domingo, 4 de dezembro de 2011

Cesário Verde (O Sentimento Dum Ocidental)


Análise realizada por Lino Moreira da Silva, Universidade do Minho, Portugal

Ao fazer a leitura de O sentimento dum ocidental, de Cesário Verde, vemos em destaque as manifestações da consciência nele presentes, seguimos a via de considerar que o texto dispõe de todos os ingredientes poético-narrativos necessários para contar uma história.

Mas trata-se de uma história que, à primeira vista, quase não é história: é a história do poeta que não cabe em casa, nem cabe em si, e sai de casa e de si, deparando-se, fora, com um cenário humano preocupante e desolador, causa principal do mal-estar que o aflige e de que ele vai tomando (e revelando) consciência passo a passo.

Esse cenário humano geral, com que o poeta se depara, potencia o aparecimento de muitos outros cenários. E isso porque a história que ele conta não é sequencial nem linear, mas encerra em si muitas outras histórias, carregadas de vivências pessoais do poeta, embora literariamente transformadas.

As motivações para a escrita do poema

O sentimento dum ocidental insere-se em O Livro de Cesário Verde (1887). Este livro, o único (e póstumo) do autor, foi dedicado a Guerra Junqueiro e teve colaboração de Silva Pinto, cuja participação levantou (continua a levantar) fortes dúvidas sobre o que é verdadeiramente de Cesário e o que será porventura seu.

O sempre renovado "complexo edipiano" cultural, sentido ao longo dos tempos: tal como com Sócrates e Platão, Tycho Brahe e Johannes Kepler, Mozart e Salieri, Kafka e Max Brod, Husserl e Heidegger…, a trabalhar por dentro, e o incêndio que destruiu a casa de Cesário (1919), em Linda-a-Pastora, onde ficara depositado o seu espólio literário, a trabalhar por fora, vieram complicar ainda mais as coisas, tornando o problema talvez irresolúvel para sempre.

O sentimento dum ocidental pretendeu homenagear Camões na passagem do terceiro aniversário do seu falecimento. Tendo sido originalmente publicado no Porto (1880), o texto passou despercebido à crítica, tendo-se o poeta lamentado disso, numa das suas cartas (Carta de 29.08.1880, a Antônio de Macedo Papança, Conde de Monsaraz), onde escreve que "uma poesia minha, recente, publicada numa folha bem impressa, limpa, comemorativa de Camões, não obteve um olhar, um sorriso, um desdém, uma observação! Ninguém escreveu, ninguém falou, nem um noticiário, nem uma conversa comigo; ninguém disse bem, ninguém disse mal." (C. Verde, 1999, pp.210).

Cesário diz que o poema foi escrito com essa intenção de celebrar Camões, a que os republicanos (Cesário era-o, de fato, se não, ao que sabemos, por qualquer adesão política formal, pelo menos por opção ideológica profunda, que revela nos seus textos), nesse tempo, deram um relevo especial.

Se é ele quem diz que foi essa a sua intenção, não temos o direito de duvidar. Mas, sendo-o, foi-o de modo original, desconcertado em relação às posições oficiais do tempo, e talvez tenha vindo daí, a par do desinteresse que suscitava o trabalho literário empenhado e a originalidade de Cesário, outra das razões do "esquecimento" da crítica.

É que o poeta, nessa mesma carta, também acrescenta que "apenas um crítico espanhol chamava às chatezas dos seus patrícios e dos meus colegas – pérolas – e afirmava… que os meus versos "hacen malisima figura en aquellas páginas impregnadas de noble espíritu nacional." (C. Verde, 1999, p.210).

Na verdade, o modo como Cesário Verde celebra o 3º centenário da morte de Camões exprime "uma representação objetivada da… decadência histórica" em que tinham encalhado Portugal e os portugueses. À exaltação formal a que oficialmente se aderiu, Cesário Verde contrapõe a denúncia da triste realidade em que o país se encontrava. O ambiente que se desenvolve no poema, acerca da "triste cidade", é simbolicamente depreciativo (a realidade é triste, Lisboa é triste, o país é triste, os portugueses são tristes…). A referência às "crônicas navais" e às "soberbas naus" é uma evocação da pureza dos Descobrimentos, o que não corresponde à realidade vivida, de um couraçado inglês ancorado junto a Lisboa, com toda a humilhação nacional que isso exprimia. Camões salva "outra vez", a nado, o seu livro, mas agora não luta apenas contra a voracidade das águas. A vida relacionada com o mar está transformada em comércio e em desgraça. A figura de Camões, o "épico de outrora", aparece transmutada em "estátua" fria, entre banais bancos de namoro e pimenteiras. Os militares perderam o orgulho de outrora e servem a mediocridade instituída. As frotas desejadas não são localizadas no presente, mas pertencem… aos avós, os "nômades ardentes", que não se sabe de onde virão, porque são sonhados apenas.

É clara a oposição entre aquilo que Cesário pretende que a realidade seja e o que ele sente que ela é, e não consegue disfarçar, por mais que quisesse celebrar corretamente a efeméride do épico. O tempo em que Portugal não passava de "um obscuro desembarcadouro de cruzadores britânicos", sem vontade nem sonho, com todo o abandono e desordem em que se encontrava tudo, não o deixa indiferente. E a isso também não foi "indiferente" a elite cultural alinhada, do seu tempo, que em parte não o compreendeu, mas que também o ignorou propositadamente. O poder instituído sempre teve disto, em Portugal.

A grande motivação para a escrita do poema foi a necessidade de denúncia sentida pelo autor, perante a realidade da Lisboa do seu tempo, povoada de uma maioria de gente submissa e desgraçada, a contrastar com uma minoria abastada e "feliz", com quem ele se diz "aborrecido" e com "raiva como a um marreco" (Carta a Mariano Pina, de 16.07.1879 – C. Verde, 1988, pp.225-228). Uma Lisboa marcada pelas transformações e contradições do fontismo, ainda hoje visíveis, que ele apresenta "refratada nas percepções e sentimentos" que experimenta, e o despertam, enjoam, inspiram, incomodam…, aos mais diversos níveis: físico, social, moral… humano. Uma Lisboa que representava, desgraçadamente, e para o pior, a realidade amorfa, decadente, aviltada, do país.

Os dualismos

Os dualismos presentes na obra de Cesário Verde, em geral, não têm (não merecem, no nosso entender), a relevância que se lhes tem querido atribuir, em termos didácticos, prestando-se até, com tal sobrevaloração, um mau serviço ao estudo da obra do poeta (um estudo formal, dirigido à memória), pela passividade que isso provoca nos alunos, desviando-os da inovação, do despertar da consciência e do desempenho crítico.

Estudar Cesário, como estudar literatura, deve ser um ato pessoal e criativo, que se não coaduna com emolduramentos definitivos de quaisquer partes de uma obra.

Mas com isto não se pretende negar as dicotomias, que estão realmente presentes na poesia de Cesário Verde. Eis algumas dessas dicotomias, que importa levar os alunos a descobrirem: oposição entre cidade e campo, favorecidos e desfavorecidos, pobres e ricos, altruístas e orgulhosos, produção industrial e atividade comercial e vida do campo, consumismo e miséria, proprietários e operários, trabalhadores e ociosos, quotidiano urbano e rural, crescimento urbano e abandono rural, saúde e doença (tuberculose, epidemias), meios de transporte tradicionais e modernos (linha férrea, transportes colectivos), isolamento e falta de informação e meios de comunicação social (jornal, telégrafo), domínio do conhecimento e poder e vigência da ignorância e subordinação, operariado (indústria naval, construção civil, transportes, minas, pescas, tabaco…) e poder econômico, real histórico representado e real poético produzido, restos do real e visões do real, sinceridade poética e artificialidade, sentimento e objetividade, imaginário e realidade, emoção e racionalidade, vida e morte, amor e morte, revolução e tradição, espírito burguês e espírito inovador.

Mais especificamente, em O sentimento dum ocidental, repartidos pelas quatro partes que constituem o poema, fazem-se notar os seguintes dualismos:

Parte I - A realidade do mundo exterior e da consciência do poeta. A infelicidade dos que ficam e a felicidade dos que vão. Os trabalhadores e os ociosos. Os pobres e os ricos. Os favorecidos e os desgraçados. A realidade e a evasão. Os inocentes e os orgulhosos. A felicidade da inconsciência e a infelicidade da consciência.

Parte II - Os tristes e os afortunados. A inocência e a crueldade. A realidade abominada da cidade e a cidade idealizada. Clericalismo e laicidade. Os seres murados e os seres livres. O tempo vulgar de hoje (recinto público, bancos de namoro, exíguas pimenteiras) e o tempo simbólico e grandioso de Camões (brônzeo, monumental, de proporções guerreiras, levantado num pilar). A paz e a guerra (os soldados). Os palácios e os casebres. Tempo de hoje e Idade Média. As elegantes e os desfavorecidos. A verdade e a falsidade.

Parte III - O exterior (a rua) e o interiores. O dia e a noite (pesa, esmaga). As mulheres de bem e as impuras. As lojas para os que têm posses e a miséria para os desgraçados.

Parte IV - Finitude e eternidade. O presente negativo e o futuro promissor. Hipocrisia e sinceridade.

Uma dicotomia, das mais valorizadas, em O sentimento dum ocidental, é o dualismo cidade-campo. A cidade exprime a mundividência dos bons (os fracos e abandonados) e dos maus (as personagens negativas habitando os seus espaços, o mundo burguês, a que Cesário pertencia, mas que repudiava). O campo representa a vida ligada à natureza (expressão da afetividade), à liberdade, aos valores tradicionais, ao equilíbrio, à memória, a tudo aquilo que se coaduna com os ideais e os sonhos de futuro, de Cesário. O campo representa, sobretudo, a evasão, a compensação do mal-estar provocado pela cidade – que representa a fixidez, a passividade, o palco onde todos os males se representam.

As frustrações de vida do poeta

Cesário concluiu a instrução primária, aos dez anos, recebendo, após isso, formação, na própria loja do pai, para a atividade do comércio. Foi preparado, pela família, para dar continuidade ao negócio de ferragens, na loja que tinha em Lisboa e que geria com determinação.

Igualmente, a família tomou por herança, em 1869, uma quinta, em Linda-a-Pastora. E assim Cesário se tornou comerciante de ferragens e gestor agrícola da propriedade familiar. A sua educação foi toda ela orientada nesse sentido.

Apesar de ter o sustento e a posição social garantidos, Cesário dedica-se intensamente aos negócios, mas considerando as funções que exercia um "peso", sobretudo pelo tempo que lhe tiraram, contrapondo a isso o sonho de ser escritor.

Em cartas a João de Sousa Araújo, ele queixa-se da vacuidade da vida que leva, dos "muitos afazeres" que tem (carta de 20.07.1871 – C. Verde, 1999, p.177), da sua "vida muito estúpida" (carta de 14.11.1871 – C. Verde, 1999, p.178), sem razão de ser (carta de ??.11.1871 – C. Verde, 1999, p.179).

Em cartas ao "irmão" Silva Pinto, denuncia que vive "cheio de trabalho comercial" (carta de 1875 – C. Verde, 1999, p.182) e considera não se conformar por ter de se dedicar ao comércio (carta de 1875 – C. Verde, 1999, p.185). Reconhece que, mesmo "ao serviço da casa" (carta de 1875 – C. Verde, 1999, p.189), anda sempre ocupado com a escrita, a sua e a dos outros.

Diz não se sentir bem "em parte nenhuma", "cheio de ansiedades de coisas" que não pode nem sabe realizar (carta de 1877 – C. Verde, 1999, p.191). Denuncia que está preso à loja, preso ao comércio (carta de 1875 – C. Verde, 1999, p.192), perdido "no meio dos pomares burgueses e produtivos", afastado da literatura mas "amando-a ainda muitíssimo" (carta de 1879 – C. Verde, 1999, p.194). Essa foi uma das suas frustrações.

Aos 18 anos, Cesário matriculou-se no Curso Superior de Letras, a que não deu conclusão. Essa foi outra das suas frustrações. Mesmo assim, a frequência do curso serviu-lhe para estabelecer contatos (sobretudo com Silva Pinto) que lhe viriam a ser essenciais.

Uma outra frustração que marcou Cesário teve a ver com os conflitos mantidos em jornais e com autores consagrados do tempo, tendo sido mal compreendido por quase todos. Isso levou-o a lamentar, numa carta (C. Verde, 1988, pp.219-221), que, "literariamente, parece que Cesário Verde não existe". Foi grande a dificuldade que teve em encontrar espaços onde publicar a sua poesia, e de algumas vezes que o fez foi criticado por escritores como Ramalho Ortigão, Fialho
de Almeida, Teófilo Braga, Gomes Leal, Eduardo Coelho, Guimarães Fonseca… e em meios de comunicação social como o Diário Ilustrado, passando, após isso, a publicar em jornais e revistas de circulação mais restrita.

As contrariedades por que Cesário se viu envolvido fizeram dele um isolado e um inconformista. Isso notou-se a nível das ideias (o projeto de vida que desenvolveu), mas também no seu modo de escrita, na sua criatividade e expressão estética.

Doença e morte

A doença e a morte afetaram, continuamente, a vida e a obra de Cesário Verde. Na sua vida pessoal, marcou-o a morte da irmã, em 1872, com 19 anos. A referência que Cesário faz a "uma paixão defunta", em O sentimento dum ocidental, aplica-se à sua pessoa. O mesmo aconteceu com a morte do irmão, Joaquim Tomás, em 1882, com 24 anos.

Cesário faz várias referências à morte, uma vicissitude que sentia iminente, nas cartas que escreve. Na poesia, várias das suas personagens são doentes. Outras estão à espera de morrer. Frustra-o a impotência perante a dor, a doença, as epidemias, o egoísmo, a falta de desenvolvimento da ciência que não permitia responder aos anseios mais elementares do homem.

O próprio Cesário, sobretudo a partir de 1887, começa a queixar-se de falta de saúde, falando de "escrófulas que se alastram, que se multiplicam depressa", não sabendo se era "resultado sifilítico", ou "outra coisa qualquer". Sabemos que era tuberculose, a mesma doença que lhe havia roubado os irmãos e que, de cura projetada no futuro, por que ele ansiava, não tinha ainda cura no seu tempo, acabando por vitimá-lo também.

A literatura a serviço de um projeto ideológico-social

O sentimento dum ocidental encerra o projeto ideológico-social assumido por Cesário, que não surge completamente formado no poema, mas se vai formando, ao seu decorrer, através de um processo de construção.

O ponto de partida é a realidade focalizada por um poeta/narrador de ambulante, que destaca a realidade do povo, encarado globalmente ou através de manifestações personalizadas, emoldurado na cidade onde existe e a que dá existência. De umas primeiras manifestações imprecisas acerca da realidade, são a pouco e pouco postos em destaque, e de modo cada vez mais visível, as desigualdades, as injustiças e as misérias que afetam as pessoas, as contradições que as marcam, as vicissitudes do sistema que as diminui. Todas as outras manifestações, nomeadamente da realidade burguesa, se destinam a fazer sobressair o seu modo de consciência.

Para formar consciência acerca dessa realidade, o poeta desenvolve um esforço de seleção (pensar é selecionar) e de síntese (a consciência é escolha), através das cogitações contínuas que vai fazendo. Desse modo, e porque a personalidade resulta da síntese dos fenômenos psíquicos selecionados pela consciência, numa sequência de fenômenos a serem continuamente ligados a outros fenômenos anteriores, a personalidade do poeta vai-se enriquecendo, revelando-se cada vez mais nítida a representação que ele faz do mundo.

Mas a formação da sua nova consciência não surge por acaso e a seleção e a síntese verificadas não se operam de modo inocente. Houve fatores na vida do poeta que as marcaram – as vivências do que o rodeia, feitas de misérias e desgraças materiais e espirituais, a formação recebida no ambiente familiar, a conturbação ideológica do seu tempo. Numa lógica de determinismo naturalista, a nada disto o poeta ficou indiferente e tudo isto contribuiu para o desenvolvimento da preocupação social que ele mostra.

No ponto de chegada, a parte final do poema (embora já com algumas marcas anteriores), o poeta/narrador mostra-se possuído, se não de uma nova consciência, pelo menos de uma consciência mais organizada, através da qual toma posição crítica perante a realidade.

Dessa posição, a que adere, faz parte um profundo compromisso social, mostrando-se solidário com os desfavorecidos, os frágeis e os desgraçados, assumindo a sua defesa, valorizando as situações de força popular e destacando as manifestações da dor humana que encontra omnipresentes no ambiente da cidade.

Deste modo, Cesário apresenta uma clara posição política. Fazendo assentar o seu texto na ideologia que perfilha (a que não são estranhos os ideais republicanos e socialistas fortemente divulgados no seu tempo), ele mostra-se um escritor comprometido, para quem a atividade poética é entendida como meio de realizar um projeto de vida. Cesário focaliza a ideologia e a mundividência burguesas para as denunciar, mostrando-se "ressentido" com elas e com todas as suas manifestações e consequências.

Um uso especial da linguagem

Apesar de a linguagem de Cesário Verde ser destituída de marcas eruditas, que escasseiam na sua obra, cuja cultura é sobretudo tributária de informação jornalística ou de tertúlias, ele não deixou de merecer o apodo de "engenheiro da poesia", pelo modo meticuloso e geométrico como se exprime.

O estilo digressivo e impressionista de Cesário merece uma referência à parte. Ele está relacionado com o modo como ele exprime a mobilidade da consciência, assente no número diverso das realidades existentes, cada uma com o seu estilo específico (os sub-universos, para James: o mundo dos sentidos ou das coisas físicas, tal como são experimentadas pelo senso comum, o mundo da ciência, o mundo das relações ideais, o mundo dos ídolos da tribo, os mundos sobrenaturais como o céu e o inferno cristãos, os mundos da opinião individual, os mundos da alegre loucura).

Perante a multiplicidade dos fenômenos com que depara e o modo polifônico a que recorre para os apreender, e com o que vai enriquecendo a sua personalidade (a consciência da realidade, revelada no final de O sentimento dum ocidental, apresenta uma segurança que não existe no seu início, e que foi sendo construída através das vivências essenciais que se foram acrescentando), Cesário privilegia os estados substantivos, os pontos fortes da consciência, em detrimento dos estados transitivos (em que o pensamento pouco se detém). O estilo digressivo que usa deve-se a ele valorizar, sobretudo, os primeiros em relação aos segundos.

Importante destacar o vocabulário inovador, usado em sentido ativo, a expressividade da adjetivação e dos verbos, as imagens inusitadas (ligadas às suas vivências, sonhos, convições sobre a vida, determinações de ação, energias obscuras), o aproveitamento do prosaico para produzir efeitos poéticos, a atenção ao pormenor, a liberdade imagística reveladora de uma nova consciência estética, o recurso a símbolos capazes de traduzir todo um amplo, e ao mesmo tempo concreto, universo lírico, os elementos retórico-estilísticos (comparações e metáforas, sinédoques e metonímias, sinestesias…), a variedade e rigor de estrofes e métrica, o contínuo jogo musical, envolvendo formas e cores, alternando estrofes ou versos de silêncio e quietude com outros de movimento e estridência.

É na parte final do poema que Cesário Verde coloca os principais ingredientes da sua mensagem. Ele considera ser possível construir uma realidade diferente com os meios que define e, a partir daí, contribuir para a transformação do mundo – a ser procurada por ele e por quantos, com ele, quiserem encetar o esforço da construção da nova casa humana: de uma sociedade organizada e desenvolvida, sem exploradores nem explorados, sem opressores nem oprimidos, sem injustiças nem excluídos. A sociedade da utopia, da possibilidade, da vontade, do empenhamento, mas também da dúvida e do muito limitado otimismo.
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Em O sentimento dum ocidental, há tempo, espaço e personagens, como há narrador e ação. O tempo, o espaço e as personagens estão claramente presentes. O narrador é o próprio sujeito poético, como acontece em muitos outros textos de Cesário Verde, que se desdobra nos relatos que insinua e na interioridade que explora.

Alguma dificuldade surge com a narração/ação, sendo necessário o contributo empenhado do leitor para a constituir e organizar e dar sentido às suas partes.

Na obra está o retrato de Cesário Verde, e é como que uma súmula da substância poética de sua obra, somente transfigurada transitoriamente no bucolismo da última fase, o que lhe arrefeceu o tédio, amenizou-lhe o estro, sem, todavia, anular as qualidades que fizeram dele um renovador da poesia portuguesa do século XIX. Na verdade, situa-se no Realismo e antecipa mesmo de muitos anos e em muitos aspectos Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, pela temática da inspiração e dos processos poéticos. É, por isso, o precursor do Modernismo em Portugal.

Na leitura que se faz de O sentimento dum ocidental, destacando as manifestações da consciência nele presentes, segue-se a via de considerar que o texto dispõe de todos os ingredientes poético-narrativos necessários para contar uma história. Mas trata-se de uma história que, à primeira vista, quase não é história: é a história do poeta que não cabe em casa, nem cabe em si, e sai de casa e de si, deparando, fora, com um cenário humano preocupante e desolador, causa principal do mal estar que o aflige e de que ele vai tomando (e revelando) consciência passo a passo.

Esse cenário humano geral, com que o poeta depara, potencia o aparecimento de muitos outros cenários. E isso porque a história que ele conta não é sequencial nem linear, mas encerra em si muitas outras histórias, carregadas de vivências pessoais do poeta, embora literariamente transformadas.

Em O sentimento dum ocidental, há tempo, espaço e personagens, como há narrador e ação. O tempo, o espaço e as personagens estão claramente presentes. O narrador é o próprio sujeito poético, como acontece em muitos outros textos de Cesário Verde, que se desdobra nos relatos que insinua e na interioridade
que explora.

Alguma dificuldade surge com a narração/ação, sendo necessário o contributo empenhado do leitor para a constituir e organizar e dar sentido às suas partes.

No texto de Cesário, deparamos com quatro cenários – Ave-Marias, Noite Fechada, Ao Gás, e Horas Mortas, a que correspondem, respectivamente, o Cair da Tarde, o Acender das Luzes, a Fixação da Noite, a Noite Segura.

Em síntese, podemos constatar que:

A) O tempo

Relativamente ao tempo, revela-se:

- Consciência da sua passagem, entre as Ave-Marias (ao cair da tarde), a Noite Fechada (o acender das luzes), o Ao Gás (fixação da noite) e as Horas Mortas (noite segura).

- Consciência de um tempo real, progressivamente negativo: o anoitecer, as sombras, a preparação da noite, o cair das badaladas, o fim da tarde, a hora de jantar, a hora de acender as luzes, a temperatura baixa, a noite que esmaga, a palidez romântica e lunar, a ocasião de fechar as lojas, a noite de céu limpo em que os astros libertam lágrimas de luz, a cidade às escuras, o tempo de silêncio.

- Consciência de que ao tempo real, negativo, se contrapõe um tempo de evasão (o tempo dos Descobrimentos) e um tempo imaginado de treva (folhas das navalhas e gritos de socorro estrangulados, na escuridão da noite real em que o poeta se move).

- Consciência de que o tempo real negativo diz respeito, simbolicamente, a um tempo, primeiro de decadência nacional, e depois de decadência civilizacional, correspondendo a evasão a uma necessidade de compensação da situação (ao mesmo tempo se aponta uma chave para a solução dos problemas), mas não se deixando antever grande margem para otimismo.

- Consciência da progressão e do adensar da noite: à medida que o tempo passa e o bulício diminui, aumenta o sentimento de dor, angústia e frustração.

- Consciência de que o pessimismo instalado não dá mostras de recuar.

B) O espaço

Predomina o ambiente físico real, revelando-se a consciência do poeta/narrador acerca de: ruas, Tejo e maresia, céu baixo e de neblina, gás extravasado, edifícios com chaminés, cor monótona e londrina, carros de aluguer, casas que parecem gaiolas, boqueirões, becos, cais a que se atracam botes, escaleres de um couraçado inglês, hotéis da moda, um trem de praça, as varandas das casas, as lojas, os arsenais e as oficinas, o rio que reluz viscoso, as cadeias, o aljube, as prisões, a velha Sé, as Cruzes, os andares iluminados, as tascas, os cafés, as tendas, os estancos iluminados, a lua, duas igrejas, um largo, as construções retas, as íngremes subidas, o toque dos sinos, o Largo com a estátua de Camões, o espaço da rua, o Quartel Militar, um palácio diante de um casebre, os Quartéis de Cavalaria, a cidade a esvaziar-se, os lampiões, as montras das ourivesarias, os magazines, a brasserie, os passeios de lajedo, os hospitais, as embocaduras, as lojas, sons de pianos, candelabros que se apagam, frontarias dos prédios, esquinas, ruas estreitas, prédios com trapeiras, astros que libertam lágrimas de luz, portões e arruamentos particulares, lajes onde se ouve cair um parafuso, taipais, uma caleche de luzes acesas, fachadas das casas, ruas como nebulosos corredores, tabernas, escadas dos prédios, o andar superior dos prédios, as sacadas de pedra.

Segue-se o ambiente humano real, com: bulício de gente, gente que parte de comboio, pessoas em viveiros (em casa), dois dentistas que arengam, os guardas das prisões, velhinhas e crianças recolhidos no aljube, os ourives, os emigrados às mesas da brasserie, os pobres mal vestidos e os doentes, um cutileiro, a fábrica de cutelaria a funcionar, a padaria a fabricar pão, as casas de confecções e moda, a loja de luxo com balcões de mogno, as lojas da moda, as plantas ornamentais nos mostradores das lojas, um velho professor de latim que pede esmola, os trabalhadores da noite, o som de uma flauta triste, a vida interior das tabernas, os guardas que revistam os prédios, as imorais em roupão que tossem e fumam.

Há ainda particularidades acerca do espaço físico de evasão (positiva: Descobrimentos, Idade Média; negativa: espaço da cidade, com práticas repressivas da Igreja da Inquisição), espaço físico imaginado (a catedral de comprimento imenso, círios, capelas com santos, andores, ramos, velas; o chão da cidade minado pelos canos); espaço humano imaginado (os fiéis na catedral de comprimento imenso).

A consciência revelada, tanto sobre o ambiente físico real, como sobre o ambiente humano real, não tem toda ela o mesmo valor. A sensibilidade do poeta/narrador vai estabelecendo diferenciações, revelando-se positiva, negativa ou neutra, consoante as circunstâncias. A sensibilidade neutra é simplesmente caracterizadora, a sensibilidade positiva vai para os desfavorecidos pela sorte, e a sensibilidade negativa para os favorecidos por ela.

O ambiente humano real vai ter continuidade nas personagens apresentadas.

C) As personagens

As personagens (os "outros") de O sentimento dum ocidental vão desde a tipificação (gente nas ruas, a turba, o povo em geral) até à individualização (cada uma delas caracterizada com traços rápidos e fortes.

Deparamos com cinco grupos de personagens:

- Personagens do Povo Positivas (gente desprotegida, frágil, vítima da má sorte, com os seus pontos fracos e as suas misérias, que representa a dor humana): os mestres carpinteiros, os calafates, um trôpego arlequim, os querubins do lar, o operariado, as operárias, as varinas, os filhos das varinas, as velhinhas e as crianças do aljube, os presos nas prisões, as pessoas que chegam a casa, os frequentadores das tascas, dos cafés, das tendas, dos estancos, as pessoas que vivem nos "viveiros" (inferidas), os padeiros no fabrico do pão (inferidas), um tocador de flauta (inferido), o Cólera e a Febre, as pessoas de corpos enfezados, os emigrados, as impuras, os pobres, as costureiras e as floristas, as imorais, um forjador, o ratoneiro imberbe, o cauteleiro solitário, o professor de latim, os tristes bebedores, os dúbios caminhantes, os cães.

- Personagens Burguesas Negativas (gente favorecida pela sorte, ou andando na sua roda e vivendo à sua custa): dois dentistas, os comerciantes, os frequentadores dos hotéis da moda, a mulher de "dom", as modistas das casas de confecções e moda (inferidas), os ourives (inferidas), as elegantes, as burguesinhas do catolicismo, a pessoa lúbrica, a velha de bandos, os mecklemburgueses, os clientes e os caixeiros.

- Personagens de Regulação Social (representantes da manutenção da situação vigente, não sendo apresentados em si mesmos, na sua realidade humana, mas na função que desempenham, do lado dos favorecidos da sorte e da vida): os soldados (sombrios e espectrais, recolhem ao Quartel), as patrulhas a cavalo e a pé (saem dos Quartéis, espalham-se por toda a capital), os guardas (revistam as escadas, caminham de lanterna, carregados de chaves), os padres e a sua influência ancestral na sociedade.

- Personagens Conscientes e Sensíveis (conhecedores da realidade vigente, o poeta e quantos se solidarizam com ele, que vivem a realidade do vale escuro das muralhas, sem árvores, entre folhas de navalhas e gritos de socorro estrangulados, na treva, mas nada podem fazer): os emparedados.

- Personagens de Compensação (servem de escape à tensão desencadeada pelo grau crescente de consciência que afeta o poeta: personagens de evasão (mouros, heróis ressuscitados, Camões a salvar Os Lusíadas a nado), personagens visionadas (as vítimas da repressão da Igreja, os frequentadores da catedral visionada, as freiras de antigamente, as esposas, filhos, mães e irmãs estremecidas, a raça ruiva do porvir, os avós com as suas frotas, os nômades ardentes), personagens imaginadas (os astros personificados, solidários com os homens conscientes, chorando lágrimas de luz), personagem da memória (uma paixão defunta).

Numa antevisão de como virão a proceder, nos ainda distantes anos 30 e 40 do século seguinte, o neo-realismo, e, um pouco mais tarde, o existencialismo, o poeta/narrador apresenta as personagens da sua história de um modo perfeitamente organizado, em termos de consciência.

Ele configura a dialética social entre desfavorecidos e favorecidos, cada um sofrendo de inconsciência à sua maneira, com os poderes político e religioso a garantirem a continuidade da situação vigente, e os emparedados nada podendo fazer contra isso, a não ser contrapor consciência à inconsciência e sonhar vitórias futuras, de certa maneira preparando o terreno para que, quando o tempo chegar, a transformação desejada se torne possível. Essa consciência, por parte do poeta/narrador, reflecte-se através de estados de alma diversificados.

D) Os estados de alma do poeta

Perante a realidade, a consciência do poeta manifesta-se através dos mais variados estados de alma, reflexo interior das variações exteriores vivenciadas, refletidas no tempo, espaço e personagens.

O poeta deseja-se alguém que não morresse nunca, qual Sísifo que, de existência eterna, estivesse condenado a renovar continuamente o trabalho-sonho que tem em mãos, nunca suscetível de ser concluído, dada a finalidade de renovação do mundo, a que se propõe, e o jogo constante entre o pessimismo e a esperança que caracterizam as realizações humanas.

São sentimentos direta ou indiretamente verificados:
Soturnidade e melancolia.
Desejo absurdo de sofrer.
Enjoo pelo gás extravasado.
Tristeza provocada pela cor monótona e londrina.
Felicidade pelos que partem e infelicidade pelos que ficam.
Desejo de viajar entre capitais europeias.
Sentimento de que a felicidade só está onde não se está.
Ensimesmamento, na deambulação a esmo pelos espaços da cidade.
Ânsia de evasão.
Inspiração e incômodo pelo cair da tarde.
Simpatia pelos desfavorecidos e hostilidade pelos bafejados da sorte.
Comiseração com a vida das varinas, cujo naufrágio futuro dos filhos se antevê.
Mortificação e loucura pelo tocar às grades, nas cadeias.
Pena pelas velhinhas e crianças que se recolhem ao aljube.
Morbidez (a pontos de desconfiar de um aneurisma).
Tristeza, pela vida na velha Sé, junto às Cruzes.
Antipatia por igrejas e clero, devido às suas práticas opressoras, passadas e presentes.
Consideração pela História (evasão da realidade que dói, embora nem sempre para motivos felizes).
Sentimento de estar "murado".
Desejo de dar resposta a problemas do presente com soluções do passado.
Sensibilidade pelo sofrimento das pessoas que sofrem de cólera e febre.
Sentimento de pouca simpatia pelos soldados.
Sensibilidade pelas contradições e afrontas sociais.
Nostalgia pela Idade Média (evasão).
Comiseração pela tristeza da cidade.
Repulsa perante favorecidos e sobressalto perante aqueles que a vida não favoreceu.
Reprovação das modas estrangeiras.
Sensibilidade para com os quadros revoltados da cidade.
Desconforto perante o ambiente de riso e jogo da brasserie.
Peso e esmagamento provocado pela noite.
Solidariedade com o sofrimento no interior dos hospitais, com os pobres mal trajados e os doentes.
Comiseração pela sorte (submissão) das burguesinhas do catolicismo.
Apreciação das coisas autênticas e salutares da vida.
Aspereza perante os que, favorecidos pela sorte, se deixam atrair pelo luxo.
Compaixão pelos mais fracos e desfavorecidos.
Desejo de evasão perante a realidade crua.
Crítica à propriedade privada opulenta.
Susto e espanto (por exemplo, pelos "olhos sangrentos", as luzes de uma caleche).
Consciência dos ínfimos pormenores da cidade.
Anseio e saudade pelo ambiente pastoril.
Sonho com um mundo perfeito.
Idealização de uma sociedade purificada (família, filhos, esposas e irmãs).
Náuseas, provocadas pelo interior das tabernas.
Compaixão pelos tristes bebedores, de regresso a casa.
Irmanação com os revoltados e os tristes.
Solidariedade com a dor humana e desejo de a superar.

Como se repara, não estamos perante apenas "uma" história, no sentido de uma unidade narrativa, de que poderíamos estar à espera, mas de muitas histórias dentro (a propósito) dessa história.

O sujeito poético / narrador conta a história de cada personagem recriada (que traz à "vida"), conta a sua própria história, histórias da história (do passado, do presente e… do futuro), de entes reais e recriados, da realidade e dos sonhos, da vida (da má vida), histórias de Lisboa e de espaços específicos de Lisboa, histórias do país e do mundo… E nenhuma destas histórias é linear, antes todas elas são complexas, sugeridas pelo poeta, no seu estilo digressivo/impressionista, não dispensando a cumplicidade do leitor para que se tornem consistentes. Todos estes elementos poético-narrativos, com reflexo nas manifestações de consciência, presentes em O Sentimento dum Ocidental, oferecem-se, com a maior vantagem, para serem "descobertos" pelos alunos.

Afigura-se, por essa via, perante eles, uma oportunidade única de desenvolverem espírito crítico e competência de leitura, aproveitando, ao mesmo tempo, linhas de pensamento do melhor e do mais criativo que a literatura portuguesa produziu até hoje, respondendo às finalidades formativas em que a escola não poderá deixar de se mostrar empenhada.

Fonte:
Lino Moreira da Silva, Universidade do Minho, Portugal. Disponível em http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/o_sentimento_dum_ocidental

Raul Pompéia (Os Gatos e Os Câes)


Desde o histórico amigo do bíblico Tobias, que acompanhou-lhe o filho à miraculosa torrente d'onde devia sair o peixe destinado a curar a cegueira do patriarca, até os celebrados cães de S. Bernardo, passando pelo cão que lambia as chagas de Jó e pelo desrabado animal de Alcebiades; desde o heróico e selvagem companheiro dos esquimós, que arrosta as temperaturas, levando em turbilhão o trenó, por meio das regiões brancas e frias do ártico, até o mole e macio King-charles, saboroso companheiro dos longos ócios tropicais das cocottes, tudo tem sido poemas em louvor do cão.

Decantam-lhe a bravura; decantam-lhe a fidelidade; incensam-lhe a beleza; elogiam-lhe a obediência; apologiam-lhe a dedicação. Companhias de seguro gravam-lhe a efígie em douradas placas, para garantia contra o fogo; honrados burgueses erigem-lhe estátuas de barro vidrado sobre os capitéis de pedra e caldos portões da chácara: tudo é um aplauso unânime e universal.

Entretanto, o gato, o bravo vigilante das horas mortas, sentinela perdida da meia-noite, passeando à luz misteriosa do luar com os olhos faiscantes como baionetas, para tranqüilidade dos armários e para desgraça dos roedores caseiros; entretanto, o digno gato, o honrado gato, deixam-no de lado, no esquecimento silencioso das suas passeatas noturnas; caluniam-no, excomungam-no e o desamparam, quando muito, aos esqueléticos carinhos de alguma velha bruxa semifantástica, amiga dos morcegos, dos mochos e das caveiras de burro fatídicas.

Pobre gato!

Nos seus minutos de cisma, quando, pousado no peitoril claro de uma janela da casa que habita, lambendo as patinhas e as munhecas asseadas, o gato reflete nos destinos da vida, talvez esteja a pensar consigo, que muito pouco lhe custaria apanhar a glória do cão. Bastava-lhe o sacrifício da própria dignidade; bastava-lhe alienar a sua autonomia felina e pôr de lado os seus orgulhos de sangue.

A glória do cão vem somente disto; o cão escravizou-se.

O gato nunca teve um dono.

Nestor de Roqueplan escreveu que o gato não é animal doméstico do homem: o homem é que é o animal doméstico do gato.

Tinha razão o perspicaz e fino Roqueplan.

Quando se diz: - este gato é meu, diz-se: - eu sou deste gato.

E o motivo é límpido: quando o dono não agrada ao gato, o digno animalzinho deixa-o como quem abandona um traste velho.

Toda a fanfarronice trovejante do cão pode-se-lhe domar a chicote. Ensaie-se a violência com o gato...

O cão dedica-se, sacrifica-se por conta do seu dono, nunca por conta própria. O cão é fiel, bravo, dedicado, sublime; mas infamemente. Tem a dedicação, a bravura, a fidelidade, a sublimidade do infame, do escravo. No fundo das suas ações acha-se a vontade do dono; nas suas decantadas bravuras, o cão não existe.

O gato, ao contrário, é autonomista. É valente, heróico, sagaz, cheio de inteligência, mais talvez do que o cão, e tudo nobremente, convictamente; certo de que, antes de tudo, ele é Feliz.

Sente nas veias o sangue quente do tigre; lembra-se que os da sua raça terrível vagam pelas florestas, como reis, em guerra de morte com o homem, que lhes invade o império; recorda-se talvez do bafejo quente das soalheiras de Bengala, onde rejubilam-se os seus congêneres, olhando de frente, através da ramaria, o perfil religioso e enorme dos pagodes, arraial dos homens; esperando bravamente o combate, na mata virgem no arraial das feras.

O gato sabe que é um pequeno tigre; que podia embriagar-se de floresta como os seus irmãos de raça, e que, menos inflexível que os outros, quis entrar em aliança com o homem, por iguais interesses das partes contratantes. Possuída desta convicção, é que a digna criatura desenvolve os seus talentos, na casa dos homens. Incapaz de uma baixeza, vai vivendo à medida dos seus recursos. Se alguém o acaricia, ele aproxima-se, contorcendo-se mansamente, em afetuosas ondeações de espinha, e entrega-se confiado ao amigo...

Despreza solenemente o cão, ama lascivamente o sol e as claridões. Quando roça-lhe o pêlo de cetim um feixe de luz solar, enrodilha-se todo, dorme e ressona como um prior satisfeito. Não treme, à beira dos precipícios, como os cães.

A vertigem das cimalhas é o seu prazer. Não se deixa levar às feiras como qualquer botocudo idiota, ou qualquer cãozinho pretensioso e fútil. Tem habilidade, mas para o seu uso.

Não sabe cair grotescamente como um burguês gordo que tropeça, ou como um rei velho que escorrega. A sua queda é elegante como a de César. Cai sempre firme, sobre as quatro patas, venha de que altura for. Não conhece o estigma da coleira, nem a perseguição aviltante do fiscal.

Tudo diverso do cão.

A cadela é a charra odaliscazinha das sarjetas. O cão é o bandalho de esquina que vai, de pontapé em pontapé, acabar com lepra num cano de esgoto.

Entretanto, os amores do gato são trágicos como as punhaladas dos Bórgias. Passam-se à noite, como os grandes meteoros do céu e as cousas fantásticas da terra.

Podem ter por confidentes a estrela d'alva e a cotovia matinal, como os amores de Romeu. Os gatos batem-se pela sua dama como os heróis da cavalaria e como os tigres da mata. São bravos e apaixonados até o sangue.

Os sete fôlegos que lhe atribuem, ele os despende sem avareza, quando em proveito da própria dignidade ou da própria paixão.

A morte do gato é quase sempre um mistério. Não morre; desaparece como o Rômulo sagrado da lenda. Não dá-se ao luxo canino de apodrecer nas praias.

Assim é que bem se consola o gato, nos tácitos queixumes das suas cismas...

O cão tem incensadores que o exploram e que o infamam.

Tem golilha, como um forçado; como um escravocrata, não tem vergonha.

Esta falta de brio e essa coleira levam-no a toda a parte, encadeado ao homem. Penetra no convento com a mesma cara com que barafusta pelo teatro; segue a trote miúdo o préstito triunfal das ovações, e vai depois acompanhar a mula do carvoeiro; visita os templos da virtude e os gineceus da vergonha, sorrindo sempre, baixamente, com a cauda e com a língua.

Adula sem fazer questão de lugar.

Ambiciona só isto: - um osso. Mas não desdenha os bons bocados dos banquetes, nem o sebo nauseabundo dos trilhos da rua...

Glória por tal preço... Antes a secular obscuridade nobre do gato. Faltam-lhe tradições, porque falta-lhe a escravidão e a infâmia.

Em última análise, o cão é um miserável.

Fora da linha dos animais, por uma degradante domesticidade, não conseguiu entrar pela fileira dos homens. O gato conserva orgulhoso o seu tipo definido de fera dócil. Não balança nas oscilações da natureza humana, porque tem as suas próprias, da natureza felina.

O cão, seja lícito dizer-se, é o homem através do temperamento canino.

O gato é simplesmente, nobremente, - o gato.

Por isso é que nas alegorias, entra o gato como pilhéria e o cão como insulto.

Enquanto um atravessa, risonho, à disparada, por uma página de caricatura, vai o outro de envolta com uma panela de lama para a cara de um tratante.

Há uma cousa entre os homens que chama-se cinismo: é a arte de ser cão. A arte de ser gato ainda não foi inventada; nem há de ser.

Em suma derradeira indenização do sempre olvidado gato - de todas as criaturas que podem ser atreladas a uma verrina crepitante e vingadora, burro, jumento, touro, tigre, hiena... nenhuma, nem uma só, leva mais longe do que o glorioso inimigo do gato.

- Cão!

Este insulto tem mais alguma cousa do que três letras; tem três pontas como o chicote siberiano.

Esta palavrinha curta, áspera, rápida, se ainda não é o faz o mesmo escarro, já passou de articulação.

Digam-na para ver se a garganta não quando cospe-a e quando cospe um escarro:

- Cão!
.................................................................

Damos publicidade a estas estranhas considerações que o acaso entregou-nos, para não desesperarem da justiça os raros amigos do simpático e sempre olvidado povoador dos telhados.

Fonte:
Garganta da Serpente

Emílio Moura (Poemas Escolhidos)


INTERROGAÇÃO

Sozinho, sozinho, perdido na bruma.
Há vozes aflitas que sobem, que sobem.
Mas, sob a rajada ainda há barcos com velas
e há faróis que ninguém sabe de que terras são.

- Senhor, são os remos ou são as ondas o que dirige o meu barco?
Eu tenho as mãos cansadas
e o barco voa dentro da noite.

LIBERTAÇÃO

Sou um poeta quase místico:
A vida é bela quando é um êxtase.

Ah! não ter um pensamento, um só pensamento no cérebro,
não vigiar a vida, a vida inquieta, a vida múltipla da sensibilidade,
mas vivê-la, de olhos cerrados, num silêncio cheio de ritmos;
não ouvir as palavras frias que mudam o destino,
ou que o fazem semelhante a um autômato;
e saber a toda hora,
saber sempre
que a vida é bela quando é um êxtase.

MISTICISMO

O céu lindo da vila pobre!
E a igreja pequenina, que se espicha toda na torre,
com vontade de ver o céu.

E o céu tão alto, e o céu tão alto!

TOADA DOS QUE NÃO PODEM AMAR

Os que não podem amar
estão cantando.
A luz é tão pouca, o ar é tão raro
que ninguém sabe como ainda vivem.
Os que não podem amar
estão cantando,
estão cantando
e morrendo.

Ninguém ouve o canto que soluça
por detrás das grades.

AQUI TERMINA O CAMINHO

Os sinos cantando, as sombras todas se diluindo
dentro da tarde. Dentro da tarde, o teu grave pensamento de exílio.

Por que ainda esperas? Aqui termina o caminho,
aqui morre a voz, e não há mais eco nem nada.

Por que não esquecer, agora, as imagens que tanto nos perturbaram
e que inutilmente nos conduziram
para nos deixar, de súbito, na primeira esquina?
Essa voz que vem, não sei de onde,
esses olhos que olham, não sei o quê,
esses braços que se estendem, não sei para onde...

Debalde esperarás que o oco de teus passos acorde os espaços que já não têm voz.
As almas já desertaram daqui.
E nenhum milagre te espera,
nenhum.

TRÊS CAMINHOS

Percorri tantos caminhos,
tantos caminhos andei.
O primeiro era de nácar,
de rosa pura o segundo.
O terceiro era de nuvem,
no terceiro te encontrei.
O primeiro já trazia
teu nome brilhando no ar.
Não era nome de terra:
cantava coisas do mar.
Logo senti que o segundo
já era estrada de encantar.
Mas o terceiro, o terceiro
quantas voltas não foi dar!
Deixou meu corpo na terra,
meu coração no alto-mar.
Virou vento, virou bruma,
perdeu-se, rápido, no ar.

COMO A NOITE DESCESSE...


Como a noite descesse e eu me sentisse só,
só e desesperado diante dos horizontes que se fechavam
gritei alto, bem alto: ó doce e incorruptível Aurora! e vi logo
só as estrelas é que me entenderiam.

Era preciso esperar que o próprio passado desaparecesse,
ou então voltar à infância.
Onde, entretanto, quem me dissesse
ao coração trêmulo:
- É por aqui!

Onde, entretanto, quem me dissesse
ao espírito cego:
- Renasceste: liberta-te!

Se eu estava só, só e desesperado,
por que gritar tão alto?
Por que não dizer baixinho, como quem reza:
- Ó doce e incorruptível Aurora...

se só as estrelas é que me entenderiam?

TOADA

Minha infância está presente.
É como se fora alguém.
Tudo o que dói nesta noite,
eu sei, é dela que vem.

CANÇÃO

Não quero ver esta rosa,
nem saber por que floriu.
A cor mais bela do Arco-Íris
foi a cor que ninguém viu.

Não quero ouvir este canto,
nem saber de seu sentido.
Quem é que me conta
o que foi perdido?

LAMENTO EM VOZ BAIXA


A vida que não tive
morre em mim até hoje.
Chega, límpida, pura,
sorri, pálida, foge.

A vida que não tive
salta, viva, de tudo.
Se me sorri nos olhos,
com que ilusão me iludo.

A vida que não tive
é o que há de mim em mim,
chama, orvalho, segredo
do nunca de onde vim.

CALMARIA

Água estagnada,
nuvem parada,
folha perdida,
pássaro de asa
partida.

- Ó vento que morreis,
de leve, de leve,
despertai!

Luz que se apaga,
sombra diluída,
névoa que vaga,
voz que se cala,
ferida.

- Ó vento que adormeceis,
de manso, de manso,
gritai, gritai!

Tímida esperança,
pálido desejo:
a tarde tão mansa,
tão lânguida a noite
que vem.

Ó alma náufraga,
como tudo o mais:
desesperai!

CANÇÃO


Viver não dói. O que dói
é a vida que se não vive.
Tanto mais bela sonhada,
quanto mais triste perdida.

Viver não dói. O que dói
é o tempo, essa força onírica
em que se criam os mitos
que o próprio tempo devora.

Viver não dói. O que dói
é essa estranha lucidez,
misto de fome e de sede
com que tudo devoramos.

Viver não dói. O que dói,
ferindo fundo, ferindo,
é a distância infinita
entre a vida que se pensa
e o pensamento vivido.

Que tudo o mais é perdido.

POEMA

De repente volta
o que nem sei se foi
sonhado ou vivido.
Que apelo me chega
desta voz que emerge
de tão fundas águas?
Alguém esquecido
no fundo dos tempos?
Meu anjo vencido?
Meu duplo secreto?
Que apelo indizível
me chama, me grita
que esqueça, que durma,
ou me divida em tantos
que nenhum seja eu?

Nem eu, nem ninguém.

CONDIÇÃO HUMANA

Como captar da vida
o que rápido, foge
entre dúvidas? Como
reter o que, mal surge,
já se desfaz: é sombra,
algo vago, já neutro,
réstia pálida, eco
de nada, de ninguém?
Um minuto se esboça,
rútilo se sonha,
ardente se anuncia.
Onde? Quando? Quem sabe?
Sempre se sabe tarde,
sem mais onde, nem quando.

À BOCA DA NOITE

Não olhes: é a noite
completa que tomba.

Não olhes: é a estrada
que, súbito, acaba.

Não olhes: é o anjo,
teu anjo que chora.

Não olhes.

SONETO A CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

A hora madura envolve-te e palpita
nela o que ora te oferta, ora recusa:
posse do que és, na solidão recôndita,
graça de amar, ressurreição dos mitos.

Claros enigmas riscam céus distantes.
Falam-te as coisas pela voz que é o próprio
sentimento do mundo e pela meiga
sombra gentil que ressuscita a infância.

Ouço-te andar nas lajes desta rua,
que nem sei se é de Minas ou de alguma
pátria remota que ao teu canto se abre.

E amo-te a voz multiplicada em ecos:
verbo dócil à força íntima e pura
que à máquina do mundo se incorpora.

Fontes:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/goias/emilio_moura.html
http://emiliomoura.br.tripod.com/poemas.htm

Emílio Moura (1902 — 1971)


1902. Emílio Guimarães Moura nasce em Dores do Indaiá, Oeste de Minas, a 14 de agosto. Filho de Eloy de Moura Costa e de Cornélia Guimarães Moura. Faz os cursos primário e secundário nas cidades mineiras de Bom Despacho, Carmo da Mata, Cláudio e Dores do Indaiá.

1920. Transfere-se para Belo Horizonte, passando a integrar o brilhante grupo de jovens intelectuais que logo iriam participar do "movimento modernista". Desse grupo faziam parte, entre outros, Carlos Drummond de Andrade, Milton Campos, Aníbal M. Machado, Abgar Renault, Pedro Nava, Gustavo Capanema, Mário Casassanta, Martins de Almeida, João Alphonsus, Gabriel Passos, Euryalo Canabrava.

1925. Com Drummond e Martins de Almeida, funda "A Revista", primeiro órgão literário do movimento modernista em Minas Gerais.

1928. Conclui o curso de Direito na Faculdade de Direito da UFMG. É nomeado professor de História e de História da Civilização da Escola Normal Oficial de Dores do Indaiá, onde volta a residir.

1931. Casa-se com Guanayra Portugal Moura, transferindo-se, de novo, para Belo Horizonte. Reinicia sua atividade de jornalista, passando a colaborar em vários jornais e revistas de Belo Horizonte, Rio e São Paulo. Publica seu primeiro livro, Ingenuidade.

1936. Publica Canto da hora amarga.

1941. É nomeado diretor da Imprensa Oficial do Estado. Na burocracia, ocupa ainda os seguintes cargos: redator do "Minas Gerais", secretário do Tribunal de Contas e do Departamento Administrativo de Minas Gerais e superintendente do Departamento de Educação da Secretaria da Educação.

1942. Ingressa no magistério superior, ensinando primeiro História das Doutrinas Econômicas e, em seguida, Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia da UFMG.

1945. Publica Cancioneiro. Juntamente com um grupo de professores, funda, em Belo Horizonte, a Faculdade de Ciências Econômicas de Minas Gerais da qual é catedrático e o primeiro diretor.

1949. Lança O espelho e a musa, com o qual obtém o prêmio de poesia do Governo do Estado.

1953. Publica O instante e o eterno, além da segunda edição de Canto da hora amarga, Cancioneiro e O espelho e a musa, reunidos com o título Poesia.

1961. Escreve o poema longo "A casa". Publica também a pequena antologia 50 poemas escolhidos pelo autor.

1970. Recebe o Prêmio de Poesia do Instituto Nacional do Livro com Itinerário Poético, coletânea de todos os seus livros, considerada por ele sua obra definitiva.

1971. Falece a 28 de setembro.

Bibliografia:
Ingenuidade, 1931;
Canto da hora amarga, 1936;
Cancioneiro, 1945;
O espelho e a musa, 1949;
O instante e o eterno, 1953;
Itinerário Poético, 1970, reeditado em 2002 pela editora da UFMG, considerada sua obra poética definitiva.

Fonte:
http://emiliomoura.br.tripod.com/dados.htm

José Carlos Dutra do Carmo (Manual de Técnicas de Redação) Parte VI


CURRÍCULO.

É um documento que reúne as informações profissionais para alguém que se candidata a um emprego. Contém objetivo, formação escolar, idiomas que domina, experiência profissional, pretensão salarial, etc.

DESCRIÇÃO.

Descrever é fazer um retrato com palavras, isto é, apresentar, detalhadamente, características de pessoas, animais, objetos, lugares, etc.

Quando quiser estabelecer uma ordem cronológica na sua descrição, mostrando as mudanças sucessivas da paisagem, use termos que indicam sucessão (sobretudo adjuntos adverbiais de tempo).

DESENVOLVIMENTO.

É a redação propriamente dita. No desenvolvimento, o aluno deverá discutir os argumentos apresentados na introdução. Em cada parágrafo, escreve-se sobre um argumento.

Tenha sempre em mente que o examinador de sua dissertação provavelmente seja uma pessoa culta, que lê bons jornais e revistas e tem bastante conhecimento geral, portanto não generalize.

É a parte mais importante em qualquer texto. É quando podemos nos aprofundar nas idéias que, por enquanto, foram apenas mencionadas na introdução. Os argumentos devem ser apresentados em função da idéia e organizados com clareza para não confundir o leitor.

Devemos ser cuidadosos para que o texto não se torne inconsistente e imaturo por falta de informação de nossa parte. Para isso, é preciso que nos ilustremos, lendo revistas, jornais e livros; assistindo a noticiários na televisão; freqüentando o maior número possível de produções culturais a que tivermos acesso - teatro, “shows”, exposições, etc. Em qualquer uma dessas atividades, assuma uma posição crítica questionadora que resultará em análises objetivas e, conseqüentemente, em julgamentos coerentes. Evite radicalismos, ofensas pessoais, nacionalismos piegas e “achismos” (eu acho, eu penso)

DIÁLOGO.

É a conversa entre duas ou mais pessoas. A fala de cada personagem é indicada, na escrita, por um travessão.

Ao apresentar um diálogo, ou a personagem pensando, use o presente do indicativo para sugerir a proximidade do fato futuro.

DIÁRIO.

É uma das formas do registro do mundo interior, ou seja, das confissões, dos segredos, etc, de uma pessoa.

DICAS.

Ao escrever uma redação, faça, primeiramente, uma lista de tudo o que lhe vier à memória.

Quanto mais idéias, melhor.

Não se preocupe em saber se as idéias são boas ou más. Escreva-as, simplesmente.

Anote tudo, sem ordem, sem critério, sem censura.

Use palavras simples e frases curtas.

Selecione as idéias e estruture o seu texto.

DICIONÁRIO.

Em vez de sair por aí “chutando” palavras cujos significados você não conhece bem, utilize-se de um bom dicionário, em livro ou software, para aumentar o vocabulário.

DIMINUTIVO.

Use o diminutivo com muito cuidado, e sempre quando for importante marcar a dimensão dos seres, ou a afetividade (carinho, desprezo) da personagem com relação a esses seres.

Pegou o banquinho para apoiar o pé enquanto tocaria violão.

Disse para a avozinha que lhe traria o doce de goiaba de que tanto gostava.

DISCUSSÃO.

Falar e ouvir são meios de desenvolvimento do espírito humano. O debate de idéias pode levar a um resultado enriquecedor.

DISSERTAÇÃO.

Nunca se inclua em sua dissertação, principalmente para contar fatos de sua vida particular.

É uma redação que, através do raciocínio, expõe idéias, doutrinas, impressões, pontos de vista.

Utilize sempre, em suas dissertações, a terceira pessoa do singular.

A dissertação é a forma mais comum de redação. É a mais solicitada nos exames vestibulares e provas de colégio.

Dissertar é defender uma opinião a respeito de determinada questão. Para isto, precisamos conhecer o assunto e refletir sobre ele.

É analisar um assunto proposto, emitindo opiniões gerais. Deve ser feito de modo impessoal e com total objetividade. Essa visão imparcial perde-se quando o autor confunde a problemática que está analisando com os problemas particulares que possa ter.

DIVAGAR.

Estou sem inspiração para fazer uma redação. Escrever sobre a situação dos sem-terra? Bem que o professor poderia propor outro tema.

Não fale de sua redação dentro do próprio texto, porque isso demonstra insegurança e vazio de idéias. Ademais, sua nota ficará seriamente comprometida quando da avaliação do conteúdo.

DOIS PONTOS.

As citações vêm sempre após dois pontos.

Lá, fiz diversas coisas: tomei banho de piscina, na sauna, montei cavalo e charrete, comi cacau, etc.

Use dois pontos, antes de uma enumeração, se quiser valorizar os termos que a constituem.

Descobri a grande razão da minha vida: você.

Já dizia o poeta: Deus dá o frio conforme o cobertor.

ECO OU ASSONÂNCIA.

É a repetição desnecessária de palavras terminadas pelo mesmo som, provocando rimas desagradáveis, com um ritmo batido e monótono.

FRASES COM ECO
Neste momento eu tive um aumento de vencimento.
ESCREVA-AS ASSIM
Tive aumento de salário.

FRASES COM ECO
Clemente, certamente, está descontente com o parente.
ESCREVA-AS ASSIM
Clemente, com certeza, está aborrecido com o primo dele (como poderia ser irmão, etc).

EDITORIAL.

É um artigo que exprime a opinião do órgão jornalístico. É o jornalismo opinativo.

ELEGÂNCIA.

A leitura de um texto elegante, que deve ser criativo e original, torna-se agradável ao leitor.

Fuja de gírias e palavrões. Mantenha uma certa elegância no seu texto, sem cair em pedantismos exagerados.

A elegância começa pela própria apresentação do texto, ou seja, limpo, sem borrões ou rasuras, e com letra bem legível. Importantíssimo atentar, também, para a correção gramatical, a clareza, a concisão e para o conteúdo da redação, que deve ser original e criativo.

ELIPSE.

É a omissão de um termo previsível, subentendido, que deixa de ser expresso por ser óbvio, mas também confere elegância à frase.

Vida interessante, a dele...

Na rua, um malvado; em casa, um santo.

A casa era pobre. Os moradores, humildes.

EM, NO, AO, NA, À.

ERRADO…………………..........………………..CERTO
Fui em Jequié, na fazenda, no jogo…….Fui a Jequié, à fazenda, ao jogo.

A regência do verbo ir exige preposição “a” e não “em”. (Quem vai, vai a algum lugar, e não em algum lugar).

EMBROMAÇÃO.

É o famoso enche linguiça. Fica-se dando voltas no mesmo lugar, usando-se palavras vazias e embromatórias.

A vida, única e exclusivamente, é tão complexa que, apesar de tudo, não obstante o que possam dizer, torna-se altamente problemática.

EMOÇÃO OU LINGUAGEM EMOCIONAL.

Não analise os temas propostos movido por emoções exageradas. Mantenha-se imparcial em quaisquer circunstâncias.

Não transforme seu texto em desabafo nem em panfleto, com linguagem apaixonada. A emoção deve ficar no rascunho, enquanto que no texto definitivo você deve chamar a razão para auxiliá-lo.

Quando nos exaltamos a respeito de determinado assunto ou sobre a pessoa de quem estamos falando, infringimos a boa norma da escrita padrão, por fazermos uso de juízos de valor sobre os fatos. A objetividade é imprescindível, a fim de que o texto se mantenha imparcial e claro.

Existem alguns temas dissertativos que envolvem a análise de assuntos dramáticos, que causam revolta e indignação pela própria gravidade de sua natureza. Porém, por mais revoltante que se mostre o assunto tratado, ele deve ser abordado de modo comedido e, se possível, imparcial. Não devemos deixar nossas emoções interferirem demasiadamente na análise equilibrada e objetiva que precisa transparecer em nossas redações, porque elas impedem que ponderemos outros ângulos da questão. Só assim, com a predominância da argumentação lógica, ela se mostrará convincente.

Os noticiários apresentam-nos todos os dias crimes bárbaros cometidos por verdadeiros animais, que deveriam ser exterminados, um a um, pela sua perversidade sem fim.

Muitos menores que perambulam pelas ruas e se tornam delinqüentes são vítimas indefesas de um governo ineficiente, que não se preocupa e não respeita o direito que eles têm à educação.

ENCHE LINGUIÇA.

Não espiche o assunto, isto é, não diga com 8 (oito) palavras o que pode dizer com 5 (cinco). Seja objetivo e direto.

Encher linguiça é, também, repetir idéias, a saber, tornar a abordar um assunto com palavras diferentes sobre o qual já tinha escrito anteriormente.

Exemplos de expressões muito usadas por quem gosta de encher linguiça: Antes de mais nada, muito pelo contrário, por outro lado, por sua vez, etc.

ERRADO
Em um dos domingos que passaram, eu tinha ido a Itabuna…
CERTO
Num domingo, fui a Itabuna…

ERRADO
Durante esses dias de minhas férias, brinquei de diversas brincadeiras…
CERTO
Em minhas férias, brinquei muito…

Fonte:
http://www.sitenotadez.net

Contos de Sempre: Charles Perrault (O Barba Azul)


Era uma vez um homem que tinha bonitas casas na cidade e no campo, baixela de ouro e prata, móveis em talha e carruagens douradas; mas, infelizmente, esse homem tinha a barba azul: isso tornava-o tão feio e terrível que não havia mulher ou menina que não fugisse dele.

Uma das vizinhas, senhora de categoria, tinha duas filhas de grande beleza. Ele pediu-lhe uma das filhas em casamento e deixou a dama escolher a que lhe iria dar. Nenhuma delas o queria e empurravam-no de uma para a outra, sem se resolverem a aceitar um homem de barba azul. O que mais as aborrecia era ele ter já casado com várias mulheres e não se saber o que era feito delas.

O Barba Azul, para travar relações, levou-as com a mãe e três ou quatro das melhores amigas e alguns rapazes da vizinhança para uma das suas casas de campo, onde ficaram oito dias. Eram só passeios, caçadas e pescarias, danças e festins e repastos: não dormiam e passavam a noite toda a gracejar uns com os outros. Enfim, tudo correu tão bem que a mais nova começou a achar que o dono da casa já não tinha a barba tão azul e que era um cavalheiro. Logo que regressaram à cidade, o casamento realizou-se.

Ao fim de um mês, o Barba Azul disse à mulher que precisava de fazer uma viagem à província de, pelo menos, seis semanas, para um negócio importante. Desejava que ela se divertisse muito durante a sua ausência, que convidasse as amigas, que as levasse para o campo, se quisesse, que gastasse à larga.

- Aqui estão - disse ele - as chaves das duas grandes arrecadações, aqui estão as da baixela de ouro e prata que não anda a uso, aqui estão as dos cofres onde está o meu ouro e a minha prata, as das caixas de pedrarias e a chave mestra de todos os quartos. Quanto a esta chavinha, é a chave do gabinete no fundo do corredor do andar de baixo. Abri tudo, ide aonde quiserdes, mas, quanto a esse gabinete, estais proibida de lá entrar e proíbo-o de tal forma que, se o abrirdes, podeis esperar tudo da minha ira.

Ela prometeu cumprir exactamente tudo o que lhe fora ordenado e ele, depois de a beijar, subiu para a carruagem e partiu. 20

As vizinhas e as amigas não esperaram que as fossem procurar para irem a casa da recém-casada, de tal forma estavam impacientes para ver as riquezas da casa, não ousando ir enquanto o marido lá estava, por causa da sua barba azul que lhes metia medo. Começaram logo a percorrer os quartos, os gabinetes, os guarda-roupas, todos mais bonitos e mais ricos uns do que os outros.

Subiram depois às arrecadações onde não se cansavam de admirar a quantidade e a beleza das tapeçarias, das camas, dos sofás, das mesinhas de pé-de-galo, das mesas e dos espelhos onde se viam da cabeça aos pés e cujas molduras, umas de vidro e outras de prata e de prata dourada, eram as mais belas e as mais magníficas que jamais se viram.

Não paravam de exagerar e de invejar a felicidade da amiga que, no entanto, não se divertia nada a ver todas essas riquezas, por causa da impaciência em que estava de ir abrir o gabinete do andar de baixo. Estava tão atormentada pela curiosidade que, sem pensar que parecia mal deixar as visitas, desceu a escadinha com tanta precipitação que esteve prestes a partir a cabeça por duas ou três vezes. Ao chegar à porta do gabinete, parou algum tempo, pensando na proibição que o marido lhe tinha imposto e considerando que lhe podia acontecer um desastre por ter sido desobediente; mas a tentação era tão forte que não conseguiu vencê-la. Pegou, pois, na chavinha e abriu, tremendo, a porta do gabinete.

Primeiro não viu nada, porque as janelas estavam fechadas. Alguns momentos depois, começou a ver que o chão estava coberto de sangue coalhado e que nesse sangue se reflectiam os corpos de várias mulheres mortas e amarradas ao longo das paredes (eram mulheres que o Barba Azul tinha desposado e degolado uma após a outra).

Pensou morrer de medo e a chave do gabinete, que tinha acabado de tirar da fechadura, caiu-lhe da mão.

Depois de voltar a si do susto, apanhou a chave, tornou a fechar a porta e subiu ao quarto para se refazer um pouco; mas não podia acalmar-se de tão impressionada que estava.

Ao reparar que a chave do gabinete estava manchada de sangue, limpou-a duas ou três vezes, mas o sangue não saía; bem a lavou e a esfregou com areia e com grés. O sangue continuou lá, porque a chave era enfeitiçada e era impossível limpá-la completamente. Quando se limpava o sangue de um lado, ele aparecia do outro. O Barba Azul voltou da viagem nessa mesma noite. Disse que tinha recebido umas cartas no caminho informando-o de que o negócio que o levara a partir tinha sido concluído em seu proveito.

A mulher tudo fez para demonstrar que estava encantada com o seu rápido regresso.

No dia seguinte, ele pediu-lhe as chaves e ela deu-lhas, com as mãos a tremer tanto que ele adivinhou logo tudo o que se tinha passado.

- Porque é que a chave do gabinete não está com as outras?

- Devo tê-la deixado lá em cima, na mesa.

- Não demoreis a devolver-ma - disse o Barba Azul.

Depois de várias delongas, foi preciso devolver a chave.

O Barba Azul, depois de a examinar, disse à mulher:

- Porque é que há sangue nesta chave?

- Não sei de nada - disse a pobre mulher mais pálida do que a morte.

- Não sabeis de nada - tornou o Barba Azul - mas eu sei muito bem. Quisestes entrar no gabinete. Pois bem, senhora, ides entrar no gabinete e tomar o vosso lugar ao pé das damas que lá vistes!

Ela lançou-se aos pés do marido, chorando e pedindo perdão, com todos os sinais de um verdadeiro arrependimento por não ter sido obediente.

Teria enternecido um rochedo tão bela e aflita estava, mas o Barba Azul tinha o coração mais duro que um rochedo.

- É preciso morrer, senhora - disse ele - e depressa.

- Já que é preciso morrer - respondeu ela, olhando-o com os olhos banhados em lágrimas - dai-me algum tempo para rezar.

- Dou-vos um quarto de hora - tornou o Barba Azul - mas nem mais um momento.

Quando ficou só, ela chamou a irmã e disse-lhe:

- Minha irmã Ana (porque elas tratavam-se assim), sobe, peço-te, ao alto da torre para ver se os meus irmãos não vêm; eles prometeram que viriam ver-me hoje e, se os vires, faz-lhes sinal para se apressarem.

Ana subiu ao alto da torre e a pobre, atormentada, gritava-lhe de vez em quando:

- Ana, minha irmã, não vês vir ninguém? E a irmã Ana respondia:

- Não vejo nada além do sol que se empoeira e da erva que verdeja.

Entretanto, o Barba Azul, segurando um grande facalhão, gritava com todas as forças à mulher:

- Descei depressa ou vou aí acima.

- Um pouco mais, por favor - respondia a mulher, e logo gritava baixinho:

- Ana, minha irmã, não vês vir ninguém?

E a irmã respondia:

- Não vejo nada além do sol que se empoeira e da erva que verdeja.

– Descei depressa - gritava o Barba Azul ou vou aí acima.

– Já vou - respondia a mulher e, depois, gritava:

- Ana, minha irmã Ana, não vês vir ninguém?

- Vejo - respondeu a irmã Ana - uma poeirada grande que vem deste lado.

- São os meus irmãos?

– Infelizmente não, minha irmã, é um rebanho de carneiros.

– Não ides descer? - gritava o Barba Azul.

– Mais um momento - respondia a mulher e, depois, gritava:

– Ana, minha irmã, não vês vir ninguém?

– Vejo - respondeu ela - dois cavaleiros que vêm deste lado, mas ainda estão longe.

E um momento depois exclamou:

- Deus seja louvado! São os meus irmãos, fiz-lhes sinal, o mais que pude, para se apressarem.

O Barba Azul pôs-se a gritar tão alto que toda a casa estremeceu. A pobre mulher desceu e atirou-se a seus pés, lavada em lágrimas e desgrenhada.

– Não vale de nada - disse o Barba Azul - é preciso morrer.

Depois, segurando-a com uma mão pelos cabelos e levantando com a outra o facalhão, ia decapitá-la.

A pobre mulher, virando para ele um olhar moribundo, pediu-lhe apenas um momento para se recolher.

- Não, não - disse ele - recomendai-vos bem a Deus! - e levantando o braço...

Nesse momento bateram à porta com tanta força que o Barba Azul parou de repente. Abriram e logo entraram dois cavaleiros que, com a espada na mão, correram para o Barba Azul. Ele reconheceu os irmãos da mulher, um deles Dragão e outro Mosqueteiro, de forma que fugiu para se salvar. Porém os dois irmãos seguiram-no tão de perto que o apanharam antes de ele chegar ao patamar da escada. Espetaram-lhe a espada no corpo e deixaram-no morto. A pobre mulher estava quase tão morta como o marido e nem forças tinha para se levantar e beijar os irmãos.

Acontece que o Barba Azul não tinha herdeiros e, assim, a mulher ficou senhora de todos os bens. Empregou uma grande parte para casar a sua irmã Ana com um jovem fidalgo, que há muito tempo a amava. Depois, outra parte, para comprar os cargos de capitão aos irmãos. E o resto para casar ela própria com um homem honesto, que a fez esquecer o tempo infeliz que
passara com o Barba Azul.

MORAL DA HISTÓRIA
A curiosidade, embora atraente,
Custa muito caro, frequentemente.
Todos os dias os exemplos são tantos!
É um prazer fácil de alcançar.
Quando se tem perde os encantos
E muito caro acaba por ficar.

OUTRA MORAL DA HISTÓRIA
Por pouco sensato que se possa ser
E de feitiçaria se possa saber
Através do conto é fácil de ver
Que esta história se passou noutros tempos.
Já não há maridos tão terríveis,
Nem que peçam às mulheres coisas impossíveis;
Por mais que sejam descontentes e ciumentos
Ao pé da mulher só mostram amor
E, seja a sua barba duma ou outra cor,
É difícil julgar quem é o senhor.

Fontes:
- José António Gomes e Isabel Ramalhete (Seleção e coordenação). Contos de Sempre. Porto/Portugal: Porto Editora, Setembro de 2004.
- Imagem = http://comentariosdemulher.blogspot.com

Paraná em Trovas Collection - 20 - Nei Garcez (Curitiba/PR)

Emiliano Perneta (Ilusão) Parte 19


TRISTEZA

Ao Alves de Farias

Era de tarde. Estava aqui sozinho,
A mão por sob a face, a mão assim,
Quando, me vendo do alto, um passarinho
Pensou que eu era um ramo, e veio a mim.

Veio. Desceu. Porém tão de repente,
Tão sutilmente, tão suave – que eu,
Se já não fora um coração descrente,
Pensava que do céu é que desceu...

Veio. Pousou aqui, trêmulo e brando,
Aqui por sobre mim, neste lugar,
Neste meu coração quase chorando,
E logo que pousou, pôs-se a cantar...

Findou-se a tarde. Anoiteceu. A Lua,
Toda lavada em rosas de prazer,
Vinha como de um banho, vinha nua,
Vinha prateada e límpida a escorrer...

Eu nunca ouvi cantiga mais amena,
De uma melancolia mais ideal;
Era de tal brandura, de tal pena,
De tal doçura que fazia mal!

Deixava-me no ouvido aquela trova
Não sei que sonho doido de embriaguez:
Era como se alguém me abrisse a cova,
E enterrasse-me vivo de uma vez...

Caía-me aqui dentro, aqui no seio,
Como uma grande luz crepuscular,
Sem que eu soubesse d’onde foi que veio,
De que sombria região polar.

Eu era como um monge, um pobre monge,
Dentro da minha desesperação,
Que caminhasse para muito longe,
Para o exílio, para a solidão...

E tão inquieto eu ia, tão enfermo,
Tão desolado, que fazia dó:
O caminho era fúnebre e era ermo,
E eu ia, eu ia horrivelmente só!

Era tamanha aquela doida mágoa,
Que eu não podia, não podia mais,
Os meus olhos se anuviavam d’água,
Vendo passar meus próprios funerais!

Sobre o meu coração, fria, gelada,
Descia a névoa de uma dor sem fim,
Como se fosse a mão que brande a espada,
Mão terrível e triste sobre mim...

Quanta desilusão que ela me trouxe!
Quanta amargura, quanto horror cruel!
Nesse gorjeio doce, muito doce,
Havia travos de veneno e fel.

Pungia tanto o meu pesar ardente,
Era tão mudo e despedaçador,
Que soluçando torrencialmente,
Não aliviaria a minha dor...

Eu sentia que havia no meu rosto
Essa esquisita cor feita de cal,
Esse mármore frio do desgosto,
Esse palor, esse palor mortal!

E a noite toda, o alegre passarinho
Cantou, cantou, falou com a sua voz,
Ora veludo e seda, ouro e arminho,
Ora nervos e dor, violenta e atroz.

Falou de tudo quanto sucedera,
Com acentos nervosos e febris;
Era macia a voz, era de cera,
Mas como me tornava um infeliz!

Como essa voz tinha ferocidades,
Como era esfomeada e era voraz;
Eu lhe rogava em meio de ansiedades,
Que me deixasse, me deixasse em paz.

E que caminhos tristes! Que avenidas
Longas! E que silêncio tumular!
É por aqui que passam os suicidas,
Quando vão para o ermo se enforcar.

E que sombrios álamos, que choro,
Que desespero, que aflições brutais!
Onde me levas tu, ó mau agouro,
A que trevas e antros infernais?

E que soluço que se não acalma,
Que mágoa intensa, que furor, enfim!
Quem teria morrido na minha alma
Para que o coração chorasse assim?

Debaixo dos estigmas da tristeza,
Eu me via mais triste do que Jó,
Esse que o mundo com pavor despreza,
Mais ulcerado, mais infame, e só.

Era como se eu fosse, em noite escura,
Rio das mortes a rolar em vão,
Aquelas minhas águas de amargura,
Tintas do sangue da inquietação.

E ele a cantar! E eu ansiado: quando
Há de esta ave partir, há de voar,
Há de deixar-me a paz, o sono brando,
O sono leve, que perfuma o ar?

Quando me hás de deixar, música langue,
Ó veneno sutil, ó embriaguez,
Tu que me estás bebendo todo o sangue,
Nervosissimamente, de uma vez?

Mas de repente, assim como de um ninho,
Ei-lo a fugir de mim! Mal eu dei fé,
Já me havia deixado aqui sozinho,
E triste, triste, inda mais triste até!

Raiara enfim o rosicler d’aurora,
Esse cândido albor: olhei p’ra lá,
Para as bandas, por onde fora embora,
E ó que saudade! Quando voltará?

DURANTE UMA ENFERMIDADE

Ao Rocha Pombo

Quem poderá saber? quem sabe lá
D’onde viria aquele sabiá?

Quem poderá saber o que ele tem,
E o que lhe dói, que o faz cantar tão bem?

Que penas serão essas dentro da alma,
Que por mais que ele as diga, não se acalma?

Seria um rei o pobre, ou uma rainha,
Que de uma vez perdeu tudo o que tinha,

E não sabendo mais onde o ganhar,
Pôs-se a chorar, quero dizer, cantar?

Quem poderá saber? Apenas sei,
Quer seja uma rainha, quer um rei,

Que ele é bem como alguém, coitado, quando
Sofre, não se contém, e vai falando...

Chegou a hora triste, a hora santa,
Aperta-lhe a saudade e ele canta...

Eu que conheço a hora do pesar:
Venho, sento-me aqui, fico a escutar...

E de tanto que já o tenho ouvido,
Entendo o que ele diz pelo sentido.

Ora, são esses bosques ideais,
Essa frescura e não acaba mais...

Ora, os campos em flor, e aquela mágoa,
E aquela fonte com soluço d’água...

Às vezes, a saudade e a embriaguez
Desses caminhos que ele um dia fez,

Dessas corridas, desses voos doidos,
Dessas loucuras que fazemos todos,

No meio dos silêncios mais sombrios,
Dos grandes ermos, dos profundos rios...

Ora, aquela dolência, penso eu,
Que só de imaginar que já morreu...

Que em sua terra, todo o mundo agora
Até seu próprio nome já ignora...

Já não se lembra dele mais ninguém,
Nem para o maldizer, nem dizer bem...

Durante o tempo em que eu estive doente,
Foi um amigo, verdadeiramente.

Tão bem me traduziu o coração,
Que foi mais que um amigo, foi irmão.

E ó que irmão que ele foi, como não há,
Eu a sofrer d’aqui, ele de lá!

Até me pareceu que adivinhava:
Quando eu estava triste é que cantava.

E eu por triste que fosse, quando o ouvia,
Era com arrepios de alegria.

É que ele, à semelhança d’um poeta,
Mesmo cantando a mágoa mais secreta,

Tinha sempre o seu modo de a dizer,
Que em vez de magoar, dava prazer...

Eu sei, porém, eu sei que o pensamento
Inda é mais leve do que o próprio vento,

Mais leve do que a luz e do que som;
Sei que me vendo inteiramente bom

Hei de esquecer-te, coração querido,
Como de resto tenho-me esquecido

De tanto sonho bom, por esse mundo,
De tanto sonho que dormiu no fundo,

Bem lá no fundo virgem do meu ser,
Sem que o pudesse mais tornar a ver:

Tal que se fosse a minha própria imagem,
Que eu, em caminho, um dia, de passagem,

Deixasse por aí a refletir
Nesses lagos de pérolas d’Ofir,

Nesses profundos lagos de cristal,
De uma cintilação quase ideal,

De uma cintilação maravilhosa,
Como se fossem lagos cor de rosa,

– Melancólica, assim, cheia de mágoa,
Longa e perdida lá no fundo d’água...

Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011

Reinaldo Pimenta (Origem das Palavras 18, final)


SANGRIA DESATADA
Sangiua veio do espanhol sangría, sangramento. Desatada é o particípio do verbo desatar, livrar, que veio de des- + atar.
Uma sangria desatada é um sangramento descontrolado, que exige cuidados imediatos. Quando se diz que alguma coisa não é nenhuma sangria desatada, significa que ela não requer cuidados ou providências urgentes.
Sangria, a bebida com vinho, frutas, açúcar etc., também veio do espanhol sangría, mas não tem nada a ver com sangue, a não ser que você esteja pensando num coquetel para vampiros.
Sangría veio do inglês sangaree, uma mistura de vinho com limão, consumida nas Antilhas. Muitos dicionários da língua inglesa dizem o contrário, que sangaree teria vindo do espanhol sangría, o que parece pouco provável: sangaree aparece registrado pela primeira vez em 1736; o espanhol sangría, em 1803. Sanga ree teria se formado a partir do sânscrito sakr, açúcar. Atualmente sanga ree e sangría designam a mesmíssima bebida.

VÁ TOMAR BANHO!
A expressão não tem a intenção literal de mandar alguém submeter-se a água e sabão. Trata-se, na verdade, de um banho metafórico, purificador, um convite ao limpar-se de impurezas morais e comportamentais para voltar à normalidade, ao bom- senso e à decência.
Sujo e sujeira no sentido moral aparecem freqüentemente: ele ficou sujo com os amigos, um negócio sujo, está preso porque só faz sujeira.
Não faz muito tempo, quando alguém cometia uma perversidade ou uma deslealdade, era comum exclamar-se "Sujeira!". Modernamente foi substituído por "Sacanagem!".

XUMBREGA
De má qualidade, malfeito.
Um livro com o título "Figuraças da História do Brasil" teria a presença obrigatória do governador de Pernambuco Jerônimo de Mendonça Furtado, que em 1666, por sua notável impopularidade, foi detido pelos senhores de engenho em Olinda, deposto e remetido para Lisboa. O moço, que bebia sem moderação, era odiadíssimo por seus desmandos e tinha o apelido de Chumbergas (ou Xumbergas) por ostentar vastos bigodes à chomberga.
A palavra chomberga - homem elegante e afetado - entrou na língua portuguesa por obra e muita graça do general alemão Friedrich Hermann Schõnberg, um aventureiro que foi parar em Portugal para reorganizar e comandar as tropas portuguesas (de 1661 a 1668) na luta contra os espanhóis na Guerra da Restauração.
O alemão teve o nome aportuguesado para Frederico Armando Schomberg e se transformou em padrão de elegância para a moda masculina da época, destacando-se por roupa, chapéu e bigode.
O sobrenome Schomberg propiciou o aparecimento na língua portuguesa, além de chomberga, das seguintes expressões:
(a) chambergo: chapéu militar de feltro, com uma pluma (chiquérrimo);
(b) chumbergas: quem imitava o general na roupa ou no bigode; indivíduo extravagante;
(c) chamborgas: com o sentido pejorativo de fanfarrão (aqui o general começa a ser tratado com ironia);
(d) à chomberga, expressão usada para designar a moda, principalmente militar, introduzida pelo alemão (casaca à chomberga, bigodes à chomberga...).
Da mesma fonte e com a influência do detestável e beberrão governador de Pernambuco, o Chumbergas, apareceram no Brasil as palavras:
(a) xumberga: embriaguez;
(b) xumbrega (também grafado chumbrega): ordinário, reles; pessoa ou coisa de mau gosto.
Para alguns etimólogos, brega (cafona) seria a forma reduzida de xumbrega.

Fonte:
PIMENTA, Reinaldo. A casa da mãe Joana 2. RJ: Elsevier, 2004

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Aventura do Príncipe – III – Tia Nastácia e a Sardinha


Tia Nastácia também havia perdido o medo aos bichinhos depois que viu que não mordiam. Chegou até a ficar amiga íntima da senhorita Sardinha, ou Miss Sardine, como era chamada no reino, por ter nascido nos mares que rodeiam a Terra Nova, perto do Canadá. Como boa norte-americana, Miss Sardine mostrava-se muito segura de si. Não era acanhada como as outras. Fazia o que lhe dava na cabeça, tornando-se famosa no reino pelas suas excentricidades. Uma delas consistia em dormir dentro duma latinha, em vez de dormir na cama. “Estou praticando para a vida futura”, costumava dizer com um sorriso melancólico. A vida futura das sardinha, como todos sabem, não é no céu, mas dentro de latas... Miss Sardine fez grande camaradagem com tia Nastácia. Logo que chegou foi se metendo pela cozinha adentro, a examinar tudo com uma curiosidade de mulher velha. E não parava com as perguntas.

— Que monstro esquisito é este? — perguntou mostrando o fogão.

— Isso se chama fogão — respondeu a preta.

— E essa coisa vermelha que ele tem dentro?

— Isso se chama fogo.

— E para que serve?

— Serve para queimar o dedinho de quem bole com ele.

E tia Nastácia dava risadas gostosas, vendo a cara de admiração que Miss Sardine fazia.

Em certo momento trepou a uma prateleira. Pôs-se a remexer em tudo. Enfiou a cabecinha dentro do vidro de sal e provou.

— Hum! Estou conhecendo este gosto!...

— Isso é farinha lá da sua terra; vem do mar — explicou a preta.

Provou depois uma pitadinha de açúcar, achando tão bom que pediu para levar um pacote.

Quando destampou o vidro de pimenta-do-reino em pó, tia Nastácia a advertiu:

— Cuidado! Isso arde nos olhos.

Antes não avisasse! Miss Sardine assustou-se, escorregou e caiu de ponta-cabeça dentro do vidro de p menta. Aquilo foi um pererecar e berrar de meter dó

— Acuda! Estou cega...

A negra, muito aflita, tirou-a de dentro do vidro e lavou-a na bica d’água, dizendo:

— Bem feito! Quem manda ser tão reinadeira? Eu logo vi que ia acontecer alguma... Miss Sardine não a ouvia, continuando a gritar e espernear.

— Acuda! Está pegando fogo nos meus olhos! Estou cega, não enxergo nada!...

— Isso passa — consolou a preta. — Tenha um pouco de paciência, menina. Muito pior seria se tivesse caído dentro da frigideira de gordura quente.

Por uns instantes esteve ela assim, com os olhos a arder. Afinal foi sarando, e sarou, e abriu os olhos — primeiro um, depois o outro, depois os dois. Muito admirada de enxergar tão bem quanto antes, deu uma risadinha feliz.

— Sarei! — exclamou Miss Sardine, piscando muito e olhando para tudo a fim de ver se os olhos estavam bons mesmo ou só meio bons. Depois voltou às perguntas, indagando que coisa era uma frigideira.

Tia Nastácia ficou atrapalhada. Contar a um peixinho o que é frigideira até chega a ser judiação. De dó dela a negra deu uma resposta que a deixou na mesma.

— Frigideira — disse — é uma panela rasa onde se põe uma certa água grossa, chamada gordura, que chia e pula quando tem fogo embaixo.

— Que bonito! — exclamou Miss Sardine admirada. — Um dia hei de voltar aqui para passar uma hora inteira nadando nessa água que pula.

A negra tapou a boca com as mãos para esconder a risada que ia saindo. Nesse momento dona Benta gritou lá do fundo do quintal:

— Nastácia! Venha depressa...

— Que será, meu Deus do céu? — exclamou a preta, correndo a ver do que se tratava.

Encontrou dona Benta perto do galinheiro, em conferência com o doutor Caramujo a respeito da doença do pinto sura. Assim que chegou, dona Benta disse:

— Nastácia, veja se me pega o pinto sura.

— Para que, sinhá? — perguntou a preta estranhando a ordem.

— O doutor Caramujo quer dar-lhe uma das suas milagrosas pílulas. Diz que não há melhor remédio para estupor de pintos suras.

Tia Nastácia abriu a boca. Seria possível que aquele bichinho cascudo entendesse até de pílulas?

— Ele está mangando com mecê, sinhá! Onde já se viu caramujo entender de remédios? É impostoria dele, sinhá. Não acredite.

— Eu também estou duvidando e por isso quero tirar a prova. Pegue o pinto.

Resmungando que o mundo estava perdido, foi tia Nastácia em procura do pinto. Pegou-o e trouxe-o.

— Agora preciso dum canudinho — disse o doutor Caramujo.

— Só sei dar pílulas a pinto pelo sistema do canudo.

A negra foi resmungando procurar o canudinho. Trouxe-o. O doutor Caramujo explicou então como se fazia. Enfiava-se o canudinho na garganta do pinto; punha-se a pílula dentro do canudinho; depois era só assoprar.

— Ora veja! — exclamou tia Nastácia sacudindo a cabeça. – Uma coisa tão simples e eu nunca me lembrei! Estou vendo que esses bichinhos do mar são mais sabidos do que a gente, sinhá.

A pílula foi colocada dentro do canudinho e o canudinho foi enfiado dentro da garganta do pinto.

— Preciso agora duma pessoa que assopre. Se não houver pessoa assopradeira, um fole serve.

— Assopre, Nastácia! — mandou dona Benta. Tia Nastácia agachou-se, pôs a boca na ponta do canudinho e ia assoprar quando deu um berro, erguendo-se a tossir como uma desesperada.

— Que aconteceu, Nastácia?

A resposta foi uma careta de quem está engasgado com alguma coisa amarga. Depois falou.

— Aconteceu, sinhá, que o pinto assoprou primeiro e quem engoliu a pílula fui eu!...

Dona Benta não pôde deixar de rir-se; a negra, porém, não achou graça nenhuma, e até se mostrou apreensiva, com medo de que a pílula lhe fizesse mal.

— Não fará mal nenhum — asseverou o doutor Caramujo. – Até pode curar alguma moléstia que a senhora tenha, lá por dentro sem saber.

E assim foi. Tia Nastácia sarou duma célebre “tosse de cachorro” que a vinha perseguindo havia duas semanas, e tanta fé passou a ter nas pílulas do doutor Caramujo, que as receitava para todo mundo.

Até para o Chico Orelha, um pobre sem orelhas que por lá aparecia às vezes a pedir esmolas.

— Tome uma dúzia, seu Chico, que lhe nasce um par de orelhas novas ainda mais bonitas que as que lhe cortaram.
––––––––
Continua... Aventura do Príncipe – IV – Os Segredos da Aranha

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa