quinta-feira, 3 de junho de 2010

David Martins (A Sopa de Pedra)


Descia o Sol no horizonte. Pela estrada, coberto de poeira, seguia Frei Bernardo, o rosário a tilintar, a barriga a dar horas.

Longa tinha sido a caminhada, isto para não mencionar a lonjura que ainda tinha de palmilhar até chegar ao mosteiro.

Se era vivo de espírito, não era menos robusto de corpo, o nosso frade. Cem léguas caminharia, tivesse ele a barriga cheia... mas, não se via nem galinha transviada, nem macieira a convidá-lo sem o dono por perto.

Nada, coisa alguma que se pudesse comer.

Pouco faltava para ele maldizer a sua vida, quando avistou uma quinta no horizonte: o seu santo protetor nunca se esquecia de velar por ele!

Sorriu, satisfeito.

Afinal, não há mal que sempre dure. Com um pouco de sorte, alguma coisa lhe dariam para comer.

Mas os tempos não iam de feição para se fazer caridade. A vida estava muito difícil, os anos de seca não deixavam os cereais germinar, os legumes definhavam nas hortas, os animais morriam de fome e de sede. Acrescentem-se os impostos que os senhores da terra nunca se esqueciam de mandar cobrar a tempo e horas, os homens que tinham partido para longe, guerrear sabe-se lá que inimigos numa terra distante.

O pouco que cada um conseguia extrair da terra ressequida, em sua casa o aferrolhava, que ninguém sabia o que ainda podia estar para vir. Tudo isto o nosso bom frade bem o sabia. Mas não lhe faltava nem bonomia, nem engenho e arte para resolver qualquer problema que lhe surgisse, por mais complicado que ele fosse. Se não se podia ir pela estrada real, dava-se a volta por atalhos, e não era por isso que um homem deixava de chegar ao seu destino.

À medida que encurtava a distância que o separava da casa de paredes de pedra escura da região e telhado de colmo, uma ideia foi ganhando forma na sua mente. Apanhou uma pedra do chão e sorriu. Era uma pedra redondinha. Limpou o pó que a cobria e bateu à porta.

- Quem é? - Gritou uma voz de mulher.

- Deus te salve, boa mulher! Não terás por aí uma panela que me emprestes e um pouquinho de água que me dês? É que aqui mesmo acendo umas brasinhas e faço uma sopa de pedra.

- Essa agora! Não querem lá ver? Havia de ter graça! - exclamou a mulher, rindo, os dedos cruzados sobre o ventre empinado pelo pimpolho que em breve daria à luz. - Sopa de pedra? Nunca de tal coisa ouvi falar!

- Pois olha que é um manjar que se faz muito lá na minha aldeia, e é de muito alimento. Queres ver?

É claro que a curiosidade da mulher era mais do que muita, e ela não a escondia, observando o frade com o mesmo espanto com que olharia para uma galinha com cinco cabeças.

- Sempre estou para ver como é que vosmecê faz esse petisco - disse ela, abanando a cabeça, meio incrédula, meio divertida.

- É simples, já vais ver. Ponho esta pedra dentro da panela com água e deixo ferver - explicou ele, mostrando o seixo reluzente.

A mulher não queria acreditar, mas como a curiosidade era mais forte, lá foi buscar uma panela com água.

Frei Bernardo juntou meia dúzia de cavacas, acendeu um lume bem espevitado, meteu-lhe o tacho em cima com a pedra lá dentro, cruzando em seguida os braços como quem está à espera que qualquer coisa aconteça, e depois sentou-se tranquilamente, desfiando o seu rosário. Passados momentos, já a água fervia... com a pedra lá dentro.
A mulher, sempre desconfiada, não tirava os olhos do frade.

- Sabes que mais - disse ele - vou prová-la. - Hmm... parece que precisa de um bocadinho de sal.

E a mulher foi buscar o sal. Frei Bernardo agradeceu, e voltou às contas do seu rosário.

A mulher, como se nada daquilo lhe dissesse respeito, ia no entanto arranjando afazeres que a obrigassem a rondar por ali. Sempre queria ver. O frade fingia não dar pela presença dela que, a certa altura, não resistiu mais e perguntou:

- Então, e é boa... essa sopa?

- Boa? Fica sabendo que é das coisas mais saborosas que eu já comi. E então se me trouxesses uma batatinha, ou uma folhinha de couve, ainda ficava melhor.

A mulher lá foi à horta e regressou com duas batatas, uma cebola, três folhas de couve. Frei Bernardo não se fez rogado. Uma boa sopa de hortaliças já ele tinha a ferver, diante dele. No entanto, passado algum tempo, virou-se para a mulher e disse:

- Esta sopinha não está nada má, mas se lhe juntasse um dentinho de alho, um fio de azeite, duas rodelas de chouriço... ah! Então até os anjos do Céu seriam capazes de a comer.

A sopa cheirava que era um regalo, disso ninguém poderia duvidar. A mulher entrou em casa e de lá saiu trazendo o que faltava.

- Sabes o que te digo? És uma boa alma. Vai buscar duas gamelas e senta-te aqui comigo, que a sopa chega bem para os dois.

Eis como Frei Bernando se deliciou com uma bela sopa, num local onde, de outro modo, bem sabia que nada lhe teriam dado para comer.

- E a pedra? - perguntou a mulher, quando chegaram ao fundo da panela.

- A pedra? Olha, essa, levo-a comigo, que me há-de servir outras vezes.

Fontes:
David Martins. Estórias e Lendas de Encantar. Lisboa: Lyon Multimédia 1998
Imagem = http://escolas.madeira-edu.pt/

Lançamento do Livro de Belvedere Bruno, "Vinho Branco, safra especial de contos e crônicas"

Wilson Bueno (Silêncios)


Para Fernando Paixão

1
há um Deus de luto
no demasiado rútilo
que se liquida ao norte
por uma estrela-de-gelo
e a lua simples nos olmos
carrega em impuro siena
pelas mãos do Deus abrupto
acre oficina de sustos

2
há um Deus bem gaio
na sarabanda do outono
que daqui se vê todo ano
o mesmíssimo outono
de há quatro mil anos
com Deus pelos cantos
pondo branco no agapanto
e amanhecendo paineiras

3
há um Deus silente
na tinta incendiada
de sonetos e poentes
manhã de ouro encardida
cincerros da madrugada
sussuro de Deus com pluma
no andado quase ar voante
de chá e voal o vento

4
diante de tanto quanto Deus
dá-me que entenda
pelo juízo da veia
a via tácita ou láctea
de víscera expectante
pelo que Deus põe de tarde
numa abelha azul-da-prússia
e vos faz de céu e senha

Fontes:
– Antonio Miranda. http://www.antoniomiranda.com.br/
– Imagem = http://noturnamaturidade.wordpress.com/

Wilson Bueno (Meu Tio Roseno, a Cavalo)


Vencedor do Prêmio Jabuti de 2000, a novela de Wilson Bueno, assassinado recentemente em Curitiba (de primeiro já consegue chamar a atenção pelo artesanato inusitado de sua linguagem. Num andamento próximo do coloquial regionalista, contando com a fusão do português, espanhol e guarani (recriando a realidade do local em que se passa a narrativa, entre Paraná, Mato Grosso do Sul e Paraguai), o autor abusa do emprego dos neologismos que atingem até o próprio nome do protagonista, Roseno, que é chamado Rosevago, Rosevéu, Rosenente, Rosalvo, entre outros.

Tal variação sobre o mesmo nome faz lembrar as repetições constantes de expressões por todo o corpo da obra. Confira quantas vezes aparece “meu tio” após o nome do protagonista, ou mesmo “antes da Guerra de Paranavaí”, “Doroí ia lhe dar um filho, uma filha, por ser mais certo”, “bugra esquiza e de olhos azuis” e por aí vai.

Todos esses elementos contribuem para que se construa uma prosa poética que lembra Simão Lopes Neto, pelo tom sulista, mas principalmente Guimarães Rosa, não só pela invenção de palavras e fusão de línguas, mas pelo caráter simbólico, quem sabe até mítico, que o texto acaba assumindo. Reforçando tal aproximação, parece não ser à toa que o narrador, sobrinho da personagem principal, dá um ar de fábula à história ao dizer que se passa no desvão dos tempos, por exemplo. Outro argumento seria a própria melopéia, ou seja, musicalidade da frase, como em “e os ouvidos treinados para diferençar da azáfama de inquietos sons a nota surpresa da mais arisca aproximação”. Recende plenamente o fazer literário roseano.

Em suma, se se aceita a semelhança entre Wilson Bueno e Guimarães Rosa, não se torna absurda a idéia que em Meu Tio Roseno, a Cavalo a narrativa acaba criando um mundo mágico e simbólico, o que se nota já em seu começo, quando se comunica que Roseno montou o cavalo Brioso para realizar uma viagem em menos de sete dias para Ribeirão do Pinhal. A intenção do herói era, obedecendo à profecia de uma cigana, encontrar sua amada Doroí, índia com quem vai ter uma filha, que deve chamar-se, ainda de acordo com a cigana, Andradazil (Outra semelhança com Guimarães Rosa é que “Andradazil” chega a ser onomatopaico, imitando o som da cavalgada, assim como o nome “Tarantão”, do conto de Guimarães Rosa “Tarantão, Meu Patrão”, presente em Primeiras Estórias), para que tivesse um bom destino no meio da tão citada Guerra do Paranavaí (região do interior do Paraná), conflito causado por questão de terra entre índios e civilizados.

Realiza, pois, uma viagem de travessia, que pode ser entendida como metaforização da vida. Faz lembrar o conto de Guimarães Rosa, “Seqüência”, de Primeiras Estórias, pois é uma jornada em busca do amor, ou então “Tarantão, Meu Patrão”, do mesmo livro, já que, além do tom de gesta, há a motivação pelo nascimento de uma criança. Há semelhança também com Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, pois o início de uma vida pode ser visto como um contraste às desgraças mostradas no bojo da obra.

Como já se disse, o livro é marcado por repetições na linguagem, o que o torna poético. Mas no eixo narrativo essa característica se processa pelo aspecto cíclico que é assumido. Sete dias. Seis entrecéus. O ciclo de sol e lua, assim como a própria viagem, são velhos símbolos da vida. E tudo se encaixa em três grandes fases – sexo, luta, assombração – que, no fundo, são manifestações de dois grandes campos: vida e morte. Mais uma vez, o tom mítico do livro.

No início da caminhada a cavalo, Roseno depara-se com um índio desafiador que não acredita no poder das armas de fogo, alienação – principalmente em época tão próxima aos conflitos de Paranavaí – que espanta o herói. Mas basta mostrar o poderio bélico para que o oponente se desmanche em cortesias, levando o protagonista até sua tribo. Lá, conhece uma índia muito jovem, criança ainda, com quem passa noite, tirando-lhe a virgindade.

No dia seguinte encontra problemas ao abandonar a tribo. O chefe quer que se case com a pequena índia. Mais uma vez, tem de usar seu revólver. O engraçado é que não bastaram tiros no chão – teve de, estranhamente, pôr na mão do selvagem a arma para convencê-lo de deixar sair (Pode ser visto como significativo o fato de Roseno deixar vários espelhos e miçangas em troca da hospedagem e da companhia afetiva. O herói, mesmo neto de índia, parece ter em seu sangue o costume branco – seu avô era alemão – já vindo do século XVI de trocar coisas tão preciosas por ninharias). Parte, pois.

Nesse primeiro embate, o prazer sexual, princípio da vida, está ligado a combate, que se restringiu, na verdade, apenas à possibilidade. Vitória da existência. Mas conquista efêmera. Pouco depois encontra, em seu segundo dia de viagem, em meio ao clima fantasmagórico da noite, um local em que havia os restos mortais de combatentes, ossadas e mais ossadas dispostas num quadro dantesco. Era a Guerra do Paranavaí se apresentando. Era o princípio da morte começando a se instalar.

Passa a noite com um sono entrecortado pela impressão que aquela paisagem macabra lhe deixou. Prossegue sua viagem até no final do terceiro dia, quando pára e resolve ver as atrações de um circo. Decepciona-se com a farsa sobre uma mulher que se dizia barbada. Além disso, foi obrigado, num bar, a brigar com dois soldados, que queriam mostrar-se atrevidos. Vence-os. Por fim, enquanto assistia a um espetáculo, presenciou um velho baixinho pegar um homem bojudo e atirar várias vezes sobre a cabeça deste, num ato de covardia que revoltou os demais da platéia. O surpreendente é que a vítima ainda consegue se levantar e cambalear na direção do assassino, no entanto, termina por cair. Alguns entre o público tomam as dores do derrotado e partem para cima do covarde, mas são segurados pela própria orquestra do circo. Estava consagrado que tudo não passava de farsa, o que deixou o herói irritado. Assim, parte.

Chega-se ao seu quarto dia de viagem, mergulhado nas memórias da infância, com a presença marcante da avó, feiticeira. Lembra-se também da amada, que lhe proporcionou inúmeros momentos de gozo. Recorda-se ainda dos irmãos. Além disso, vem em sua mente uma enxurrada de acontecimentos ligados a guerra, violência, assassinatos, seus primeiros empregos, seu ofício como capador de galos e daí a sua paixão: as brigas realizadas entre esses galináceos. Tudo isso se passa com maestria, revelando o domínio de Wilson Bueno, já detectado em outros momentos da obra, sobre o emprego do tempo psicológico e do fluxo de consciência.

Estamos, definitivamente, no campo da guerra, que nada mais é do que luta por sobrevivência. Porém, é um momento da narrativa com uma enorme proximidade da morte. Disseminam-se aqui elementos que podem ser vistos como preparação pelo menos do clima do final da novela. Em nome da guerra – que é uma luta por domínio de vida – atrocidades são cometidas.

Mergulhados nessa atmosfera, estamos no quinto dia, o mais assustador. Tudo começa com um encontro fortuito com um sujeito extremamente magro. Fugia de Aruanã porque o povo estava perseguindo um lobisomem que havia feito muita desgraça na cidade. Todos acreditavam que o desgraçado era desdentado, o que faziam pessoas com tal qualidade serem alvos perfeitos para a fúria dos cidadãos. Roseno fica desconfiado, ainda mais quando descobre que o fugitivo, Luís Arnaldo, era maneta.

Chega à cidade, que lhe é frustrante, pois, em vista do clima de terror, não se estavam realizando as famosas brigas de galo. E, como de esperar, o assunto de todos era nada mais do que o tal lobisomem. O herói diz que o viu, mas, feita a descrição, todos na hospedagem em que está dizem tratar-se apenas de Luis Arnaldo. E dedicam-se a contar mais histórias fantásticas. Roseno não repara, no entanto, que um dos forasteiros ri sempre escondendo os dentes.

No fim, recolhe-se ao seu quarto, o que possui o aziago número 13. No meio da noite acorda e, guiado apenas por um toco de vela, vai ao banheiro coletivo da hospedaria. Enquanto se desafoga, ouve o resfolegar de um cavalo e por uma fresta consegue ver que era justo o animal de Luís Arnaldo. Chega até a enxergar-lhe inúmeras asas. Corre assustado para o seu quarto, não sem antes ver o eqüino voar.

Volta para seu sono perturbado, interrompido pela gritaria dos vizinhos: estavam perseguindo um lobo, ou melhor, o lobisomem. O animal acaba – numa cena bastante pungente – massacrado pelos moradores. Roseno, que já estava decepcionado pela ausência das rinhas de galo, decide, diante de tudo o que havia presenciado, partir de Aruanã. No caminho, admira-se ao encontrar com o desdentado Luís, que estava voltando à cidade. É este quem lhe diz que o lobisomem era o forasteiro que tanto escondia a falta de dentes.

Está terminando o seu prazo de deslocamento e o Brioso parece que sente, pois cavalga mais rápido, até nervoso. Está-se aproximando do clímax da novela, depois de toda uma narrativa que somava amor, guerra e assombração, este último elemento nada mais era do que o medo da morte. E é o que vai tomando mais forma no final, o que parece ser pressentido pelo herói, principalmente quando vê urubus sobrevoando a região que era o rancho onde devia estar Doroí. Corre desesperadamente para lá.

Chegando, só encontra a casa abandonada e crivada de balas. Sua fúria e desespero se descarregam soltando tiros para todas as direções, o que acaba por derrubar de uma árvore a negra Nhô, que ali se havia escondido. Em meio à tensão, consegue arrancar da empregada informações por demais dolorosas: Doroí ainda não havia dado a luz, mas tinha sido levada dali para a Guerra do Paranavaí.

E assim encerra-se o conto, com o amanhecer do sétimo dia. Com esse anticlímax, pois que frustra as expectativas do leitor, bem no esquema de contos como “Os Irmãos Dagobé” e “Tarantão, Meu Patrão”, de Primeiras Estórias ou mais ainda como “A Cartomante”, de Machado de Assis, pois o que acontece no final já havia sido anunciado em elementos disseminados pelo texto, mas que o leitor acaba ignorando por criar uma expectativa em outra direção.

Fonte:
http://www.lol.pro.br/

Wilson Bueno (O Escritor em Xeque)


Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão

Como construiu o escritor que é hoje?

Posso dizer que foi uma lenta e meticulosa procura de um "sentido" para viver, pra existir cá neste mundo insensato. Não que tenha havido um propósito deliberado, digamos assim, de "construir" o escritor, como você coloca na sua pergunta. O escritor foi surgindo na exata medida em que a vida foi solicitando de mim um "sentido". E junto com esta busca, a cada vez, o gosto, o prazer do texto, a epifania da escrita. Difícil escavar a pedra bruta, muita vez só com as unhas das mãos, para dali extrair quem sabe uma esmeralda viva. Há textos que são esmeraldas vivas e não que eu tenha chegado a alguma, mas sei que isto é possível. É da natureza da velha ars literaria esta e outras amplas possibilidades. É preciso amor ao texto como se ama a um homem ou a uma mulher...

Há muita diferença entre escrever para o público infantil e para o adulto?

Olha, eu só tenho um livro destinado exclusivamente para as crianças, embora muitos de meus textos, sobretudo a parte zoofílica, as fábulas principalmente, possam ser lidos por pessoas de 0 a 100. Mas o meu único livro digamos "infantil", estrito senso, se chama "Os Chuvosos" e acaba de ser publicado, em edição artesanal-luxo, pela Tigre do Espelho, da poeta e designer gráfica Jussara Salazar. Mas, acredite, não escrevi "Os Chuvosos" pensando especificamente nas crianças, pelo contrário - era até, em princípio, para integrar o meu livro mais recente, "Jardim Zoológico" ( Iluminuras, 1999) que não é propriamente um livro infantil, não é? Mas aí deliberamos, eu e Jussara, que o livro seria destinado às crianças e como eu o tinha escrito para uma menina, Kaira, então com 5 anos, e tinha a ela dedicado o texto, "Os Chuvosos" ficou sendo mesmo um título de literatura infantil... Não sei se respondi sua pergunta, mas, em síntese, tudo para mim é o prazer do texto. Divirto- me tanto com "Finnegans Wake" quanto com as estórias dos Irmãos Grimm, e decididamente não penso, quando de minha fatura literária, pessoal, para quem eles, os textos, se destinam...

Seu mais recente livro é "Jardim Zoológico", que acaba de ser publicado pela Iluminuras. O que há de novo em seu trabalho?

Dentro de uma linha evolutiva, se assim podemos dizer, de minhas zoolatrias, que começa lá atrás, em 1991, com "Manual de Zoofilia" ( Noa Noa) onde discuto a mito-poética do amor erótico humano a partir de bichos como cadelas ou corvos, elefantes ou polvos, moscas ou colibris, "Jardim Zoológico" é um momento agudizado daquela vertente. Não fiz por menos - decidi inventar e/ou inventariar novos bichos para, a partir de sua forma e conteúdo, refletir sobre a pobre condição humana. Ali onde havia um pardal, digamos, instaure-se, por exemplo, os giromas; ali onde, arisca, cheia de nosso presto amor com raiva, se atocaiava uma raposa, coloque-se em seu lugar, os guapés, micro-cães menores que um dedo humano e seus filhotes inverossímeis. Penso que o Jardim é mais filosófico que o Manual, mais maduro também, embora, alguns exagerados, considerem o livrinho editado pela Noa Noa e que mereceu recente uma segunda edição pela editora da UFPG, a melhor coisa que fiz até hoje, chegando ao cúmulo de classificá-lo como obra-prima, - esta palavra perigosa - , o que é, evidente, uma inverdade...

Quem assina o prefácio de "Jardim Zoológico" é Arnaldo Antunes. A letra de música é poesia?

No meu entender, a poesia está em tudo o que se queira como poesia. Nos filmes publicitários, nas bulas de remédio, nos out-doors, nos muros da cidade aflita, na prosa de Goethe ou nos sonetos de Machado de Assis. Como não estaria nas letras de música, com nossos poetas-compositores, nós que somos um país musical e que acrescentamos ao mundo insuspeitadas essências nesta área - do samba à bossa-nova, do tropicalismo ao frevo? Agora, há letras de música e letras de música; como há sonetos de Machado de Assis e sonetos de J.G. de Araújo Jorge...

Com quantas metáfora se faz um poema?

Responderia a esta pergunta com uma utopia e novas perguntas - haverá a vez de um poema sem metáfora? Como seria um poema destituído de toda metaforização? Será possível um poema assim esquizofrenicamente colado ao real feito uma segunda pele? E que poesia é esta que não trans-figura? Tal poema seria, para não fugir da metáfora, só a sina de ser, rude como um coice...

Borges dizia que se há um telefone sobre a mesa e ele não tem função, a sua presença num romance é dispensável. Concorda?

Em gênero, número e grau. Este telefone exemplificado por Borges pode até não tocar, ninguém usá-lo para fazer uma ligação, mas a sua função visceral tem que ser dada. Este telefone recortado na ambiência do texto terá que dizer algo e desde já deduzimos que não será qualquer coisa, e que mesmo que seja qualquer coisa isto tem que estar conectado ao corpus do texto feito uma fatalidade.

Como você vê 18 páginas de "Mar Paraguayo" ( Iluminuras, 1992) ter sido incluídas numa das mais importantes antologias latino-americanas dos últimos tempos que é "Medusario" ( México, Fondo de Cultura Económica), organizada por Roberto Echavarren e José Kozer?

É preciso lembrar que lá também estão fragmentos de "Galáxias", de Haroldo de Campos, e também fragmentos do "Catatau", de Paulo Leminski - igualmente como representantes do Brasil na antologia. Acho que está mais do que na hora de a literatura brasileira, uma das literaturas mais ricas do mundo, ser ao menos conhecida pelos nossos vizinhos de língua hispânica. É incompreensível que não nos conheçam ou nos conheçam muito pouco. E quando travam contato com as nossas coisas, veja-se o exagero e o deslumbre - vão logo nos antologizando de um modo generoso e inteiro, como agora, com Medusario. A se destacar, o grande pequeno ensaio que introduz "Mar Paraguayo" na antologia, uma visada aguda e inteligente sobre o texto, realizada pelo crítico Roberto Echavarren. Estar ali, ao lado das mais importantes expressões da nova literatura latino-americana, além da honra, tem me dado grandes alegrias.

Como encara a Internet? Como utiliza a web? O livro corre perigo?

O livro só tem ganhado com a Internet. Nunca a literatura encontrou um meio tão pródigo em propagandeá-la, em multiplicá-la. Não é difícil hoje você ter acesso à poesia, digamos, servo-croata, bastando para tanto um endereço eletrônico e um movimento de "enter" em seu teclado. E, depois, tem o inglês, este esperanto vitorioso, que nos leva aos quatro cantos da Terra, pelas teias da web. Não viveria hoje sem a Internet - ela passou a se construir numa coisa essencial em minha vida. É nela que pesquiso, converso, bordo e danço... E, sobretudo, é companhia, quando, tarde da noite, a prática de urrar, cá no meu estúdio do arrabalde curitibano, leva-me a muitas modulações de uivos - longos, stacattos, curtos e agudos, ou graves e solenes feito o balir de um cervo em agonia...

Tem alguma epígrafe?

Tenho muitas, mas gosto particularmente da que inscrevi ao pórtico de "Manual de Zoofilia" e que é atribuída a Shakespeare - "A planta chamada mandrágora é afim com o reino animal porque grita quando é arrancada e esse grito pode enlouquecer quem o escuta."

Qual o papel do escritor na sociedade?

Nossa função, penso, é não deixar nunca que a superfície chapada das coisas vigore, ou se revigore. O compromisso do escritor é com o lúdico, com o in-útil essencial da vida. Brincantes e mágicos, feiticeiros e inventores, os escritores temos que estar atentos para que a linguagem não congele em fórmulas exitosas. Necessário o gosto e o gozo do texto sempre novo, o ar, a nova aragem. Numa sociedade que tende à estagnação da linguagem, o escritor é aquele demônio capaz de revirar o tempo todo, revirar esta mesma linguagem para que ela não pereça nem morra de preguiça ou pelo uso congelado de sua repetência. O olhar do escritor tem que estar sempre e invariavelmente na direção do horizonte... Quem se dedica a buscar, está sempre encontrando.

Fonte:
A Garganta da Serpente. http://www.gargantadaserpente.com/

Escola Sem Livros Agora É Fora da Lei



Do Correio Braziliense de 26/05/2010

Nova legislação determina que todos os colégios brasileiros disponibilizem, até 2020, uma biblioteca aos alunos

Agora é lei: todas as Escolas da rede pública e particular são obrigadas a ter bibliotecas. Sancionada pelo presidente Lula e publicada ontem no Diário Oficial da União, a Lei Federal nº 12.244/ 2010 determina que as instituições de todos os sistemas de ensino tenham um espaço com acervo de livros de, no mínimo, um título por aluno matriculado. Cada sistema deverá adaptar o acervo conforme sua realidade, além de divulgar orientações de guarda, preservação, organização e funcionamento das bibliotecas Escolares. O prazo para instalação dos espaços destinados a livros, material videográfico, documentos para consulta, pesquisa e leitura é de dez anos. No Brasil, pouco mais de um terço (52.355) das 152.251 instituições de ensino fundamental das redes pública e privada dispõem de biblioteca, de acordo com o Censo Escolar 2009. No Distrito Federal, a situação é um pouco melhor. Das 833 Escolas públicas e particulares de ensino fundamental, 481 têm bibliotecas (58%). Dessas, 227 são públicas.

Inaugurada em agosto do ano passado, a Escola Classe 2 da Estrutural já tem uma sala reservada e decorada, mas faltam estantes para organizar o pequeno acervo e atender aos 786 estudantes. Boa parte dos 1,5 mil livros, alguns doados e outros cedidos pela Secretaria de Educação do DF (SEDF), está guardada em caixas.

Enquanto isso, o jeito é trabalhar com livros dentro de sala de aula. “Queria uma biblioteca para eu ler e estudar em silêncio”, diz o pequeno Matheus Feitosa, 8 anos. “Quando a gente precisa de uma matéria para estudar, não tem onde pesquisar”, lamenta Luís Felipe Costa, 8.

Como era de se esperar, a realidade é outra no Colégio Marista de Brasília, ensino fundamental. Para atender à demanda dos cerca de 2,8 mil alunos, o Centro de Referência da Aprendizagem, como é chamada a biblioteca, tem três andares com 37 mil livros para todas as idades, 25 computadores, cabines para estudo individual e para grupos, sala de vídeo, videoteca, mapoteca, além de um bibliotecário e seis assistentes para gerir tudo isso. As colegas Juliana Barros e Marcelle Borges, 13 anos, sempre frequentam o espaço. Juliana destaca a quantidade de recursos para ajudar em trabalhos e deveres de casa. Marcelle gosta do silêncio.

Na avaliação de Marcelo Soares, diretor de políticas de formação, materiais didáticos e tecnologias para Educação básica do Ministério da Educação, a biblioteca é essencial para o desenvolvimento cultural e intelectual de crianças e jovens, além de servir para aprimorar o gosto pela leitura e pesquisa. Ele destaca, no entanto, que várias pesquisas têm demonstrado que só a existência do espaço físico não é suficiente. E admite que há muito o que aprimorar, como ampliação e atualização do acervo, melhoria da infraestrutura, mobiliário e formação de profissionais que atenderão o público. “Mas o primeiro passo é as bibliotecas existirem. Quando isso acontecer, é preciso que tenham condições de fazer com que o aspecto qualitativo também vá se aprimorando.”

Se não houver um programa pedagógico e uma estrutura adequada, não adianta”, alerta o bibliotecário Luiz Antônio Gonçalves da Silva. “As bibliotecas são sempre relegadas a segundo plano, falta pessoal habilitado. É um local onde ficam professores e funcionários com problemas de saúde ou de adaptação. Se isso permanecer, não adianta.”

Fontes:
Colaboração de Delasnieve Daspet

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Emilio Germani (1917 - 2010)

Emilio Germani falece hoje, 2 de junho, aos 92 anos de idade



O industrial aposentado Emílio Germani, de 92 anos, morreu, às 4h da manhã desta quarta-feira (2), na casa onde morava, em Maringá, vítima de câncer.

Germani, um dos pioneiros da cidade, nasceu em Capinzal (SC) no dia 22 de junho de 1917. Ele foi presidente da Associação Comercial e Industrial de Maringá (Acim), ajudou a fundar o Rotary na cidade e também a Germani Alimentos.

Germani era membro da Academia de Letras de Maringá, dono da cadeira número 26, cujo patrono é Machado de Assis. Ele é autor de "Coletânea Rotária"; "Encruzilhadas" (autobiografia), "Fragmentos Históricos do Distrito 4630? e "Retalhos da Vida".

Publicou grande número de artigos em boletins, jornais e revistas, inclusive da Associação Comercial e Industrial de Maringá (ACIM). Foi redator de boletins periódicos de informação rotária e ainda de outras publicações esparsas e de poesias.

Emílio era casado com Elza Germani. Ele deixou 11 filhos, 25 netos e 11 bisnetos.

O velório começa às 9h, na Casa da Amizade Rotary, que fica na Avenida Cerro Azul, 199, na Zona 02. O sepultamento será às 17h30 no Cemitério Municipal.

Rotary

Para José Manoel Martin Hernandes Filho, que será o governador do distrito do Rotary 4630 (que contempla Maringá e outros 47 municípios) a partir de julho, os rotarianos da região perderam "um pai". "Todos nós o chamávamos de guru. Sempre pedíamos conselhos a ele", afirma.

Hernandes conta que Germani foi o fundador do Rotary na cidade, no início da década de 50. Foi também governador do distrito e o quinto presidente do clube em Maringá. O Rotary hoje possui aproximadamente 400 membros.

Letras

A presidente da Academia de Letras de Maringá, Olga Maria Agulhon, também lamenta a morte do pioneiro. "Ele foi um grande exemplo de vida. Foi um privilégio poder conviver com Germani", afirma.

Ela ressalta a importância da obra dele para a literatura da cidade. No dia 05 de maio, Germani lançou a sua última obra, "Folhas Espaças", que reúne poesias e ensaios. "Faremos uma homenagem a ele nesta tarde", fala.

A Prefeitura de Maringá também enviou uma nota lamentando a morte do pioneiro.

Fonte:
O Diario de Maringá

Carlos Drummond de Andrade (A Incapacidade de Ser Verdadeiro)


Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo dois dragões-da-independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas.

A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua, todo cheio de buraquinhos. feito queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo. Desta vez Paulo não só ficou sem sobremesa como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias.

Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da Terra passaram pela chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico. Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça:

- Não há nada a fazer, Dona Coló. Este menino é mesmo um caso de poesia.

Fontes:
http://www.coladaweb.com/
Imagem =
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A. A. de Assis (A Língua da Gente) Parte 14



13. Polissemia (I)

Há uma brincadeira assim: é prêmio ao valor; é tom de cor; dá forte sabor; é um ser falador... O que é o que é ?... Isso mesmo. A resposta é louro – prêmio ao valor (os louros da vitória, láurea, laurel); tom de cor (cabelos louros = amarelos); dá forte sabor (folhas de louro, usadas como tempero); um ser falador (louro, o papagaio).

A isso se chama polissemia (poli = muitos + sema = significado): muitos significados para um mesmo significante. Vejamos, por exemplo, a palavra ponto (do latim punctum), que significava originariamente “furo”. Era costume fazer-se um buraco, um furo (punctum) para marcar algum lugar, disso resultando que ponto, em pouco tempo, virasse sinônimo de marca. Daí por diante, de metáfora em metáfora, o verbete ponto, com seus múltiplos significados, foi ocupando espaço cada vez maior nos dicionários. Confira: ponto a ponto, ponto culminante, ponto de apoio, ponto de bala, ponto de chegada, ponto de cruz, ponto de ebulição, ponto de honra, ponto de interrogação, ponto de ônibus, ponto de saturação, ponto de táxi, ponto de vista, ponto facultativo, ponto final, ponto morto, pontos cardeais, chegar a tal hora em ponto, entregar os pontos, estar a ponto de explodir, fazer ponto no bar, fazer tantos pontos na loteria, levar tantos pontos na cabeça, não dar ponto sem nó, o doce está no ponto, o ponto que caiu na prova, tocar no ponto fraco, vender o ponto...

A polissemia pode dar origem a comunicados ambíguos, por isso exige especial cuidado em textos que exijam máxima clareza e exatidão. Trabalhada, porém, com engenho e arte, permite interessantes jogos de palavras, e tem sido utilizada com frequência, sobretudo, na poesia, na publicidade e no humorismo.

Observe estes versos de Manuel Bandeira: No Nordeste faz calor também, / mas lá tem brisa: / Vamos viver de brisa, Anarina! – A chave do poema está justamente no duplo sentido da palavra brisa, ainda mais se considerarmos o nome da personagem – Anarina.

Veja também estes versos de Geir Campos: Se eu lhes desse agora fragmentos do meu passado, / seria como dar-lhes um presente usado. – Observe a habilidade com que o poeta tirou proveito do jogo semântico passado-presente, explorando a ambiguidade da palavra presente.

A polissemia foi sempre grande aliada dos criadores de textos publicitários, mestres na arte de tirar o melhor proveito da ambiguidade das palavras. Veja estes exemplos, em que marcamos com itálico as palavras-chave:

* Uncle Ben’s é o arroz que pegou porque não gruda.
* Papel – uma indústria de fibra.
* Dumont – o primeiro a cada segundo.
* Delta AirLines – Você se sente lá em cima.
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Fonte:
A. A. de Assis. A Língua da Gente. Maringá: Edição do Autor, 2010