segunda-feira, 28 de maio de 2012

Sotero Silveira de Souza (O Trovador da Lira Triste)


Quando eu não mais existir,
E talvez só cinzas for,
Creio que alguém há de sentir,
Saudades do trovador!

Quando vejo um beija-flor,
Nas roseiras do jardim,
Corro e beijo o meu amor,
Que também perfuma assim!

Dizem que para se amar,
Deve-se ter coração;
Assim não posso explicar,
Por que tu me amaste então?

A vida é cheia de males,
Às vezes é cheia de dor;
Por isso eu peço que cales,
Eu sofro mal de amor!

Saudade levo comigo,
Contigo deixo também,
A saudade é o inimigo,
Mais cruel que a gente tem!

Se o mundo fosse um canteiro,
E você fosse uma rosa,
Eu queria ser jardineiro,
Para beijá-la, cheirosa!

Essa trova tão singela,
Que exprime amargor,
Foi composta por ela,
Que negou-me o seu amor!

Nesta vida muita gente,
Sofre muito por amar,
Minha dor é diferente,
Eu só quero te deixar!

Quisera ser passarinho,
Para voar na amplidão,
E depois, pousar de mansinho,
Na palma de tua mão!

Caminhei muitos caminhos,
Por estradas mil passei,
Só achei dores, espinhos,
Até que eu te encontrei!

Eu sei que vou padecer,
Uma tortura tão louca,
Mas não me deixes morrer,
Sem antes beijar tua boca!

Irmã gêmea da tristeza,
E talvez, prima do amor,
A saudade é dureza,
E um peito sofredor!

Dizem que o mel é doce,
E que tem um bom sabor;
Quem dera que ela fosse,
Como os lábios do meu amor.

Eu sei que não posso dizer,
O calor que tem seu olhar,
Mas sei que pode ferver
Todas as águas do mar!

Uma coisa neste mundo
Que o meu coração palpita,
É dormir sono profundo,
No colo de moça bonita!

A lembrança mais sentida
Que trago nos dias meus,
Foi o dia de sua partida,
Sem dizer-me um só adeus!

Disse o poeta que a saudade,
É espinho cheirando flor;
Eu penso que é crueldade,
É lembrança de um amor!

Trouxe saudade, desgosto,
Da terra onde nasci,
Mas sepultei-as em teu rosto,
Tão logo, te conheci!

Quisera com emoção,
Feliz, carregar-te em dia
Na palma da minha mão,
Onde teu nome inicia!

Se amar é mesmo pecado,
O próprio Jesus pecou,
Pois amou até o soldado,
Que o peito o transpassou!

Bate o sino na capela,
Na tarde serena e calma;
Quando a vejo na janela,
Bate o sino da minha alma!

Por que choras passarinho,
À hora do pôr-do-sol?
Eu também estou sozinho,
Ó meu triste rouxinol!

Muito eu já tenho rogado,
Se não lhe desse desgosto,
Eu quisera ser enterrado,
Na covinha do teu rosto!

Garimpei por entre escolhos,
À procura de um tesouro;
Vi diamantes nos teus olhos,
E nos teus cabelos, ouro!

Chegaste na minha vida,
Como ave de arribação,
Dei-te agasalhos e comida,
Só me deste desilusão!

Sofro muito e me consolo,
Porque tenho esperança,
De deitar-me no teu colo,
E dormir igual criança!

Dizem que o amor é um ninho,
Macio igual algodão;
Eu creio ser feito de espinho,
E coça igual tinhorão!

Quando miro nos teus olhos,
Às vezes fico pensando,
Se olho verdes abrolhos, 
Ou se eles estão me olhando!

Meu amor, a minha vida
Está toda condenada;
Sou a triste ilusão perdida,
Um vulto só, e mais nada!

Não sei porque tu me olhaste,
Se eu não posso te amar;
Por acaso já pensaste,
Como fere o teu olhar?

Guardo comigo um queixume,
E jamais pude dizê-lo,
Quisera ser vagalume,
Na noite do seu cabelo!

Meu laço de fita verde,
De tão velho desbotou,
Esperando na parede,
Um amor que não voltou!

Uma vez que te pedi um beijo,
Para selar o nosso amor,
Respondeste com gracejo;
Tal selo não tem valor!

Ah! Se Deus me desse sorte,
De escolher onde espirar,
Eu quisera ter a morte,
No abismo de teu olhar!

Não sei dizer o que sinto,
Quando beijo aos lábios teus;
Para mim, juro, não minto,
É a maior graça de Deus!

Teve a boa mãe natureza,
Com você carinho e gosto;
Deu-lhe uma rara beleza,
E linda pinta no rosto!

Tinha tudo e me casei,
Minha mãe ficou chorando,
Até hoje não encontrei,
O que estava procurando!

Se você ver a alvorada,
Quando vai romper o dia,
É uma sombra desbotada,
Da beleza de Maria!

A palmeira solitária,
Lá no alto da colina,
Já a quase centenária, 
Pois te vi quando menina!

Tenho sido humilhado
Muita dor meu peito encerra;
Bem diz o velho ditado;
Ninguém é rei em sua terra!

Se quiseres ver ao certo,
Um oásis de bonança,
Observe bem de perto,
Os olhos de uma criança!

Esta vida é banal,
A grande verdade encerra;
O homem que é mortal,
É um transeunte na terra!

Por ambição eu deixei,
Minha mãe, anjo de luz;
Hoje, saudoso voltei,
E só encontrei sua cruz!

Gameleira mutilada,
Que faz sombra pelo chão,
Vou vingar a machadada,
Que lhe deu aquela mão!

Certa vez eu vi um cego,
Puxado por um menino;
Eu tive inveja, não nego,
Do gesto do pequenino!

Diz alguém que eu sou culto,
De carreira promissora;
Deve tudo a um vulto,
Minha santa professora!

Se pudesse o meu destino,
Conceder-me uma esmola,
Eu quisera ser um menino,
Pra voltar à minha escola!

Relógio da minha vida,
Por que disparas assim?
para que tanta corrida,
Se tem que chegar ao fim?!

O homem que tem juízo,
E bondoso de coração,
Responde com um sorriso,
As afrontes que lhe dão!

Do milionário, triste sina,
Saber que ele vai morrer,
Pode comprar a medicina,
E nada lhe vai valer!

Sem pensar e sem maldade,
Eu esbanjei gastando à bessa,
Um tesouro, a mocidade,
Que acabou-se tão depressa!

O único beijo do mundo,
Que não foi prova de amor,
Foi o de Judas, imundo,
na face do Salvador!

Todos tem o seu destino,
Até o rio que corre,
Mas o pobre peregrino,
Só no dia em que ele morre!

Há homem culto e bronco,
Para nós não é segredo;
Um nasceu para ser o tronco,
O outro simples arvoredo!

Certa vez eu vi um amigo,
Que chorou para morrer!
Até hoje eu não consigo,
A sua lágrima entender!

Na vida há muita gente,
Que nos sorri de alegria; 
Por dentro é diferente,
É tudo hipocrisia!

Os lírios níveos do mato,
Que vicejam na solidão,
Tem muito mais aparato,
Que as vestes de Salomão!

Olhai as aves do céu,
Não plantam, não sabem ler,
Vivem felizes ao léu,
E Deus lhes dá o que comer!

Se eu parar de fazer trova,
Por faltar inspiração,
Quero do doutor a prova,
Que morri foi de paixão!

Há muita gente que insiste,
Em só reclamar da sorte;
Mas a pior vida que existe,
É bem melhor do que a morte!

Meu querido arvoredo,
Meu destino agora é seu,
Você sabe o meu segredo,
Foi aqui que aconteceu!

Deixaste-me por dinheiro,
E trocaste o meu amor,
Por um vil aventureiro,
Que não tem nenhum valor!

Alguém diz que não esquece
Na vida o primeiro amor,
É uma chama que aquece,
A alma do sofredor!

O homem vive em carreira,
Numa luta insofrida;
Tudo! De qualquer maneira,
Chegará ao fim da vida!

A pérola tão luzidia,
Que hoje brilha e reluz,
Foi a lágrima de Maria,
Que correu ao pé da cruz!

Já tive muitos amores,
No curso da minha vida,
São estes os meus valores,
Que levo para outra vida!

Nem sempre a rara beleza,
Felicidade irradia;
Carinho e delicadeza,
É que nos traz simpatia!

Eu quero na sepultura,
Onde um dia eu repousar,
Este dito de ternura:
Voltarei para te buscar!

O olhar que tem mais brilho,
E penetra mais profundo,
É o olhar da mãe pro filho,
Quando este vem ao mundo!

Dizem que o homem de idade,
Volta  a fazer criancice,
Claro, pois sente saudade,
Do tempo da meninice!

O ser mais rico que existe,
Aqui na face da terra,
A sua riqueza consiste,
Em sete palmos de terra!

Alguém diz que de amar tanto,
Vai o homem para o inferno;
Há porém o amor santo,
E também o amor materno!

Os prazeres indizíveis,
Quie adornam o meu passado,
São dias inesquecíveis,
Que vivi, só a teu lado!

Vim para matar saudade,
Consolar meu coração,
Hoje volto pra cidade,
Mais pesado de paixão!

A cruzinha da estrada,
Toda enfeitada de flor,
Faz lembrar-me a doce amada,
Que morreu por meu amor!

Minha mãe, quando nasci,
Contemplou-me a chorar,
Desde então sempre segui,
O fulgor daquele olhar!

Aquele beijo envolvente,
De lembrança tão querida,
Foi o beijo mais ardente,
Que roubei na minha vida!

Eu não posso te querer,
Pois sou pobre, sem valor,
Vou lutar para merecer,
O teu dote, o teu amor!

Não permita o meu fado,
Que eu morra de solidão,
Deixe que eu seja enterrado,
Dentro do teu coração!

Eu nunca aprendi a nadar,
E jamais eu quis fazê-lo,
Só para um dia afogar,
Nas ondas do teu cabelo!

Vou lhe dar o seu presente,
É tão lindo e delicado,
Feito de couro reluzente,
Um rico anel de noivado!

A mulher é criticada,
Pelos lindos dotes seus;
Do demônio não tem nada,
É a obra prima de Deus!

Casimiro de Abreu (Carolina) Parte I - Adeus


I

ADEUS!

Na estrada que conduz de Lisboa a *** erguia-se há poucos anos uma casa de bonita aparência, com sua vinha verdejante, seu pomar odorífero, seu jardim pequeno, mas bonito, suas alamedas, curtas mas frondosas. O muro da quinta era alto bastante, e contudo os ramos das faias e dos choupos gigantes debruçavam-se sobre ele, assombrando com sua folhagem majestosa a estrada, que o mesmo muro flanqueava para um pequeno espaço.

Ao ver-se essa pequena casa cercada de perfumes, de verdura, de sombra e de poesia, podia-se sem receio dizer: seus habitantes são felizes. E eram. Viviam entregues aos prazeres mais doces da vida doméstica. Acordavam quando a natureza despertava, no meio do trinar das aves, do sorrir da manhã e do sorrir das flores; adormeciam sossegados ao som do vento da noite que zunia, dobrando a coma dos arvoredos. 

Era uma bela tarde de maio de 1848. Os raios moribundos do sol no ocaso pareciam dormir nos bastos olivais que coroavam a crista dos outeiros; uma viração suave e branda refrescava a atmosfera, sussurrando por entre as folhas e alterando o espelho tranqüilo do lago onde o cisne vogava majestoso; o céu trajava o azul mais puro apenas manchado aqui e além por ligeiras nuvens brancas, similhantes a vapores, como se fossem os rolos de incenso que os turíbulos da terra enviavam aos pés do Senhor, impelidos pelas auras bonançosas. Era na verdade uma tarde de primavera, da primavera, mocidade do ano, dessa quadra amena e deleitosa, que por toda a parte entoa o canto grandioso da criação!...

No fim duma das alameda da quinta, debaixo dum lindo caramanchão, acabavam de assentar-se um rapaz de 20 a 22 anos e uma menina de 17 ou 18. Tinham os braços entrelaçados e olhavam-se com esses olhares ternos dos amantes. 

Que lindo par! Ele, belo com essa beleza que distingue o homem; ela, bela com essa beleza que Deus dá só às mulheres! Ai! um sorriso que se desprendesse dos lábios formosos daquela virgem, mataria de amores um homem! Um olhar meigo e terno que brilhasse por entre aquelas pestanas aveludadas, venceria o mundo!

— Ora diz-me a verdade, Augusto, sempre partes amanhã? disse a jovem a seu companheiro, com uma voz suave como teriam os anjos, se eles falassem. 

— Não me acreditas, Carolina? Para que te havia de eu enganar?

Carolina fitou seus olhos negros nos de Augusto, e disse-lhe corando: 

— Para quê?!

— Olha, és injusta; um dia to hei-de provar.

— Mas tu não te demoras muito, não é assim?

— Não sei; mas mesmo que me demore muito, um dia hei-de voltar. 

— Ah! tu já não me amas! disse ela, e duas lágrimas despregaram-se de suas pálpebras e vieram cair-lhe no seio. 

— Carolina! Carolina! cada vez te amo mais, meu anjo. 

E Augusto encostou a cabeça da virgem ao seu peito e beijou-lhe a fronte. 

E os pássaros cantavam seus gorjeios, e a fonte murmurava seus queixumes, e a brisa dizia seus segredos!...

— Escuta, querida, podes vir todas as tardes sentar-te sobre este mesmo banco, podes até trazer o meu retrato que eu te dei; e quando os pássaros cantarem, quando o sol s’ esconder, quando a brisa brincar com as flores, tu ouvirás os meus protestos d’amor. Sentado à popa do navio que me levar, pisando solo estranho longe de ti, eu direi à viração do mar, eu direi às brisas da tarde: levai-me este suspiro a Carolina. 

— Sim, sim, murmurava ela, manda-me um suspiro. 

— E quando um dia, continuou Augusto, a estas mesmas horas, tu ouvires uma voz cantar estes versos:
Ó querida, estou de volta,
Venho-te um abraço dar;
Enxuga teus lindos olhos,
Sê minha, que eu sei-te amar.
Então, meu anjo, sou eu, é o teu Augusto; então, eu o juro, tu serás minha à face do mundo e à face de Deus; então nós viveremos.

— Oh! Augusto! Augusto! não partas, não me deixes! e a jovem banhara-se em pranto e soluçava. 

— Oh! eu devo partir, mas creio em Deus, também hei-de voltar. 

E Augusto com a voz trêmula e os olhos umedecidos, abraçando a virgem, disse-lhe:

— Adeus, Carolina!

— Adeus, Augusto! Para sempre?!...

— Não! não!

E seus lábios se encontraram num longo beijo d’amor, no meio de lágrimas e soluços. 

Um grito, agudo e lúgubre como o do mocho, retumbou no espaço!...

— Jesus! exclamou Carolina, cobrindo o rosto com as mãos. 

— Não creio em agouros! respondeu Augusto cavalgando o muro. 

Um momento depois sentia-se o tropel dum cavalo que partia a toda a brida para Lisboa...

Quando esse ruído se perdeu ao longe, Carolina juntou as mãos e disse em voz baixa: 

— Adeus, Augusto! adeus!...

Quase ao mesmo tempo, o cavaleiro que parecia fugir nas asas do vento, murmurava:

— Adeus, Carolina! adeus! 

Continua…

Fonte:
ABREU, Casimiro de.  Carolina.  in SILVEIRA, Sousa da (org.). Obras de Casimiro de Abreu.  2ª ed.   Rio de Janeiro:  Ministério da Educação e Cultura -MEC, 1955. Texto-base digitalizado por: Fernanda Duarte, Rio de Janeiro – RJ

Flávia Muniz (O Espelho e a Perua)

Ilustração de Ionit
A confusão começou 
 Certa vez, no galinheiro, 
 Quando as aves encontraram 
 Um espelho no terreiro. 

 Uma galinha vaidosa 
 Logo quis contar vantagem: 
 - Com licença, galináceas, 
 Vim conferir minha imagem! 

 A pata, torcendo o bico, 
 Comentou com a vizinha: 
 - Não vale arrancar as penas 
 Pra parecer mais magrinha! 

 E qual não foi a surpresa 
 Das aves estabanadas: 
 No reflexo do espelho 
 Só tinha coisas erradas! 

 Quem era alta e bela 
 Viu-se feiosa e baixinha. 
 Quem era gorda e forte 
 Ficou magrela e fraquinha. 

 - Credo! - grasnou o marreco. 
 - Cruzes! - o pinto piou. 
 - Incrível! - cantou o galo. 
 E o papagaio berrou. 

 A galinha carijó 
 Foi quem depressa falou: 
 - Este espelho tem feitiço... 
 Foi a bruxa que o mandou! 

 - Mentira! - disse a perua, 
 Balançando as pulseiras. 
 - Li esse conto de fadas, 
 Vocês só dizem besteiras! 

 Estufou-se, bem danada, 
 Mostrando o papo vermelho. 
 E com pose de malvada 
 Fez a pergunta ao espelho: 

 - Espelho, espelho meu! 
 Responda se há no mundo 
 Outra ave mais bonita, 
 Mais charmosa e elegante, 
 Mais esperta e fascinante, 
 Mais incrível e imponente, 
 Mais formosa do que eu? 
 Diga logo, espelho meu!! 

 Os bichos, impressionados, 
 Ouviram com atenção 
 A resposta do espelho 
 A tamanha pretensão: 

 - Se você quer a verdade, 
 Vou dizê-la, nua e crua. 
 E mostrar a realidade 
 Para uma simples perua. 

 Você disse que é esperta, 
 Imponente e charmosa. 
 Mas parece antipática, 
 Falando assim, toda prosa. 

 Desfila o ano inteiro 
 Como se fosse a tal. 
 Mas foge do cozinheiro 
 Quando chega o Natal!

Fonte:
Revista Nova Escola

Mia Couto (O Viúvo)


O arrepio nos mostra como a febre se parece com o frio. E é com arrepio que lembro o goês Jesuzinho da Graça, nascido e decrescido em Goa, ainda em tempos de Portugal. Veio com a família para Moçambique nos meados da meninice. Como aos outros goeses lhe perjuravam de caneco. Ele a si mesmo se chamava de Indo-_Português. Lusitano praticante, se desempenhou até à Independência como chefe dos serviços funerários da Câmara Municipal. Seu obscuro gabinete: a vida se poupava a ali entrar. O goês era antecamarário da Morte? Só uma graça ele se permitia. À saída do escritório, o funcionário se virava para os restantes e fatalmente repetia:

-  Ram-ram!- 

Há-de morrer nesse ramerrão, comentavam os colegas. E reprovavam com a cabeça: o caneco não mata nem diz acta. Jesuzinho Graça se ria, no desentendimento. "Ram-ram" era a despedida em concanim, língua de seus antepassados indianos.

Vivia nesse constante apagar-se de si, discreto como abraço da trepadeira. Para ele o simples existir já era abusiva indiscrição. O caneco molhava o dedo no tempo  e ia virando as páginas, com método e sem ruído. A unha do mindinho se espichara tanto, que o dedo se tornara simples acessório.

-  A unha? É para virar a papelada- , respondia ele.

Aquela unha era o - mouse-  dos nossos actuais computadores. O dito apêndice era motivo de zanga conjugal. A esposa o advertia:

-- Com essa garra você nem pense em me festejar!

Jesuzinho da Graça resistia a todos os protestos:

-  Pela unha morre o lagarto!- 

Em tudo o resto era singelo e pardo como selo fiscal. Misantrôpego, fleumaníaco, com vergonha até de pedir licenças, Jesuzinho assistiu, de coração encolhido, à turbulenta chegada da História. A Independência despontou, a bandeira da nação se cravou na alegria de muitos e nos temores do caneco. Aterrado, ele se sentou nas proletárias reuniões onde anunciaram a operação para "escangalhar o Estado". A si mesmo se perguntava a justiça se faz por mão de injustos? Impávido e longínquo, Jesuzinho atendeu à sua despromoção, à mudança de gabinete. Todavia, o Oriente se limitava à aparência. Por dentro, se assustava com os súbitos, os súditos e os ditos da Revolução.

No silêncio da repartição ele ouvia as louças do mundo se estilhaçando. Entrava em casa e o mesmo malvoroço o perseguia. Ainda lograva pestanejar um sorriso quando os discursos anunciavam: "a Vitória é Certa!". Tocava o ombro da mulher e dizia:

-- Vê como você é certificada, Vitorinha?

Se Jesuzinho era sombra, a esposa Vitória era crepúsculo dessa sombra. No terceiro aniversário da Independência, no preciso momento em que clamavam os jargões revolucionários, Vitória ficou certa para sempre. A goesa fechou nos olhos o olhar. Sob a parede do crucifixo, o funcionário a cobriu de lençol e rezas. Findava ali a única família, o único mundo de Jesuzinho da Graça. 

Nos seguintes meses, o viúvo manteve o comportamento. Jesuzinho era como a formiga que nunca descarreira? _única diferença: agora se demorava entre o ali e o acolá. E com o demorar da solidão ele foi entrando na bebida. O jovem empregado doméstico lhe perguntava a medo:

-  O senhor não tem parentesco com ninguém?- 

Jesuzinho apontava a garrafa de aguardente. Aquele era o seu parente por via do pai. Depois, se lembrava e apontava o crucifixo na parede.

-  Esse outro, ali na parede, é via da mãe.

De improvável a vida é uma goteira pingando ao avesso. Aos poucos, o goês deu sinais de maior desarranjo: as horas se perdiam dele. Funcionário do zelo, eterno cumpridor de regulamento, deixou de espremer o mata-borrão sobre os escritos de sua lavra. Saudades de um tempo em que o mundo era dócil, autenticável em 25 linhas?

Mas mesmo em suas inatitudes ele mantinha aprumo. Terças-feiras era dia de bebedeira, sua única combinação com o tempo. Ia para o bar, transitava lentamente para dentro do copo, espumava as agonias. Chegava tarde a casa, desalinhado mas sempre cuidando do fato branco. Se postava no canapé, acendia o cigarro que diria a falecida? e puxava o cinzeiro de pé alto, passando as mãos pelo ébano torneado. Trançava ainda o cabelo de Vitória? Depois, fazia estalar a unha nas unhas e chamava:

-  Piquinino: ande a desapertar a gravata .

O empregado acorria a lhe aliviar a garganta. Lhe despescoçava a camisa e entornava uns pós-de-talco sobre a camisola interior. Desfeito o nó e já ele estava disposto ao sono. Serviço do moço era ficar vigiando o descanso do patrão.

Aqueles sonos eram sobressalteados. Passava uma frestinha de tempo e o caneco gritava pela falecida. Sua mão trêmula apanhava o telefone, ligava para os céus.  Era então que estreiava a mais nobre função de Piquinino: fingir-se dela, imitar voz e suspiros da extinta.

-  Vucê qui está pagar chamada, Vitorinha. Aí, no céu, tudo sai mais barato.

O empregadinho se esforçava em aflautinar a voz, copiando os esganiços de Vitorinha. Acabadas as conversas, o empregado copiava os modos da antiga senhora e brilhantinava os cabelos do patrão, acertando a risca em diagonal no cabelo.

Todavia e à medida do tempo, o moço se foi tomando de terrores. Ele se interrogava: imitar mortos? Brincar assim com espíritos só podia trazer castigo. Foi consultar o pai, pedir vantagem de um conselho. O velhote concordou: deixe o homem, fuja disso. E foi desenrolando sabedorias: quantos lados tem a terra para o camaleão? Os mortos sabe-se lá para quem estão olhando? O outro mundo é muitíssimo infinito: não há falecido que não seja da nossa família.

E o miúdo regressou decidido a nunca mais se prestar a aparições. Terça-feira chegou e o patrão, nessa noite, não saiu a rondar os bares. Parecia abatido, doente. Ficou deitado no sofá da sala, olhando para muito nada. Chamou o empregadinho e lhe pediu que se transvestisse de Vitória. O miúdo nem respondeu. Surpreso, Jesuzinho ficou a papagaiar baixinho. E se passaram momentos. Até que o jovem serviçal percebeu que o patrão chorava. Se debruçou sobre ele e viu que ladainhava o mesmo de sempre:

-  Vitorinha!- 

O empregado ficou estático. O patrão que implorasse que ele não avançaria um pé. O caneco, afinal, estava bêbado. O hálito não deixava dúvidas. Mas como, se não lhe vira a beber? Tivesse ou não emborcado, o certo é que ele transbordava babas e suspiros. Estava nesse devaneio quando murmurou as mais estranhas palavras: queria encontrar a esposa já devidamente desunhado. Entregando o braço no colo do empregado, implorou: 

-  Me corte a unha, Piquinino!- 

No dia seguinte, encontraram o empregado, imóvel junto à poltrona do patrão. O que o moço falou foi para ninguém deitar crédito. O seguinte: mal começou a cortar o rente da unha, o patrão se desvaneceu, como fumo de incenso. E a unha está onde, pá? O miúdo debruçou-se sobre o soalho e levantou o que, por instante, pareceu ser uma desflorida pétala. Sorriu, lembrando o patrão. E exibiu a derradeira extremidade da sua humanidade.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

Graciliano Ramos (Caetés)


 Primeiro romance de Graciliano Ramos, Caetés dá a impressão, quanto ao estilo e análise, de deliberado preâmbulo; um exercício de técnica literária mediante o qual pôde aparelhar-se para os grandes livros posteriores. Publicado em pleno surto nordestino (1933), contrasta com os livros talentosos e apressados de então pelo cuidado da escrita e o equilíbrio do plano. Dá idéia de temporão, de livro nascido aos dez meses, espiritualmente vinculado ao galho já cedido do pós-naturalismo, cujo medíocre fastígio foi depois de Machado de Assis e antes de 1930. Nele, vemos aplicadas as melhores receitas da ficção realista tradicional, quer na estrutura literária, quer na concepção da vida.

 Graciliano foi mais regionalista - ou provincianista - neste romance.

 O título do livro, Caetés, é a aproximação que faz o Autor com selvagem caeté, devorando o Bispo Sardinha (1602-1656)) numa correspondência simbólica com a antropofagia de João Valério "devorando" Adrião, o rival.

 Neste romance, é forçosa a aproximação entre Graciliano Ramos e Eça de Queiros, nas notações irônicas sobre o meio provinciano de Palmeiras dos Índios, cidade alagoana da qual Graciliano foi prefeito.

Foco narrativo

 Narrado em primeira pessoa, por João Valério. 

Ação / Espaço

 A ação desenvolve-se em Palmeira dos Índios.

Temática

Caetés tem uma riqueza temática que poucos romances brasileiros de seu tempo têm. Note-se, nesse sentido, que a figura de João Valério representa a problematização, em alto grau de complexidade, do ambíguo papel do intelectual naquele momento em que o país passava por fortes transformações. Alguns críticos viram um sinal de grandeza de caráter nas inclinações intelectuais desse medíocre guarda-livros que colabora no jornal editado pelo padre da cidade e que durante cinco anos luta para concluir um romance sobre os índios caetés sem nunca conseguir sair do segundo capítulo.

Enredo

 João Valério, o personagem principal, introvertido e fantasioso, apaixona-se por Luisa, mulher de Adrião, dono da firma comercial, onde trabalha. O caso amoroso é denunciado por uma carta anônima, levando o marido traido ao suicídio. Arrependido, e arrefecidos os sentimentos, João Valério afasta-se de Luisa, continuando, porém como sócio da firma. O título do livro, Caetés, é a aproximação que faz o autor com selvagem caeté, devorando o Bispo Sardinha (1602-1656) numa correspondência simbólica com a antropofagia de João Valério "devorando" Adrião, o rival. João Valério, é ao mesmo tempo, homem e selvagem: "Não ser selvagem! Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora? Quatrocentos anos de civilização, outras raças, outros costumes. É eu disse que não sabia o que se passava na alma de um caeté! Provavelmente o que se passa na minha com algumas diferenças."

 A atmosfera geral do livro se liga também à lição pós-naturalista, onde encontramos a celebração dos aspectos mais banais e intencionalmente anti- heróicos do quotidiano. A intenção do autor parece ter sido horizontalizar ao máximo a vida dos personagens, as relações que mantém uns com os outros. Exceto o narrador, João Valério, os demais são delineados por meio de aspectos exteriores, em que se vão progressivamente revelando. O autor não apenas procura conhecê-los através do comportamento, como se revela amador pitoresco da morfologia corporal, definindo-lhe o modo de ser em ligação estreita às características somáticas: fisionomia, tiques, mãos, papada de um olho esbugalhado de outro, barbicha de um terceiro. Apresenta-os por esta edição de pequenos sinais externos, completando-os aos poucos no decorrer do livro, não sem alguma confusão, que requer esforço do leitor para identificar os nomes chamados à baila. E assim vemos de que modo a minúcia descritiva do naturalismo colide neste livro com uma qualidade que se tornará clara nas obras posteriores: a discrição e a tendência à elipse psicológica, cujo correlativo formal é a contenção e a síntese do estilo. "Com a pena irresoluta, muito tempo contemplei destroços flutuantes. Eu tinha confiado naquele naufrágio, idealizara um grande naufrágio cheio de adjetivos enérgicos, e por fim me aparecia um pequenino naufrágio inexpressivo, um naufrágio reles. E outro: dezoito linhas de letra espichada, com emendas." A vocação para a brevidade e o essencial aparece aqui na busca do efeito máximo por meio dos recursos mínimos, que terá em São Bernardo a expressão mais alta. E se Caetés ainda não tem a sua prosa áspera, já possui sem dúvida a parcimônia de vocábulos, a brevidade dos períodos, devidos à busca do necessário, ao desencanto seco e humor algo cortante, que se reúnem para definir o perfil literário do autor.

Fonte:

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 562)


Uma Trova de Ademar  

O estupro é forma indevida 
de dar ou fazer amor... 
Ele transforma uma vida 
numa gestação de dor! 
ADEMAR MACEDO/RN– 

Uma Trova Nacional  

Beleza é ter a prudência 
de uma vida pura e calma, 
onde a nossa consciência 
não cria rugas na alma! 
–DILVA MORAES/RJ– 

Uma Trova Potiguar  

Jamais eu me recusei
a confessar meu pecado,
a vida toda eu amei,
jamais me senti amado.
–WELLINGTON FREITAS/RN– 

Uma Trova Premiada  

2012 > Concepción/CHILE 
Tema > IDENTIDADE > M/H 

Mesmo em trovas mais dispersas,
por laços universais,
identidades diversas
congregam sonhos iguais. 
–WANDIRA FAGUNDES QUEIROZ/PR– 

...E Suas Trovas Ficaram  

– Quem deve paga! – berrava 
Herodes com seu poder. 
Dias depois, se enganava: 
Jesus pagou sem dever! 
–RENÊ BITTENCOURT/RJ– 

Uma Poesia  

Essa saudade que sinto
parece espinho de palma,
de manhã me fura o peito
de tarde me tira a calma;
de noite é pelo encravado
coçando dentro da alma!!! 
–HÉLIO CRISANTO/RN– 

Soneto do Dia  

O Beijo de Jesus. 
–JOSÉ ANTONIO JACOB/MG– 

Eu era criança, mas já percebia, 
O pouco pão que havia em nossa mesa 
E a aparência acanhada da pobreza 
Que tinha a nossa casa tão vazia. 

De noite, antes do sono, uma certeza: 
A minha mãe rezava a Ave-Maria! 
E ao terminar a prece eu sempre via 
No seu olhar uma esperança acesa. 

Após a reza desligava a luz, 
Beijava o crucifixo, e a fé era tanta 
Que adormecia perto de Jesus. 

Depois que ela dormia (isso que encanta) 
Nosso Senhor descia ali da cruz 
Para beijar a sua face santa...

João Anzanello Carrascoza (Apenas uma Ponte)

Ilustração: Milton Trajano
Chegara, enfim, o último dia de aula. Havia sido uma longa  trajetória até ali. Mas, agora, o professor observava com  ternura os alunos à sua frente, cada um voltado para seu  caderno, fazendo a lição que colocaria ponto final no ano  letivo. Então, agarrado à calmaria daquela hora, ele se  recordou do primeiro encontro com o grupo. Todos o miravam com  curiosidade, ansiosos por apanhar, como uma fruta, o  conhecimento que imaginavam lhe pertencia. Nem tinham idéia de  que aprenderiam por si mesmos, e que ele, mestre, não era a  árvore da sabedoria, mas apenas uma ponte que os levaria à sua  copa frondosa. Naquele dia, experimentara outra vez a emoção de  se deparar com uma nova turma, e o que o motivava a ensinar,  com tanta generosidade, era justamente o desafio de enfrentar  esse mistério. Sim, uma ponte. Uma ponte por onde transitassem os sonhos daquelas crianças, o movimento incessante de seus  desejos, o ir e vir de suas dúvidas, o vaivém do aprendizado em  constante algaravia. 

 Lembrou-se da dificuldade da Julinha nas operações de  multiplicar. O resultado correto era um território que ela nem  sempre conseguia atingir. Mas, agora, a garota estava lá,  segura da direção que deveria tomar. Ele fizera a ponte. O que  dizer da distância entre o José e o Augusto no início do ano,  ambos se temendo em silêncio, deixando de desfrutar da aventura  de uma grande amizade? Com paciência, ele os unira. Desde  então, não se desgrudavam. Podia vê-los dali, de sua mesa, um  ao lado do outro, concentrados em fazer a tarefa. Já a Maria  Sílvia, dona de uma letra redondinha, ainda há pouco lhe dera  um sorriso. Antes, contudo, vivia irritada, a letra sem apuro,  só garranchos. Fizera a ponte para ela. Mateus, à sua frente,  detestava Ciências e fugia das aulas no laboratório. Talvez porque só via dificuldade na travessia e não as maravilhas que o esperavam no outro extremo. O professor estendera-lhe a mão e o conduzira, até que, subitamente, ele se tornara o melhor aluno naquela matéria. Tinha também a Alessandra, tão silenciosa e tímida. Ia bem nos primeiros meses e, depois, o rendimento caíra. Ele descobrira que os pais dela viviam em conflito. Alertara-os para que dessem mais afeto à filha, e eis que ela florescera, voltando a ser uma boa aluna. 

 E lá estava, nas últimas fileiras, o Luís Fábio. Notara suas limitações e construíra uma ponte especial para ele, mas o menino não conseguira atravessá-la. Era assim: para alguns, bastavam uns passos; para outros, o percurso se encompridava. O professor suspirou. Fizera o seu melhor. Lembrou-se das palavras de Guimarães Rosa: "Ensinar é, de repente, aprender". 

 Sim, aprendera muito com seus alunos. Inclusive aprendera sobre si mesmo. Aquelas crianças haviam, igualmente, ligado pontos em sua vida. Agora, seguiriam novos rumos. Haveriam de encontrar outras pontes para superar os abismos do caminho. Ele permaneceria ali, pronto para levar uma nova classe até a outra margem. E o tempo, como um viaduto, haveria de conduzi-lo à emoção desse novo mistério.

Fonte:

Josafá Sobreira da Silva (Desabafo…)


Josafá é do Rio de Janeiro
3.Lugar no Concurso de Poesia Carlos Cezar

A minha paz, a paz que eu tinha, onde transita?
 Quisera tê-la a consolar minha alma aflita!
 Quisera achá-la, uma vez mais, em meu viver!
 Já tive dias tão alegres... tão festivos...
 já fui, talvez, o mais feliz dos seres vivos...
 quando não tinha um só desgosto a me abater!

 A paz, saudosa de outras trilhas mais bonitas,
 em que eu sorria e até zombava das desditas,
 buscou, quem sabe, transitar nesses caminhos...
 E eu me entristeço, vendo a paz retroceder,
 porque sem paz, não há deleite nem prazer,
 já que, sem ela, todos nós somos sozinhos!

 Eu a imagino recolhida ao meu passado,
 por desajuste à minha inércia... ao meu enfado,
 em que envolvia grande parte dos meus dias...
 É que a violência tomou conta da cidade
 e me roubou a sensação de liberdade:
 eu tive medo até das minhas companhias!

 Ah! Se, de novo, eu caminhasse, como outrora,
 sobre uma estrada enluarada, a qualquer hora,
 sentindo a paz, que já fugiu de tantas vidas;
 sorvendo o aroma que trescala a flor noturna,
 sem exibir minha aparência taciturna,
 de mente enferma, a imaginar balas perdidas!...

 Ah! Se o Bom Deus me libertasse do meu mundo,
 onde, sem paz, o ser humano, moribundo,
 a cada dia mais se avilta e se desfaz!...
 Como seria bela e nobre a minha vida,
 se cada rua à paz servisse de avenida...
 se tão somente eu transitasse em plena paz...

 Por não ter paz, transito por caminho tenso
 e, a cada passo, desgostoso, eu me convenço
 que nunca mais verei meus dias mais risonhos!
 E, numa angústia que parece não ter fim,
 a paz que eu tinha até já trama contra mim,
 quando incendeia o lindo bosque dos meus sonhos!...

Fonte:
http://caeseubt.blogspot.com.br/

Januária Alves (Minha Chupeta Virou Estrela)

Ilustração por Ionit Zilberman
Eu me chamo Pedro e tenho 7 anos. Eu tenho uma estrela, sabe?

 Uma estrelona, linda, que está lá no céu, brilhando, todos os dias.

Quando eu tinha 3 anos, para salvar meu dente da frente que ficou mole porque eu caí de boca brincando na gangorra da escola, minha dentista me disse que... EU TERIA QUE PARAR DE USAR A MINHA QUERIDA CHUPETA VERDE!

 - A chupeta ou o dente! - ela me mandou escolher.

 Bom, eu nem quis ouvir direito essa proposta tão maluca! A doutora Virgínia e a minha mãe tentaram conversar comigo, explicar por que era importante eu não perder um dente tão cedo e... nada. Eu só olhava com o olho mais comprido do mundo para a chupeta verde, minha companheira do sono mais gostoso do mundo! Como dormir sem ela?

 Na primeira noite em que fiquei sem a minha querida chupeta, só lembro de sentir o cheiro da minha mãe, que me carregou no colo enquanto papai dirigia nosso carro, passeando em frente ao meu parque preferido pra ver se eu enfim conseguia pegar no sono...

 No dia seguinte fui com minha mãe e meu irmão ao parque e levei pão para dar aos patos que moram num lago bem bonito que tem lá. Um pato maior e mais cinza que os outros me chamou a atenção. Ele veio várias vezes comer pão na minha mão e eu gostei dele. Parecia o patinho feio da história que meu pai sempre contava antes de eu dormir.

 Mamãe chegou perto de nós e disse que aquele era mesmo um pato especial. Ele costumava tomar conta das chupetas de alguns meninos. E fazia isso muito bem: ele transformava todas em estrelas! Superlegal!

 Pus o nome naquele pato de Pato Pão. Eu não queria perder nem o meu dente nem a minha chupeta... Talvez o Pato Pão fosse a soluçãopara o meu problema! Então... resolvi dar a minha chupeta verde para ele. Ele pegou minha chupeta verde com o bico e atirou longe, no lago. Eu fiquei olhando para ela boiando, boiando... até desaparecer... Na hora de entregar a minha chupeta verde, mesmo para um pato tão especial como o Pato Pão, eu segurei bem forte a mão da minha mãe e a do meu irmão!

 Enquanto a minha chupeta verde ia embora no lago, pensei que naquela noite ela não ia estar embaixo do meu travesseiro. Eu teria que ir até a janela se quisesse dar uma espiada nela.

 Quando a noite apareceu, meu pai chegou do trabalho e se deitou na cama comigo, olhando pro céu, procurando a minha estrela-chupeta verde. Eu vi primeiro e nós dois batemos palmas pra ela! Aí eu só me lembro de adormecer com aquele brilho de estrela no meu olho e a sensação do abraço enorme do meu pai.

 Todas as vezes em que penso na minha chupeta, olho pro céu, procurando a estrela-chupeta verde. Agora, a saudade, em vez de crescer como eu, fica menor a cada noite. Deve ser porque meninos grandes gostam mais de estrelas no céu do que de chupetas, eu acho.

Fonte:
Revista Nova Escola

Carlos Drummond de Andrade (A Menininha e o Gerente)


        - Não, paizinho, não! Quero ir com você!

        - Mas meu bem, não posso levar você lá. O lugar não  é  próprio. Não vou demorar nada, só dez minutos. Seja boazinha, fique me  esperando aqui.

        - Não, não!- a garotinha soluçava. Agarrou-se a  calça  do  pai como quem se agarra a uma prancha no mar. Ele insistia:

        - Que bobagem, uma  menina  de  sua  idade  fazendo  um  papelão desses.

        - Você não volta!

        - Volto, ora essa, juro que volto, meu amor.

        Prometendo, ele passeava  o  olhar  pela  rua,  impaciente.  Ela baixara a cabeça, chorando. Estavam diante  da  papelaria.  O  gerente assistia à cena. O homem aproximou-se dele:

        - Faz-me o obséquio de tomar conta de  minha  filha  por  alguns instantes? Vou a um lugar desagradável, não posso levá-la comigo.

        - Mas...

        - Quinze minutos no máximo. É ali adiante. Muito obrigado, bem?

        E sumiu. A garotinha continuava de olhos baixos, imóvel, o dorso da mão esquerda junto à boca. O gerente passou-lhe a mão nos cabelos, de leve.

        - Vem cá.

        Ela não se mexeu.

        - Como é que você se chama? Carmen? Luísa? Marlene?

        Como  não  respondesse,  o  gerente  foi  desfiando  nomes,  sem esperança de acertar. Mas ao dizer "Estela",  a  cabecinha  moveu-se, confirmando.

        - Estela, você sabe que está com um vestido muito bonito?

        Estela tirou a mão dos olhos, examinou o próprio vestido e não disse nada.

        Mas o gelo fora rompido. Daí a pouco o  gerente  mostrava-lhe  a caixa registradora e autorizava-a a marcar uma venda de 200 cruzeiros.

        - Olha um gatinho. Ele mora aqui?

        - Mora.

        - E que é que ele come?

        - Papel.

        - Mentiroso!

        - Então pergunte a ele.

        O gato acordou, deixou-se afagar e tornou a  dormir,  desta  vez nos braços de Estela.

        O gerente olhou o relógio; tinham se passado quinze  minutos,  o homem não aparecia. "Bonito se ele não vier mais. Que vou fazer com esta garotinha, na hora de fechar?"

        Tentou lembrar o rosto do desconhecido; impossível.  Já  pensava em telefonar para a polícia, quando Estela o puxou pela perna:

        - Além da máquina e do gatinho, você não tem mais nada  para  me mostrar?

        Ele abarcou com a vista a loja  toda  e  sentiu-a  mal  sortida, pobre. "Eu devia ter aberto uma loja de  brinquedos,  pelo  menos  um bazar." Experimentou com Estela o apontador de lápis, o grampeador. E  o homem não vinha. É, não vem mais. Estela andava de um lado  para  outro, dona do negócio. Ele, inquieto.

        - Não mexa nas gavetas, filhinha.

        - Não sou sua filhinha.

        - Desculpe.

        - Desculpo se você deixar eu abrir.

        - Então deixo.

        Dentro havia balões, estrelinhas, saldo do último Natal.  E  ele que não se lembrava daquilo. Estela riu de sua ignorância, e  o  homem não vinha. O movimento de fregueses declinava. Na calçada, as  filas  de lotação iam crescendo. Daí a pouco, a noite.

        Estela soprou um balão, outro, quis soprar dois ao mesmo  tempo. Um estourou. Ela assustou-se. Ele riu.

        "Se o homem não aparecesse mais, que bom! Aliás a cara dele  era de calhorda. Ainda bem que me escolheu." Levaria  Estela  para  casa,  a mulher  não  ia  estranhar,  fariam  dela  uma  filha -  a  filha   que praticamente não tinham mais, pois casara e morava longe, no Peru. E  se o pai reclamasse depois? Ora, quem entrega sua filha a um estranho,  diz que vai demorar quinze minutos, passa uma hora e não volta,  merece  ter filha?

        O empregado arniava a cortina de aço quando  apareceram  duas pernas, um tronco inclinado, uma cabeça.

        - Dá licença? Demorei mais do que  pensava,  desculpe.  Muito obrigado ao senhor. Vamos, filhinha.

        O gerente virou o rosto, para não ver,  mas  chegou  até  ele  a despedida de Estela:

        - Até-logo, homem do balão!

        E a filha ficou mais longe ainda, no Peru.

Fonte:
Para gostar de ler. Vol. 3. SP: Ed. Ática, 1978.

Casa do Poeta de Canoas (Lançamento da V Coletânea)



CASA DO POETA DE CANOAS
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domingo, 27 de maio de 2012

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 561)


Uma Trova de Ademar 

O inverno transforma vidas 
e põe um verde lençol 
para cobrir as feridas 
das queimaduras do sol... 
–ADEMAR MACEDO/RN– 

Uma Trova Nacional 

Desculpe, Amor, se me atraso 
na volta ao lar... Acontece 
que eu me perco, olhando o ocaso, 
enquanto o sol adormece!!! 
–MARIA MADALENA FERREIRA/RJ– 

Uma Trova Potiguar 

No instante em que o sol enfada 
de tanto aquecer a terra, 
deita a cabeça dourada 
no travesseiro da terra. 
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN– 

Uma Trova Premiada 

2006 > Balneário Camboriú/SC 
Tema > LUA > M/H 

Num arroubo apaixonado,
antes que a lua desponte,
o sol pinta de dourado
as paredes do horizonte...
–IZO GOLDMAN/SP– 

...E Suas Trovas Ficaram 

Entre o homem e a natureza, 
há contrastes sem medida: 
o pôr-do-sol – que beleza! 
Que tristeza o pôr-da-vida... 
–COLBERT RANGEL COELHO/MG– 

Uma Poesia 

Quando é noite, a lua cheia
vem surgindo no horizonte,
e logo depois que o sol 
se deita por trás do monte,
envolto nessa penumbra,
a minha alma se deslumbra
bebendo versos na fonte. 
–ADEMAR MACEDO/RN– 

Soneto do Dia 

Nós 
–GUILHERME DE ALMEIDA/SP– 

Quando as folhas caírem nos caminhos,
ao sentimentalismo do sol poente,
nós dois iremos vagarosamente,
de braços dados, como dois velhinhos...

E que dirá de nós toda essa gente,
quando passarmos mudos e juntinhos?
–" Como se amaram esses coitadinhos!
Como ela vai, como ele vai contente!"

E por onde eu passar e tu passares,
hão de seguir-nos todos os olhares
e debruçar-se as flores nos barrancos...

E por nós, na tristeza do sol posto,
hão de falar as rugas do meu rosto...
Hão de falar os teus cabelos brancos...