pintor de retratos.

Eu estava insatisfeito com o que escrevia. Eram períodos gramaticais muito longos. Muita utilização de ordem inversa. Um certo barroco de que muitos gostavam. Meus leitores antigos gostavam daquilo. Mas eu estava insatisfeito. Mas eu tinha de mudar. E por uma razão acadêmica, eu tive que reler um livro que eu havia lido no Colégio Anchieta, Cantares Del Mio Cid. Abri o livro e disse:
"Mas era isso que eu procurava".

É uma linguagem medieval, um dos romances mais importantes desse período medieval. Então El Cid andou durante toda a tarde. Ponto. Trouxeram-lhe dois cavalos. Ponto. Eles escreviam pouco porque o material de escrita era muito caro, então tinham de comprimir muito. O pergaminho era muito caro. Não só as palavras eram abreviadas. O próprio texto ficava enxuto. Os capítulos são pequenos. Vinte linhas. Eu disse:
"Claro, ele já descobriu isso há 800 anos".

Aí é que está. E me lembrei das histórias da Bíblia. São modelos de contenção, de encarceramento da palavra, de essencialidade, fundamentalmente. Se tirar uma palavra da frase, ela não existe mais. Então, eu disse:
"É isso. Eu preciso recuperar essa essencialidade original da literatura".

Não minha, mas da literatura. Porque a Bíblia consegue transformar o mundo dessa forma. Os Cantares se tornam uma obra de referência do cânone do ocidente. Conseguem emocionar. É muito simples. Eu estava escrevendo demais. Então passei a escrever menos. Meus romances se tornaram menores. Meus períodos gramaticais se tornaram menores. Não há excessos. Exceto excessos deliberados. Posso fazer um capítulo inteiro sobre um movimento de uma pluma, sobre a cabeça de um cavalo. Excessos deliberados. Porque um livro pode ter 80 páginas e ser excessivo. Pode ter 600 e ser essencial. Então, a coisa passa pela linguagem. E depois eu assumi essa alteração, digamos, lingüística, frasal, que também é uma alteração de conteúdo. Mas isso me leva a escrever muito mais lentamente, pensar muito, cada palavra é muito importante, então eu penso nos sinônimos... Aí não são só sinônimos, como a gente sabe. Achar a palavra que diz exatamente a coisa que se quer dizer.

Procuro trabalhar com substantivos concretos, adjetivos concretos. Se for tratar com abstrato, coloco um adjetivo abstrato junto com um substantivo concreto. Cria-se uma realidade nova. Pronto. Transforma-se uma coisa banal em algo original. Eu proponho muito isso aos meus alunos. [...] Vejo colegas meus que pegam os livros e retocam, em edições. O Josué Montello retocou e retocou e retocou seus livros. Se desfiguraram. Eu nunca poderia fazer isso. Não consigo. E quando abro um livro há sempre uma barbaridade. Coisas que me incomodam e tal. Então, até nem os tenho na minha estante. Estão num armário. Claro que isso deve ter uma explicação mais profunda. Onde eu não quero chegar. Mas, na verdade, o livro que estou escrevendo sempre é o melhor. Aliás, vou dar um conselho: quando forem elogiar um livro de um escritor, nunca digam que o primeiro livro dele é o melhor, nunca. Nem que o do meio é o melhor. Vocês têm de mentir. Têm que dizer:
"O último livro é o melhor de todos, é o seu melhor livro".
Mas se quiserem aperfeiçoar isso, digam:
"O melhor é o que você está escrevendo agora, esse será melhor ainda".

Adaptação para o cinema

Nos três casos quiseram que eu lesse o roteiro. Não li. Em primeiro lugar, porque não vão me pagar por isso. Já começa por aí. Segundo, que eu não entendo. E em terceiro, eu tenho preguiça e quero ter a surpresa de assistir e ver como é. E também me convidaram para assistir a um dia de filmagem.

O Luiz Carlos Barreto tanto insistiu que eu assisti a um dia de gravações. E não deveria ter feito isso. Até porque o que eu assisti não foi posto no filme [A paixão de Jacobina]. O diretor tem todo o direito de fazer o que bem entender. Ele tem de ter uma fidelidade só, que é a fidelidade a si mesmo. Realizar um bom filme. Antes de mais nada, o filme tem de ser bom. Se é fiel ou não ao livro, é uma questão secundária. Eu não me considero o proprietário. O título do filme mudou de Videiras de cristal para A paixão de Jacobina. Eu achei interessante, até melhor que o meu título. Aí o meu editor me telefonou. Me disse:
"Assis, é o seguinte..."
E estava cheio de onda para falar.
"O que é? Não tem dinheiro para me pagar?"
"Não, a gente está pensando sobre Videiras de cristal, em função do filme..."
"Qual é o problema?"
"Não é que a gente... Não te importarias se a gente pusesse assim A paixão de Jacobina e, embaixo, Videiras de cristal?"

Aí eu estava assim, no telefone, e minha mulher, no computador. Eu relatei isso, isso e isso a ela, o que tu acha? Ela ergueu os ombros e continuou escrevendo.
"Vai ser bom para a editora?", perguntei.
"Sim! Vai vender mais", disse o editor. E o editor se animou. "E, aí, vai ter mais direitos autorais para você ganhar."
E eu:
"Mas não vai ficar chato depois?"

E me lembrei de uma coisa ridícula: a ficha catalográfica nas bibliotecas. E ele:
"Isso não é problema. Não é mesmo".
Mas daí, um pouco de pudor da minha parte... Disse:
"Então fica uma edição assim. Depois a gente volta para o título antigo".

A crítica

Na maioria das vezes, o leitor tem razão. Tem razão mesmo. Crítica desfavorável faz parte da trajetória de todo escritor. Alguns ex-alunos meus começam a publicar, sai um negócio, querem morrer. Eu vou lá, meio paternal. Cito exemplos históricos. Claro, não ajuda nada. Aí eu digo:
"Crítica não se responde. Não se responde. A gente se manifesta, diz que agradece a atenção, ótimo".

A melhor resposta, a meu ver, foi dada pelo Eça ao Machado quando este escreveu uma crítica pavorosa numa revista literária, O Cruzeiro, do século 19. Machado fez uma crítica pavorosa ao Primo Basílio. Não sobrou nada do livro. Machado começa dizendo que ele é o maior estilista da língua, tudo o mais... E depois vem um pau que não sobra nada. O Eça escreveu uma carta para ele, e disse que agradecia muito o interesse que ele teve em ler a obra, e enfim considerava interessante, tinha muitos pontos de vista interessantes. Porque a meu ver foi algo saudável. E não se conhece a resposta do Machado, se é que ele respondeu. Me parece muito saudável. Temos que ver isso com muita naturalidade. E não pensar assim: Não, escreveu mal e agora? Está sem razão. Não é isso. Eu já tive críticas desfavoráveis, como todo escritor. Com algumas delas, eu aprendi.

Incentivo à leitura

Eu acho que há um elemento absolutamente fundamental: o nível de vida das pessoas. No momento em que houver uma distribuição maior de renda vai se ler mais. Isso é natural. Todo país rico lê muito. A leitura ensina. Então isso tudo é um processo que deriva da condição de vida das pessoas.

Claro, aqui no Paraná, no Rio Grande, em Santa Catarina, temos uma distribuição razoável de renda, temos a maior classe média do país, a que lê. Então me parece que esse dado é muito relevante. Mas há os atalhos. Eu acho que o caso do Rascunho é um exemplo típico do que forma o leitor. Isso claramente. Suplementos literários em jornais, tudo isso é muito importante. E nesse sentido as oficinas literárias constituem um dos mecanismos a mais na formação do leitor. Em 21 anos, passaram pela minha oficina 680 alunos.

Eu fiz uma pesquisa, mas uma pesquisa realmente científica, tinha dois auxiliares de pesquisa. Dos alunos, 17% continuam escrevendo depois da oficina. Mesmo que não publiquem. E se a gente pensar que eu tenho, digamos, um número em torno de 60, 70, de ex-alunos que já publicaram livros, então são 10% que publicaram livros. Então a gente pensa assim: Bom, eu acho que é razoável. Acho bom, um nível muito bom. E os outros 90% se tornaram muito bons leitores. Então me parece que essas experiências de oficina de criação literária têm essa dupla face. Por um lado, podem formar escritores, mas sem dúvida, todos eles saem melhores leitores.

Literatura de entretenimento

O que eu penso sobre literatura de massa? Quem primeiro levantou essa questão no Brasil, a meu ver, salvo erro, foi José Paulo Paes. Um artigo que deve ter uns 30 anos, mais ou menos. E o centro da coisa era o seguinte, ele dizia:
"Nos faltam no Brasil escritores de entretenimento. Nós não temos. E por que não temos? Por que não tê-los?"

Dizia ele que os escritores brasileiros queriam ser muito artistas. E acabavam não tendo leitores. Então, nesse artigo ele dizia:
"Por que não o escritor brasileiro fazer um livro que a pessoa leve para ler na praia e depois jogue fora?"

Na época, eu ainda não tinha visto alguém falar isso, alguém daquela representatividade. Aquilo me impressionou. Tenho amigos que pensam de maneira diferente. Meu argumento, entre outros, é: normalmente essa literatura de massa vai dar origem a leitores mais exigentes. Eu penso isso. Eu tenho exemplos muito próximos a mim em que isso aconteceu. Essa literatura de massa acaba dando reforço de caixa para editoras poderem publicar outros autores, não tão vendidos. Isso é relevante. Acho muito relevante. Para a indústria cultural é importante. Então é assim: é preferível que a gente veja um livro desses na mão de um leitor, do que livro nenhum. Não sou contra. Não é o que me satisfaz realmente. Já sei o que vai acontecer dali a 20 páginas. Depois já sei. Pronto. Tudo construído em cima de clichês narrativos, não é? Mas são eficientes. Os americanos já descobriram isso. Eles usam muito esse conhecimento que a literatura produz. Eu vejo isso com muita naturalidade. Não sou contra. Não leio, ou leio quando sou obrigado.

Agente literário

No sistema literário brasileiro, só agora estão começando a trabalhar os agentes literários. É algo extremamente novo e necessário. É o agente literário que vai procurar o editor. O agente vai mandar fazer uma tradução para o inglês de um capítulo do livro, mandar para as editoras, que não lêem em língua portuguesa. Lêem em espanhol ou em inglês.

O agente literário é muito importante. Nós vivemos numa situação, no nosso país, que foi bastante prejudicada pela Semana de Arte Moderna. O escritor brasileiro, se a gente pensar aí no Machado, mesmo no José de Alencar, se pensar no Monteiro Lobato, se pensar numa geração um pouco posterior, vamos ver que eles já estavam desenvolvendo uma relação profissional com suas editoras. Na Semana de Arte Moderna, como aqueles meninos eram todos milionários, eles acabaram criando uma coisa promíscua em relação ao escritor, não estavam interessados em profissionalismo. Isso contaminou a vida literária brasileira. Agora é que estamos saindo disso. Com agentes literários. Por acaso, no Brasil, são mulheres. São todas mulheres. Aliás, uma das maiores agências literárias do mundo é de uma mulher, da Carmen Balcells. Mas enfim, eu acho que a entrada do agente literário no sistema literário brasileiro está sendo muito benéfica. Agora mesmo vim lá da Flip, de Paraty, e pude perceber o trabalho dos agentes literários. Vão atrás do editor, oferecem um jantar, oferecem, negociam, discutem contratos. Coisa que o escritor sempre teve pudor de fazer.

Fonte:
Jornal Rascunho. http://rascunho.rpc.com.br/

Jerônimo Mendes (História da Poesia Universal – Breve Relato ) Parte VI



Henrique Heine é considerado o segundo maior poeta alemão do século passado e o maior poeta judeu de língua alemã, em qualquer tempo. O primeiro, naturalmente, é Goethe, que, de resto, velho e consagrado, não deu a mínima atenção ao seu conterrâneo.

Sua origem criou alguns problemas para Hitler, mas não para Ezra Pound, que o admirava e traduziu, neste século finalizante. Foi contemporâneo de Byron 1 e, pode-se dizer, byroniano, pelo cinismo anti-romântico e pelas posições políticas rebeldes e revolucionárias, mas superou-o pela finura e precisão de sua arte poética. Converteu-se ao catolicismo e ao protestantismo, seguindo conveniências; foi amigo de Karl Marx, criou o famoso slogan “A religião é o ópio do povo “, encontrou abrigo na Paris das lutas republicanas, expulso da Alemanha pela política prussiana.

Sua prosa narrativa de viagens e suas canções tornaram-no famoso antes dos trinta anos, bastando dizer que o seu livro de canções teve treze edições enquanto ainda era vivo, canções essas que foram musicadas por Schubert e Schumann, entre outros.

Em 1848, data de publicação do Manifesto Comunista , em visita ao Museu Louvre, em Paris, sofreu um desmaio diante da Vênus de Milo: era a sífilis medular que o mandou para a cama durante oito anos, enquanto duas mulheres se picavam ao seu redor, pela grande fama e pequena fortuna, por conta de seus poemas românticos, como a jóia que coletamos de sua obra :

Violeta - brilho dos olhos
Lírio - brilho das mãos
Rosa - brilho das faces
Violeta, rosa, lírio :
Flores do coração secas.

Jean-Nicolas Arthur Rimbaud é o demoníaco anjo loiro da poesia ocidental moderna e um dos maiores mestres da poesia de todos os tempos (Décio Pignatari, p.130). Amigo de Baudelaire, foi um nômade que rompeu as convenções poéticas, estéticas e sexuais de sua época.

Nascido em Charleville, pequena cidade do interior da França, nas Ardenas, fugiu de casa pela primeira vez, aos dezessete anos; nessa e em muitas outras ocasiões, nos rolos que apresentava em suas andanças, resgatado pela mãe (por quem, de resto, não nutria estima qualquer). Em 1862 ingressou no Collège Charleville e em 1870 fez amizade com seu professor de retórica George Izambard. Em 1871 escreveu ao amigo Paul Demeny a “ Carta do Vidente “, seu manifesto poético e existencial. Rebelde, ateu, antimonarquista, não tardou a mandar-se para Paris, novamente, a Paris da Comuna, à qual aderiu, embora estivesse em Charleville, quando os communards foram esmagados.

Como que entediado, escreveu suas primeiras obras-primas com dezessete anos, tais como Ma bohème e Cabaret vert. Como se isso fosse pouco, pouco antes de completar dezoito anos compôs Le bateau ivre (O Barco Bêbado), um de seus poemas mais surpreendentes e famosos, ao lado do poema em prosa, Une saison en enfer (Uma Temporada no Inferno), que compôs e publicou às suas custas.

Em 1872 fugiu para a Bélgica com seu amigo poeta Verlaine, dez anos mais velho e que abandonou a mulher grávida e saiu pelo mundo, seduzido pelo anjo loiro. Em seguida partem para a Inglaterra onde, juntos, levaram uma vida miserável, entre disputas, discussões, tiros e cacetadas. Em Paris, dois tiros, um fere-lhe a mão : dois anos de cadeia mais multa. Em 1875, viveu em Stuttgart, na Alemanha, onde escreveu seus manuscritos famosos de Illuminations. Depois de viajar pela Áustria e Holanda, retornou, retornou à Alemanha e trabalhou como intérprete do Circo Loisset, excursionando pela Suécia e Dinamarca.

Rimbaud é um grande entre grandes, os grandes eram todos simbolistas e levavam o nome de Baudelaire, Mallarmè, Corbière, Verlaine. Em sua vida nômade, conheceu Alexandria, trabalhou no Chipre e visitou o Oriente Médio. Realizou expedições, comercializou peles, marfim e chegou a traficar armas e escravos na África. Segundo Rodrigo Garcia Lopes (1996 : 164), a poesia do trajeto de Rimbaud reflete a velocidade e pressa de ver e viver tudo ao mesmo tempo :

“ ... suas idas e vindas a Londres, suas vadiagens por Paris, Bruxelas, Stuttgart, no período de redação de suas famosas Iluminuras, acabaram fazendo com que o dinamismo também se revelasse a nível textual. O poeta insistia na Ação; ler, escrever e pensar caminhando, incorporando ou coletando os dados tal como acontecem durante o trajeto embriagado pelas ruas em que se “caça crônicas” como se fosse um “cavaleiro selvagem ”.

Rimbaud morreu em dezembro de 1891, vítima de um tumor cancerígeno no joelho direito agravado por uma antiga sífilis e depois de ter uma das pernas amputada. Há um século o poeta vêm apaixonando e alimentando diversas gerações de leitores sendo capaz de influenciar escritores tão diferentes com Proust, Ezra Pound, Samuel Beckett e Jim Morrison. Um pouco de sua obra, hoje parte integrante e fundamental na poesia universal :

MARINHA

As carroças de cobre e prata -
as proas de prata e aço -
Espalmas espumas, -
esgarçam macos de sarças.
As correntezas da roça,
E os sulcos imensos do refluxo,
fluem em círculos rumo a leste,
rumo às hastes da floresta, -
rumo aos fustes do quebramar,
cujo ângulo é ferido por turbilhões de luz .

Aos 33 anos estava de cabelos brancos. Aos vinte, não era mais poeta. Nesta década corrente, no centenário de sua morte, foi lembrado e muito comemorado, onde quer e por quem que tivesse interesse real pela poesia do planeta Terra. Rimbaud foi um dos seus melhores representantes.

Ralph Waldo Emerson, ensaísta, professor e poeta, foi um dos grandes expoentes da literatura norte-americana do século XIX. Depois de abandonar o trabalho como prelado da igreja unitarista, passou a residir em Concord, Massachussetts, onde se tornou figura central entre os transcendentalistas.

O verdadeiro evangelho do grupo, apresentado em seu ensaio Nature (1836), mereceu pouca atenção, mas com os discursos O Erudito Americano (1837) e O Endereço da Escola Divin (1838), despertou muita polêmica. A publicação dos primeiros volumes de Ensaios (1841) e Poemas (1847), e de Homens Representativos (1850), resultou em grande prestígio dentro e fora dos Estados Unidos. Emerson foi o maior pensador do chamado “renascentismo americano” de meados do século XIX.

Em seus Ensaios sobre Auconfiança, História, Leis Espirituais e Amizade entre outros, Emerson despeja toda sabedoria de um homem consciente dos valores da vida e maturidade suficiente para orientar uma multidão de pessoas. Todos eles são iniciados por um poema de maior profundidade que o outro e em simples há muito mais verdades que nas centenas de páginas restantes, tal como o abertura do ensaio Prudência, que transcrevemos a seguir:

“ Nenhum poeta cantou de bom grado um tema
caro aos velhos e infame aos jovens,
nas desdenhes o amor pelas vozes na melodia
nem os objetos das artes.
A grandeza da perfeita esfera celeste
deve-se aos átomos que juntos se mantêm”.

O sensível polonês Guillaume-Albert-Wladimir-Alexandre-Apollinaire–Kostrowitzky é o maior poeta francês do Século XX, ao lado de Paulo Valéry, que representa a sensibilidade antiga, simbolista e pós-simbolista. Imerso nas vanguardas artísticas do início do século, tais como cubismo, futurismo e orfismo, é um poeta confluente e defluente. Confluem Mallarmé (ideografia) e Rimbaud (dessemantização); defluem muitos, a partir de dada e o surrealismo, incluindo brasileiros de gerações literárias várias, como Mário de Andrade, Vinícius de Moraes, Oswald de Andrade.

Segundo Décio Pignatari (1996 : 132), talvez o projeto mais revolucionário de Apollinaire esteja menos nos seus caligramas, mesmo ambiciosos, como o de Lettre Océan, do que na paratatização sistemática, que ele chamava de simplificação sintática, cujo melhor exemplo é o de As Janelas, inspirado num quadro pioneiro do abstracionismo geométrico, da autoria de Robert Delaunay.

Filho de uma aventureira e de um padre, viveu na França estranhas e tumultuadas peripécias, que incluem involuntária receptação de estatuetas roubadas do Louvre, composição de anônimas obras pornográficas e reiterados casos de amor conflituosos, o mais célebre dos quais com uma aristocrática quarentona hunguenote, Louise de Coligny-Châtillon, a Lou (loup = lobo) de seus poemas ( repelido, engaja-se no exército francês, como artilheiro, e vai para a guerra; a moça, patrioticamente tocada pelo seu gesto, vai ao seu encontro, mas o namoro dura poucas semanas: apavorada com a truculência erótico - amorosa do poeta, rompe e foge). Naturalizou-se francês, foi ferido na cabeça, condecorado, passou por uma trepanação, apanhou uma pneumonia e deu-se bem, mas não escapou da gripe espanhola, que o matou a poucos dias do armistício. Foi dos primeiros poetas a registrar poemas em disco. Retratado por Picasso, o Douanier Rousseau, Marie Laurencin (também sua namorada) e Vlaminck.

Seus poemas, escritos sem pontuação, revelam uma clara tentativa de vanguardismo, tanto na forma quanto no conteúdo, a exemplo do que transcrevemos a seguir , em seus Versos a Lou :
[ . . . ]
Os ramos que se agitam são seus olhos que tremem
Vejo você em toda parte você tão bela tão terna
Os pregos dos meus sapatos brilham como os seus olhos
A vulva das jumentas é rosada como a sua
E nossas armas engraxadas são como quando você me quer
A doçura da minha vida é como quando você me ama . . .

Outro poeta de maior importância no desenvolvimento da poesia foi o norte-americano Thomas Stearns Eliot , nascido em 1888, naturalizado cidadão britânico e morto em 1965 e, seguramente, a mais potente influência moderna dos domínios da crítica da poesia e talvez o mais discutido e comentado poeta da modernidade.

T. S. Eliot trouxe ao espírito a idéia de Henry James, procurando na Inglaterra uma tradição que não encontrou na América, a preferência pela ilha. Tal tradição, que ele iria investigar nos clássicos greco-latinos e nos pilares da literatura inglesa; desde Chaucer e Milton, Dryden e Coleridge, ele trouxe para a sua própria poesia, toda ela eminentemente alusiva. Por outro lado, criou a idéia da “poesia dos poetas” chegando a certas obscuridades - como as que se encontram em The Waste Land (A Terra abandonada), o poema mais influente do século.

A elite cultural freqüentemente considera a possibilidade de que seus versos resistirão mais ao tempo que os de Ezra Pound, também criptógrafo de sua poesia. É que perpassa pela poesia de Eliot um sopro às vezes mais liberto e espontâneo que a atmosfera freqüentemente irrespirável do Pound dos Cantos.

Os ensaios de Eliot são verdadeiros clássicos da modernidade, deles derivando inúmeras expressões e conceitos que balizaram grande parte da crítica e da teoria literárias desde então. Eliot também tentou também um revival do drama em verso.

O pequeno trecho do poema A Canção de Amor de J. L. Prufrock que aqui transcrevemos foi aquele com que se lançou na poesia - já estribado em uma epígrafe de um poeta que marcaria muito os seus passos - Dante (Referimo-nos aqui ao poeta italiano Dante Alighieri, pelo qual Eliot tinha grande admiração e que terminou por influenciar todo seu pensamento poético) - o que desde já reflete um recurso freqüente na técnica eliotiana, ou seja, a mesclagem do coloquial e do elevado, que tanto o caracterizou :

Vamos, pois, você e eu,
quando o entardecer se expande contra o céu
como um paciente anestesiado na mesa;
vamos por certas ruas quase sem passantes,
os refúgios murmurantes
de inquietas noites nos hotéis baratos de uma só dormida
E restaurantes cheios de serragem
que as conchas de ostra vai unida :
ruas que seguem como debates tediosos
com objetivos insidiosos
de levá-lo a uma pergunta esmagadora . . .
Oh, não diga “qual, essa questão esquisita ?”
Continuemos, façamos nossa visita.

Seu poema A Terra Devastada, enigmático e dividido em cinco partes, reflete a experiência fragmentada do homem urbano do século XX . A obra tornou-se um marco do modernismo e fez de Eliot um porta-voz de uma geração secularizada e desiludida. A partir de 1925, reuniu um grupo de poetas, inclusive Auden, Spencer e Pound, que representou a principal corrente do moderno movimento poético.

Eliot exerceu grande influência como crítico e poeta. Entre seus vários livros de crítica está O Bosque Sagrado: Ensaios sobre Poesia e Crítica (1920). Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1948. Entre os grandes mestres da literatura universal e mais influentes na língua portuguesa destacamos Fernando Antonio Nogueira Pessoa. Filho de família burguesa, foi criado na África do Sul, fazendo do inglês sua segunda língua. De volta a Lisboa, abandonou os estudos universitários para tornar-se autodidata. Ganhava a vida como correspondente de casas comerciais, até que em 1912 publicou os primeiros ensaios de crítica da moderna poesia portuguesa, na revista A Águia.

O ano de 1914 foi decisivo para a evolução literária de Fernando Pessoa; nesta data nasceram os três principais heterônimos, personalidades distintas a quem o poeta atribuiu a autoria de suas poesias, em estilos bastante diferentes, mas que apresentam a unidade no que diz respeito à natureza psicológica enigmática de cada um. São eles : Alberto Caeiro , observador irônico, autor dos ciclos O Guardador de Rebanhos e Poemas Inconjuntos ;Álvaro de Campos, influenciado por Walt Whitman (Poeta norte-americano do século passado que exerceu grande influência na poesia de seu país liberando seus seguidores das convenções formais), canta a cidade moderna e a técnica em Tabacaria, Ode Triunfal e Ode Marítima ; Ricardo Reis compõe odes bucólicas e elegíacas. As poesias assinadas com o próprio nome são mais simples e cheias de emoção, como O Último Sortilégio e Autopsicografia. Seus poemas apareceram nas revistas Orfeu, Portugal Futurista e Presença, das quais participava com o círculo de amigos.

Apenas com a publicação das Obras Completas, em 1943, teve início a sua influência sobre as novas gerações de poetas, inclusive no Brasil. Fernando Pessoa é tido como o maior poeta português desde Camões. Duílio Colombini foi um dos maiores especialistas brasileiros em Fernando Pessoa e, durante vinte anos, lecionou em diversas faculdades e universidades, entre elas a USP, divulgando a obra e vida de poeta.

A seguir transcrevemos um pequeno poema minimalista de Pessoa, inserido na compilação de sua obra pelo estudioso e de grande profundidade :

Ah, tudo é símbolo e analogia !
O vento que passa, a noite que esfria,
São outra coisa que a noite e o vento -
Sombras de vida e de pensamento.
Tudo o que vemos é outra coisa.
A maré vasta, a maré ansiosa,
É o eco de outra maré que está
Onde é real o mundo que há.
Tudo o que temos é esquecimento.
A noite fria, o passar do vento,
São sombras de mãos, cujos gestos são
A realidade desta ilusão.


Outros poetas de nome internacional deveriam ser citados nesta monografia pela sua importância no mundo da poesia, mas não podemos encerrar este capítulo sem mencionar alguns poetas brasileiros que hoje gozam de todas as glórias do mundo da literatura, grandes pela coragem exercida no seu tempo, grande pelas mensagens perpetuadas nos poemas.

No Brasil, Gregório de Matos Guerra, O Boca do Inferno, é com certeza um dos autores mais controversos do período colonial e da literatura em seus primórdios. Nascido na Bahia a 20 de dezembro de 1623 (A data não é precisa, alguns historiadores datam o nascimento no ano de 1636), filho de família abastada, estudou no colégio dos Jesuítas de Salvador. Em 1650 viajou para Lisboa com o objetivo de dar continuidade à sua formação intelectual, onde se matriculou na Universidade de Coimbra, tornando-se Bacharel.

Seu prestígio literário sempre sofreu apreciáveis oscilações, e ainda hoje o consenso crítico sobre sua obra e importância no processo global da nossa formação literária não foi estabelecido. As reações em torno da sua produção variam, ao longo do tempo, e em função de vários fatores, da apologia e adesão gritante, à críticas insubstanciais, passando por avaliações insustentáveis. Gregório de Matos foi, sem dúvida, um dos maiores representantes da literatura barroca nacional. A parte mais significativa de sua obra é lírica, de caráter sacro, porém ficou mais conhecido pela sátira à nobreza e ao clero, o que lhe valeu um sem-número de desafetos.

Hoje, porém, há quase um consenso de que foi ele o iniciador da literatura brasileira, apesar do caráter esparso de sua obra, escrita na Bahia, em Coimbra, em Angola e no Recife, lugares onde estudou e ocupou cargos públicos de destaque. Gregório de Matos se constitui num problema literário de amplas proporções, e as diversas formulações em torno de sua obra e de sua validade estética e cultural trazem embutidas matrizes e paradigmas de compreensão e avaliação da tradição e da cultura brasileira.

Para muitos é o nosso primeiro grande autor propriamente nacional, aquele que começou estabelecer o diálogo permanente - do qual se alimenta a cultura brasileira - entre o dado local e as matrizes externas; para outros não passa deu poeta de relevo e importância relativas. Independente dessas divergências conceituais e críticas é inegável que ele está incorporado de uma forma ou de outra à cultura letrada brasileira, e continua despertando interesse pelos mais variados motivos.

Como se sabe sua obra poética é basicamente dividida em dois eixos principais : a produção lírica e a satírica. A primeira foi nitidamente marcada pela temática amorosa, ou pela temática religiosa, em meio as quais repontam sempre temáticas seiscentistas por excelência.

Já a segunda oscila entre a sátira social e a sátira política, de maior ou menor abrangência, indo do geral ao particular, do dado individual às estruturas coletivas.

Seu conjunto de poemas dá bem a dimensão da produção poética e do comportamento intelectual, e mesmo pessoal, que lhe valeu o qualificativo de Boca do Inferno. Neles é possível apreciar diversas facetas do autor, e avaliar um conjunto de comportamentos e valores culturais particulares ao século XVII que gravitam em torno da questão da sexualidade, e que ainda têm razoável circulação no nosso imaginário.

Ao mesmo tempo documento histórico e obras literárias autônomas, independentemente da perspectiva pela qual forem avaliadas, os poemas têm um valor cultural e antropológico indiscutível 1, motivo pelo qual não deixamos de transcrever um trecho da sua preciosidade, enviado a umas freiras que mandaram perguntar por ociosidade, ao poeta, a definição de príapo, e ele mandou a definição em décimas :

Ei-lo, vai desenfreado,
que quebrou na briga o freio,
todo vai de sangue cheio,
todo vai ensangüentado.
Meteu-se na briga armado,
como quem nada receia
foi dar um golpe na veia,
deu outro também em si,
bem merece estar assi
quem se mete em casa alheia.

Em 1969, James Amado publicou todos os escritos que se atribuem ao poeta, em sete volumes e muito do que escreveu chegou fragmentado aos dias de hoje, mas, sem dúvida, Gregório de Matos não será ignorado jamais. Para não alongarmos demais a monografia, optamos pela inclusão da vida e obra de Gregório de Matos Guerra e, sem menosprezar os demais importantes poetas (principalmente os da fase romântica, como Gonçalves Dias, Castro Alves, Casimiro de Abreu e Gonçalves de Magalhães entre outros).

Incluímos também aquele que, talvez pela maior proximidade com ele neste século, vêm provocando ao longo de cinqüenta anos um gosto maior pela poesia e literatura nacional, digno das mais tresloucadas críticas e também dos mais sinceros e honestos elogios : Carlos Drummond de Andrade, mineiro de Itabira. Drummond, como ficou conhecido no mundo todo, teve seus poemas traduzidos para mais de 25 países. Poeta e prosador, em 1930, junto com outros companheiros, fundou A Revista, que teve vida curta mas considerável influência no movimento modernista.

Seus primeiros livros, Alguma Poesia (1931), Brejo das Almas (1934) e Sentimento do Mundo (1940) mostraram o impasse entre o artista e o mundo. Em A Rosa do Povo (1945) apresentou uma poesia de certa forma engajada. A partir de Claro Enigma (1951) registro o vazio da vida humana e o absurdo do mundo, e enriqueceu a pesquisa de novas formas da utilização das palavras. Em 1928, seu poema No Meio do Caminho, publicado em São Paulo na Revista Antropofagia, se transformou no maior escândalo literário da época :

No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra.


Drummond foi um dos maiores poetas brasileiros contemporâneos e exerceu grande influência nas gerações que se seguiram. Tem sido traduzido para vários idiomas e consta de inúmeras antologias estrangeiras, principalmente o poema O Mundo é Grande :

O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.

Depois de estudar todos esses poetas, pergunto a mim mesmo : Quem foi o maior poeta dos últimos tempos ? Quem é o maior de todos ? Todos são maiores ?

Felizmente, pela mais simples e humilde interpretação, não posso julgar esse ou aquele como maior ou melhor de todos. Como já disse anteriormente, cada um teve sua importância em sua respectiva época e minha alegria maior foi saber que todos tiveram foram brilhantes à sua maneira.

A poesia universal não foi generosa com todos os poetas, mas, com toda deficiência, reconheceu tardiamente alguns e outros ainda penam no anonimato. Deixamos de citar vários nomes de grande influência no meio literário e que, certamente, poderíamos discorrer sobre eles com o amplo e farto material que tivemos ao nosso alcance.

Milton, Hartcrane, W.B. Yeats, D.H.Lawrence, Brodski, Pound, Michelangelo, Byron, Petrarca, Burns, Cecília Meireles, Fagundes Varella, Cecília Meireles, Oswald de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Thiago de Mello, a lista parece interminável, mas, em verdade, é limitada, pois são mentes privilegiadas, amadas pelos seus povos e seguidores.

Os alemães continuam amando Heine e Goethe; os ingleses, Shakespeare e Auden; os franceses, Rimbaud e Baudelaire; os norteamericanos, Emerson e Eliot; os portugueses, Camões e Fernando Pessoa; os chilenos amando Neruda e nós, brasileiros, seguiremos amando Castro Alves, Augusto dos Anjos, Drummond, Thiago de Mello . . .

Fonte:
Monografia feita pelo autor em Curitiba / PR , março de 2001

sábado, 26 de dezembro de 2009

Trova XCIV - Élbea Priscila de Souza e Silva (Caçapava/SP)

Olavo Bilac (Velho Conto – Voz do Sangue)


Velho conto

Nicolau, varão casado
Porém de sorte mofina,
Porque não tem descendência,
Resolve, desesperado,
Ir até a Palestina,
Para fazer penitência.
Parte, enceta a romaria,
Em casa a esposa deixando,
Sozinha, nos tristes lares,
E, piedoso, dia a dia,
Passa três anos rezando
Pelos Sagrados Lugares.
Pede ao Senhor que consagre,
Pelos gemidos que solta,
Esse desejo que o abrasa;
— E efetua-se o milagre,
Pois Nicolau, quando volta,
Acha três filhos em casa...

Voz do sangue

Matou Conrado a paixão
Que o trazia sucumbido,
Entregando o coração
A Alexandrina Balão,
Que o recebeu por marido.
Depois de um bom par de meses,
De pensar e mais pensar,
E discutir muitas vezes,
Os referidos fregueses
Abalaram do lugar.
Não os viu Deus com bom olho,
Pois se um filho rechonchudo
Deu-lhes, era o tal pimpolho,
Além de tudo, caolho
E mudo, acima de tudo.
Conrado, que o filho adora,
Nina-o, beija-o, mexe, vira,
Debalde suspira e chora:
Palavra não sai p'ra fora,
Palavra alguma lhe tira.
Volta ao lugar do casório
E logo das nuvens cai,
Pois ao ver no consistório
Da igreja, o padre Libório,
Diz a criança: PAPAI!
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Fonte:
R. Magalhães Jr. (organizador). Antologia do Humorismo e Sátira. RJ: Civilização Brasileira, 1957.

Pedro Nava (Ventania)


Pro Mário

O vento veio maluco lá do alto do Bonfim
e veio chorando da tristura do cemitério.

Zuniu na praça do mercado
assuviou as mulatas avenida do comércio
e mexeu na saia delas.
Arrancou folha das árvores
poeira sungou do chão
depois virou
Soprou
correu
danou
e entrou feito uma carga na avenida Afonso Pena,

O obelisco cortou ele pelo meio
mas ele foi avuando
e os fios da C.E.V.U. como cordas de viola
vibraram dum som longo
que cobriu Belo Horizonte feito um lamento.

O vento passou desmandado no Cruzeiro
saiu pro campo dobrou a mata
mas de repente
sua disparada pára na parede Serra do Curral
e o bicho stopa mas sapeca no morro um sopapo
que estrala que nem ginipapo
que mão raivosa
chispasse num muro curo..

Co-nhe-ceu papudo?
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Fontes:
“Revista Verde”. MG: Cataguases , ano 1, nº 3, novembro 1927.
Imagem = http://www.fiocruz.br/

Pedro Nava (Como escrevo?)



“Eu procuro seguir um sistema, que é o seguinte: de manhã, que é a hora em que eu me sinto com menor capacidade criativa, procuro escrever minhas cartas, o que é sempre mais leve do que o trabalho literário propriamente dito, ou organizar o meu arquivo, que nunca está em ordem. Sou um vagatônico, e os vagatônicos sofrem de manhã, a manhã não é agradável para eles, bom mesmo é a noite afora. À tarde eu crio, de meia dúzia de linhas, uma página, até no máximo oito, nove páginas datilografadas – que eu escrevo diretamente a máquina. A produção varia, conforme a dificuldade do assunto. A noite eu deixo pra fazer a revisão, pra corrigir. Na minha idade, o sujeito deve estar pronto pra tudo: quero deixar um texto pelo menos revisto por mim... A meia dúzia de linha que estou tentando escrever do novo livro já apresenta correções, você pode ver o número de chamadas e correções que eu faço. Se você me faz agora uma revelação que interesse às minhas memórias, ao desenvolver do meu trabalho, se me conta alguma coisa lá do Ceará, geralmente eu tomo nota, saio sempre com um papel no bolso pra tomar uma notinha ou outra, às vezes até de uma palavra só – dessas que nascem como uma flor, são bonitas em si. Há palavras assim, quem mexe com as letras sabe disso. Você conhece de repente e é uma revelação – ou a maneira como ela foi dita, como foi pronunciada. Tomo nota das coisas que me importam, numa série de cadernos. Depois eu corto aquilo como fichas – tenho o cuidado de escrever só de um lado da folha, para depois cortar”.

Fonte:
CAMINHA, Edmilson. Palavra de escritor. Brasília: Thesaurus, 1995.

Pedro Nava (1903 – 1984)



Pedro da Silva Nava (Juiz de Fora, 5 de junho de 1903 — Rio de Janeiro, 13 de maio de 1984) foi um médico e escritor brasileiro.
Antes de formar-se em medicina pela Universidade de Minas Gerais, em 1927, já fazia parte de grupos interessados pela literatura, como o “Estrela” e “A Revista” (1923), publicação modernista que contava com Carlos Drummond de Andrade, Martins de Almeida, João Alphonsus e Gregoriano Canedo. Formou-se em Medicina na Universidade Federal de Minas Gerais em 1927. Em 1924, encontrou-se com a caravana modernista, que mostrava o Brasil ao poeta francês Blaise Cendrars, da qual participavam Mário e Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Trocou, durante muito tempo, correspondências com o poeta Manuel Bandeira. Como escritor tornou-se o maior memorialista da literatura brasileira, autor de seis livros.

Depois de passar algum tempo no interior de São Paulo, após a Revolução de 1930, muda-se em 1933 para o Rio de Janeiro e trabalha em vários hospitais. Produz obras sobre história da medicina, entre elas Território de Epidauro - Crônicas e Histórias da História da Medicina (1947) e Capítulos da História da Medicina no Brasil (1948).

O primeiro foi Baú de Ossos. É o primeiro volume das memórias do médico e escritor mineiro Pedro Nava. A obra foi lançada em 1972, a obra resgata histórias dos antepassados de Nava em Aracati, no Ceará, Rio de Janeiro e Juiz de Fora, em Minas Gerais, além das primeiras lembranças do escritor.

Comentando a obra de estréia do amigo, Carlos Drummond de Andrade escreveu: "Pedro Nava surpreende, assusta, diverte, comove, embala, inebria, fascina o leitor com suas memórias da infância, a que deu o título de Baú de Ossos". Ricardo Ramos lembra que antes “a memória servia à ficção. Até que surgiu Pedro Nava. Hoje temos com ele o gênero em plenitude, a memorialística feita reconstituição de uma realidade e ensaio ao seu redor, povoada de tipos, de experiências, lembranças, depoimento e reflexão”. O sucesso de público obtido com este lançamento e o espanto causado no meio literário, animou-o a dar continuidade em sua obra


Depois deste vieram ainda Balão Cativo, Chão de Ferro, Beira Mar, Galo das Trevas e, por último, O Círio Perfeito. Pedro Nava traçou nestas obras um completo painel da cultura brasileira no século XX, além dos costumes familiares e sua cultura popular.

Suas páginas sobre a medicina figuram como das maiores que se tenham escrito na literatura brasileira. A Belo Horizonte de seus anos vinte e o Rio Antigo passeiam em suas narrativas como uma força poética e uma profundidade observacional que muitas vezes se transformam em pura poesia, levando o leitor a um mundo mágico. No dizer de Carlos Drummond de Andrade: "... possuía essa capacidade meio demoníaca, meio angélica, de transformar em palavras o mundo feito de acontecimentos." Nava também possuía grande talento de pintor, e só não o foi profissionalmente por opção.

Em 1973, recebeu, no Rio de Janeiro (RJ), o Prêmio Luísa Cláudio de Sousa, concedido pelo Pen Club, e o Prêmio Personalidade Global - Setor Literatura, concedido pela Rede Globo de Televisão e pelo jornal O Globo. No ano de 1974 recebeu o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte – São Paulo (SP).

Em 13 de maio de 1984, menos de dois meses após ser ovacionado em São Paulo, num domingo à noite, Nava sai de casa sem dizer nada a sua mulher e se dirige discretamente a uma praça ao lado da Rua da Glória, onde morava no Rio de Janeiro. Ali sacou seu revólver, deve ter dado uma olhada para os lados, pois não queria incomodar ninguém, e comete suicídio. Dá fim aos 81 anos de vida, dos quais uma boa parte de êxitos na medicina (Criou o primeiro Serviço de Reumatologia no Rio e a primeira Cadeira de Reumatologia na América) e a parte final dedicada a literatura

No dia seguinte, A Folha de São Paulo deu a seguinte notícia: “A literatura brasileira perdeu na noite de domingo um de seus mais importantes nomes, o memorialista Pedro Nava. Ele foi encontrado morto com um tiro na cabeça, na rua da Glória no Rio, perto de onde morava. Segundo a polícia, foi suicídio. Completaria 81 anos de idade em junho. Seu sepultamento será hoje, às 10 horas, no Cemitério de São Francisco Xavier, no Rio de Janeiro. Mineiro, médico, companheiro de Carlos Drummond de Andrade na vanguarda modernista, amigo dos mais importantes personagens do mundo cultural do País, até 1972 Nava só havia publicado poemas esparsos. Naquele ano, editou seu primeiro livro ("Baú de Ossos"), ao qual se seguiram mais cinco volumes. Sua sétima obra ("Cera das Almas") já estava praticamente concluída. Foi possível recompor os últimos passos de Nava. Na noite de domingo, em seu apartamento na rua da Glória, ele terminou de escrever o discurso que deveria pronunciar na Assembléia Legislativa do Rio, no dia 23, quando receberia o título de Cidadão Fluminense. Mostrou o discurso à sua mulher, da.Atonieta, e jantou normalmente. Por volta das 20 horas, o telefone tocou e dª. Antonieta atendeu, uma voz de homem perguntava por Pedro Nava. Este ouviu em silêncio o que a voz lhe dizia e depois desligou. À mulher, ele informou apenas tratar-se de um trote de mau gosto. Às 22 horas, da. Antonieta foi ao banheiro. Nava então saiu, sem avisá-la . Mas tarde, foi visto sentado à calçada, parecendo abatido em meio ao movimento de prostitutas e travestis. às 23h30, o tiro, disparado de um velho revólver calibre 32, do próprio Nava. Em entrevista concedida à "Folha" em junho do ano passado, em seu 80° aniversario, ele dissera ter pensado várias vezes no suicídio, mas que o fato de ser médico o protegera, até ali, contra o ato

Hoje cogita-se que Nava vinha sendo chantageado por um garoto de programa, informação encoberta pela imprensa à época.

Fontes:
– Wikipedia
http://www.algosobre.com.br/biografias/pedro-nava.html
http://www.tirodeletra.com.br/biografia/PedroNava.htm

Lygia Fagundes Telles (Que se chama solidão)


Chão da infância. Algumas lembranças me parecem fixadas nesse chão movediço, as minhas pajens. Minha mãe fazendo seus cálculos na ponta do lápis ou mexendo o tacho de goiabada ou ao piano; tocando suas valsas. E tia Laura, a viúva eterna que foi morar na nossa casa e que repetia que meu pai era um homem instável. Eu não sabia o que queria dizer instável mas sabia que ele gostava de fumar charutos e gostava de jogar. A tia um dia explicou, esse tipo de homem não consegue parar muito tempo no mesmo lugar e por isso estava sempre sendo removido de uma cidade para outra como promotor. Ou delegado. Então minha mãe fazia os tais cálculos de futuro, dava aquele suspiro e ia tocar piano. E depois, arrumar as malas.

— Escutei que a gente vai se mudar outra vez, vai mesmo? perguntou minha pajem Maricota. Estávamos no quintal chupando os gomos de cana que ela ia descascando. Não respondi e ela fez outra pergunta: Sua tia vive falando que agora é tarde porque a Inês é morta, quem é essa tal de Inês?

Sacudi a cabeça, não sabia. Você é burra, Maricota resmungou cuspinhando o bagaço. Fiquei olhando meu pé amarrado com uma tira de pano, tinha sempre um pé machucado (corte, espinho) onde ela pingava tintura de iodo (ai, ai!) e depois amarrava aquele pano. No outro pé, a sandália pesada de lama. Essa pajem era uma órfã que minha mãe recolhera, tive sempre uma pajem que me dava banho, me penteava (papelotes nas festas) e me contava histórias até que chegasse o tempo da escola. Maricota era preta e magra, a carapinha repartida em trancinhas com uma fita amarrada na ponta de cada trancinha. Não sei da Inês mas sei do seu namorado, tive vontade de responder. Ele tem feição de cavalo e é trapezista no circo do leão desdentado. Estava sabendo também que quando ela ia encontrar o trapezista, soltava as trancinhas e escovava o cabelo até vê-lo abrir-se em leque como um sol negro. Fiquei quieta. Tinha procissão no sábado e era bom lembrar que eu ia de anjo com asas de penas brancas (meu primeiro impulso de soberba) enquanto que as asas dos outros anjos eram de papel crepom.

— Corta mais cana, pedi e ela levantou-se enfurecida: Pensa que sou sua escrava, pensa? A escravidão já acabou!, ficou resmungando enquanto começou a procurar em redor, estava sempre procurando alguma coisa e eu saía atrás procurando também, a diferença é que ela sabia o que estava procurando, uma manga madura? Jabuticaba? Eu já tinha perguntado ao meu pai o que era isso, escravidão. Mas ele soprou a fumaça para o céu (dessa vez fumava um cigarro de palha) e começou a recitar uma poesia que falava num navio cheio de negros presos em correntes e que ficavam chamando por Deus. Deus, eu repeti quando ele parou de recitar. Fiz que sim com a cabeça e fui saindo, Agora já sei.

— Sábado tem procissão, eu lembrei. Vai me fazer papelote?

— Vamos ver, ela disse enquanto juntava os bagaços da cana no avental. Foi até a lata de lixo. E de repente riu sacudindo o avental: Depressa, até a casa da Juana Louca, quem chegar por último vira um sapo! Eram as pazes. Levantei-me e saí correndo atrás dela, sabia que ia perder mas ainda assim apostava.

Quando não aparecia nada melhor a gente ia até o campo para colher flores que Maricota enfeixava num ramo e, com cara de santa, oferecia à Madrinha, chamava minha mãe de Madrinha. Às vezes, ela desenhava com carvão no muro as partes dos meninos e mostrava, É isto que fica no meio das pernas, está vendo? É isto! Mas logo passava um trapo no muro e fazia a ameaça, Se você contar você me paga!

Depois do jantar era a hora das histórias fantásticas. Na escada que dava para a horta, instalavam-se as crianças com a cachorrada, eram tantos os cachorros que a gente não sabia que nome dar ao filhote da última ninhada da Keite, acabou sendo chamado de Hominho, era um macho. Foi nessa época que apareceu a Filó, uma gata meio doida que acabou amamentando os cachorrinhos porque a Keite estava com crise e rejeitou todos. Cachorro também tem crise, avisou tia Laura olhando pensativa para a Keite que dava mordidas no filhote que vinha procurar suas tetas.

As histórias apavorantes das noites na escada. Eu fechava os olhos-ouvidos nos piores pedaços e o pior de todos era mesmo aquele, quando os ossos da alma penada iam caindo diante do viajante que se abrigou no casarão abandonado. Noite de tempestade, vinha o vento uivante e apagava a vela e a alma penada ameaçando cair, Eu caio! Eu caio! — gemia a Maricota com a voz fanhosa das caveiras. Pode cair! ordenava o valente viajante olhando para o teto. Então caía um pé ou uma perna descarnada, ossos cadentes pulando e se buscando no chão até formar o esqueleto. Em redor, a cachorrada latindo, Quer parar com isso? gritava a Maricota sacudindo e jogando longe o cachorro mais exaltado. Nessas horas sempre aparecia um dos grandes na janela (tia Laura, tio Garibaldi?) para impor o respeito.

Quando Maricota fugiu com o trapezista eu chorei tanto que minha mãe ficou preocupada: Menina mais ingrata aquela! Acho cachorro muito melhor do que gente, ela disse ao meu pai enquanto ia arrancando os carrapichos do pêlo do Volpi que já chegava gemendo, ele sofria com antecedência a dor da retirada de carrapichos e bernes.

A pajem seguinte também era órfã mas branca. Falava pouco e também não sabia ler mas ouvi minha mãe prometer (como prometeu à outra), Eu vou te ensinar. Chamava-se Leocádia. Quando minha mãe tocava piano ela parava de fazer o que estava fazendo e vinha escutar: Madrinha, por favor, toca "O sonho de Lili"!

Leocádia não sabia contar histórias mas sabia cantar, aprendi com ela a cantiga de roda que cantarolava enquanto lavava roupa:

Nesta rua nesta rua tem um bosque
Que se chama que se chama Solidão.
Dentro dele dentro dele mora um Anjo
Que roubou que roubou meu coração.

— Menina afinada, tem voz de soprano, disse tia Laura batendo com o leque na mesa, estava sempre se abanando com o leque. Soprano, soprano! fiquei repetindo e correndo em redor de Leocádia que ria aquele riso de dentes fortes e perguntava o que era soprano e eu também não sabia mas gostava das palavras desconhecidas, Soprano, soprano!

— Vem brincar, Leocádia! eu chamava e ela ria e dava um adeusinho, Depois eu vou! Fiquei sondando, e o namorado? Da Maricota eu descobri tudo mas dessa não descobri nada.

Morávamos agora em Apiaí, depois da mudança tão comprida, com o piano no gemente carro-de-boi. Isso sem falar nos vasos de plantas e na cachorrada que veio no caminhão com a Leocádia e mais a Custódia, uma cozinheira meio velha que mascava fumo e sabia fazer o peru de Natal. Meu pai, a tia e minha mãe comigo no colo, todos amontados no tal fordeco meio escangalhado que meu pai ganhou numa rifa. Com o carcereiro guiando, era o único que sabia guiar.

Apiaí e a escola das freirinhas. Quando nessa tarde voltei da escola, encontrei todo mundo de olho arregalado e falando baixo. No quintal, os cachorros se engalfinhando. Por que a Leocádia não foi me buscar? E cadê minha mãe? Tia Laura baixou a cabeça, cruzou o xale no peito, fechou o leque e foi saindo meio de lado, andava desse jeito quando aconteciam coisas. Fechou-se no quarto. Custódia soprou o braseiro do fogão e avisou que ia estourar pipoca. A Leocádia fugiu?, perguntei. Ela começou a debulhar o milho, Isso não é conversa de criança.

Então entrou minha mãe. Fez um sinal para a Custódia, sinal que eu conhecia (depois a gente se fala), acariciou minha cabeça e foi para o quarto de tia Laura. Disfarcei com o prato de pipoca na mão, banzei um pouco e fui escutar detrás da porta da tia. Contei que meu marido estava viajando (era a voz da minha mãe) e que a gente não sabe lidar com isso. Uma tragédia, Laura, uma tragédia! Então o médico disse (minha mãe parou para se assoar) que ela pode ficar na enfermaria até o fim, vai morrer, Laura! Enfiou a agulha de tricô lá no fundo, meu Deus!... - A voz sumiu e logo voltou mais forte: Grávida de quatro meses e eu sem desconfiar de nada, era gordinha e agora engordou mais, foi o que pensei. Hoje ela me reconheceu e fez aquela carinha alegre, Ô! Madrinha. Era tão inteligente, queria tanto aprender a ler, queria até aprender música. Tia Laura demorou para falar: Agora é tarde!, gemeu. Mas não tocou na Inês.

Em dezembro tinha quermesse. Minha mãe e tia Laura foram na frente porque eram as barraqueiras, eu iria mais tarde com a Custódia que ficou preparando o peru. Quando passei pelo jasmineiro no quintal (anoitecia) vi o vulto esbranquiçado por entre os galhos. Parei. A cara úmida de Leocádia abriu-se num sorriso.

— A quermesse, Leocádia! Vamos?, eu convidei e ela recuou um pouco.

— Não posso ir, eu estou morta.

Keite apareceu de repente e começou com aquele latido desesperado. Antes que viessem os outros, tomei-a no colo, Fica quieta, quieta! ordenei baixinho na sua orelha. E o latido virou um gemido de sofrimento. Quieta! Aquela é a Leocádia, você não se lembra da Leocádia? Comecei a tremer. É a Leocádia! repeti e apertei a Keite contra o peito e ela também tremia. Soltei-a: Pode ir mas não chame os outros, escutou isso?

Keite saiu correndo e desapareceu no fundo do quintal. Quando olhei na direção do jasmineiro não vi mais nada, só a folhagem com as florinhas brancas no feitio de estrelas.

Entrei na cozinha. Que cara é essa? estranhou a Custódia. Encolhi os ombros e ajudei a embrulhar o peru no papel-manteiga. Vamos depressa que a gente está atrasada, ela resmungou me pegando pelo braço. Parou um pouco para me examinar melhor.

— Mas o que aconteceu, você está chorando? Enxuguei a cara na barra da saia.

— Me deu uma pontada no dente.

— Foi naquele que o dentista chumbou? Quer a Cera do Doutor Lustosa?

— Deu só uma pontada, já parou de doer.

— Pegue o meu lenço, ela disse abrindo a sacola. Ofereceu-me o lenço de algodão branco, bem dobrado. Na calçada deserta ela ainda parou um pouco para prender a fivela no cabelo. O peru era meio velho mas acho que ficou bom.

Enxuguei os olhos com raiva e cruzei os braços contra o peito, outra vez o tremor? Fomos andando lado a lado e em silêncio.

Fonte:
TELLES, Lygia Fagundes. Invenção e Memória. RJ: Rocco, 2000.
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Fernando Sabino (No Quarto da Valdirene)



Mal ele entrou em casa, a mulher o tomou pelas mãos, ansiosa:

- Estava aflita para você chegar.

E sussurrou, apontando dramaticamente para os lados da cozinha:

- Tem um homem no quarto da Valdirene.

Sacudiu a cabeça com irritação:

- Desde o primeiro dia eu achei que essa menina não era boa coisa. Ela nunca me enganou.

Valdirene, a jovem empregada, uma mulata de olhos grandes, não faria feio num palco.

- Como e que você sabe? - perguntou ele, para ganhar tempo. Não partilhava da opinião da mulher: desde o primeiro dia achou que a Valdirene era ótima.

- Sei porque vi. Escutei um ruído qualquer ai fora no corredor, olhei pelo olho mágico, e vi quando ela punha ele para dentro pela porta de serviço.

- Ele quem?

- O homem. Não sei quem é, só sei que é um homem. Deve ser o namorado dela, ou o amante, tanto faz. O certo e que os dois estão trancados lá no quarto faz um tempão.

- Vai ver que já saiu.

- Não saiu não, que eu não sou boba, fiquei de olho. Esta lá dentro com ela até agora.

- E o que e que você quer que eu faça?

- Quero que bote ele pra fora, essa e boa.

- Por quê?

Ela botou as mãos na cintura:

- Por quê? Você ainda pergunta por que? Então tem cabimento a gente deixar que a empregada receba homens no quarto dela? O que e que essa menina está pensando que minha casa é? Um motel? Se você não for lá, eu mesma vou.

- Espera ai, vamos com calma, mulher. Você tem razão, mas deixa a gente raciocinar um pouco. Não podemos é perder a cabeça. Pode ser perigoso. Como é que ele é?

- Não cheguei a ver direito. Só vi que era um homem. Para mim, basta.

- Não posso ir lá no quarto dela sem mais nem menos. Quem sabe é algum parente? Um irmão, talvez...

- Um irmão, talvez... Você tem cada uma! Pior ainda: que é que um irmão tem de ficar fazendo trancado no quarto com a irmã como eles dois estão? Você tem de pôr esse homem pra fora.

- E se estiver armado? Ele pode muito bem estar armado.

- Já que você está com medo...

- Não estou com medo. Só que temos de agir com calma. Vamos ver como a gente sai dessa. Deixa comigo.

Ele respirou fundo e se meteu pela cozinha, ganhou a área de serviço, ficou à escuta. Nada, tudo quieto e às escuras no quarto da Valdirene. Bateu de leve na porta:

- Valdirene.

Via-se pelas frestas da veneziana na própria porta que o quarto continuava no escuro. Ele bateu de novo:

- Valdirene, está me ouvindo? Valdirene!

Escutou alguém se mexendo lá dentro e a voz estremunhada da moça:

- Senhor?

- Tem alguém com você ai dentro, Valdirene?

- Tem não senhor.

- Abra um instante, por favor.

Em pouco ela abria a porta, furtivamente, e o encarava sem piscar. Vestia um baby-doll pequenino e transparente que, sob a luz mortiça vinda da área, deixava quase todo seu corpo à mostra.

- Acenda essa luz, minha filha.

Mais para vê-la melhor do que para olhar o quarto, pois mesmo no escuro podia-se verificar que ali dentro não havia mais ninguém. Luz acesa, ela se protegia discretamente com os braços, enquanto ele dava uma olhada rápida por cima do seu ombro:

- Tudo bem. Desculpe o incômodo. Boa noite.

Voltou para a sala, onde a mulher o aguardava, tensa de expectativa. - E então?

- Não tem ninguém.

- Como não tem ninguém? Pois se eu vi o homem entrando!

- Se viu entrando, não viu saindo. O certo é que não tem ninguém no quarto da Valdirene, além dela própria. Vamos dormir.

- Como é que eu posso ir dormir sabendo que tem um estranho dentro de casa? Você vai voltar lá e olhar direito.

- Eu olhei direito. Se não acredita, vai lá e olha você.

- Quem e o homem nesta casa? Se você não for olhar eu não fico aqui dentro nem mais um minuto. Vou direto à polícia.

Ele ergueu os braços e os deixou cair, com um suspiro resignado:

- Essa mulher, meu Deus. Agora é você que está com medo. Direto à polícia. Como se fosse um crime... Tudo bem, eu vou lá olhar direito.

Voltou a bater na porta da empregada:

- Valdirene.

Desta vez ela respondeu logo:

- Senhor?

- Abra ai um instante, por favor.

- Sim senhor.

Ela abriu e foi logo acendendo a luz. Estimulado pela nova oportunidade de vê-la tão de perto, ele perdeu a cerimônia e entrou no quarto. Sempre de olho nela e ouvido atento à mulher lá na sala. Ali dentro só cabia a cama e o armariozinho com uma cortina, atrás da qual ninguém poderia se esconder. Ainda assim ergueu o pano para se certificar. Satisfeito, voltou-se para a moça que, ao sentir seus olhos tão próximos, abaixara modestamente os dela:

- Desculpe, minha filha. É que minha mulher, você sabe, quando ela cisma uma coisa... Mas pode dormir sossegada. Boa noite.

Na sala, a mulher voltou a questioná-lo:

- Você olhou direito desta vez?

- Não há como olhar errado. Um quarto deste tamaninho! Olhei o que tinha para olhar: a Valdirene e a cama.

- A Valdirene e a cama? O que você quer dizer com isso?

- Não quero dizer coisa nenhuma. É que ali dentro não cabe mais nada além da Valdirene e da cama.

- Não é isso que parece estar insinuando, com essa sua cara.

- Que é que tem minha cara? Você é que insinuou que tinha um homem lá dentro, não fui eu. Não me admiraria nada. Mas acontece que não tem. Só faltou olhar debaixo da cama.

- Não admiraria nada - ela o imitou, com um trejeito. E ordenou, braço estendido:

- Pois então vai olhar debaixo da cama.

- Essa não! - relutou ele: - Já disse que não cabe ninguém...

Mas acabou indo. Pobre da menina, de novo importunada:

- Me desculpe, Valdirene, mas é preciso que você abra aí outra vez. '

Ela acendeu a luz, abriu a porta e deu-lhe passagem. Seus olhos o acompanharam impassíveis, quando ele entrou e se agachou para olhar debaixo da cama. De quatro, sentindo-se ridículo naquela postura, ele baixou a cabeça até que a ponta do queixo tocasse o chão, e enfiou-a sob o estrado. Seu nariz esbarrou de cheio em algo branco e macio - era nada menos que o traseiro de um homem.

- Oi - assustou-se, recuando.

- Oi - fez o homem, como um eco, encolhendo-se ainda mais.

Ele se ergueu. perturbado, limpou a garganta, procurando dar firmeza à voz:

- O senhor tem um minuto pra sair deste quarto.

Um último olhar para Valdirene, como a dizer que sentia muito mas não podia deixar de cumprir o seu dever, e foi ter com a mulher na sala:

- Tinha sim. Tinha um homem debaixo da cama. Está satisfeita?

- Eu não disse? E o que é que você fez?

- Mandei que ele se pusesse pra fora. É o tempo de se vestir.

- Meu Deus, ele estava nu?

- Que é que você queria? Não sei é como ele pôde caber lá debaixo. Imagino o susto dele. E o da Valdirene, coitadinha.

No dia seguinte, mal amanheceu, ela despedia a Valdirene, coitadinha.

Fontes:
SABINO, Fernando. O Gato Sou Eu. RJ: Record, 1983.
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Jean-Pierre Bayard (História das Lendas) Parte XXV


IV. — Gata Borralheira e Pele de Burro

1. — Motivos

a) Esses dois contos têm grande analogia. Loys Brueyre (Contes populaires de la Grande-Bretagne) observa duas tradições nas quais se confundem. O anel e o chinelo desempenham o mesmo papel e Miss Mariam Roalfe Cox estuda as suas trinta versões (Cinderella, Londres, 1893).

b) Pele de Burro — O rei promete à rainha moribunda só desposar uma mulher mais bela do que ela (Perrault) ou aquela em cujo dedo servisse o anel da rainha (Sicília, 159, 186; Rússia, 171, 172; Noruega, 181; Portugal, 184); ou que pudesse vestir os mesmos vestidos (Grécia, 176; escocês, 151) ou os sapatos (italianos, 134, 150). Ora, só a filha do rei preenche as condições. Para fugir a essa união criminosa, a princesa formula três desejos que o rei consegue satisfazer. Disfarçada, foge e serve miseravelmente em casa de um príncipe que descobre quem é a pretensa serva e esposa-a.

c) Gata Borralheira — Tratada por suas irmãs como uma empregada, Gata Borralheira, por uma ajuda exterior — fada, animais — consegue ir três vezes ao baile onde encontra o príncipe; mas terminando o encantamento numa hora definida, a heroína, na fuga, perde seu sapatinho que permite ao príncipe encontrá-la e esposá-la.

2. — Variantes

a) Pele de Burro — O incesto forma o ponto de partida desse conto. Por esse motivo Deulin pensa em Prajapati, senhor da criação, que violentou sua filha Uchar. Em 1550, com Straparole (primeira noite, conto IV), o príncipe Thibaut quer desposar sua filha Doralice. Na Histoire de Sainte Dipne (História de Santa Dipne) (Ribardeneira, Fleur des vies de saints, 1616) (Flor das vidas de santos), o rei pagão da Irlanda tenta desposar sua filha Dipne e finalmente mata a fugitiva; é Pele de Burro sem seu maravilhoso. Se Luzel (5o. relatório das Missões Científicas), Schleicher (Litaüische Màrchen), relatam lendas semelhantes, Deulin cita outras variantes tais como a Belle Hélène de Constantinople (Bela Helena de Constantinopla), onde o suposto parto de animais lembra o Chevalier au cygne (Cavaleiro do cisne).

Num conto hindu (Le trône enchanté) (O trono encantado), a princesa casa com um burro que se metamorfoseia em príncipe. Pernette, conforme Bonaventure de Perriers (Nouvelles Récréations et Joyeux Devies) veste uma pele de burro para enojar um amigo. Se Pétriosa (O Pentameron) se transforma em ursa, Noel du Fail (1547) e Grimm aproveitam a idéia (La reine dos abeilles) (A rainha das abelhas), La gardeuse d’oies (A guardadora de gansos), La vrai fiancée (A verdadeira noiva). Enfim a extraordinária cozinheira enegrecida com sebo de Peau de toutes les bêtes (Pele de todas as feras) (Grimm), que casa com o príncipe depois de aparições que se assemelham às de Roberto, o Diabo.

b) Gata Borralheira — A sandália da cortesã Rodopis foi levada por uma águia e caiu subitamente diante do faraó admirado; Rodopis descansa agora sob a terceira pirâmide (Estrabão, liv. XVII). Ellen (Histoires diverses, XIII) reproduz essa anedota para glória do rei Psametico. Cosquin regista dois contos anamitas nos quais gralhas levam os sapatos dourados da Gata Borralheira ao palácio real. Mas geralmente a heroína perde os sapatos fugindo. Lembramo-nos de Penélope, de Berta dos pés grandes (Henry Pourrat, Marie Cendron, t. I). Ei-la num conto malgaxe (Ferrand, 1893, n.o 35), mas depois de Finette Cendron, Landes relata contos anamitas (Saigon, 1886) e Leclêre, versões tjame e cambodgeana. Se Miss Cox anotou essas variantes, Cosquin firmou algumas versões cabilas, silesianas, islandesas (Contos Populares, t. II). Realmente esse ensaio do sapatinho constituiria o rito da eleição, a posse de um novo lar. Temos um exemplo em Rute (IV, 7-10) no qual Booz recebe dessa maneira Rute, a Moabita.

3. — Interpretações

a) Para Gubernatis, a aurora, perseguida por seu pai, veste o casaco da noite; para H. Husson, Ch. Ploix, a aurora se oculta sob a bruma a fim de se entregar ao sol levante. Conforme versões nórdicas, Loys Brueyre vê nessas versões, o casamento ritual do ano com o novo sol. Saintyves pensa na evocação do carnaval, liturgia primaveril na qual as duas heroínas vestem os trajes e os atributos de uso.

b) O traje — Esse revestimento de peles de animais consta do Gênese (III, 21). “E Deus fez para o Homem e para a Mulher roupas de peles e com elas os vestiu”; ora, conforme o esoterismo, toda matéria universal é viva. Esse disfarce que muda a personalidade assemelha-se ao fenômeno da reencarnação que encontramos na Índia. Se Gata Borralheira usa vestidos que se assemelham às estações ou ao tempo (Rússia 153; Grécia 176), Miss Frère refere-se a um conto hindu no qual uma jovem disfarça-se em mendiga (retomado no conto toscano 285). No folclore italiano as virgens encerram-se em estátuas de velhas e algumas vezes em sua pele (Cosquin). O sapatinho de veiros denota a pureza e a beleza. Encontramos essa transformação em Riquet à la Houppe. c) O nome de Gata Borralheira — Mine d’Aulnoy e Perrault referem-se às cinzas da lareira e o Pentameron à Gata das Cinzas. Saintyves, ao estudar essas variantes, é de opinião que as cinzas desempenham papel degradante; é a humilhação, a penitência. Ulisses, humilhado por Areté e Alcínoo, senta-se nas cinzas; os hebraicos cobrem a cabeça com cinzas em sinal de luto. Para Loeffler-Delachaux, Gata Borralheira é uma vestal presa ao culto do Sol, da Luz e do Fogo; ora, o fogo é o símbolo da Vida e do Amor.

d) A madrasta — Freqüentemente a madrasta é representada por uma feiticeira (Cox Bulgária 127; Irlanda 9 e 10; anamita 68 e 69); às vezes por uma mágica (Cox Eslováquia 33; Grécia 17; Noruega 67, 110, 70); Luzel (Contes de Basse-Bretagne,- III (Contos da Baixa-Bretanha); Le chat noir (O gato negro) e Saintyves — confundem-na com o ano velho.

e) As ajudas — As ajudas que vêm socorrer são fadas, animais — muitas vezes pássaros — e até a defunta mãe (Cox, Contos dinamarqueses 38, 43, 64; norueguês, 87; Grimm 2); algumas vezes cultuam-se os ossos dos animais protetores (contos tjames 69). Desparmet (Contes populaires) menciona ajudas semelhantes.

f) As carruagens — Passeiam os deuses no Olimpo e conduzem as fadas aos batizados. Os coches são os veículos das forças cósmicas e da alma durante o decorrer. da reencarnação (Arjuma no Bagavad-Gita). — Os animais têm significação alegórica; Loeffler-Delachaux diz que o carro do sol é puxado por cavalos brancos e que as fadas podem ter carruagens de paz ou de cólera (La biche au bois de Perrault). Na Finlândia, a carruagem é substituída pelo trenó; o garanhão representa a energia sexual libertada; esses raptos de mulheres figuram na Calevala, Le joyeux Lemmikaïgen. Os corcéis não podem ser emprestados (Gracieuse et Percinet de Perrault, La gardeuse d’oies de Grimm.; o Pentameron.

g) Objeto denunciador — Gata Borralheira e Pele de Burro são reconhecidos graças a um objeto perdido (sapatinho), ou dado como penhor (anel, colar, alfinete, relógio, chave). O anel sem começo nem fim, liame mágico da vida, talismã, como a pulseira ou o colar, simboliza ritualmente o encadeamento de duas vidas. É encontrado numa iguaria e permite o descobrimento da heroína disfarçada.
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continua...
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Fonte:
BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores