segunda-feira, 22 de abril de 2013

Pedro Kilkerry (Poemas Avulsos)

Pintura de Richard S. Johnson
SOB OS RAMOS

É no Estio. A alma, aqui, vai-me sonora,
No meu cavalo — sob a loira poeira
Que chove o sol — e vai-me a vida inteira
No meu cavalo, pela estrada afora.

Ai! desta em que te escrevo alta mangueira
Sob a copada verde a gente mora.
E em vindo a noite, acende-se a fogueira
Que se fez cinza de fogueira agora.

Passa-me a vida pelo campo... E a vida
Levo-a cantando, pássaros no seio,
Qual se os levasse a minha mocidade...

Cada ilusão floresce renascida;
Flora, renasces ao primeiro anseio
Do teu amor... nas asas da Saudade!

“ESSA, QUE PAIRA EM MEUS SONHOS”
Essa, que paira em meus sonhos,
Em meus sonhos a brilhar,
E tem nos lábios risonhos
O nácar do Iônio — Mar —
Numa fantasia estranha,
Estranhamente a sonhei
E de beleza tamanha,
Enlouqueci. É o que sei.
Ela era, em plaustro dourado
Levado de urcos azuis,
De Paros nevirrosado,
Ombros nus, os seios nus...
E que de esteiras de estrelas,
De prásio, opala e rubim!
Na praia perto, por vê-las
Vi que saltava um delfim
Que longamente as fitando
Alçou a cauda, a tremer
E outros delfins, senão quando
Aparecer.

CETÁCEO

Fuma. É cobre o zenite. E, chagosos do flanco,
Fuga e pó, são corcéis de anca na atropelada.
E tesos no horizonte, a muda cavalgada.
Coalha bebendo o azul um largo vôo branco.

Quando e quando esbagoa ao longe uma enfiada
De barcos em betume indo as proas de arranco.
Perto uma janga embala um marujo no banco
Brunindo ao sol brunida a pele atijolada.

Tine em cobre o zenite e o vento arqueja e o oceano
Longo enfroca-se a vez e vez e arrufa,
Como se a asa que o roce ao côncavo de um pano.

E na verde ironia ondulosa de espelho
Úmida raiva iriando a pedraria. Bufa
O cetáceo a escorrer d'água ou do sol vermelho.

RITMO ETERNO

Abro as asas da Vida à Vida que há lá fora.
Olha... Um sorriso da alma! — Um sorriso da aurora!
E Deus — ou Bem! ou Mal — é Deus cantando em mim,
Que Deus és tu, sou eu — a Natureza assim.

Árvore! boa ou má, os frutos que darás
Sinto-os sabendo em nós, em mim, árvore, estás.
E o Sol, de cujo olhar meu pensamento inundo,
Casa multiplicando as asas deste mundo...

Oh, braços para a Vida! Oh, vida para amar!
Sendo uma onda do mar, dou-me ilusões de um mar...
Alvor, turquesa, ondula a matéria... É veludo,

É minh'alma, é teu seio, e um firmamento mudo.
Mas, aos ritmos da Terra, és um ritmo do Amor?
Homem! ouve a teus pés a Natureza em flor!

É O SILÊNCIO...

É o silêncio, é o cigarro e a vela acesa.
Olha-me a estante em cada livro que olha.
E a luz nalgum volume sobre a mesa...
Mas o sangue da luz em cada folha.

Não sei se é mesmo a minha mão que molha
A pena, ou mesmo o instinto que a tem presa.
Penso um presente, num passado. E enfolha
A natureza tua natureza.
Mas é um bulir das cousas... Comovido
Pego da pena, iludo-me que traço
A ilusão de um sentido e outro sentido.
Tão longe vai!
Tão longe se aveluda esse teu passo,
Asa que o ouvido anima...
E a câmara muda. E a sala muda, muda...
Afonamente rufa. A asa da rima
Paira-me no ar. Quedo-me como um Buda
Novo, um fantasma ao som que se aproxima.
Cresce-me a estante como quem sacuda
Um pesadelo de papéis acima...
..........................................

E abro a janela. Ainda a lua esfia
Últimas notas trêmulas... O dia
Tarde florescerá pela montanha.

E oh! minha amada, o sentimento é cego...
Vês? Colaboram na saudade a aranha,
Patas de um gato e as asas de um morcego.

 VINHO

Alma presa da Grécia, em prisão de turquesa!
Vibre a Vida a cantar nessas taças à Vida,
Como, dentro do Sangue, a Alma da Natureza
— Num seio nu, num ventre nu, — ferve incendida!

Vinho de Cós! e quente! a escorrer sobre a mesa
Como um rio de fogo, onde vela perdida,
Braço branco, embalada à flor da correnteza,
Floresce ao sol, floresce à luz, floresce à Vida!

Oh! benvinda; benvinda essa vela que chega!
Nau de rastro que traz a ilusão de uma grega
Descerrando à Volúpia a clâmida aquecida...

Vinho de Cós! vinho de Cós! e os nossos olhos
De Virgílios a errar entre vagas e escolhos,
Argonautas de Amor sobre os mares da Vida!

 EVOÉ

Primavera! — versos, vinhos...
Nós, primaveras em flor.
E ai! corações, cavaquinhos
Com quatro cordas de Amor!

Requebrem árvores — ufa! —
Como as mulheres, ligeiro!
Como um pandeiro que rufa
O Sol, no monte, é um pandeiro!

E o campo de ouro transborda...
Ó Primavera, um vintém!
Onde é que se compra a corda
Da desventura, também?

Agora, um rio, água esparsa...
Nas águas claras de um rio,
Lavem-se penas à garça
Do riso, branco e sadio!

E o dedo estale, na prima...
Que primaveras, e em flor!
Ai! corações, uma rima
Por quatro versos de Amor!

FLORESTA MORTA
Por que, à luz de um sol de primavera
Uma floresta morta? Um passarinho
Cruzou, fugindo-a, o seio que lhe dera
Abrigo e pouso e que lhe guarda o ninho.

Nem vale, agora, a mesma vida, que era
Como a doçura quente de um carinho,
E onde flores abriam, vai a fera
— Vidrado o olhar — lá vai pelo caminho.

Ah! quanto dói o vê-la, aqui, Setembro,
Inda banhada pela mesma vida!
Floresta morta a mesma coisa lembro;

Sob outro céu assim, que pouco importa,
Abrigo à fera, mas, da ave fugida,
Há no peito uma floresta morta.

O VERME E A ESTRELA
Agora sabes que sou verme.
Agora, sei da tua luz.
Se não notei minha epiderme...
É, nunca estrela eu te supus
Mas, se cantar pudesse um verme,
Eu cantaria a tua luz!

E eras assim... Por que não deste
Um raio, brando, ao teu viver?
Não te lembrava. Azul-celeste
O céu, talvez, não pôde ser...
Mas, ora! enfim, por que não deste
Somente um raio ao teu viver?

Olho, examino-me a epiderme,
Olho e não vejo a tua luz!
Vamos que sou, talvez, um verme...
Estrela nunca eu te supus!
Olho, examino-me a epiderme...
Ceguei! ceguei da tua luz?

 HORAS ÍGNEAS

I
Eu sorvo o haxixe do estio...
E evolve um cheiro, bestial,
Ao solo quente, como o cio
De um chacal.

Distensas, rebrilham sobre
Um verdor, flamâncias de asa...
Circula um vapor de cobre
Os montes — de cinza e brasa.

Sombras de voz hei no ouvido
— De amores ruivos, protervos —
E anda no céu, sacudido,
Um pó vibrante de nervos.

O mar faz medo... que espanca
A redondez sensual
Da praia, como uma anca
De animal.

II
O Sol, de bárbaro, estangue,
Olho, em volúpia de cisma,
Por uma cor só do prisma,
Veleiras, as naus — de sangue...

III
Tão longe levadas, pelas
Mãos de fluido ou braços de ar!
Cinge uma flora solar
— Grandes Rainhas — as velas.
Onda por onda ébria, erguida,
As ondas — povo do mar —
Tremem, nest'hora a sangrar,
Morrem — desejos da Vida!

IV
Nem ondas de sangue... e sangue
Nem de uma nau — Morre a cisma.
Doiram-me as faces do prisma
Mulheres — flores — num mangue...

Fonte:
Apostila 12 de Simbolismo - Literatura Brasileira

Pedro Kilkerry (1885 – 1917)

(Salvador BA, 1885 - 1917)

Formou-se bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito da Bahia, em 1913.

Na época, já atuava como colaborador das revistas Nova Cruzada, Os Anais, Via Láctea, A Voz do Povo e de vários jornais, entre os quais A Tarde, A Gazeta do Povo e Jornal Moderno, onde publicou a série de crônicas Quotidianas - Kodaks.

Foi advogado e escriturário da Repartição de Contabilidade do Tribunal de Contas de Salvador.

Poeta simbolista, Kilkerry não publicou livro em vida. Apenas em 1971 ocorreria a publicação póstuma de 36 de seus poemas, no livro ReVisão de Kilkerry, de Augusto de Campos.

Para Campos, “Kilkerry não só compreendeu mais conscientemente que outros simbolistas o papel desempenhado na criação pelo subconsciente - mais tarde supervalorizado pelo Surrealismo - como soube levar mais longe a liberdade de associação imagética.

Por outro lado, a capacidade de síntese, assim como a consciência das limitações da sintaxe ordinária, são mais agudas em Kilkerry do que em qualquer outro poeta do nosso Simbolismo”.

Fonte:
Apostila 12 de Simbolismo - Literatura Brasileira

Adelto Gonçalves (Literatura Africana no Brasil)

Uma “redescoberta” da literatura africana no Brasil

I

A Editora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) colocou no mercado uma nova coleção, Poetas de Moçambique, em que apresenta antologias dos maiores poetas modernos de língua portuguesa e origem moçambicana. Segundo a editora, os autores escolhidos estabeleceram frequentemente diálogo com a literatura brasileira, especialmente com as obras de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Cecília Meireles (1901-1964), Vinicius de Moraes (1913-1980) e Manuel Bandeira (1886-1968). Os primeiros volumes são dedicados a José Craveirinha (1922-2003) e Rui Knopfli (1932-1997).

Craveirinha, primeiro autor africano galardoado com o Prêmio Camões, em 1991, é um dos nomes fundamentais da literatura moçambicana. Filho de pai algarvio e mãe ronga, é dono de uma obra concisa, que cobre cinco livros publicados em vida e duas coletâneas póstumas, além de dezenas de poemas espalhados em periódicos e antologias. Este livro reúne os principais poemas do autor com nota biobibliográfica de Emílio Maciel.

Já Rui Knopfli produziu uma encorpada e original obra literária durante o período colonial. Seus poemas selecionados estabelecem diálogo com as principais tradições clássicas e modernas da poesia. O livro traz posfácio com texto crítico e nota biobibliográfica de Roberto Said.

Ao mesmo tempo, a Ateliê Editorial, em parceria com a Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp), acaba de lançar Portanto... Pepetela, organizado por Rita Chaves e Tania Macêdo, professoras de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP). O angolano Pepetela, nascido Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, ganhador do Prêmio Camões de 1997, é talvez o mais importante romancista de seu país. Com apresentação do moçambicano Mia Couto, o livro reúne 38 artigos e ensaios de estudiosos da obra de Pepetela.

Nada mais alvissareiro do que essa “redescoberta” da literatura africana de expressão portuguesa. Mas desses três autores, apenas José Craveirinha é resultado da mistura do sangue português com africano. O que se espera é que esse interesse não se restrinja apenas a autores lusodescendentes, mas seja aberto a todos os africanos que fazem literatura em língua portuguesa.

II

Nada contra Pepetela, Agualusa, Mia Couto ou Luandino Vieira, nomes hoje incontestáveis no panorama da literatura africana de expressão portuguesa. O que se estranha é por que só descendentes de portugueses que nasceram em terras africanas têm largo espaço nos veículos de comunicação de Portugal e nas universidades de Portugal e do Brasil.
Basta ver que o livro Portanto... Pepetela traz, ao final, uma lista de 56 teses de doutorado e dissertações de mestrado defendidas em universidades brasileiras sobre a obra de Pepetela. Um exagero, evidentemente, porque há muitos outros autores africanos de expressão portuguesa que poderiam ser estudados. E não o são. Não se quer acreditar que seja por racismo, pois o que se espera é que esse tipo de comportamento seja algo já superado, sem razão de existir neste começo de século XXI.

Talvez seja ainda a "saudade do império colonial perdido", como disse Patrick Chabal, professor de Estudos Africanos do King´s College, de Londres, para se citar aqui um nome isento destas questiúnculas lusófonas, que impeça os acadêmicos e editores portugueses de enxergar que a lusofonia é uma falácia – que não vai chegar a lugar nenhum – enquanto eles não aceitarem a verdadeira dimensão da língua portuguesa para além da Europa.

Em outras palavras: Pepetela, Agualusa, Mia Couto e Luandino Vieira fazem parte da última geração de lusodescendentes que, nascidos na África, praticam uma literatura com vivência africana. Dentro de 20 ou 30 anos, quando provavelmente já não estiverem mais neste mundo, quem irá representar a literatura africana de expressão portuguesa senão os autóctones ou um ou outro miscigenado?

Portanto, o futuro da língua portuguesa na África vai depender dos naturais desses países por onde os portugueses criaram raízes – e também daquelas regiões que, hoje, sofrem com a opressão de vizinhos que não falam português. É o caso da Casamansa, província do Sul do Senegal, que ainda aspira livrar-se da opressão de Dakar para se tornar um país independente e membro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Será que em Casamansa não há um único poeta ou escritor que escreva em português? Ou somos nós que não queremos vê-los?

Como diz o escritor moçambicano João Craveirinha, por mais que se assumam "lusófonos", os escritores de tez escura serão sempre os "outros", os outsiders, os ex-colonizados. Entre esses, além de João Craveirinha, pode-se citar de uma enfiada Paulina Chiziane, Ungulani ba Ka Kossa, Nelson Saúte, Noémia de Sousa, Kalungano, Luís Bernardo Honwana e Suleimane Cassamo, de Moçambique; Adriano Mixinge, João Melo, Ondjaki, Victor Kajibanga, Uanhenga Xitu, Ana Paula Tavares, Luís Kandjimbo, de Angola; José Luís Hopffer Almada e Germano Almeida, de Cabo Verde; Abdulai Sila, Hélder Proença (?-2009) e Odete Semedo, da Guiné-Bissau; Alda do Espírito Santo e Tomás Medeiros, de São Tomé Príncipe. E muitos outros.

O que é preciso dizer – e quase ninguém o faz – é que persistir nessa visão preconceituosa é um erro, que equivale a dar um tiro no próprio pé, pois recusar-se a reconhecer que o futuro da língua portuguesa na África depende dos naturais daqueles países é condená-la ao desaparecimento. E olhem que quem escreve isto é um brasileiro de primeira geração, de pai português de Paços de Ferreira, Norte de Portugal, e de avós maternos açorianos.

III

Embora o desconhecimento no Brasil acerca dos assuntos africanos seja abissal, não se pode deixar de reconhecer que foi graças aos literatos brasileiros que a língua portuguesa continuou viva nas décadas de 1950, 60 e 70 na África de expressão portuguesa, especialmente entre aquela camada mais culta, que gostava de ler Jorge Amado (1912-2001), Érico Veríssimo (1905-1975), Guimarães Rosa (1908-1967) e outros tantos.

Rui Knopfli mesmo é um poeta fortemente influenciado pela literatura brasileira, além de suas grandes ligações com a poesia portuguesa moderna. De africano, só carrega o fato de ter nascido em Inhambane. Trata-se de um fino poeta, cuja poesia está entre o que de melhor se escreveu em língua portuguesa no século XX, mas que, ao contrário de Pepetela que permaneceu em Angola e lutou contra o colonialismo, deixou Moçambique tão logo o país se separou de Portugal. Jamais se assumiu "moçambicano" no anterior e muito menos no atual contexto africano e sociopolítico do pós-independência. Assumiu-se, sim, como um português de Moçambique agastado com os "pretos" da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) que queriam ser iguais aos "brancos".

A visão que Knopfli tinha da África era eurocêntrica, de um colono que pertencia a uma elite colonial intelectual que, provavelmente, sonhava com um Moçambique semelhante à Rodésia ou à África do Sul sem apartheid, mas com os chamados “brancos” a mandar nos "pretos", ou seja, “cada macaco no seu galho", para se repetir aqui uma expressão politicamente nada correta que se ouve ainda neste Brasil de racismo disfarçado. A lusitanidade européia de Knopfli sempre falou mais alto.

Quem conhece a vida moçambicana pré-independência sabe muito bem que Knopfli atacara a arte banta do escultor Alberto Chissano e do pintor Malangatana em termos depreciativos, como a dizer que eles nunca poderiam ascender a artistas plenos em razão de sua origem "primitiva", tal como os "bons selvagens" de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que seriam congenitamente limitados. Isto está na Revista Tempo, de Lourenço Marques (hoje Maputo), dos anos 1970-1971. Quem duvidar que consulte na Biblioteca Nacional de Lisboa a coleção da revista. Mas é claro que isto ninguém gosta de lembrar.

Como se sabe, na África os conceitos não são os mesmos vigentes no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa em relação ao ser e estar africano. Até porque na África os "nativos" não foram exterminados como os ameríndios nas Américas. E, como continuam a sê-lo no Brasil em pleno século XXI. Para se ter um exemplo desse holocausto, basta ver que os traços indígenas hoje são pouco perceptíveis no brasileiro médio, exceto talvez no homem do Centro-Oeste e do Amazonas, ao contrário do que se pode constatar no Chile, no Paraguai, na Bolívia, no Equador e até na antigamente tão conservadora Argentina. Basta ver o que fazem, nos dias de hoje, certos fazendeiros e seus capangas com os caiowás, em Mato Grosso do Sul, sem que as autoridades tomem qualquer providência mais efetiva.

Na África, os autóctones continuam a ser maioria esmagadora e isso tem um peso enorme na consciência dos africanos, mesmo em meio a crises econômicas. Até mesmo porque eles estavam num estágio de desenvolvimento superior ao dos indígenas americanos, o que obrigou a chamada colonização portuguesa a restringir-se a vilas e destacamentos litorâneos. Até mesmo para “atravessar” o comércio da escravatura, os portugueses dependiam de nações africanas que traziam subjugados seus inimigos para comercializá-los nas praias. Com isso, a ocupação européia, de um modo geral, nunca conseguiu apagar no homem africano o grande sentimento de pertença ao legado banto.

Como tudo isso são águas e ressentimentos passados, o que importa hoje é preservar a língua de Camões também na África. E essa preservação passa por um apoio mais decisivo em favor da divulgação e estudo da literatura de expressão portuguesa que é hoje praticada por africanos de todos os matizes de pele, indistintamente.

PORTANTO... PEPETELA, de Rita Chaves e Tania Macêdo (organizadoras). São Paulo: Ateliê Editorial/Fapesp, 2009, 389 págs.
ANTOLOGIA POÉTICA, de José Craveirinha. Organizadora: Ana Mafalda Leite. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, 198 págs.
ANTOLOGIA POÉTICA, de Rui Knopfli. Organizador: Eugénio Lisboa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, 206 págs.


Fonte:
Storm Magazine

Alphonse Daudet (As Fadas da França)

 — Acusado, levante-se! — disse o presidente.

Ocorreu um movimento hediondo no banco dos réus incendiários, e algo informe e tiritante veio apoiar-se contra a barra. Era um feixe de trapos, de buracos, de peças, de cordas, de velhas flores, de velhos penachos; por cima de tudo, um pobre rosto fanado, brunido, enrugado, maltratado, em que a malícia de dois pequenos olhos negros cintilava no meio das rugas, como um lagarto na fenda de um velho muro.

— Como se chama? — perguntaram-lhe.

— Melusina.

— Como disse?...

Ela repetiu gravemente:

— Melusina.

Sob o forte bigode de coronel dos dragões, o presidente teve um sorriso, mas continuou impassível:

— Idade?

— Não sei mais.

— Profissão?

— Eu sou fada!...

De espanto, o auditório, o conselho, o próprio comissário do governo, toda a gente, enfim, soltou uma grande gargalhada. Mas isso não a perturbou absolutamente, e com voz frágil, clara e cheia de trêmulos, que subia alto na sala e planava como uma voz de sonho, a velha retornou:

— Ah! as fadas da França! Onde estão elas? Todas mortas, meus bons senhores. Eu sou a última. Não resta mais nenhuma senão eu... Na verdade, é grande prejuízo, pois a França era bem mais bela quando ainda tinha fadas. Éramos a poesia do país, sua fé, sua candura, sua juventude. Todos os lugares que freqüentávamos — os fundos dos parques cheios de mataréu, as pedras das fontes, as pequenas torres dos velhos castelos, as brumas dos lagos, as grandes planícies pantanosas — recebiam de nossa presença algo de mágico e de imenso. À claridade fantástica das lendas, viam-nos passar um pouco por toda parte, arrastando as saias num raio de luar, ou correndo pelos prados, na extremidade das plantas. Os camponeses nos amavam, nos veneravam.

Nas imaginações ingênuas, nossas frontes coroadas de pérolas, nossas varinhas de condão, nossos bastões encantados, misturavam um pouco de temor à adoração. Nossas fontes, igualmente, permaneciam sempre claras. As charruas se detinham nos caminhos que guardávamos; e como inspirávamos o respeito pelo que era antigo — nós, as mais velhas do mundo — de um a outro extremo da França deixavam-se as florestas crescerem, as pedras se deslocarem por si mesmas.

Mas o século progrediu. As estradas de ferro vieram. Cavaram-se túneis, entulharam-se os lagos, cortaram-se tantas árvores, que bem depressa não sabíamos mais onde nos metermos. Pouco a pouco, os camponeses deixaram de acreditar em nós. À noite, quando batíamos nos postigos, Robin dizia: “É o vento”, e tornava a dormir. As mulheres vinham lavar roupa nos lagos. Desde então tudo se acabou para nós. Como não vivíamos senão da crença popular, perdendo-a, tínhamos perdido tudo. A virtude das nossas varas de condão esvaiu-se, e, de poderosas rainhas que éramos, transformamo-nos em velhas mulheres, enrugadas, malvadas como fadas esquecidas; com o pão para ganhar e mãos que não sabiam fazer nada, além disso.

Durante algum tempo, éramos encontradas nas florestas, arrastando cargas de lenha seca ou amontoando espigas à beira das estradas. Mas os florestais eram duros para nós, os camponeses nos atiravam pedras. Então, como os pobres que não encontram mais no que ganhar a vida na região, fomos procurar trabalho nas grandes cidades.

Algumas entraram nas fiações. Outras venderam maçãs de inverno, à entrada das pontes, ou objetos religiosos nas portas das igrejas. Empurrávamos diante de nós carrocinhas de laranjas, estendíamos aos passantes ramalhetes de um níquel, que ninguém queria, e os pequenos zombavam de nossos queixos trêmulos, e os sargentos da cidade nos faziam correr, e os ônibus nos atropelavam. Depois a doença, as privações, um lençol de hospital sobre a cabeça... E eis aí como a França deixou todas as suas fadas morrerem. Ela tem sido bem punida por isso!

Sim, sim! Riam, meus caros. Não obstante, acabamos de ver no que se torna um país que não tem mais fadas. Vimos todos esses camponeses gananciosos e sorridentes abrirem suas caixas de pão aos prussianos e lhes indicarem as estradas. Aí está! Robin não acreditava mais nos sortilégios; mas também não acreditava mais na pátria... Ah! se houvéssemos estado ali, nós outras, de todos esses alemães que entraram em França não sairia um vivo. Nossos duendes, nossos feios diabinhos os teriam conduzido pelos caminhos que se afundam na terra. Em todas as fontes puras que levavam nossos nomes, teríamos misturado beberagens encantadas que os teriam enlouquecido; e, em nossas reuniões, ao luar, com uma palavra mágica, teríamos confundido de tal forma as estradas, os rios, e entrançado tão bem espinhos, sarças, carrascais — essas partes baixas do bosque, onde eles iam sempre enroscar-se — que os olhinhos de gato do Sr. de Moltke não poderiam jamais reconhecê-los.

Conosco os camponeses teriam marchado. Grandes flores dos nossos lagos nos teriam dado bálsamo para os ferimentos, os fios da Virgem nos teriam servido de pensos; e, nos campos de batalha, o soldado, ao morrer, teria visto a fada do seu cantão inclinar-se sobre seus olhos semifechados, para lhe mostrar um canto de bosque, um trecho de estrada, alguma coisa que lhe lembrasse a terra natal. É com isto que se faz a guerra nacional, a guerra santa. Mas, ai de nós! Nos países que já não crêem, nos países que já não têm fadas, essa guerra não é mais possível.

Aqui a frágil voz delicada interrompeu-se por um momento, e o presidente tomou a palavra:

— Tudo isto não nos diz o que fazia a senhora com o petróleo encontrado em seu poder, quando os soldados a detiveram.

— Eu queimava Paris, meu bom senhor — respondeu a velha, muito tranqüilamente. — Eu incendiava Paris, porque a odeio, porque ela se ri de tudo, porque foi ela que nos matou. Foi Paris que enviou sábios para analisarem nossas belas fontes miraculosas, e dizerem exatamente o que entrava de ferro e de enxofre na sua composição. Paris zombou de nós nos teatros. Nossos encantamentos se tornaram truques; nossos milagres, divertimentos; e viram-se tantas caras abjetas ostentarem nossos vestidos cor-de-rosa, nossos carros alados, em meio ao luar e aos fogos de Bengala, que ninguém mais pensa em nós sem rir... Havia pequerruchos que nos conheciam pelos nomes, que nos amavam e nos temiam um pouco.

Mas, em lugar dos belos livros, enfeitados de ouro e de figuras, onde aprendiam nossa história, Paris agora lhes põe nas mãos a ciência ao alcance das crianças, grossos alfarrábios, de onde o aborrecimento remonta como poeira cinzenta e apaga nos pequeninos olhos os palácios encantados e os espelhos mágicos... Oh! sim, estou contente de os ver queimar, vossa Paris... Era eu que enchia as caixas dos incendiários, e eu própria que os conduzia aos lugares adequados: “Vão, meus filhos, queimem tudo, queimem, queimem...”

— Decididamente, essa velha é louca — disse o presidente. — Podem levá-la.

Fonte:
Alphonse Daudet. Contos. SP: Cultrix, 1993.

Giselda Leirner (Ano Novo)

Feigel ou Feiga como o nome polonês indica, tem cara de passarinho. O olho redondo pisca e lacrimeja. O nariz adunco, mesmo depois da cirurgia plástica, continua agudo, apesar de arrebitado artificialmente. A boca fina, os dentes pequenos amarelos. Não é feia. Tampouco bonita.

Nunca a vi nua. Quando fazemos amor, não permite que a veja. Apaga as luzes, fecha persianas e cortinas, deita de camisola.

Sinto sua pele suave, os seios são pequenos, o sexo agradável. Nunca sei se gozou ou não. Dá uns gemidos. Poucos e fracos, mais como suspiros. Quando lhe pergunto, diz que sim, mas a voz é fria, quase seca.

Já decidi não voltar, e volto. Quando ao sair dou-lhe um beijo, mais de obrigação que de vontade, seu rosto se afasta.

De seu passado só consigo saber algo quando já está bêbada de vodca-martini, que prepara com esmero. Enquanto tomo um wisky com gelo, vagarosamente, ela já tomou três drinks. Procuro tirar sua roupa, mas só chego até a calcinha e soutien. Sempre pretos.

O que possui de belo, e é a única coisa assim delicada e contrastante com o resto, são as mãos de longos dedos, e unhas pintadas de vermelho, da cor do batom, que retira com cuidado antes de nos deitarmos em sua cama enorme e suntuosa.

Os cabelos antes grossos e crespos, com o tempo, tornaram-se finos e ralos . Às vezes tenho na boca fios que se desprendem de sua cabeça agora grisalha . Por que continuo vindo ? me acostumei. Preguiça de encontrar outra. Não a amo. Cada vez falamos menos. Parecemos dois personagens com os corpos enterrados na areia. Gosto de Becket. Aliás, a única coisa a me sustentar é a leitura. Quando acordo em meu quarto de solteiro, olho a minha volta e vejo livros, fico feliz. Mesmo que não os tenha lido todos, sei que estão á minha espera. Me satisfaz a idéia de possuir o prazer antecipado. De meu, só tenho os livros e a musica que deixo tocando mesmo quando saio. Trabalho como garçom em um café, e estudo teatro à noite. Sou moço, tenho vinte e sete anos. Feiguel cinqüenta. Não vou à sua casa todas as noites, umas duas ou três vezes por semana somente.

Ela já me pediu em casamento. Não sei porque quer casar. É rica, mora em belo apartamento, tem duas empregadas e um motorista. Já passou da idade de ter filhos. Nunca os teve. Viúva, foi o marido quem lhe deixou a fortuna.

Não me queixo da vida. Tenho planos, e neles, Feiguel não está incluída. Qualquer dia desses eu a deixo, com seus potes de creme, xampus, e perfumes, com sua casa sempre arrumada. Os armários repletos de roupas que não usa. Veste sempre uma saia de listas, o casaquinho justo, com o botão de cima desabotoado. Os sapatos, por mais caros que sejam, parecem tortos e usados. Deve ter sido pobre. A pobreza ainda se encontra entranhada, não importa o quanto se passe uma esponja, se lave, se esfregue. Aparece mais quando já desapareceu de verdade. A mancha se vai ao esfregar, mas fica o halo em sua volta.

Eu, que não tenho nada, possuo um ar de elegância inata de quem já possuiu muito. Será minha juventude intocada ? meu ar de limpeza ? A camisa sempre branca, meu único par de jeans colado ao corpo sem uma ruga. Gosto de minha aparência . Olho-me muito nos espelhos onde quer que os haja, e aprecio o olhar das mulheres sobre mim.

Em tudo sou diferente dela. Nunca me entedio. Ela vive preguiçosamente entediada. Apesar da vasta biblioteca fechada, só vê revistas, nunca as lê. Somente os textos sob as fotos.

Tem aulas de ginástica, yoga, visita médicos, e compra remédios que não toma, ou toma e diz que lhe fazem mal. Vê TV durante o dia, e à noite fica bebendo até ir dormir.

Antes de adormecer, olha para mim e diz: — Não agüento mais —. Eu não respondo. Ela continua — Eu não agüento mais —. E adormece.

Como raramente sai de casa, os domingos que passamos juntos, são silenciosos. Gosto disso. Sento-me à janela, vejo ao longe uma paisagem que de aparência imutável transforma-se a cada instante em que muda a luz. Posso ficar horas olhando as mínimas transformações que vão ocorrendo, ouvindo Mozart no toca discos esplêndido que Feiga deixa ligado em alto som.

Não gostando de cozinhar, sou eu quem prepara o almoço. Uma salada de salmão, pepinos e kani. Acompanhada de um saquê gelado que sirvo em pequenas caixas pretas laqueadas com seu interior vermelho. O saquê tomamos vagarosamente. Ela não fala. Nem eu sei se ouve a musica ou não. Deitada no sofá fuma. Coisa que odeio. Não o ato de fumar, mas o cheiro que atrapalha o prazer que sinto ao olhar para fora , ouvindo Mozart.

Nesses dias não fazemos amor. Não tenho vontade. Ela não mostra interesse. Nem as revistas folheia.

Às vezes lixa as unhas, e retoca o esmalte vermelho.

Adormeço no sofá ao lado da janela, e os sons, os minúsculos ruídos de uma mosca que passa, o perfume que vem de fora misturado ao de cigarro e esmalte, tudo isso me transporta para uma região que desconheço, e que no sono encontro sempre. Uma planície. Ao fundo montanhas cobertas de neve, e uma fogueira que arde. Como gosto de cinema, um dia encontrei a paisagem do sonho em um filme .

Ao anoitecer, despeço-me com um leve beijo em seu rosto. Não desejo sua boca. Ela se afasta, e em vez de me dizer adeus, diz : — Não agüento mais.

Entro em meu carro, e suas palavras não ressoam. São sempre as mesmas, já me acostumei.

Era a noite de Ano Novo, fui a um bar onde fiquei tomando um wisky, da maneira que gosto, vagarosamente, duas pedras de gelo e um pouco de club soda.

Não ouço o ruído em minha volta, mas gosto de pensar na imagem recorrente de meu sonho, que traz consigo a paz de que necessito.

À meia noite, com o vozerio das pessoas já embriagadas não só pela bebida , mas pela falsa alegria da passagem de um ano a outro, que não muda, ou se muda não o percebem, pensei em Feiguel e resolvi ligar para ela. Depois de longo tempo, o telefone tocando, ela atendeu com voz sonolenta

— Como está você ? Ligo para te desejar um feliz Ano Novo.

— O que? Ano Novo?

— Sim. Fiquei assim calado sem saber o que dizer.

—Nada, nem um ruído, fora o do bar em minha volta.

— Por que você está me ligando? Estou dormindo.

— Nada. Só porque quero te desejar um feliz Ano Novo.

— Não seja idiota

— O que ?

— Sim, não seja idiota.

— Está bem. Boa noite.

Desliguei o telefone e pela primeira vez, tive pena dela. Pedi mais uma bebida, e fui para meu quarto, já tonto, onde dormi até o dia seguinte, chuvoso e triste.
–––––––––––

Giselda Leirner (1928) nasceu em São Paulo (SP) de uma família de artistas. Irmã do artista plástico Nelson Leirner e do médico e fotógrafo Adolfo Leirner, tem duas filhas:Sheila Leirner e Laurence Klinger. É bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo, com pós-graduação em Filosofia da Religião. Publicou "A Filha de Kafka"(contos, Massao Ono, 1999 e Gallimard, 2005), "Nas Águas do Mesmo Rio" (romance, Ateliê, 2005) e "O nono mês" (romance, Perspectiva).

 Artista plástica, foi aluna de grandes nomes das artes como Emiliano Di Cavalcanti, Poty Lazarotto e Yolanda Mohalyi, assim como no Art Students League e na Parson School of Design, em Nova York. Participou das Bienais de São Paulo de 1953 e 1955, além da grande mostra Tradição e Ruptura em 1984. Apresentou trabalhos em várias mostras individuais e coletivas, no Brasil e no exterior.


Fonte:
http://www.releituras.com/gleirner_menu.asp

Machado de Assis (Dom Casmurro) Parte 9

CAPÍTULO LVII / DE PREPARAÇÃO

Ah! Mas não eram só os seminaristas que me iam saindo daquelas folhas velhas do Panegírico. Elas me trouxeram também sensações passadas, tais e tantas que eu não poderia dizê-las todas, sem tirar espaço ao resto. Uma dessas, e das primeiras quisera contá-la aqui em latim. Não é que a matéria não ache termos honestos em nossa língua, que é casta para os castos, como pode ser torpe para os torpes. Sim, leitora castíssima, como diria o meu finado José Dias podeis ler o Capítulo até ao fim, sem susto nem vexame.

Já agora meto a história em outro Capítulo. Por mais composto que este me saia, há sempre no assunto alguma cousa menos austera, que pede umas linhas de repouso e preparação. Sirva este de preparação. E isto é muito, leitor meu amigo; o coração, quando examina a possibilidade do que há de vir, as proporções dos acontecimentos e a cópia deles, fica robusto e disposto, e o mal é menor mal. Também, se não fica então, não fica nunca. E aqui verás tal ou qual esperteza minha; porquanto, ao ler o que vais ler, é provável que o aches menos cru do que esperavas.

CAPÍTULO LVIII / O TRATADO

Foi o caso que, uma segunda-feira, voltando eu para o seminário, vi cair na rua uma senhora. O meu primeiro gesto, em tal caso, devia ser de pena ou de riso; não foi uma nem outra cousa, porquanto (e é isto que eu quisera dizer em latim), porquanto a senhora tinha as meias mui lavadas, e não as sujou, levava ligas de seda, e não as perdeu. Várias pessoas acudiram, mas não tiveram tempo de a levantar; ela ergueu-se muito vexada, sacudiu-se, agradeceu, e enfiou pela rua próxima.

--Este gosto de imitar as francesas da Rua do Ouvidor, dizia-me José Dias andando e comentando a queda, é evidentemente um erro. As nossas moças devem andar como sempre andaram, com seu vagar e paciência, e não este tique-tique afrancesado...

Eu mal podia ouvi-lo. As meias e as ligas da senhora branqueavam e enroscavam-se diante de mim, e andavam, caíam, erguiam-se e iam-se embora. Quando chegamos à esquina, olhei para a outra rua, e vi, a distancia, a nossa desastrada, que ia no mesmo passo, tique-tique, tique-tique...

--Parece que não se machucou, disse eu.

--Tanto melhor para ela, mas é impossível que não tenha arranhado os joelhos; aquela presteza é manha...

Creio que foi "manha" que ele disse; eu fiquei "nos joelhos arranhados". Dali em diante, até o seminário, não vi mulher na rua, a quem não desejasse uma queda, a algumas adivinhei que traziam as meias esticadas e as ligas justas... Tal haveria que nem levasse meias... Mas eu as via com elas... Ou então... Também é possível...

Vou esgarçando isto com reticências para dar uma idéia das minhas idéias, que eram assim difusas e confusas; com certeza não dou nada. A cabeça ia-me quente, e o andar não era seguro. No seminário, a primeira hora foi insuportável. As batinas traziam ar de saias, e lembravam-me a queda da senhora. Já não era uma só que eu via cair; todas as que eu encontrara na rua, mostravam-me agora de relance as ligas azuis; eram azuis. De noite, sonhei com elas. Uma multidão de abomináveis criaturas veio andar à roda de mim, tique-tique... Eram belas, umas finas, outras grossas, todas ágeis como o diabo. Acordei, busquei afugentá-las com esconderijos e outros métodos, mas tão depressa dormi como tornaram, e, com as mãos presas em volta de mim, faziam um vasto círculo de saias ou, trepadas no ar, choviam pés e pernas sobre a minha cabeça. Assim fui até madrugada. Não dormi mais; rezei padre-nossos, ave-marias, e credos, e sendo este livro a verdade pura, é força confessar que tive de interromper mais de uma vez as minhas orações para acompanhar no escuro uma figura ao longe, tique-tique, tique-tique... Pegava depressa na oração, sempre no meio para concertá-la bem, como se não tivesse havido interrupção, mas certamente não unia a frase nova à antiga.

Vindo o mal pela manhã adiante, tentei vencê-lo, mas por um modo que o não perdesse de todo. Sábios da Escritura, adivinhai o que podia ser. Foi isto. Não podendo rejeitar de mim aqueles quadros, recorri a um tratado entre a minha consciência e a minha imaginação. As visões feminis seriam de ora avante consideradas como simples encarnações dos vícios, e por isso mesmo contempláveis, como o melhor modo de temperar o caráter e aguerri-lo para os combates ásperos da vida. Não formulei isto por palavras, nem foi preciso; o contrato fez-se tacitamente, com alguma repugnância, mas fez-se. E por alguns dias, era eu mesmo que evocava as visões para fortalecer-me, e não as rejeitava, senão quando elas mesmo de cansadas, se iam embora.

CAPÍTULO LIX / CONVIVAS DE BOA MEMÓRIA

Há dessas reminiscências que não descansam antes que a pena ou a língua as publique. Um antigo dizia arrenegar de conviva que tem boa memória. A vida é cheia de tais convivas, e eu sou acaso um deles, conquanto a prova de ter a memória fraca seja exatamente não me acudir agora o nome de tal antigo; mas era um antigo, e basta.

Não, não, a minha memória não é boa. Ao contrário, é comparável a alguém que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras nem nomes, e somente raras circunstancias. A quem passe a vida na mesma casa de família, com os seus eternos móveis e costumes, pessoas e afeições, é que se lhe grava tudo pela continuidade e repetição. Como eu invejo os que não esqueceram a cor das primeiras calças que vestiram! Eu não atino com a das que enfiei ontem Juro só que não eram amarelas porque execro essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido e confusão.

E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as cousas que não achei nele. Quantas idéias finas me acodem então! Que de reflexões profundas! Os rios, as montanhas, as igrejas que não vi nas folhas lidas, todos me aparecem agora com as suas águas, as suas árvores, os seus altares, e os generais sacam das espadas que tinham ficado na bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e tudo marcha com uma alma imprevista que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas.

CAPÍTULO LX / QUERIDO OPÚSCULO

Assim fiz eu ao Panegírico de Santa Mônica, e fiz mais: pus-lhe não só o que faltava da santa, mas ainda cousas que não eram dela. Viste o soneto, as meias, as ligas, o seminarista Escobar e vários outros. Vais agora ver o mais que naquele dia me foi saindo das páginas amarelas do opúsculo.

Querido opúsculo, tu não prestavas para nada, mas que mais presta um velho par de chinelas? Entretanto, há muita vez no casal de chinelas um como aroma e calor de dous pés. Gastas e rotas, não deixam de lembrar que uma pessoa as calçava de manhã, ao erguer da cama, ou as descalçava à noite, ao entrar ela. E se a comparação não vale, porque as chinelas são ainda uma parte da pessoa e tiveram o contacto dos pés, aqui estão outras lembranças, como a pedra da rua, a porta da casa, um assobio particular, um pregão de quitanda, como aquele das cocadas que contei no cap. XVIII. Justamente, quando contei o pregão das cocadas, fiquei tão curtido de saudades que me lembrou fazê-lo escrever por um amigo, mestre de música, e grudá-lo às pernas do Capítulo. Se depois jarretei o Capítulo, foi porque outro músico, a quem o mostrei, me confessou ingenuamente não achar no trecho escrito nada que lhe acordasse saudades. Para que não aconteça o mesmo aos outros profissionais que porventura me lerem, melhor é poupar ao editor do livro o trabalho e a despesa da gravura. Vês que não pus nada, nem ponho. Já agora creio que não basta que os pregões de rua, como os opúsculos de seminário, encerrem casos, pessoas e sensações; é preciso que a gente os tenha conhecido e padecido no tempo, sem o que tudo é calado e incolor.

Mas, vamos ao mais que me foi saindo das páginas amarelas.

CAPÍTULO LXI / A VACA DE HOMERO

O mais foi muito. Vi saírem os primeiros dias da separação, duros e opacos, sem embargo das palavras de conforto que me deram os padres e os seminaristas, e as de minha mãe e tio Cosme, trazidas por José Dias ao seminário.

--Todos estão saudosos, disse-me este, mas a maior saudade está naturalmente no maior dos corações; e qual é ele? perguntou escrevendo a resposta nos olhos.

--Mamãe, acudi eu.

José Dias apertou-me as mãos com alvoroço, e logo pintou a tristeza de minha mãe, que falava de mim todos os dias, quase a todas as horas. Como a aprovasse sempre, e acrescentasse alguma palavra relativamente aos dotes que Deus lhe dera, o desvanecimento de minha mãe nessas ocasiões era indescritível; e contava-me tudo isso cheio de uma admiração lacrimosa. Tio Cosme também se enternecia muito.

--Ontem até se deu um caso interessante. Tendo eu dito à Excelentíssima que Deus lhe dera, não um filho, mas um anjo do céu e doutor ficou tão comovido que não achou outro modo de vencer o choro senão fazendo-me um daqueles elogios de galhofa que só ele sabe. Não é preciso dizer que D. Glória enxugou furtivamente uma lágrima. Ou ela não fosse mãe! Que coração amantíssimo!

-- Mas, Sr. José Dias, e a minha saída daqui?

-- Isso é negócio meu. A viagem à Europa é o que é preciso, mas pode fazer-se daqui a um ou dous anos, em 1859 ou 1860.

--Tão tarde!

--Era melhor que fosse este mesmo ano, mas demos tempo em tempo. Tenha paciência, vá estudando, não se perde nada em ir sabendo já daqui alguma cousa; e, demais, ainda não acabando padre a vida do seminário é útil, e vale sempre entrar no mundo ungido com os santos óleos da teologia...

Neste ponto,--lembra-me como se fosse hoje,--os olhos de José Dias fulguraram tão intensamente que me encheram de espanto As pálpebras caíram depois, e assim ficaram por alguns instantes, até que novamente se ergueram, e os olhos fixaram-se na parede do pátio, como que embebidos em alguma cousa, se não era em si mesmos, depois despegaram-se da parede e entraram a vagar pelo pátio todo. Podia compará-lo aqui à vaca de Homero; andava e gemia em volta da cria que acabava de parir. Não lhe perguntei o que é que tinha, já por acanhamento, já porque dous lentes, um deles de teologia, vinham caminhando na nossa direção. Ao passarem por nós, o agregado, que os conhecia, cortejou-os com as deferências devidas, e pediu-lhes notícias minhas.

--Por ora nada se pode afiançar, disse um deles, mas parece que dará conta da mão.

--O que eu lhe dizia agora mesmo, acudiu José Dias. Conto ouvir-lhe a missa nova; mas ainda que não chegue a ordenar-se, no pode ter melhores estudos que os que fizer aqui. Para a viagem da existência, concluiu demorando mais as palavras, irá ungido com os santos óleos da teologia...

Desta vez a fulguração dos olhos foi menor, as pálpebras não lhe caíram nem as pupilas fizeram os movimentos anteriores. Ao contrário, todo ele era atenção e interrogação; quando muito, um sorriso claro e amigo lhe errava nos lábios. O lente de teologia gostou da metáfora, e disse-lho; ele agradeceu, explicando que eram idéias que lhe escapavam no correr da conversação; não escrevia nem orava. Eu é que não gostei nada; e logo que os lentes se foram, sacudi a cabeça:

--Não quero saber dos santos óleos da teologia; desejo sair daqui o mais cedo que puder, ou já...

--Já, meu anjo, não pode ser; mas pode suceder que muito antes do que imaginamos. Quem sabe se este mesmo ano de 58? Tenho um plano feito, e penso já nas palavras com que hei de expô-lo a D. Glória; estou certo que ela cederá e irá conosco.

--Duvido que mamãe embarque.

--Veremos. Mãe é capaz de tudo; mas, com ela ou sem ela, tenho por certa a nossa ida, e não haverá esforço que eu não empregue, deixe estar. Paciência é que é preciso. E não faça aqui nada que dê lugar a censuras ou queixas; muita docilidade e toda a aparente satisfação. Não ouviu o elogio do lente? É que você tem-se portado bem. Pois continue.

--Mas, 1859 ou 1860 é muito tarde.

--Será este ano, replicou José Dias.

--Daqui a três meses?

--Ou seis.

--Não; três meses.

--Pois sim. Tenho agora um plano, que me parece melhor que outro qualquer. É combinar a ausência de vocação eclesiástica e a necessidade de mudar de ares. Você por que não tosse?

--Por que não tusso?

--Já, já, não, mas eu hei de avisar você para tossir, quando for preciso, aos poucos, uma tossezinha seca, e algum fastio; eu irei preparando a Excelentíssima... Oh! tudo isto é em benefício dela. Uma vez que o filho não pode servir a Igreja, como deve ser servida, o melhor modo de cumprir a vontade de Deus é dedicá-lo a outra cousa. O mundo também é igreja para os bons...

Pareceu-me outra vez a vaca de Homero, como se este "mundo também é igreja para os bons", fosse outro bezerro, irmão dos "santos óleos da teologia." Mas não dei tempo à ternura materna, e repliquei:

--Ah! entendo! mostrar que estou doente para embarcar, não é?

José Dias hesitou um pouco, depois explicou-se:

--Mostrar a verdade, porque, francamente, Bentinho, eu há meses que desconfio do seu peito. Você não anda bom do peito. Em pequeno, teve umas febres e uma ronqueira... Passou tudo, mas há dias em que está mais descorado. Não digo que já seria o mal, mas o mal pode vir depressa. Numa hora cai a casa. Por isso, se aquela santa senhora não quiser ir conosco,--ou para que vá mais depressa, acho que uma boa tosse... Se a tosse há de vir de verdade, melhor é apressá-la... Deixe estar, eu aviso...

--Bem, mas em saindo daqui não há de ser para embarcar logo; saio primeiro, depois cuidaremos do embarque; o embarque é que pode ficar para o ano. Não dizem que o melhor tempo é abril ou Maio? Pois seja maio. Primeiro deixo o seminário daqui a dous meses...

E porque a palavra me estivesse a pigarrear na garganta, dei uma volta rápida, e perguntei-lhe à queima-roupa:

--Capitu como vai?

CAPÍTULO LXII / UMA PONTA DE IAGO

A pergunta era imprudente, na ocasião em que eu cuidava de transferir o embarque. Equivalia a confessar que o motivo principal ou único da minha repulsa ao seminário era Capitu, e fazer crer Improvável a viagem. Compreendi isto depois que falei; quis emendar-me, mas nem soube como, nem ele me deu tempo.

--Tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha. Aquilo enquanto não pegar algum peralta da vizinhança, que case com ela...

Estou que empalideci; pelo menos, senti correr um frio pelo corpo todo. A notícia de que ela vivia alegre, quando eu chorava todas as noites, produziu-me aquele efeito, acompanhado de um bater de coração, tão violento, que ainda agora cuido ouvi-lo. Há alguma exageração nisto; mas o discurso humano é assim mesmo, um composto de partes excessivas e partes diminutas, que se compensam, ajustando-se. Por outro lado, se entendermos que a audiência aqui não é das orelhas, senão da memória, chegaremos à exata verdade. A minha memória ouve ainda agora as pancadas do coração naquele instante. Não esqueças que era a emoção do primeiro amor. Estive quase a perguntar a José Dias que me explicasse a alegria de Capitu, o que é que ela fazia, se vivia rindo, cantando ou pulando, mas retive-me a tempo, e depois outra idéia...

Outra idéia, não,--um sentimento cruel e desconhecido, o pulo ciúme, leitor das minhas entranhas. Tal foi o que me mordeu, ao repetir comigo as palavras de José Dias: "Algum peralta da vizinhança." Em verdade, nunca pensara em tal desastre. Vivia tão nela, dela e para ela, que a intervenção de um peralta era como uma noção sem realidade; nunca me acudiu que havia peraltas na vizinhança, vária idade e feitio, grandes passeadores das tardes. Agora lembrava-me que alguns olhavam para Capitu,--e tão senhor me sentia dela que era como se olhassem para mim, um simples dever de admiração e de inveja. Separados um do outro pelo espaço e pelo destino, o mal aparecia-me agora, não só possível mas certo. E a alegria de Capitu confirmava a suspeita; se ela vivia alegre é que já namorava a outro, acompanhá-lo-ia com os olhos na rua, falar-lhe-ia à janela, às ave-marias, trocariam flores e...

E... quê? Sabes o que é que trocariam mais- se o não achas por ti mesmo, escusado é ler o resto do Capítulo e do livro, não acharás mais nada, ainda que eu o diga com todas as letras da etimologia. Mas se o achaste, compreenderás que eu, depois de estremecer, tivesse um ímpeto de atirar-me pelo portão fora, descer o resto dai ladeira, correr, chegar à casa do Pádua, agarrar Capitu e intimar-lhe que me confessasse quantos, quantos, quantos já lhe dera o peralta da vizinhança. Não fiz nada. Os mesmos sonhos que ora conto não tiveram, naqueles três ou quatro minutos, esta lógica de movimentos e pensamentos. Eram soltos, emendados e mal emendados, com o desenho truncado e torto, uma confusão, um turbilhão, que me cegava e ensurdecia. Quando tornei a mim, José Dias concluía uma frase, cujo princípio não ouvi, e o mesmo fim era vago: "A conta que dará de si." Que conta e quem? Cuidei naturalmente que falava ainda de Capitu, e quis perguntar-lho, mas a vontade morreu ao nascer, como tantas outras gerações delas. Limitei-me a inquirir do agregado quando é que iria a casa ver minha mãe.

-- Estou com saudades de mamãe. Posso ir já esta semana?

--Vai sábado.

--Vai sábado.

--Sábado? Ah! sim! sim! Peça a mamãe que me mande buscar sábado! Sábado! Este sábado, não? Que me mande buscar, sem falta.

CAPÍTULO LXIII / METADES DE UM SONHO

Fiquei ansioso pelo sábado. Até lá os sonhos perseguiam-me, ainda acordado, e não os digo aqui para não alongar esta parte do livro. Um só ponho, e no menor número de palavras, ou antes porei dous, porque um nasceu de outro, a não ser que ambos formem duas metades de um só. Tudo isto é obscuro, dona leitora, mas a culpa é do vosso sexo, que perturbava assim a adolescência de um pobre seminarista. Não fosse ele, e este livro seria talvez uma simples prática paroquial, se eu fosse padre, ou uma pastoral, se bispo, ou uma encíclica, se papa, como me recomendara tio Cosme: "Anda lá, meu rapaz, volta-me papa!" Ah! por que não cumpri esse desejo? Depois de Napoleão, tenente e imperador, todos os destinos estão neste século.

Quanto ao sonho foi isto. Como estivesse a espiar os peraltas da vizinhança, vi um destes que conversava com a minha amiga ao pé da janela. Corri ao lugar, ele fugiu; avancei para Capitu, mas não estava só tinha o pai ao pé de si, enxugando os olhos e mirando um triste bilhete de loteria. Não me parecendo isto claro, ia pedir a explicação, quando ele de si mesmo a deu; o peralta fora levar-lhe a lista dos prêmios da loteria, e o bilhete saíra branco. Tinha o número 4004. Disse-me que esta simetria de algarismos era misteriosa e bela, e provavelmente a roda andara mal; era impossível que não devesse ter a sorte grande. Enquanto ele falava, Capitu dava-me com os olhos todas as sortes grandes e pequenas. A maior destas devia ser dada com a boca. E aqui entra a segunda parte do sonho. Pádua desapareceu, como as suas esperanças do bilhete, Capitu inclinou-se para fora, eu relancei os olhos pela rua, estava deserta. Peguei-lhe nas mãos, resmunguei não sei que palavras, e acordei sozinho no dormitório.

O interesse do que acabas de ler não está na matéria do sonho, mas nos esforços que fiz para ver se dormia novamente e pegava nele outra vez. Nunca dos nuncas poderás saber a energia e obstinação que empreguei em fechar os olhos, apertá-los bem, esquecer tudo para dormir, mas não dormia. Esse mesmo trabalho fez-me perder o sono até à madrugada. Sobre a madrugada, consegui conciliá-lo, mas então nem peraltas, nem bilhetes de loterias, nem sortes grandes ou pequenas,--nada dos nadas veio ter comigo. Não sonhei mais aquela noite, e dei mal as lições daquele dia.

CAPÍTULO LXIV / UMA IDÉIA E UM ESCRÚPULO

Relendo o Capítulo passado, acode-me uma idéia e um escrúpulo. O escrúpulo é justamente de escrever a idéia, não a havendo mais banal na terra, posto que daquela banalidade do sol e da lua, que o céu nos dá todos os dias e todos os meses. Deixei o manuscrito, e olhei para as paredes. Sabes que esta casa do Engenho Novo, nas dimensões, disposições e pinturas, é reprodução da minha antiga casa de Mata-cavalos. Outrossim, como te disse no Capítulo II, o meu fim em imitar a outra foi ligar as duas pontas da vida, o que aliás na alcancei. Pois o mesmo sucedeu àquele sonho do seminário, por mais que tentasse dormir e dormisse. Donde concluo que um dos oficiais do homem é fechar e apertar muito os olhos a ver se continua pela noite velha o sonho truncado da noite moça. Tal é a idéia banal e nova que eu não quisera pôr aqui e só provisoriamente a escrevo.

Antes de concluir este Capítulo, fui à janela indagar da noite por que razão os sonhos hão de ser assim tão tênues que se esgarçam ao menor abrir de olhos ou voltar de corpo, e não continuam mais A noite não me respondeu logo. Estava deliciosamente bela, os morros palejavam de luar e o espaço morria de silêncio. Como eu insistisse, declarou-me que os sonhos já não pertencem à sua jurisdição Quando eles moravam na ilha que Luciano lhes deu, onde ela tinha o seu palácio, e donde os fazia sair com as suas caras de vária feição, dar-me-ia explicações possíveis. Mas os tempos mudaram tudo. Os sonhos antigos foram aposentados, e os modernos moram no cérebro da pessoa. Estes, ainda que quisessem imitar os outros, não poderiam fazê-lo; a ilha dos sonhos, como a dos amores, como todas as ilhas de todos os mares, são agora objeto da ambição e da rivalidade da Europa e dos Estados Unidos.

Era uma alusão às Filipinas. Pois que não amo a política, e ainda menos a política internacional, fechei a janela e vim acabar este capítulo para ir dormir. Não peço agora os sonhos de Luciano, nem outros, filhos da memória ou da digestão; basta-me um sono quieto e apagado. De manhã, com a fresca, irei dizendo o mais da minha história e suas pessoas.

CAPÍTULO LXV / A DISSIMULAÇÃO

Chegou Sábado, chegaram outros sábados, e eu acabei afeiçoando me à vida nova. Ia alternando a casa e o seminário. Os padres gostavam de mim, os rapazes também, e Escobar mais que os rapazes e os padres. No fim de cinco semanas estive quase a contar a este as minhas penas e esperanças; Capitu refreou-me.

--Escobar é muito meu amigo, Capitu!

--Mas não é meu amigo.

--Pode vir a ser; ele já me disse que há de vir cá para conhecer mamãe.

--Não importa; você não tem direito de contar um segredo que não é só seu, mas também meu, e eu não lhe dou licença de dizer nada a pessoa nenhuma.

Era justo, calei-me e obedeci. Outra cousa em que obedeci às suas reflexões foi, logo no primeiro sábado, quando eu fui à casa dela, e, após alguns minutos de conversa, me aconselhou a ir embora.

--Hoje não fique aqui mais tempo; vá para casa, que eu lá vou logo. É natural que D. Glória queira estar com você muito tempo, ou todo, se puder.

Em tudo isso mostrava a minha amiga tanta lucidez que eu bem podia deixar de citar um terceiro exemplo, mas os exemplos não se fizeram senão para ser citados, e este é tão bom que a omissão seria um crime. Foi à minha terceira ou quarta vinda à casa. Minha mãe, depois que lhe respondi às mil perguntas que me fez sobre o tratamento que me davam, os estudos, as relações, a disciplina, e se me doía alguma cousa, e se dormia bem, tudo o que a ternura das mães inventa para cansar a paciência de um filho, concluiu voltando-se para José Dias:

--Sr. José Dias, ainda duvida que saia daqui um bom padre?

--Excelentíssima...

--E você, Capitu, interrompeu minha mãe voltando-se para a filha do Pádua que estava na sala, com ela,--você não acha que o nosso Bentinho dará um bom padre?

--Acho que sim, senhora, respondeu Capitu cheia de convicção.

Não gostei da convicção. Assim lhe disse, na manhã seguinte, no quintal dela, recordando as palavras da véspera, e lançando-lhe em rosto, pela primeira vez, a alegria que ela mostrara desde a minha entrada no seminário, quando eu vivia curtido de saudades. Capitu fez-se muito séria, e perguntou-me como é que queria que se portasse, uma vez que suspeitavam de nós; também tivera noites desconsoladas, e os dias, em casa dela, foram tão tristes como os meus; podia indagá-lo do pai e da mãe. A mãe chegou a dizer-lhe, por palavras encobertas, que não pensasse mais em mim.

--Com D. Glória e D. Justina mostro-me naturalmente alegre, para que não pareça que a denúncia de José Dias é verdadeira. Se parecesse, elas tratariam de separar-nos mais, e talvez acabassem não me recebendo... Para mim, basta o nosso juramento de que nos havemos de casar um com outro.

Era isto mesmo, devíamos dissimular para matar qualquer suspeita, e ao mesmo tempo gozar toda a liberdade anterior, e construir tranqüilos o nosso futuro. Mas o exemplo completa-se com o que ouvi no dia seguinte, ao almoço; minha mãe, dizendo tio Cosme que ainda queria ver com que mão havia eu de abençoar o povo à missa, contou que, dias antes, estando a falar de moças que se casam cedo, Capitu lhe dissera: "Pois a mim quem me há de casar há de ser o padre Bentinho, eu espero que ele se ordene!" Tio Cosme riu da graça, José Dias não dessorriu, só prima Justina é que franziu a testa, e olhou para mim interrogativamente. Eu, que havia olhado para todos, não pude resistir ao gesto da prima, e tratei de comer. Mas comi mal, estava tão contente com aquela grande dissimulação de Capitu que não vi mais nada, e, logo que almocei, corri a referir-lhe a conversa e a louvar-lhe a astúcia. Capitu sorriu de agradecida.

--Você tem razão, Capitu, concluí eu; vamos enganar toda esta gente.

--Não é? disse ela com ingenuidade.
–––––––
continua…

domingo, 21 de abril de 2013

Machado de Assis (Dom Casmurro) Parte 8

CAPÍTULO XLIX / UMA VELA AOS SÁBADOS

Eis aqui como, após tantas canseiras, tocávamos o porto a que nos devíamos ter abrigado logo. Não nos censures, piloto de má morte, não se navegam corações como os outros mares deste mundo. Estávamos contentes, entramos a falar do futuro. Eu prometia à minha esposa uma vida sossegada e bela, na roça ou fora da cidade. Viríamos aqui uma vez por ano. Se fosse em arrabalde, seria longe, onde, ninguém nos fosse aborrecer. A casa, na minha opinião, não devia ser grande nem pequena, um meio-termo; plantei-lhe flores, escolhi móveis, uma sege e um oratório. Sim, havíamos de ter um oratório bonito, alto, de jacarandá, com a imagem de Nossa Senhora da Conceição. Demorei-me mais nisto que no resto, em parte porque éramos religiosos, em parte para compensar a batina que eu ia deitar às urtigas- mas ainda restava uma parte que atribuo ao intuito secreto e inconsciente de captar a proteção do céu. Havíamos de acender uma vela aos sábados...

CAPÍTULO L / UM MEIO-TERMO


Meses depois fui para o seminário de S. José. Se eu pudesse contar as lágrimas que chorei na véspera e na manhã, somaria mais que todas as vertidas desde Adão e Eva. Há nisto alguma exageração; mas é bom ser enfático, uma ou outra vez, para compensar este escrúpulo de exatidão que me aflige. Entretanto, se eu me ativer só à lembrança da sensação, não fico longe da verdade; aos quinze anos, tudo é infinito. Realmente, por mais preparado que estivesse, padeci muito. Minha mãe também padeceu, mas sofria com alma e coração; demais, o Padre Cabral achara um meio-termo, experimentar-me a vocação; se no fim de dous anos, eu não revelasse vocação eclesiástica, seguiria outra carreira.

--As promessas devem ser cumpridas conforme Deus quer. Suponha que Nosso Senhor nega disposição a seu filho, e que o costume do seminário não lhe dá o gosto que me concedeu a mim, é que a vontade divina é outra. A senhora não podia pôr em seu filho, antes de nascido, uma vocação que Nosso Senhor lhe recusou...

Era uma concessão do padre. Dava a minha mãe um perdão antecipado, fazendo vir do credor a relevação da dívida. Os olhos dela brilharam, mas a boca disse que não. José Dias, não tendo alcançado ir comigo para a Europa, agarrou-se ao mais próximo, e apoiou o "alvitre do Sr. protonotário"; só lhe parecia que um ano era bastante.

--Estou certo, disse ele, piscando-me o olho, que dentro de um ano a vocação eclesiástica do nosso Bentinho se manifesta clara e decisiva. Há de ser um padre de mão-cheia. Também, se não vier em um ano...

E a mim, mais tarde, em particular:

--Vá por um ano; um ano passa depressa. Se não sentir gosto nenhum, é que Deus não quer, como diz o padre, e nesse caso, meu amiguinho, o melhor remédio é a Europa.

Capitu deu-me igual conselho, quando minha mãe lhe anunciou a minha ida definitiva para o seminário:

--Minha filha, você vai perder o seu companheiro de criança...

Fez-lhe tão bem este tratamento de filha (era a primeira vez que minha mãe lhe dava), que nem teve tempo de ficar triste; beijou-lhe a mão, e disse-lhe que já sabia disso por mim mesmo. Em particular animou-me a suportar tudo com paciência; no fim de um ano as cousas estariam mudadas, e um ano andava depressa. Não foi ainda a nossa despedida; esta fez-se na véspera, por um modo que pede Capítulo especial. O que unicamente digo aqui é que, ao passo que nos prendíamos um ao outro, ela ia prendendo minha mãe, fez-se mais assídua e terna, vivia ao pé dela, com os olhos nela. Minha mãe era de natural simpático, e igualmente sensível; tanto se doía como se aprazia de qualquer cousa. Entrou a achar em Capitu uma porção de graças novas, de dotes finos e raros; deu-lhe um anel dos seus e algumas galanterias. Não consentiu em fotografar-se, como a pequena lhe pedia, para lhe dar um retrato; mas tinha uma miniatura, feita aos vinte e cinco anos, e, depois de algumas hesitações, resolveu dar-lha. Os olhos de Capitu, quando recebeu o mimo, não se descrevem, não eram oblíquos, nem de ressaca, eram direitos, claros, lúcidos. Beijou o retrato com paixão, minha mãe fez-lhe a mesma cousa a ela. Tudo isto me lembra a nossa despedida.

CAPÍTULO LI / ENTRE LUZ E FUSCO

Entre luz e fusco, tudo há de ser breve como esse instante. Nem durou muito a nossa despedida, foi o mais que pôde, em casa dela, na sala de visitas, antes do acender das velas; aí é que nos despedimos de uma vez. Juramos novamente que havíamos de casar um com outro, e não foi só o aperto de mão que selou o contrato, como no quintal, foi a conjunção das nossas bocas amorosas... Talvez risque isto na impressão, se até lá não pensar de outra maneira; se pensar. fica. E desde já fica, porque, em verdade, é a nossa defesa. O que o mandamento divino quer é que não juremos em vão pelo santo nome de Deus. Eu não ia mentir ao seminário, uma vez que levava um contrato feito no próprio cartório do céu. Quanto ao selo, Deus, como fez as mãos limpas, assim fez os lábios limpos, e a malícia está antes na tua cabeça perversa que na daquele casal de adolescentes... Oh! minha doce companheira da meninice, eu era puro, e puro fiquei, e puro entrei na aula de S. José, a buscar de aparência a investidura sacerdotal, e antes dela a vocação. Mas a vocação eras tu, a investidura eras tu.

CAPÍTULO LII / O VELHO PÁDUA

Já agora conto também os adeuses do velho Pádua. Logo cedo veio à nossa casa. Minha mãe disse-lhe que fosse falar-me ao quarto.

--Dá licença? perguntou metendo a cabeça pela porta.

Fui apertar-lhe a mão; ele abraçou-me com ternura.

--Seja feliz! disse-me. A mim e a toda a minha gente creia que ficam muitas saudades. Todos nós estimamos muito ao senhor, como merece. Se lhe disserem outra cousa, não acredite. São intrigas. Também eu, quando me casei, fui vítima de intrigas; desfizeram-se. Deus é grande e descobre a verdade. Se algum dia perder sua mãe e seu tio,--cousa que eu, por esta luz que me alumia, não desejo, porque são boas pessoas, excelentes pessoas, e eu sou grato às finezas recebidas... Não, eu não sou como outros, certos parasitas, vindos de fora para desunião das famílias, aduladores baixos, não- eu sou de outra espécie; não vivo papando os jantares nem morando em casa alheia... Enfim, são os mais felizes!

"Por que falará assim? pensei. Naturalmente sabe que José Dias diz mal dele."

--Mas, como ia dizendo, se algum dia perder os seus parentes, pode contar com a nossa companhia. Não é suficiente em importância, mas a afeição é imensa, creia. Padre que seja, a nossa casa está às suas ordens. Quero só que me não esqueça; não esqueça o velho Pádua...

Suspirou e continuou:

--Não esqueça o seu velho Pádua, e, se tem algum trapinho que me deixe em lembrança, um caderno latino, qualquer cousa, um botão de colete, cousa que já lhe não preste para nada. O valor é a lembrança. Tive um sobressalto. Havia embrulhado em um papel um cacho dos meus cabelos, tão grandes e tão bonitos, cortados na véspera. A intenção era levá-los a Capitu, ao sair; mas tive idéia de dá-lo ao pai, a filha saberia tomá-lo e guardá-lo. Peguei do embrulho e dei-lho.

--Aqui está, guarde.

--Um cachinho dos seus cabelos! exclamou Pádua abrindo e fechando o embrulho. Oh! obrigado! obrigado por mim e pela minha gente! Vou dá-lo à velha, para guardá-lo, ou à pequena, que é mais cuidadosa que a mãe. Que lindos que são! Como é que se corta uma beleza destas? Dê cá um abraço! outro! mais outro! adeus!

Tinha os olhos úmidos deveras; levava a cara dos desenganados, como quem empregou em um só bilhete todas as suas economias de esperanças, e vê sair branco o maldito número,--um número tão bonito!

CAPÍTULO LIII / A CAMINHO!

Fui para o seminário. Poupa-me as outras despedidas. Minha mãe apertava-me ao peito. Prima Justina suspirava. Talvez chorasse mal ou nada. Há pessoas a quem as lágrimas não acodem logo nem nunca, diz-se que padecem mais que as outras. Prima Justina disfarçava naturalmente os seus padecimentos íntimos, emendando os descuidos de minha mãe, fazendo-me recomendações, dando ordens. Tio Cosme, quando eu lhe beijei a mão em despedida, disse-me rindo:

--Anda lá, rapaz, volta-me papa!

José Dias, composto e grave, não dizia nada a princípio; tínhamos falado na véspera, no quarto dele, onde fui ver se era ainda possível evitar o seminário. Já não era, mas deu-me esperanças e principalmente animou-me muito. Antes de um ano estaríamos a bordo. Como eu achasse muito breve, explicou-se.

--Dizem que não é bom tempo de atravessar o Atlântico, vou indagar; se não for, iremos em março ou abril.

--Posso estudar medicina aqui mesmo.

José Dias correu os dedos pelos suspensórios com um gesto de impaciência, apertou os beiços, até que formalmente rejeitou o alvitre.

--Não duvidaria aprovar a idéia, disse ele, se na Escola de Medicina não ensinassem, exclusivamente, a podridão alopata. A alopatia é o erro dos séculos, e vai morrer; é o assassinato, é a mentira, é a ilusão. Se lhe disserem que pode aprender na Escola de Medicina aquela parte da ciência comum a todos os sistemas, é verdade; a alopatia é erro na terapêutica. Fisiologia, anatomia, patologia, não são alopáticas nem homeopáticas, mas é melhor aprender logo tudo de uma vez, por livros e por língua de homens cultores da verdade...

Assim falara na véspera e no quarto. Agora não dizia nada, ou proferia algum aforismo sobre a religião e a família; lembro-me deste: "Dividi-lo com Deus é ainda possuí-lo". Quando minha mãe me deu o último beijo: "Quadro amantíssimo!" suspirou ele. Era manhã de um lindo dia. Os moleques cochichavam; as escravas tomam a bênção: "Bênção, nhô Bentinho! não se esqueça de sua Joana! Sua Miquelina fica rezando por vosmecê!" Na rua José Dias insistiu nas esperanças:

--Agüente um ano; até lá tudo estará arranjado.

CAPÍTULO LIV / PANEGÍRICO DE SANTA MÔNICA

No Seminário... Ah! não vou contar o seminário, nem me bastaria a isso um Capítulo. Não, senhor meu amigo; algum dia. sim, é possível que componha um abreviado do que ali vi e vivi, das pessoas que tratei, dos costumes, de todo o resto. Esta sarna de escrever, quando pega aos cinqüenta anos, não despega mais. Na mocidade é possível curar-se um homem dela; e, sem ir mais longe, aqui mesmo no seminário tive um companheiro que compôs versos, à maneira dos de Junqueira Freire, cujo livro de frade-poeta era recente. Ordenou-se anos depois encontrei-o no coro de S. Pedro e pedi-lhe que me mostrasse os versos novos.

--Que versos? perguntou meio espantado.

--Os seus. Pois não se lembra que no seminário...

--Ah! sorriu ele.

Sorriu, e continuando a procurar num livro aberto a hora em que tinha de cantar no dia seguinte, confessou-me que não fizera mais versos depois de ordenado. Foram cócegas da mocidade; coçou-se, passou, estava bom. E falou-me em prosa de uma infinidade de cousas do dia. a vida cara, um sermão do padre X..., uma vigairaria mineira...

Contrário a isso foi um seminarista que não seguiu a carreira. Chamava-se... Não é preciso dizer o nome; baste o caso. Tinha composto um Panegírico de Santa Mônica, elogiado por algumas pessoas e então lido entre os seminaristas. Alcançou licença de imprimi-lo, e dedicou-o a Santo Agostinho. Tudo isso é história velha; o que é mais moço é que um dia. em 1882, indo ver certo negócio em repartição de marinha, ali dei com este meu colega, feito chefe de uma seção administrativa. Deixara seminário, deixara letras, casara e esquecera tudo, menos o Panegírico de Santa Mônica, umas vinte e nove páginas, que veio distribuindo pela vida fora. Como eu precisasse de algumas informações, fui pedir-lhas, e seria impossível achar melhor nem mais pronta vontade; deu-me tudo, claro, certo, copioso Naturalmente conversamos do passado, memórias pessoais, casos de estudo, incidentes de nada, um livro, um verbo, um mote, toda a velha palhada saiu cá fora, e rimos juntos, e suspiramos de companhia. Vivemos algum tempo do nosso velho seminário. Ou porque eram dele, ou porque éramos então moços, as recordações traziam tal poder de felicidade que, se alguma sombra contrária houve então, não apareceu agora. Ele confessou-me que perdera de vista todos os companheiros do seminário.

--Também eu, quase todos; uma vez ordenados, voltaram naturalmente às suas províncias, e os daqui tomaram vigairarias fora.

-- Bom tempo! suspirou ele.

E, após alguma reflexão, fitando em mim uns olhos murchos e teimosos, perguntou-me:

--Conservou o meu Panegírico?

Não achei que dizer; tentei mover os beiços, mas não tinha palavra, afinal perguntei:

--Panegírico? Que panegírico?

--O meu Panegírico de Santa Mônica.

Não me lembrou logo, mas a explicação devia bastar; e depois de alguns instantes de pesquisa mental, respondi que por muito tempo o conservara, mas as mudanças, as viagens...

--Hei de levar-lhe um exemplar.

Antes de vinte e quatro horas estava em minha casa, com o folheto, um velho folheto de vinte e seis anos, encardido, manchado do tempo, mas sem lacuna, e com uma dedicatória manuscrita e respeitosa.

--É o penúltimo exemplar, disse-me; agora só me resta um, que não posso dar a ninguém.

E como me visse folhear o opúsculo:

--Veja se lhe lembra algum pedaço, disse-me.

Vinte e seis anos de intervalo fazem morrer amizades mais estreitas e assíduas, mas era cortesia, era quase caridade recordar alguma lauda; li uma delas, acentuando certas frases para lhe dar a impressão de que achavam eco em minha memória. Concordou que fossem belas, mas preferia outras, e apontou-as.

--Recorda-se bem?

--Perfeitamente. Panegírico de Santa Mônica! Como isto me faz remontar os anos da minha mocidade! Nunca me esqueceu o seminário, creia. Os anos passam, os acontecimentos vêm uns sobre outros, e as sensações também, e vieram amizades novas que também se foram depois, como é lei da vida... Pois, meu caro colega, nada fez apagar aquele tempo da nossa convivência, os padres, as lições, os recreios... os nossos recreios, lembra-se? o Padre Lopes, oh! o Padre Lopes...

Ele, com os olhos no ar, devia estar ouvindo, e naturalmente ouvia, mas só me disse uma palavra, e ainda assim depois de algum tempo de silêncio, recolhendo os olhos e um suspiro!

--Tem agradado muito este meu Panegírico!

CAPÍTULO LV / UM SONETO

Dita a palavra, apertou-me as mãos com as forças todas de um vasto agradecimento, despediu-se e saiu. Fiquei só com o Panegírico, e o que as folhas dele me lembraram foi tal que merece um Capítulo ou mais. Antes, porém, e porque também eu tive o meu Panegírico, contarei a história de um soneto que nunca fiz: era no tempo do seminário, e o primeiro verso é o que ides ler:

Oh! flor do céu! oh! flor cândida e pura!

Como e por que me saiu este verso da cabeça, não sei; saiu assim, estando eu na cama como uma exclamação solta, e, ao notar que tinha a medida de verso, pensei em compor com ele alguma cousa, um soneto. A insônia, musa de olhos arregalados, não me deixou dormir uma longa hora ou duas; as cócegas pediam-me unhas, e coçava-me com alma. Não escolhi logo, logo, o soneto; a princípio cuidei de outra forma, e tanto de rima como de verso solto. r afinal ative-me ao soneto. Era um poema breve e prestadio. Qual à idéia, o primeiro verso não era ainda uma idéia, era uma exclamação; a idéia viria depois. Assim na cama, envolvido no lençol. tratei de poetar. Tinha o alvoroço da mãe que sente o filho, e o primeiro filho. Ia ser poeta, ia competir com aquele monge da Bahia pouco antes revelado, e então na moda; eu, seminarista, diria em verso as minhas tristezas, como ele dissera as suas no claustro. Decorei bem o verso, e repetia-o em voz baixa, aos lençóis; francamente achava-o bonito, e ainda agora não me parece mau:

Oh! flor do céu! oh! flor cândida e pura!

Quem era a flor? Capitu, naturalmente; mas podia ser a virtude, a poesia, a religião, qualquer outro conceito a que coubesse a metáfora da flor, e flor do céu. Aguardei o resto, recitando sempre verso, e deitado ora sobre o lado direito, ora sobre o esquerdo; afinal deixei-me estar de costas, com os olhos no tecto, mas nem assim. vinha mais nada. Então adverti que os sonetos mais gabados eram os que concluíam com chave de ouro, isto é, um desses versos capitas no sentido e na forma. Pensei em forjar uma de tais chaves, considerando que o verso final, saindo cronologicamente dos treze anteriores, com dificuldade traria a perfeição louvada; imaginei que tais chaves eram fundidas antes da fechadura. Assim foi que me deter minei a compor o último verso do soneto, e, depois de muito suar, saiu este:

Perde-se a vida, ganha-se a batalha!

Sem vaidade, e falando como se fosse de outro, era um verso magnífico. Sonoro, não há dúvida. E tinha um pensamento, a vitória ganha à custa da própria vida, pensamento alevantado e nobre. Que não fosse novidade, é possível, mas também não era vulgar; e ainda agora não explico por que via misteriosa entrou numa cabeça de tão poucos anos. Naquela ocasião achei-o sublime. Recitei uma e muitas vêzes a chave de ouro, depois repeti os dous versos seguidamente, e dispus-me a ligá-los pelos doze centrais. A idéia agora, à vista do último verso, pareceu-me melhor não ser Capitu; seria a justiça. Era mais próprio dizer que, na pugna pela justiça, perder-se-ia acaso a vida, mas a batalha ficava ganha. Também me ocorreu aceitar a batalha, no sentido natural, e fazer dela a luta pela pátria, por exemplo; nesse caso a flor do céu seria a liberdade. Esta acepção porém, sendo o poeta um seminarista, podia não caber tanto como a primeira, e gastei alguns minutos em escolher uma ou outra. Achei melhor a justiça, mas afinal aceitei definitivamente uma idéia nova a caridade, e recitei os dous versos, cada um a seu modo, um languidamente:

Oh! flor do céu! oh! flor cândida e pura

e o outro com grande brio:

Perde-se a vida, ganha-se a batalha!

A sensação que tive é que ia sair um soneto perfeito. Começar bem e acabar bem não era pouco. Para me dar um banho de inspiração, evoquei alguns sonetos célebres, e notei que os mais deles eram facílimos; os versos saíam uns dos outros, com a idéia em si, tão naturalmente, que se não acabava de crer se ela é que os fizera, se eles é que a suscitavam. Então tornava ao meu soneto, e novamente repetia o primeiro verso e esperava o segundo; o segundo não vinha, nem terceiro, nem quarto; não vinha nenhum. Tive alguns ímpetos de raiva, e mais de uma vez pensei em sair da cama e ir ver tinta e papel; pode ser que, escrevendo, os versos acudissem, mas...

Cansado de esperar, lembrou-me alterar o sentido do último verso, com a simples transposição de duas palavras, assim:

Ganha-se a vida, perde-se a batalha!

O sentido vinha a ser justamente o contrário; mas talvez isso mesmo trouxesse a inspiração. Neste caso, era uma ironia: não exercendo a caridade, pode-se ganhar a vida, mas perde-se a batalha do céu. Criei forças novas e esperei. Não tinha janela; se tivesse, é possível que fosse pedir uma idéia à noite. E quem sabe se os vagalumes luzindo cá embaixo, não seriam para mim como rimas das estrelas, e esta viva metáfora não me daria os versos esquivos, com os seus consoantes e sentidos próprios?

Trabalhei em vão, busquei, catei, esperei, não vieram os versos. Pelo tempo adiante escrevi algumas páginas em prosa, e agora estou compondo esta narração, não achando maior dificuldade que escrever, bem ou mal. Pois, senhores, nada me consola daquele soneto que não fiz. Mas, como eu creio que os sonetos existem feitos, como as odes e os dramas, e as demais obras de arte, por uma razão de ordem metafísica, dou esses dous versos ao primeiro desocupado que os quiser. Ao domingo, ou se estiver chovendo, ou na roça, em qualquer ocasião de lazer, pode tentar ver se o soneto sai. Tudo é dar-lhe uma idéia e encher o centro que falta.

CAPÍTULO LVI / UM SEMINARISTA

Tudo meia repetindo o diabo do opúsculo, com as suas letras velhas e citações latinas. Vi sair daquelas folhas muitos perfis de seminaristas, os irmãos Albuquerques, por exemplo, um dos quais é cônego na Bahia, enquanto o outro seguiu medicina e dizem haver descoberto um específico contra a febre amarela. Vi o Bastos, um magricela, que está de vigário em Meia-Ponte, se não morreu já; Luís Borges, apesar de padre, fez-se político, e acabou senador do império... Quantas outras caras me fitavam das páginas frias do Panegírico! Não, não eram frias; traziam o calor da juventude nascente, o calor do passado, o meu próprio calor. Queria lê-las outra vez, e lograva entender algum texto, tão recente como no primeiro dia. ainda que mais breve. Era um encanto ir por ele; às vezes, inconscientemente, dobrava a folha como se estivesse lendo de verdade; creio que era quando os olhos me caíam na palavra do fim da página, e a mão, acostumada a ajudá-los, fazia o seu ofício...

Eis aqui outro seminarista. Chamava-se Ezequiel de Sousa Escobar era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugitivos, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo. Quem não estivesse acostumado com ele podia acaso sentir-se mal, não sabendo por onde lhe pegasse. Não fitava de rosto, não falava claro nem seguido as mãos não apertavam as outras, nem se deixavam apertar delas, por que os dedos, sendo delgados e curtos, quando a gente cuidava tê-los entre os seus, já não tinha nada. O mesmo digo dos pés, que lia depressa estavam aqui como lá. Esta dificuldade em pousar foi a maior obstáculo que achou para tomar os costumes do seminário. O sorriso era instantâneo, mas também ria folgado e largo. Uma cousa não seria tão fugitiva, como o resto, a reflexão; íamos dar com ele, muita vez, olhos enfiados em si, cogitando. Respondia-nos sempre que meditava algum ponto espiritual, ou então que recordava a lição da véspera. Quando ele entrou na minha intimidade pedia-me freqüentemente explicações e repetições miúdas, e tinha memória para guardá-las todas, até as palavras. Talvez esta faculdade prejudicasse alguma outra.

Era mais velho que eu três anos, filho de um advogado de Curitiba, aparentado com um comerciante do Rio de Janeiro, que servia de correspondente ao pai. Este era homem de fortes sentimentos católicos. Escobar tinha uma irmã, que era um anjo, dizia ele.

--Não é só na beleza que é um anjo, mas também na bondade. Não imagina que boa criatura que ela é. Escreve-me muita vez, hei de mostrar-lhe as cartas dela.

De fato, eram simples e afetuosas, cheias de carícias e conselhos. Escobar contava-me histórias dela, interessantes, todas as quais vinham a dar na bondade e no espírito daquela criatura; tais eram que me fariam capaz de acabar casando com ela se não fosse Capitu. Morreu pouco depois. Eu, seduzido pelas palavras dele, estive quase a contar-lhe logo, logo, a minha história. A princípio, fui tímido, mas ele fez-se entrado na minha confiança. Aqueles modos fugitivos, cessavam quando ele queria, e o meio e o tempo os fizeram mais pousados. Escobar veio abrindo a alma toda, desde a porta da rua até o fundo do quintal. A alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta, não raro com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro. Também as há fechadas e escuras, sem janelas ou com poucas e gradeadas, à semelhança de conventos e prisões. Outrossim, capelas e bazares, simples alpendres ou paços suntuosos.

Não sei o que era a minha. Eu não era ainda casmurro, nem dom casmurro; o receio é que me tolhia a franqueza, mas como as portas não tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las, e Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou, até que...
–––––
continua…

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Luto

Peço a compreensão dos leitores se amanhã não houver postagens.

Hoje de tarde, a minha cadela Maya (uma pastora branca) deu seu ultimo suspiro. 

Contava então 17 anos de idade.

Espero que compreendam este dia de silencio e de dor.

José Feldman

George G. Vest (Tributo a Um Cão)

Maya (foto J. Feldman)
O mais altruísta dos amigos que o homem pode ter neste mundo egoísta, aquele que nunca o abandona e nunca mostra ingratidão ou deslealdade, é o cão.
 
O cão permanece com seu dono na prosperidade e na pobreza, na saúde e na doença. Ele dormirá no chão frio, onde os ventos invernais sopram e a neve se lança impetuosamente se lá seu dono estiver.
Quando somente ele estiver ao lado de seu dono, ele beijará a mão que não tem alimento a oferecer, ele lamberá as feridas e as dores que resultam dos encontros com a violência do mundo. Ele guarda o sono de seu pobre dono como se fosse um príncipe. Quando todos os amigos o abandonarem, o cão permanecerá.
 
Quando a riqueza desaparece e a reputação se despedaça, ele é constante em seu amor como constante é o sol em sua viagem através do firmamento. Se a fortuna arrasta o dono para o exílio, o desamparo e o desabrigo, o cão fiel perde o privilégio maior de acompanhá-lo, para protegê-lo contra o perigo e para lutar contra seus inimigos. E quando a última cena se apresenta, a morte o leva em seus braços e seu corpo é deixado na lage fria, não importa que todos os amigos sigam o seu caminho: Lá, ao lado de sua sepultura, se encontrará seu nobre cão, a cabeça entre as patas, os olhos tristes mas em atenta observação, fé e confiança, mesmo à morte.

Matheus Santos (Cães, Anjos sem Asas!!!)

"Existem pessoas que não gostam de cães... Estas com certeza, nunca tiveram em sua vida Um Amigo de quatro patas, ou se tiveram, nunca olharam dentro daqueles olhos para perceber quem estava ali.
 
Um cão é um anjo, que vem ao mundo ensinar Amor! Quem mais pode dar Amor incondicional? Amizade sem pedir nada em troca? Afeição sem esperar retorno? Proteção sem ganhar nada? Fidelidade vinte e quatro horas por dia? Ah! não me venham com essa de que os Pais fazem isso, porque os Pais são humanos e quando os agredimos ficam irritados e se afastam... Um cão não se afasta, mesmo quando você o agride; ele retorna cabisbaixo, pedindo desculpas por algo que não fez. Lambe suas mãos, a suplicar perdão.

Alguns anjos não possuem asas, possuem quatro patas, um corpo peludo, nariz de bolinha, orelhas de atenção, olhar de aflição e carência. Apesar dessa aparência, são tão anjos quanto os outros (aqueles com asas!) e se dedicam aos humanos tanto quanto qualquer anjo costuma dedicar-se. 

As vezes, um humano veste a capa de anjo e sai pelas ruas a resgatar anjos abandonados à própria sorte e lhes cura as feridas alimenta, abriga, só para ter a sensação de haver ajudado um anjo...

DEUS quando nos fez humanos, sabia que precisaríamos de guardiões materiais que nos tirasse do corpo, as aflições dos sentidos e nos permitissem sobreviver, a cada dia com quase nada, além do olhar e da lambida de um cão!
 
 Que bom seria, se todos os humanos pudessem ver a humanidade perfeita de Um Cão!!!" 

Fonte:
http://forumadestradoronline.com

Nilto Maciel (Catedrais de Barro)

 O mal de certa gente afeita a redigir, na hora de lapidar seus contos e poemas, é torná-los quase enigmáticos. Não, não é certo usar esse “quase”. Na verdade, se convertem em signos indecifráveis, semelhantes a fórmulas, ao mesmo tempo cabalísticas e matemáticas. Conheço muitas dessas pessoas de aparência normal (nada de cabeças desproporcionais, antenas verdes plantadas na testa, como aqueles extraterrestres de Hollywood). São idênticas a nós: leem Machado de Assis, Fernando Pessoa, Graciliano Ramos e também Kafka e Joyce (em português). Vão a cinemas, teatros, ouvem música clássica, chorinho, Luís Gonzaga. Tomam chope, conhecem mulheres ou homens, gostam de feijoada, baião de dois e pizza. São quase (aqui cabe o advérbio) iguais aos outros seres humanos. Quando não chegam a tanto, se parecem com escritores.

        Ficcionistas novos (na idade) ou principiantes (alguns se iniciam na arte de escrever depois de maduros, aposentados, desiludidos dos prazeres da carne, do vinho, do queijo e dos doces) me mandam contos e poemas (devo agradecer aos céus por não produzirem aqueles romances enormes ou aquelas novelas intermináveis) e pedem opinião. Com enfado, corto aqui, podo ali, e, cansado, sugiro revisão gramatical. Também me tratam assim, com essa preocupação profilática, meus amigos mais adestrados no ofício de burilar (não escrevi burlar) frases, professores de gramática e língua portuguesa, todos de extrema erudição. Acato suas sugestões, embora nem sempre consiga efetuar a emundação proposta. Não me zango com eles; pelo contrário, sou-lhes grato. Não fossem eles, quantas barbaridades eu teria publicado!

Entretanto, os pimpolhos e os senhores a quem me referi se inflamam comigo. Uns deixam de me cumprimentar e saem por aí, zangadíssimos, a me achincalhar: sujeitinho metido a intelectual, escritorzinho sem cabedal, desconhecido até da própria família.  Até imagino suas infantilidades: rasgam, queimam, jogam fora os livros de mim recebidos em doação paternal.

Aprendi duas ou três lições de podadura verbal. Não apenas no uso da língua, mas também na elaboração de um estilo e escolha e tratamento dos temas. Não propagarei os nomes de meus mestres, como não informarei os apelidos dos meus insolentes “alunos”.

Uma delas diz respeito ao uso reiterado de vocábulos, na mesma frase, na mesma oração, no mesmo parágrafo, na mesma página. Em meus escritos encontrei milhares de “mas”, “porém”, “estava”, “era”, “que”, “pôs”, etc. Alertaram-me desse pecado meus amigos. Como não se trata de erro ortográfico (é só defeito de estilo), não dei importância ao carão. Além disso, até nos grandes criadores são encontradas repetências sucessivas de vocábulos e expressões. Vejamos este trecho de Dom Casmurro: “Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não aguenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas creem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal frequência é cansativa. Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira”.  O termo “que” aparece onze vezes; “mas”, quatro vezes.

Além de evitar a repetição de vocábulos, devemos nos esquivar de expressões reproduzidas em demasia, transformadas em clichês, os ditados, sem falar nos termos chulos e da moda, as gírias, os jargões.

Assim também devemos nos comportar em relação às descrições desnecessárias, às narrações de gestos e atos insignificantes (para a trama), aos adjetivos que servem de mero adorno, sobretudo os qualificativos de ordem moral (especificamente no caso de narrador onisciente). O estilo se faz mais límpido e agradável, se nos dedicarmos a um trabalho de remoção de entulhos nos diálogos. Precisamos extirpar as falas inúteis, se nada acrescentam à compreensão da narrativa. Chamemos a isso de benfeitorias. Encurtar a fala do personagem tagarela é sempre salutar. Isso pode ser feito com a transposição do diálogo direto para o indireto e, ainda, com o não emprego dos desagradáveis verbos dicendi. A frase deve ser clara. Nada de deixar o leitor em dúvida. Ou dar a tudo duplo sentido, como a chamar o leitor de idiota.

Entretanto (volto ao início desta crônica), não é preciso ser purista, seguir as normas gramaticais ao pé da letra, escrever à maneira de Camões, Bernardes, Vieira, Castilho. Ou, pior ainda, aprimorar tanto o estilo, a frase, que o leitor terminará por nada entender ou por se enredar todo nas malhas de um fraseado excessivamente obscuro. Sentir-se-á enjoado de tanto malabarismo verbal, de tanto neologismo, de tanta invencionice. O pior de tudo, porém, se dá quando o escriba se imagina bem diferente de todos os outros. Acima dos demais, como se escrevesse para deuses, gênios ou seres imaginários. Objetiva ser enigmista, ininteligível, ilegível. Certamente tenciona se afastar dos recursos gramaticais e estilísticos, romper todas as barreiras, ser o anti-Machado, o anti-Graciliano, o anti-Pessoa. Corre de medo de frases assim: “Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei num trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu” (Dom Casmurro). Ou desse modo: “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes (Vidas secas). Ou de Fernando Pessoa: “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, / Eu era feliz e ninguém estava morto” (“Aniversário”). Fogem da difícil simplicidade!

Portanto, nem desleixo, nem esmero demasiado. Um é pobre, feio, sem arte. O outro é similar ao falso rico: “tem” mansão (só a fachada), carro importado (alugado por uma semana), jatinho (emprestado). São catedrais de barro. E isso não é arte, é falsidade, é logro.

Fortaleza, 19/20 de fevereiro de 2013.

Fonte:
Literatura sem Fronteiras

Oficinas de Criação Literária na Biblioteca Pública do Paraná , em Curitiba

Poesia:
Fabrício Corsaletti
(14 a 16 de maio)

Infantojuvenil:
Ricardo Azevedo
(11 a 14 de junho)

Crítica Literária:
Luis Augusto Fischer
(10 a 12 de julho)

Crônica:
Antônio Torres
(13 a 15 de agosto)

Narrativa experimental:
Marcelino Freire
(10 a 12 de setembro)

Jornalismo Cultural:
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(9 a 11 de outubro)

Conto:
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(12 a 14 novembro)

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Fonte:
Assessoria de Imprensa da BPP