quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte V

Turco Nacib (Armando Bógus) e
Gabriela (Sonia Braga) no filme
"Gabriela"
Nessa transfiguração do imigrante em tipo nacional, Jorge Amado consegue não apenas naturalizá-lo, mas inseri-lo em todas as esferas da vida brasileira, sejam elas públicas ou privadas. Nesse intento, desfilam pela obra de Jorge Amado o brasileiro-árabe mascate, o comerciante, seja proprietário de bares (como Nacib) seja proprietário de loja de calçados ou de outros tipos de comércio; o fazendeiro, o vagabundo, o contrabandista, o intelectual, o poeta, o alfaiate, a prostituta, a dançarina, o revolucionário, o estudante, o cirurgião-dentista, o advogado, o menor abandonado, o conquistador da terra baiana, em meio aos diversos tipos étnicos que formam o nosso mosaico cultural, como já percebera Jorge Medauar ao se voltar para a movimentação árabe no tecido romanesco de Jorge Amado:

Movimentando-se entre negros, crioulos, espanhóis ou portugueses criados para viverem o drama, a tragédia ou o amor que palpita nos romances desse autor que é o mais expressivo escritor da ‘nação grapiúna’ definida por Adonias Filho, outra não menos significativa expressão daquela ‘civilização’ tão particular. (MEDAUAR, 1993, não paginado)

Na realidade, ao privilegiar a presença árabe, em meio à sua construção identitária do sul da Bahia, Jorge Amado inauguraria um caminho estético, marcado pela ausência de estranhamento e por uma perspectiva de mão dupla, que ora realça o agudo sentimento árabe de pertencimento à nossa terra, com a correspondente e efusiva aprovação das personagens
brasileiras, o que só é possível graças ao apagamento das diferenças e ao realce das similaridades culturais entre nós e os árabes; ora o caminho em que, numa estratégia claramente mais complementar, tanto o árabe quanto o brasileiro reconstroem, solidariamente, o espaço nacional, como se verifica, hoje, em Milton Hatoum.

Nesse itinerário narrativo, Jorge Amado tematiza o abrasileiramento árabe no interior da Bahia, enquanto põe e repõe em circulação um assimilacionismo de correspondência, o mesmo do qual se nutririam Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, mais ambiguamente, e Milton Hatoum, no século atual.

Ignorada e ocultada, ainda hoje, pelas mais variadas perspectivas acadêmicas que, ao renegarem a perspectiva do Naturalismo adotada por Jorge Amado, e por outros importantes autores de nossa literatura, condenam a obra do autor baiano a uma quase esterilidade crítica, ou a uma leitura de depreciação, a significativa contribuição estética do escritor grapiúna é, geralmente, encoberta por essas interpretações que a rebaixam à categoria de expressão menor, como exemplifica as observações críticas de Alfredo Bosi:

Cronista de tensão mínima, [Jorge Amado] soube esboçar largos painéis coloridos e facilmente comunicáveis que lhe franqueariam um grande e nunca desmentido êxito junto ao público. Ao leitor curioso e glutão a sua obra tem dado de tudo um pouco; pieguice e volúpia em vez de paixão, estereótipos em vez de trato orgânico dos conflitos sociais, pitoresco em vez de captação estética do meio, tipos ‘folclóricos’ em vez de pessoas, descuido formal a pretexto de oralidade... [...] O populismo literário deu uma mistura de equívocos, e o maior deles será por certo o de passar por arte revolucionária. (BOSI, 1980, p. 456-457)

Considerando Jorge Amado como cronista de tensão mínima e a sua obra como uma mistura de equívocos, Alfredo Bosi procede a uma dura crítica às narrativas amadianas.

Assim, ressalta como caracteres dos romances amadianos o descuido formal, a orientação populista, a pieguice e a velha perspectiva pitoresca, comum às nossas primeiras elaborações identitárias. Nessa visão, procede a uma classificação, ou mais precisamente a uma desclassificação, das narrativas de Jorge Amado:

Na sua obra podem-se distinguir: a) um primeiro momento de águas-fortes da vida baiana, rural e citadina (Cacau, Suor) que lhe deram a fórmula do “romance proletário”; b) depoimentos líricos, isto é, sentimentais, espraiados em torno de rixas e amores marinheiros (Jubiabá, Mar Morto, Capitães da Areia); c) um grupo de escritos de pregação partidária (O Cavaleiro da Esperança, O Mundo da Paz); d) alguns grandes afrescos da região do cacau, certamente suas invenções mais felizes, que animam de tom épico as lutas entre coronéis e exportadores (Terras do Sem-Fim, São Jorge dos Ilhéus); e) mais recentemente, crônicas amaneiradas de costumes provincianos (Gabriela, Cravo e Canela, Dona Flor e Seus Dois Maridos) [...] Na última fase abandonam-se os esquemas de literatura ideológica que nortearam os romances de 30 e 40; e tudo se dissolve no pitoresco, no “saboroso”, no “gorduroso”, no apimentado do regional. (BOSI, 1980, p. 457)

Longe de se constituir como uma visão particular e isolada, a leitura de Alfredo Bosi é paradigmática da recepção acadêmica à obra de Jorge Amado, como demonstram as observações da ensaísta Walnice Nogueira Galvão e as de Tânia Pellegrini, professoras de Literatura de importantes centros acadêmicos. Nessas observações, abaixo descritas, essas duas intérpretes assinalam, à maneira de Bosi, a ausência do trabalho e do rigor formal na obra amadiana, enquanto apontam a perspectiva mercadológica como norteadora da produção do escritor baiano:

Quanto nós, entra ano sai ano, aguarda-nos mais um romance de Jorge Amado, reiterando seu amaneiramento, apenas aguçando seus instrumentos para pior. Os livros são cada vez mais volumosos, o que lhes aumenta o preço e a decorrente quantia para o autor sobre o total da venda. Há, cada vez mais, trechos obviamente repetidos; percebe-se que são três ou quatro versões de um mesmo episódio [...] Cada vez mais, há menor elaboração artística [...] A bandeira progressista de Jorge Amado é o populismo. (GALVÃO, 1976, p. 15-16)

Tomando o conjunto da obra de Jorge Amado, o que na verdade se percebe é uma acentuação gradativa daquilo que era apontado como fragilidade ou deslize, na mesma proporção em que se dilui seu traço de força maior, a saber, a fusão harmoniosa entre documento e poesia, espécie de chave de sua fórmula estética, nos primeiros romances. O que prevaleceu parece  ter sido o “mínimo de literatura” como compromisso estético, enquanto o “máximo de honestidade”, como compromisso ético, foi aos poucos adquirindo conotações mais ligadas à lógica da mercadoria. (PELLEGRINI, 1999, p. 128)

Leitor atento de Jorge Amado, Paulo Bezerra, estudioso e tradutor da literatura e da teoria russa entre nós, se contrapõe, com indignação, a essa corrente do pensamento crítico-acadêmico, reconhecendo-a como absurda, responsável por uma lacuna injustificável em nossas interpretações do acervo literário nacional, segundo denuncia em seu prefácio à obra de Eduardo Assis Duarte, Jorge Amado: romance em tempo de utopia, publicada em 1995:

Entre os absurdos que a universidade brasileira comete, há um que certamente chega ao paroxismo: a ausência de estudos sistemáticos e abrangentes sobre a obra de Jorge Amado, o nosso escritor mais lido dentro e fora do país. Essa lacuna, injustificável sob qualquer motivo, deve-se a vários fatores, um dos quais ligado ao falacioso argumento de que a obra do romancista baiano seria de baixa qualidade estética, o que a tornaria desmerecida de integrar o Olimpo das obras pesquisáveis. Daí a ausência ou o número ridiculamente irrisório de teses sobre Jorge Amado nas nossas universidades. (BEZERRA, 1995, não paginado)

Nesse entendimento. Paulo Bezerra afirma que essa posição teórico-acadêmica seria decorrente do preconceito estético, em face da convenção estética adotada por Amado, mascarador, por sua vez, do preconceito ideológico, que vitima, freqüentemente, a obra amadiana. Em sua interpretação da recepção crítica a Jorge Amado, acusaria também o despreparo teórico dessa postura crítica que a incapacitaria, segundo Bezerra, à compreensão das convenções que sedimentam o projeto amadiano:

Por sua vez, a crítica da obra amadiana tem-se caracterizado, com raras exceções, pela falta de abrangência e profundidade, por um preconceito estético que frequentemente mascara o preconceito ideológico e, principalmente, pelo despreparo teórico para compreender o real significado da obra, além do desconhecimento das matrizes populares que a alimentam. Em vista disso, mantém-se quase sempre alheia à natureza do projeto amadiano, passando à margem ou simplesmente ignorando as convenções de que o autor lançou mão para concretizá-lo. (BEZERRA, 1995, não paginado)

De forma similar, Eduardo de Assis Duarte se debruçaria sobre a questão da recepção crítica a Jorge Amado. Numa clara demonstração de confluência entre a sua perspectiva e a do prefaciador de sua obra, Assis Duarte acentuaria na “Apresentação” de sua obra o alheamento crítico em face da natureza do projeto amadiano e das convenções adotadas pelo autor baiano para concretizá-lo. Esse alheamento, somado a uma perspectiva critica que privilegia os parâmetros estéticos do modernismo, seria, segundo Assis Duarte e Paulo Bezerra, a razão da reserva crítico-acadêmica e da incompreensão do discurso romanesco de Jorge Amado:

A crítica brasileira, salvo raras exceções, poucas vezes dedicou-se a uma leitura do romance amadiano que levasse em conta a natureza de seu projeto ou as convenções adotadas para a sua concretização. Marcada pelas balizas estéticas do modernismo, dedicou-se em grande parte ora uma crítica dos defeitos, ora a uma crítica das belezas, para ficarmos com as expressões de Agripino Grieco. No primeiro caso, buscando ressaltar tão somente as fragilidades, no segundo, apenas os méritos e, em ambos, não conseguindo uma compreensão mais profunda e global desses escritos. (DUARTE, 1995, p. 37 – grifos do autor)

Nesse caminho interpretativo, Assis Duarte procederia a uma leitura dos textos críticos acerca de Amado, em especial dos ensaios de Álvaro Lins, depreciador da obra amadiana, e do texto de Roger Bastide que, levando em conta a convenção naturalista de Jorge Amado, acentua a inovadora contribuição efetuada pelo escritor nordestino, na transformação dessa herança estética entre nós. A partir dessa leitura de revisão, Eduardo Duarte se voltaria para o projeto amadiano e dos recursos utilizados para a sua concretização. Em sua apreciação do projeto amadiano, problematizaria, novamente, as pesquisas elaboradas acerca do conjunto da obra de Jorge Amado:

Tal projeto tem como premissa básica a ampliação do horizonte recepcional da obra. ‘Escrever para o povo’ constitui-se como meta primordial e ponto de partida para a adoção de uma linguagem marcada pela oralidade, com o uso do coloquial configurando-se grande traço distintivo da expressão amadiana. No plano do enredo, essa busca do popular leva à absorção dos esquemas de aventura e heroísmo amplamente disseminados, seja no cordel ou no romance de folhetim, seja no melodrama, na novela radiofônica ou no cinema popular da época. Ao lado disso, há um inconfundível acento emotivo, de origem melodramática, perpassando os enredos. Ao invés de pesquisar o porquê desses recursos, alguns críticos preferiram o caminho mais cômodo de apontar a ‘pieguice’ ou o ‘romantismo’ de determinadas soluções, pouco contribuindo para o entendimento da questão. (DUARTE, 1995, p. 39)

Mais recentemente, Lúcia Lippi Oliveira (2002), numa leitura orientada pelo recorte étnico-identitário, se aproximaria das perspectivas de Eduardo de Assis Duarte e de Paulo Bezerra. Ao se deter sobre Jorge Amado, especialmente sobre as suas representações das gentes baianas, reconhece a importância de Jorge Amado, tanto como romancista, quanto como intelectual. Observando a constituição do povo baiano, na qual se verifica a ostensiva presença de negros e mestiços, e os preconceitos que, historicamente, cercam essas populações, Lúcia Lippi veria a obra amadiana como signos literários responsáveis pela redefinição e pela reinterpretação dos traços culturais baianos, ao mesmo tempo em que assinala a ruptura amadiana com as idéias que alimentaram a escola Baiana de Medicina, especialmente com a visão de Nina Rodrigues:

Não por acaso é na Bahia, profundamente impregnada de preconceitos raciais, que se desenvolve a Escola Baiana de Medicina, com Nina Rodrigues à frente, absorvendo da Europa a ciência racialista que classifica os povos a partir de traços raciais! É também na Bahia, pela obra de Jorge Amado, que se reconstrói nova versão da mistura das três raças originais e se produz a imagem do paraíso racial. Os personagens de seus romances, na maioria figuras populares, mestiças, falam da alegria, da sensualidade, da sexualidade, do sincretismo religioso. Jorge Amado, entre outros, pode ser tomado como romancista, como intelectual, que produziu uma mudança de sinal interpretação dos traços da cultura baiana. (OLIVEIRA, 2002, p. 44)

Escritor engajado, atento às vicissitudes de seu tempo, Jorge Amado entranha, à sua tessitura narrativa, as suas perspectivas e anseios políticos. Nesse entranhamento, nos legaria um conjunto textual no qual se pode aferir, simultaneamente, as suas opções estéticas e as suas reivindicações políticas, num comportamento pouco raro entre os nossos literatos, como assinala Eduardo de Assis Duarte ao se voltar para o contexto escritural brasileiro, dos fins do século dezenove e inícios do século vinte:

No Brasil, em cuja história a literatura e a política andaram quase sempre de mãos dadas, este é o momento em que muitos escritores começaram a querer dar as mãos aos operários. A onda de agitações e greves do período 1917-1920, encabeçada pelos anarquistas e anarco-sindicalistas, funciona como reflexo, embora longínquo, dos acontecimentos russos, e dá oportunidades a intervenções como as de Lima Barreto [...] Avançando um pouco o retrospecto histórico, pode-se notar que o ano de 1922 enseja três acontecimentos de importância decisiva na carreira de Jorge Amado: a Semana de Arte Moderna, o levante do Forte de Copacabana e a fundação do PCB [...] No caso específico de Jorge Amado, modernismo, tenentismo e comunismo funcionarão como referenciais muito precisos numa trajetória em que política e literatura vão caminhar lado a lado. (DUARTE, 1995, p. 22-23)

Na verdade, não obstante as diversidades, de objetivos e de organização textual, verificadas entre o discurso literário e o discurso científico da sociedade, essas modalidades discursivas apresentam um contínuo diálogo que acirra o debate sobre o contraponto entre o discurso artístico e o discurso sociológico, principalmente quando a temática trabalhada, a exemplo da de Jorge Amado, diz respeito às questões nacionais, como ressaltam o filósofo Octávio Ianni, ao discorrer sobre as afinidades entre a literatura e a sociologia e o crítico Antonio Candido, ao ressaltar o caráter empenhado de nossa literatura:

É mais do que evidente que a sociologia e a literatura nascem e desenvolvem-se desafiadas, influenciadas ou fascinadas pela questão nacional. Colaboram decisivamente na elaboração do mapa da nação, ajudando a estabelecer o território e a fronteira, a história e a tradição, a língua e os dialetos, a religião e as seitas, os símbolos e as façanhas, os santos e os heróis, os monumentos e as ruínas. (IANNI, 1999, p. 14)

Tanto no caso da literatura messiânica e idealista dos românticos, quanto no caso da literatura realista, na qual a crítica assume o cunho de verdadeira investigação orientada da sociedade estamos em face de exemplos de literatura empenhada numa tarefa ligada aos direitos humanos. No Brasil isto foi claro nalguns momentos do Naturalismo, mas ganhou força real sobretudo no decênio de 1930, quando o homem do povo com todos os seus problemas passou a primeiro plano e os escritores deram grande intensidade ao tratamento literário do pobre. Isso foi devido sobretudo ao fato do romance de tonalidade social ter passado da denúncia retórica, ou da mera descrição, a uma espécie de crítica corrosiva, que podia ser explícita, como em Jorge Amado, ou implícita, como em Graciliano Ramos [...] mas que contribuíram para formar o batalhão de escritores empenhados em expor e denunciar a miséria, a exploração econômica, a marginalização, o que os torna [...] figurantes de uma luta virtual pelos direitos humanos. (CANDIDO, 1995, p. 255-256)

Voltado para as questões identitárias no Brasil, em cujas representações deixa as marcas de sua trajetória literária e política em nossa vida contemporânea, no Brasil e no exterior, Jorge Amado vai impregnar a sua obra de um realismo manifesto, que o filiará ao naturalismo francês, em especial ao de Émile Zola, autor de sua admiração e de sua predileção sentimental, segundo afirma, em 1992, em entrevista à Folha de São Paulo:

Divido os escritores franceses entre os que amo e admiro e aqueles a quem simplesmente admiro. Flaubert não é do meu amor. Mesmo Balzac, um imenso escritor, não é dos meus preferidos. Entre os franceses, o que me diz mais mesmo é Zola. (AMADO, 9.8.1992)

As escolhas ou preferências de Jorge Amado, no que diz respeito à perspectiva literária do Naturalismo e a Zola, longe de serem gratuitas se adéquam ao seu projeto e aos seus intentos literários, como se apreende da leitura de suas obras e da observação das linhas norteadoras da vertente naturalista. Para essa compreensão, concorre a obra de Flora Süssekind, Tal Brasil, qual romance?: uma ideologia estética e sua história: o naturalismo, publicada em 1984.

Longe de ver a gratuidade e/ou o mero prestígio das idéias européias como elementos motivadores da calorosa e duradoura recepção ao Naturalismo entre nós, Flora Süssekind procede a um verdadeiro inventário crítico acerca do Naturalismo, utilizando-se das mais variadas fontes críticas. Em sua leitura, ressalta a filiação de Jorge Amado a essa tradição estética, aproximando-a a Aluísio Azevedo, a José Lins do Rego e a Zola:

Em O Cortiço, romance exemplar da virada do século, usa Aluísio Azevedo como uma de suas epígrafes um dos mais conhecidos enunciados do Direito Criminal: ‘La vérité, toute la vérité, rien que la vérité’. Na nota introdutória de 1933 a Cacau, avisa, por sua vez, Jorge Amado: ‘Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia’ [...] Diante da ênfase nos ciclos se poderia perguntar [...] Por que Cacau se desdobra em Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus? Por que Menino de Engenho continua em Doidinho, Bangüê, Moleque Ricardo e Usina? Por que um ‘ciclo’ do cacau e um ‘ciclo’ da cana-de-açúcar? A idéia do ciclo não chega a ser exclusiva dos anos Trinta. Basta lembrar o ciclo dos Rougon-Macquart de Zola. Ou o esboço de um ciclo romanesco que Aluísio Azevedo apresentara num artigo de 1885, publicado em A Semana. (SÜSSEKIND, 1984, p. 36; 162-163)

Apoiada em Adonias Filho, Antonio Candido, José Guilherme Merquior, Nelson Werneck Sodré, Otto Maria Carpeaux, entre outros, Flora Süssekind reconhece os vínculos de afinidades entre o discurso literário brasileiro, recorrente na incessante busca de nossas identidades, e as linhas norteadoras da estética naturalista, em especial as da busca da referencialidade, do documental, apropriadas às construções de nacionalidade, como se lê em seu discurso abaixo, no qual insere a leitura de Adonias Filho:

Normalmente, procura-se uma literatura que, ao documentar o país, pareça acreditar na existência de uma identidade nacional. Uma literatura que, não se indagando como linguagem, funcione no sentido de exterminar quaisquer dúvidas, digam elas respeito à ficção ou ao país. O que corrobora algumas observações de Adonias Filho a respeito da vinculação do romance brasileiro ao documentário: “O país nele pode encontrar a sua identidade. E pode encontrá-la sobretudo porque, em estado de testemunho, guardando as imagens como em um espelho, não anula em sua fixação as percepções dos romancistas”. A estética naturalista funciona, portanto, no sentido de representar uma identidade para o país, de apagar, via ficção, as divisões e dúvidas [...] É em sentido literalmente oposto a essa fragmentação que se constroem os textos pautados numa estética naturalista. (SÜSSEKIND, 1984, p. 43-44 – grifos da autora)

Em relação à preferência brasileira por Émile Zola, como a manifesta explicitamente Jorge Amado, Flora Süssekind, utilizando-se das ponderações de Merquior, ressalta o caráter pragmático da acolhida dos nossos escritores à estética de Zola, descartando, mais uma vez, o simples prestígio das idéias européias como fator determinante das escolhas brasileiras:

Não se procura observar por que justamente o naturalismo entrou em moda e que vínculos orgânicos mantinha com o sistema intelectual brasileiro para que adquirisse tão grande repercussão. Não é qualquer “idéia estrangeira” que recebe acolhida tão boa. Em meio às diversas sementes intelectuais lançadas à terra nem sempre tudo “dá”. Em meio a Flaubert e Zola, escolheu-se o último. Coisa de que o próprio Merquior se dá conta na sua Breve História da Literatura Brasileira: “Foi o romance naturalista à Zola, que trocou a objetividade esteticista de Flaubert pela análise de pretensões científicas, que constituiu, entre nós, a primeira manifestação de peso de um estilo pós-romântico”. Prefere-se Zola a Flaubert, como entre Marx, Comte e Spencer, escolhem-se os dois últimos. Não é muito difícil perceber o que se repete nas escolhas. Não se trata de “plágio” ou de “imitação” indiscriminados. A preferência é sempre por qualquer pensamento que ajude a estabelecer um conjunto de identidades, leis e semelhanças. (SÜSSEKIND, 1984, p. 53)

__________________
continua…

Fonte:
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Contos do Oriente (Até a metade do céu)

Quando o rei de Wei decidiu construir uma torre que iria chegar até a metade do céu, ele deu uma ordem:

- Quem tentar me dissuadir, será condenado à morte.

Xu Wan, um ministro de Wei, procurou-o com um cesto nas costas e uma lança na mão.

- Senhor, ouvi que está querendo construir uma torre que vai chegar até a metade do céu - disse Xu,- e seu humilde servo veio lhe oferecer ajuda.

- O que de forte tem para me oferecer?- quis saber o rei.

- Eu não sou forte - respondeu Xu- mas eu posso trabalhar no projeto da construção.

- Sim - disse o rei.

- Senhor, ouvi dizer que a distância entre o céu e a terra é de 15 mil li. Como quer construir uma torre que chega até a metade da distância entre a terra e o céu, a torre deve ter 7.500 li de altura. Para aguentar essa estrutura, os alicerces devem ter a circunferência de oito mil li. Toda a suas terras juntas, senhor, não são suficientes para os alicerces. Há muito tempo atrás, os reis Yao e Shun estabeleceram ducados com a circunferência de cinco mil li. Se estiver determinado a construir essa torre, deve primeiro atacar os duques e pegar todas as terras deles. Mas ainda não vai ser o bastante. Deve também expulsar várias tribos que vivem em longínquas regiões ao norte, ao sul, a leste e a oeste. Quando conseguir uma áreas com limites de oito mil li, aí, sim, será o suficiente para os alicerces. Quanto a questão do material de construção, trabalhadores e depósitos de comida, tudo isso deve ser calculado em algumas centenas de milhões. For a da área cercada de 8 mil li, uma grande extensão de campos deve ser escolhida para a produção de comida para os trabalhadores se alimentarem enquanto estiverem construindo a torre. Quando todas essas condições para a construção das torres forem preenchidas, o trabalho pode começar.

O rei ficou calado, sem encontrar uma resposta. Ele abandonou a ideia da construção da torre.

Fonte: 

Concurso Internacional de Trovas da UBT França (Resultado Final)


Tema: Mulher

1º Lugar:
Da mulher, exige a vida
nobre missão que requer
essa força desmedida
que é ser tudo... e só, mulher!
Carolina Ramos

2º Lugar:
Mulher - teus lábios maduros,
guardam o eterno sabor,
dos lábios virgens, mais puros,
da essência eterna do amor
Professor Garcia

3° Lugar:
Pense de modo profundo 
e em tudo quanto quiser; 
e nos diga o que há no mundo 
mais lindo do que mulher!
Amilton Maciel Monteiro

4° Lugar:
A roupa é só complemento,
como outro adorno qualquer...
O brilho, a graça, o talento
é que dão charme à mulher!
Antonio Augusto de Assis

5° Lugar:
Mulher, tu foste escolhida
pelo nosso Criador,
pra seres fonte da vida,
do bem, da paz e do amor!
Delcy Canalles

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte IV

Jorge Amado: Bar do Nacib 
CAPÍTULO II

JORGE AMADO E A REPRESENTAÇÃO DO MUNDO ÁRABE

Os turcos descobriram a América, desembarcaram no Brasil e se fizeram brasileiros dos melhores. 
Jorge Amado

A FREQUENTAÇÃO ÁRABE NOS ROMANCES DE JORGE AMADO 

Os anos 30 foram de engajamento político, religioso e social no campo da cultura [...] Os decênios de 1930 e 1940 assistiram à consolidação e difusão da poética modernista, e também à produção madura de alguns de seus próceres, como Manuel Bandeira e Mário de Andrade.
Antônio Cândido

Em seu texto, Menino de engenho: a memória das perdas, Heloísa Toller Gomes procede a uma leitura do Modernismo brasileiro, em especial de suas duas vertentes mais conhecidas e estudadas, a de São Paulo e a do Nordeste, buscando precisar as diferenças que separam essas experimentações modernistas em nosso país:

Delinearam-se, naqueles anos, as duas vertentes principais do modernismo literário brasileiro: a vertente do Sul, com seu nacionalismo irreverente e sua escrita iconoclasta, geradora e herdeira da “Semana”; e o modernismo regionalista do Nordeste, mas carrancudo e introspectivo, desconfiado do humor desbragado da nova literatura paulista e menos explicitamente ousado em termos formais. Esse segundo modernismo desdenhava a “calçada das cidades inacessíveis”, optando pelo cenário das grandes plantações e pelos ermos do agreste e da caatinga. Insistindo no meio físico e antropo-social da seca, do brejo e do sertão, ele também procurou, à sua maneira, sons, gostos e cheiros a partir dos quais modelar espaços, personagens e dramas entranhadamente brasileiros. Surgiu, assim, o chamado “romance de 30”. (GOMES, 2003, p. 646)

Embora ainda marcado por um olhar hierarquizante, através do qual situa essas tendências literárias numa ordem sucessiva, cabendo ao movimento de São Paulo o estatuto de primeiro modernismo e ao do Nordeste o lugar de segundo, o texto de Heloísa Gomes se constitui como uma espécie de inventário crítico do Modernismo brasileiro. Nele, a autora assinalaria tanto as diferenças quanto as similaridades entre essas modalidades literárias.

Nesse caminho, chegaria à tese da complementaridade entre essas duas vertentes, vendo no comum esforço de construção (e reconstrução) identitária, o eixo unificador dessas duas tendências modernistas:

O sentido de brasilidade da produção literária nordestina, embora bem diferente daquele exibido pelos modernistas de São Paulo e do Rio de Janeiro, era também ambicioso em suas propostas estéticas, indo além da manipulação do rico repertório imagístico e temático nacional – este, aliás, já intensamente explorado desde o romantismo e agora coloridamente reinaugurado na novidade das diversas nuanças modernistas. Na verdade, complementavam-se as duas perspectivas, a do Sul e a do Nordeste, em relação a um Brasil que, encaminhando-se de maneira incerta para uma controvertida e avassaladora modernidade, necessariamente dramatizaria e confrontaria, na cena literária de então, e das décadas subsequentes, a sofisticação e a miséria das metrópoles aos grandes sertões e às decadentes casas-grandes, com sua “senzala dos tempos do cativeiro”.
(GOMES, 2003, p. 646)

Na verdade, o Modernismo do Nordeste, denominado também de Romance de Trinta ou de Regionalismo Nordestino, operou uma ruptura de maior porte. Rompeu, como destaca Antônio Cândido, com a perspectiva mistificadora do Brasil, com a qual se tecia, em nossos textos literários e culturais, de forma geral, as elaborações de brasilidade, atuante na escritura nacional, desde o Romantismo. Ao se voltarem para a tematização do espaço nordestino, os modernistas do Nordeste além de inaugurarem um novo olhar sobre o Brasil, dotam o romance de uma força desmistificadora, como salienta Antônio Cândido:

A consciência do subdesenvolvimento é posterior à Segunda Guerra Mundial e se manifestou claramente a partir dos anos de 1950. Mas desde o decênio de 1930 tinha havido mudança de orientação, sobretudo na ficção regionalista, que pode ser tomada como termômetro, dada a sua generalidade e persistência. Ela abandona, então, a amenidade e a

curiosidade, pressentindo ou percebendo o que havia de mascaramento no encanto pitoresco, ou no cavalheirismo ornamental, com que antes se abordava o homem rústico. Não é falso dizer que, sob esse aspecto, o romance adquiriu uma força desmistificadora que precede a tomada de consciência dos economistas e políticos. (CÂNDIDO, 1987, p. 142)

Não obstante a atitude pessimista e desmistificadora em face das possibilidades brasileiras, os modernistas nordestinos, a exemplo dos modernistas do Sul, também retomariam a tradição romântica em suas apreensões de brasilidade, como aponta Antônio Cândido, ao analisar a importância do romântico Franklin Távora, primeiro romancista do Nordeste, na formação da vertente nordestina do Modernismo:

O seu regionalismo parece fundar-se em três elementos, que ainda hoje constituem, em proporções variáveis, a principal argamassa do regionalismo literário do Nordeste. Primeiro o senso da terra, da paisagem que condiciona tão estreitamente a vida de toda a região, marcando o ritmo da sua história pela famosa ‘intercadência’ de Euclides da Cunha. Em seguida, o que se poderia chamar patriotismo regional, orgulhoso das guerras holandesas, do velho patriarcado açucareiro, das rebeldias nativistas. Finalmente, a disposição polêmica de reivindicar a preeminência do Norte [...] Távora foi o primeiro ‘romancista do Nordeste’, no sentido em que ainda hoje entendemos a expressão; e deste modo abriu caminho a uma linhagem ilustre, culminada pela geração de 1930. (CÂNDIDO, 1981, p. 268 – grifos do autor)

Integrante do Modernismo do Nordeste, movimento oficialmente iniciado por José Américo de Almeida, em 1928, com a publicação de A bagaceira, Jorge Amado, como a maioria de seus pares, traria à sua obra, o senso da terra e da paisagem nordestina, o sentimento de patriotismo  regional, o desejo de exprimir a preeminência do Nordeste, como se refere Antônio Cândido, ao voltar-se para as linhas do pensamento de Távora, retomadas desde 1921, com a publicação de Senhora de engenho: romance, do pernambucano Mário Sette.

Surgida na década de 30, com a publicação de O país do carnaval (1931), a obra de Jorge Amado, pela importância e pela frequentação da presença árabe, representa uma curiosa especificidade, tanto no conjunto de obras elaboradas pelos romancistas modernistas do Nordeste, como também no universo de nossa própria literatura, como comprova o dicionário biográfico das personagens de Jorge Amado, Criaturas de Jorge Amado (1985), elaborado por Paulo Tavares.

Procurando, confessadamente, seguir o exemplo de Fernand Lotte, responsável pela identificação e relação dos personagens anônimos da Comédia Humana, de Honoré de Balzac, Paulo Tavares relaciona todas as personagens, reais ou imaginárias, das narrativas de Jorge Amado, se voltando, ainda, para a discussão dos títulos das obras amadianas, como
afirma a seguir:

Seguindo o exemplo de Fernand Lotte, que relacionou os personagens anônimos da Comédie Humaine – publicado em suplemento ao seu Dicionnaire, quatro anos mais tarde – organizou-se também idêntico repertório de personagens sem nome encontrados nas páginas do romancista patrício. Tal relação, em separado, acompanha a lista alfabética dos nominativos, complementando o recenseamento das criaturas de Jorge Amado. Mas a pesquisa não se ateve somente às criaturas – prossegui na garimpagem através do rico manancial que são os vinte e sete títulos de ficção de Jorge Amado e deles recolheu as informações agrupadas nos três apêndices anexados a este trabalho. (TAVARES, 1985, não paginado)

Pioneiro em nosso mundo editorial, o recenseamento das criaturas de Jorge Amado, procedido por Paulo Tavares, terminaria por nos apresentar uma variedade de perfis árabes no universo narrativo amadiano que, mesmo confirmando as nossas leituras, nos surpreenderia pela explícita assiduidade e pela diversidade que emolduram os perfis árabes, na obra do escritor baiano.

Mais tarde, num outro caminho, o romancista, contista e poeta Jorge Medauar, objetivando a identificação das marcas árabes nas várias culturas do mundo, ratificaria a pesquisa precedida por Paulo Tavares. Em seu artigo, “Introdução: aspectos gerais da cultura árabe”, publicado originalmente pela Revista de Estudos Árabes – DLO-FFLCHUSP, em 1993, Medauar veria, com naturalidade, a ostensiva presença árabe nos textos de Amado, resultante, segundo ele, do caráter popular da obra de Jorge Amado, como se apreende nessa passagem do seu discurso:

É mais do que natural que um escritor, com raízes tão populares quanto Jorge Amado, traga, no bojo de sua tão extensa obra, a presença marcante dessa influência não apenas na língua, seu preponderante instrumento de expressão, como nos personagens árabes ou de origem árabe que se misturam. (MEDAUAR, 1993, não paginado)

Em relação à influência do popular na obra de Jorge Amado, traço importantíssimo às elaborações românticas, sua presença seria reconhecida pelo próprio autor baiano, em entrevista a Eduardo de Assis Duarte, em dezembro de 1988, na qual também se refere ao contexto de atraso e de injustiça social no qual o Brasil estava inserido:

Na minha primeira juventude, minha quase meninice, quando comecei a trabalhar na imprensa e a ter contato com outros jovens ‘subliteratos retados’, nós vivíamos intensamente a vida popular baiana e nos revoltávamos contra as condições existentes de atraso e injustiça social, mas de uma forma muito vaga. Não havia nenhuma ideia mais precisa de ordem revolucionária, era uma rebeldia natural da juventude e muito literária, no sentido de fora da realidade. (AMADO, apud DUARTE, 1995, p. 339 – grifos nossos)

Na verdade, nascido em 1912, período do grande boom do cacau, que se iniciara na virada do século XIX, Jorge Amado assistiria à chegada dos imigrantes árabes, testemunhando seus esforços e suas estratégias de acomodação e sobrevivência na nova terra.

Convivendo com os árabes desde a sua infância, o escritor baiano alimenta as suas narrativas com as lembranças dessa convivência amigável e duradoura, tornando-os importantes e significativos personagens de suas obras, como testemunha o poeta Jorge Medauar:

Quem poderá dizer que Jorge Amado não conviveu, no Vesúvio, na cidade de Ilhéus, com Nacib e Gabriela, por exemplo, já que a casa do grande romancista (hoje Fundação Cultural de Ilhéus) era vizinha daquele bar? Os Nazal, Medauar, Maron, Daneu, Chalub, eram famílias de Ilhéus, portanto pessoas de seu convívio. Daí a matéria prima. O retrato. A matriz. (MEDAUAR, 1993, não paginado)

Elemento recorrente na obra do escritor nordestino, a presença árabe encontra-se desde as suas primeiras narrativas, O país do carnaval, de 1931; Cacau, de 1933 e Suor, de 1934.

Primeiras manifestações da escrita amadiana, esses primeiros textos seriam denominados, pelo próprio Jorge Amado, como cadernos de aprendiz de romancista, segundo afirma Assis Eduardo Duarte, estudioso da obra amadiana:

Jorge Amado costuma demarcar o início efetivo de sua obra romanesca a partir da publicação de Jubiabá em 1935. Os livros anteriores, País do Carnaval (1931), Cacau (1933) e Suor (1934), considera-os como experiência da juventude, simples ‘cadernos de aprendiz de romancista’, opinião de resto semelhante à boa parte da crítica. (DUARTE, 1995, p. 45)

Desses cadernos de aprendizagem romanesca, vítimas de desqualificação crítica do próprio autor, se iniciaria um modelo narrativo, marcado, acintosamente, pela presença árabe, em íntimo contato e solidariedade com o mundo brasileiro. Ironicamente, essas obras, responsáveis por um modelo narrativo incomum, tanto no conjunto de obras do Modernismo do Nordeste, quanto no acervo dos modernistas de São Paulo, seriam descartadas por Jorge Amado, apesar de desenharem, originalmente, as feições-mestras da maioria dos personagens de Jorge Amado, como se confere abaixo:

(Dona Maria era uma árabe muito magra que alugava todo o sótão e realugava os quartos. “Ganhava fortuna...” cochichavam pelos cantos os inquilinos) [...] Tão pequeno aquele sótão... E morava tanta gente  nele! Na sala da frente D. Maria, a árabe, com dois filhos pequenos, chorões e sujos que punham o sótão e a escada em polvorosa com as suas brincadeiras [...]
No quarto defronte morava outra árabe, que tinha um nome complicado que se reduzira a Fifi. D. Fifi, mãe de um filho malandrão, já homem (seus dezessete anos), que só vinha em casa buscar dinheiro para a farra. Vivia no meio de moleques da pior espécie, a calotear mulheres nojentas da Ladeira do Tabuão. Quando dormia em casa vez por outra, ficava nu no mesmo quarto com a mãe que, deitada [...] não cansava de reclamar o seu modo de vida. Ele a xingava muito em árabe. Às vezes, escapava alguma palavra em português que as vizinhas atentas percebiam. (AMADO, 1979 1, p. 70-71)

A casa acordava aos poucos. Na pia do sótão lavavam os rostos. A venda de Fernandes abria as portas, homens apareciam no pé da escada. Toufik juntou-se à negra: – Bom dia, sinhá Maria. – Bom dia meu branco. – Não vai descer? Ela esticou o dedo apontando o embrulho de papel de jornal.
Toufik assobiou. – Um feitiço, puxa! Pra quem será? O árabe também acreditava. E quem não era dominado pela religião bárbara dos negros? (AMADO, 1980, p. 69)

Inaugurando, no Modernismo do Nordeste, uma recorrência que chegaria à literatura de nossos dias, como comprova a obra de Milton Hatoum, Jorge Amado inunda suas narrativas de criaturas árabes, tematizando, dessa forma, a nossa própria constituição cultural, que se vai configurando pelas tintas da mestiçagem, da interação cultural.

Nesse patriotismo regional, como classifica Antônio Cândido, Jorge Amado cria um mundo ficcional habitado pelos imigrantes árabes, tornados, em suas ficções, elementos de nossa própria identidade cultural, numa configuração de suas personagens árabes, como membros do corpo brasileiro, posto que íntima e indissoluvelmente entranhadas ao Brasil.

Nesse entranhamento, circulam na obra de Amado, apesar do sotaque árabe, os mais variados tipos nacionais, do malandro ao capitão da areia, atendendo ora por nomeações brasileiras, como é o caso de Dona Maria e de Dona Fifi, personagens árabes femininas d’O país do carnaval, primeiro romance amadiano, ora por nomes e sobrenomes árabes, como é o caso do próprio Nacib que, representado, ao longo da narrativa, continuadamente como bom brasileiro, se manifesta, em momentos de emoção, na língua árabe:

E por mais espantoso que pareça, naqueles dias vibrantes do comício, no maior deles, quando dr. Ezequiel bateu todos os recordes anteriores de cachaça e inspiração, Nacib pronunciou um discurso. Deu-lhe uma coisa por dentro, depois de ouvir Ezequiel. Não aguentou, pediu a palavra. Foi um sucesso sem precedentes sobretudo porque, tendo começado em português e faltando-lhe as palavras bonitas, pescadas dificilmente na memória, ele terminou em árabe, num rolar de vocábulos sucedendo-se em impressionante rapidez. Os aplausos não findavam. – Foi o discurso mais sincero e mais inspirado de toda a campanha – classificou João Fulgêncio. (AMADO, 1979 1, p. 327)
_______________
continua…

Fonte:
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008
Imagem = http://www.tripadvisor.com.br

domingo, 22 de janeiro de 2017

Olivaldo Junior (Natação)

Foi em junho de 2012 que, com toda a coragem do mundo, procurei uma academia de natação de minha cidade, para aprender a nadar. Como sou do signo de Peixes, já devia ter meio caminho andado em direção às profundezas de uma piscina, que, assim como lagos e rios, tem sempre um lado onde dá pé. Péssima ideia. Não a de procurar uma academia a fim de nadar, mas a de pensar que eu ficaria sossegado, só no lado onde meus pés pisavam firme. Alguém já disse que nadar é o mais próximo que o homem pode chegar da sensação de voar. Talvez seja verdade. Eu, quando nadava, me sentia leve, muito leve. A cor da piscina, quase sempre azul, já me encanta. Se eu pudesse, teria nascido peixe. Seria o Nemo! 

Para o bem da verdade, aquela não foi a primeira vez que me aventurei no mundo das águas. Já tinha me inscrito meses antes em outra academia, mas a professora logo saiu e desanimei de continuar. 

O professor que tive naquela nova academia era muito atencioso comigo. Chamava-se Renan. Fazia exercícios de dessensibilização na água, pedindo que, com os óculos próprios, ficasse de olhos abertos enquanto ele me afundava, para que eu perdesse o medo de submergir. Outro dia, vi muitos bebês submersos num vídeo que achei no Youtube, mostrando o exemplo de uma aula de natação para recém-nascidos. Legal é ver como eles já têm naturalmente o instinto para se sair bem na piscina, os danados! 

Não, ainda não foi daquela vez que aprendi a nadar. Ainda vai demorar um pouco para eu honrar o símbolo cristão por excelência e me tornar um peixe. Eu, que nunca vi o mar ao vivo, espero um dia poder nadar um pouquinho em suas ondas verdes, tão doces quanto as canções de Caymmi, praieiras e sãs. Sumir, como o Príncipe Escamado, com Narizinho mar abaixo e, no Reino das Águas Claras, encontrar Ariel, a Pequena Sereia, e contar para ela como é o mundo da terra, onde tantos nadam, nadam, nadam e morrem na praia. 

Gosto de assistir às competições de natação na tevê, quando fico torcendo para que, algum dia, eu consiga nadar um por cento do que eles nadam. 

No mar de uma piscina, numa academia da cidade em que moro, quero ainda sentir o céu líquido em contato com as invisíveis asas de quem cai na água e não se afoga, rio acima, peixe vivo, avante.

Fonte:
O Autor

Concurso Internacional de Trovas da UBT Estados Unidos (Resultado Final)


 

Tema: Arte

VENCEDORES

1º Lugar:
Que imensa arte presente
no céu, na terra, no mar...
- É o pincel do Onipotente
noite e dia a trabalhar!
Maria Luiza Walendowsky

2º Lugar:
Não tenho tudo que quero,
nem nunca tive o que quis,
mesmo assim eu me supero
na arte de ser feliz.
Argemira Fernandes Marcondes 

3º Lugar:
Na moldura da lembrança
o meu amor sem maldade,
pintou com arte e esperança
o retrato da saudade...
Paolo Giovanelli

4º Lugar:
Com arte no seu genoma,
o joão-de-barro ergue o “teto”,
nos mostrando que o diploma
está na alma do “arquiteto”!...
Heder Rubens Silveira e Souza 

5º Lugar:
Entre tantas cantilenas,
uma todo mundo aprova:
quatro versinhos apenas,
mas... quanta arte tem na trova!
Geraldo Trombin

sábado, 21 de janeiro de 2017

Olivaldo Junior (Lâmpadas)

O menino maravilhava-se com as lâmpadas da rua, que, pontualmente, ao fim de cada tarde, se lembravam de acender-se. Quisera ter uma memória assim, luminosa!... Não a tinha. Ou, para bem dizer, achava que não a tinha. Tinha mesmo era uma vela de memória, o que, para ele, já dava para o gasto. Não carecia muito. O trabalho como sorveteiro mirim necessitava de umas contas de cabeça, previamente retiradas da cartilha lá da escola. Um mais um, igual a dois, que, dividido por dois, é um. Hum... A vida era uma vela no peito, alento, e as lâmpadas, o além da vida.

"Um dia, quando eu for grande, vou ter uma casa enorme, com lâmpadas por todo o lado, de fazer inveja até pros vaga-lumes!", pensava consigo enquanto empurrava o carrinho de sorvete pelas ruas da Cidade. O peso do enorme carrinho contra o peso do corpo de um menino de doze anos e meio é um pouco ingrato, sobretudo em subidas. Mas, em nome da vida, vivemos, e o menino vivia seu dia, vendendo sorvete até cair o sol e erguer-se a lua. Aí, no mesmo horário, as lâmpadas, o lume de vidro em que o menino era vidrado. Voltava para casa sob essa luz, ora branca, ora amarela, alaranjada, das lâmpadas que via. Um visto para a luz, o que queria, já que a luz em sua casa tinha sido cortada havia um mês, e a mãe esquentava água num fogo de chão improvisado no quintal. A luz é cara. A cara enxerga a luz e é por ela banhada, ilumina-se. Beleza...

Foi no dia em que os irmãos do sorveteirinho sonhavam com Papai Noel que ele teve a ideia de pedir na igreja mais próxima para o santo mais pobre (logo para ele!), São Francisco de Assis, um pouco de luz para sua casa. Assim, sua mãe e os irmãos teriam banho quente quando noite e sorvete quando dia. Ajoelhadinho ao pé do santo, nosso amigo sussurrava o Cântico das Criaturas de que se lembrava, ou de que ouvia falar nos sermões que tinha de relance, lá da Praça Central.

O menino cresceu. Não mora em casa grande, nem em senzala. Mora numa casa simples, já sem irmãos, com sua mãe. Sua casa tem luz. Toma banho quente quando noite e sorvete quando dia. Mas não repara muito nisso. Hoje sonha com outras luzes. Aquela luz primeira, a das lâmpadas da rua, murcharam como rosas ao longo dos dias, depois de despertas, abertas ao sol. Luz, a de Francisco, é que é viva. A luz das lâmpadas, feito a de todo sonho, sombra de nós, velha infância.

Fonte:
O Autor

1º Concurso de Trovas Internacional da UBT PANAMÁ (Resultado Final)




Tema: A Rota 
(referente ao Canal do Panamá)

VENCEDORES

1° Lugar:
A humanidade se empenha,
e num esforço profundo...
Eis que a rota panamenha,
encurta as rotas do mundo!
Professor Garcia

2° Lugar:
Tem Lesseps alta nota,
e glórias sempre as terá
por ter planejado a rota
do Canal do Panamá!
Humberto Rodrigues Neto 

3° Lugar:
A Rota mais emergente
do Panamá, em dez anos,
dividiu um continente
e abraçou dois oceanos.
Maryland Faillace

4° Lugar:
Quando o cansaço me alcança,
não me sinto desolado;
sigo a rota da Esperança...
faço da Fé meu cajado!
Dodora Galinari

5° Lugar:
Sem temor de uma derrota
ao mais belo dos seus planos,
foi que o homem abriu a rota,
unindo dois oceanos.
Sônia Sobreira

MENÇÃO HONROSA

Na rota entre os oceanos
que ceifou, mas uniu vidas,
andam hoje, soberanos,
barcos em vindas e idas.
Maria Luiza Walendowsky

Com intensa e útil Frota, 
ligando os mares não há, 
outra mais bela que a Rota 
do Canal do Panamá!
Amilton Maciel Monteiro

Transposição, em dois planos,
a eclusa, o engenho de Alá,
é a rota dos oceanos
e o orgulho do Panamá!
Nei Garcez

Para seguir na viagem
da vida que eu desenhei,
levo o amor como bagagem
e a rota que já tracei.
Therezinha Tavares

Desde o dia em que nascemos
temos a rota traçada
mas dela nada sabemos
como e quando é terminada.
Euclides Cavaco 

MENÇÃO ESPECIAL

Sigo a rota sem perigo
pois, tendo a fé que me guia,
força e coragem consigo
e empreendo a travessia. 
Relva do Egypto Rezende Silveira

“A Rota” foi um sucesso:
Panamá, o teu canal
incrementou o progresso
do intercâmbio mundial!
Wanda de Paula Mourthé

De um sonho, a ideia brota,
dentro de um plano profundo…
Culminando com a rota,
que encurta as rotas do mundo!
Francisco Gabriel

Na rota do mundo inteiro,
todo o bem que Deus me traz,
traduz-se bem altaneiro, 
na busca ingente da Paz.
Olga Maria Dias Ferreira

O progresso estender-se-á
e o transporte já denota;
é o Canal do Panamá
com as naus singrando a rota!...
Glória Tabet Marson

DESTAQUE

Rumo aos corações humanos
sempre a rota existirá,
se a paz cruzar oceanos
no canal do Panamá.
Edweine Loureiro da Silva

Um istmo separa oceanos
e o humano engenho nos dá
essa rota de altos planos:
- O Canal do Panamá!
Carolina Ramos

A rota da integração
que liga dois oceanos,
faz do Panamá, nação
que une sonhos soberanos.
Plácido Ferreira do Amaral Júnior

No Panamá se denota
em seu canal, a grandeza,
porte e pujança da rota
a vencer a natureza.
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho

O Canal do Panamá,
elo entre dois oceanos,
agora e sempre será
rota de aplausos humanos!
Josafá Sobreira da Silva

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte III

Foto por Belchonock
Dispostos por Castro Alves em forma de epígrafes, os discursos de Les Orientale, de Victor Hugo, e Canto dos filhos de Agar de Sue, antecedem os poemas, “A criança” (ALVES, 1972, p. 75) e “Bandido negro” (ALVES, 1972, p. 83), ambos do livro Os escravos. 

Dessa inclusão resulta, no texto do poeta, tanto a adequação das letras nacionais à moda européia, quanto a presença do mundo oriental na escritura romântica brasileira. Exemplo dessa adequação constitui o “Navio Negreiro”. Nesse poema, um dos mais conhecidos de Castro Alves, o chamado poeta dos escravos ao tematizar a forçada travessia dos africanos para o Brasil o faz em aproximação com o êxodo forçado de Agar e de seu filho Ismael. Assim, configura, através de suas mulheres, os africanos seqüestrados para o trabalho forçado em nossas terras, em analogia com a narrativa sagrada dos árabes.

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas
De longe...bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N’alma – lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leito de pranto
Têm que dar para Ismael.
(ALVES, 1972, p. 180-181)

Em relação às manifestações literárias correspondentes ao período do Realismo, é importante observar como o seu maior representante, Machado de Assis, se debruça, em sua poesia e em sua prosa, sobre a figura árabe.

Em relação ao seu discurso poético, vamos encontrar além de a “Lira chinesa”, escrita em 1870 (MACHADO, 1994, p. 53), o poema, “A cristã nova“ elaborada em 1875 (MACHADO, 1994, p. 110). Nesse último poema, o eu lírico tematiza a difícil aclimatação da mulher palestina, e de sua descendência, às voltas com as restrições religiosas impostas pela Inquisição, em nosso país, como se afere do texto de Machado de Assis:

Olhos fitos no céu, sentado à porta
O velho pai estava. Um luar frouxo
Vinha beijar-lhe a veneranda barba
Alva e longa, que o peito lhe cobria
.......................................

Assim talvez nas solidões sombrias
Da velha Palestina
Um profeta no espírito volvera
As desgraças da pátria. Quão remota
Aquela de seus pais sagrada terra
Quão diferente desta em que há vivido
......................................

“Braço lhe ameaça a vida?” Cavernosa
Um voz lhe responde: “O santo ofício!”
(MACHADO, 1994, p. 110-123)

Quanto à prosa machadiana, mais precisamente em suas crônicas, vamos encontrar várias referências ao mundo árabe, especialmente à poesia, à religião e ao declínio do Império Otomano (1281-1923), visivelmente expressas nas manchetes ocidentais e transfiguradas em signos literários. Revelando-se um profundo conhecedor da doutrina islâmica, Machado de Assis ressalta-lhe a profunda unidade entre o poder político e o poder sagrado, lamenta e critica o processo de ocidentalização do Oriente, terminando por associar o declínio do Oriente à morte da poesia, como expressa, em crônica publicada no primeiro dia de julho de 1876:

Dou começo à crônica no momento em que o Oriente se esboroa e a poesia parece expirar às mãos grossas do vulgacho. Pobre Oriente! Mísera poesia! Um profeta surgiu em uma tribo árabe, fundou uma religião, e lançou as bases de um império; império e religião têm uma só doutrina, uma só, mas forte como o granito, implacável como a cimitarra, infalível como o Alcorão. Passam os séculos, os homens, as repúblicas, as paixões; a história faz-se por dia, folha a folha; as obras humanas alteram-se, corrompem-se, modificam-se, transformam-se. Toda superfície civilizada da terra é um vasto renascer de coisas e idéias. Só a idéia muçulmana estava de pé; a política do Alcorão vivia com os paxás, o harém, a cimitarra e o resto [...] Mas o que eu apuro de tudo o que nos vem pelo cabo submarino e vapores transatlânticos é que o Oriente acabou e com ele a poesia. (MACHADO, 1994, p. 335-336)

O período que se processa entre a última década do século XIX e a Semana de 22, fase que corresponde às experiências pré-modernistas e a uma boa parte do período de apogeu da entrada de imigrantes no país, verificada, segundo Lucia Lippi Oliveira, entre os anos de 1870 a 1930 (2002, p. 11), coincide, também, com a retomada da discussão, de forma mais sistemática, acerca da brasilidade, como ilustram as publicações de Os sertões (1902), de Euclides da Cunha; Canaã (1902), de Graça Aranha; Triste fim de Policarpo Quaresma (1915), de Lima Barreto e de Urupês (1918), de Monteiro Lobato. Desse contexto cultural, marcado pelos traços da mudança e da diversidade que caracterizariam o nosso Modernismo, surgiriam também as primeiras obras significativas dos brasileiros filhos de imigrantes, a exemplo das obras plásticas de Anita Malfatti, iniciada desde 1915, e as do pintor Victor Brecheret, iniciada em 1919.

A partir do Modernismo, cujo marco inicial é, comumente, assinalado pelo evento da Semana de Arte Moderna de São Paulo (1922), a presença do imigrante no Brasil se tornaria mais visível e sistemática em nossos escritos literários. Movimento de ruptura estética, de busca de novas formas de expressão, de redefinição do papel da literatura e do escritor, de reinterpretação da cultura e do homem brasileiro (MENDONÇA, 2002, p. 20), os nossos vários Modernismos se voltariam para esses brasileiros, alguns já atuantes em nosso espaço artístico; outros recém-chegados, como se verifica, explicitamente, na narrativa de Menotti Del Picchia, O estrangeiro (1926), publicada quatro anos após a ocorrência da Semana.

Exemplares da abertura modernista, à tematização do mundo oriental e à figura do imigrante árabe, constituem a produção do poeta nordestino, Manuel Bandeira, e a elaboração dos escritores de Minas Gerais, Carlos Drummond de Andrade e João Guimarães Rosa. 

Em relação a Manuel Bandeira, em ação escritural desde 1917, as presenças orientais e a árabe, em particular, só se dariam a partir de 1936, se processando, para além das temáticas, nas próprias formas poéticas utilizadas. Após publicar “Canção das duas Índias” (Estrela da manhã, 1936), Bandeira escreverá “Haicai tirado de uma falsa lira de Gonzaga” e “Gazal em louvor a Hafiz”, ambos do livro Lira dos cinquent’anos, publicada em 1940. Assim, inclui em sua obra tanto a forma poética de origem japonesa, como o gazal, gênero lírico-amoroso dos árabes.

Apropriando-se da forma dos gazais, Bandeira incorporaria à sua poesia uma das formas poéticas mais importantes da literatura árabe: os gazais ou gazéis. Escritas no ano 800 da Era Cristã, por Abbas de Marv, os gazais desfrutam do status de primeiras manifestações conhecidas da literatura persa. Seria, pois, com o auxílio formal dos primeiros versos árabes que Manuel Bandeira homenagearia e imortalizaria Hafiz, poeta persa do século XIV, autor de poemas líricos, conhecido pelos versos harmoniosos, pela presença do amor, do vinho e da natureza em seus poemas:

GAZAL EM LOUVOR DE HAFIZ

Escuta o gazal que fiz
Darling, em louvor de Hafiz:

– Poeta de Chiraz, teu verso
Tuas mágoas e as minhas diz.

Pois no mistério do mundo
Também me sinto infeliz.

Falaste: “Amarei constante
Aquela que não me quis.”

E as filhas de Samarcanda,
Cameleiros e sufis

Ainda repetem os cantos
Em que choras e sorris.

As bem-amadas ingratas,
São pó; tu, vives, Hafiz!
(BANDEIRA, 1976, p. 159 – grifos nossos)

Dirigindo-se a um Outro, curiosamente nomeado pelo vocábulo inglês, Darling, Bandeira aponta para as afinidades líricas entre a sua poesia e a do poeta persa, reconhecendo, nas mágoas que se desprendem dos versos Hafiz, os seus próprios desencantos. Nesse caminho, em que forma e conteúdo se conjugam na aproximação entre a poesia brasileira e a poética árabe, Bandeira se aproxima de Jorge Amado, enquanto se anteciparia a Milton Hatoum, mais precisamente ao seu romance Dois irmãos (2000), publicado sessenta anos após a Lira de Bandeira.

Encaminhando-se nessa tradição, Milton Hatoum se utilizaria dos gazais de Abbas como elemento de mediação amorosa de seus personagens, Halim e Zana, casal árabe de origem libanesa; ele muçulmano, ela cristã maronita. Atualizando a presença da poesia e do poeta persa em nossa literatura, através de um artifício ficcional, Milton Hatoum transforma o poeta Abbas e os seus gazais em signos árabes já aclimados ao solo de Manaus. Em Dois irmãos, o poeta que elabora os gazais com os quais Halim conquista Zana já vive no Brasil e é, entre nós, que se processa a sua bilíngue produção poética. Assim, tanto Manuel Bandeira, em meados do século passado, quanto Hatoum, no alvorecer do século atual, estabelecem um diálogo entre a literatura brasileira e a literatura árabe, manifestando, então, a importância da literatura árabe entre nós, como ilustra a voz narrativa em Milton Hatoum: 

Quem indicou o restaurante ao jovem Halim foi um amigo que se dizia poeta, um certo Abbas [...] Um dia Abbas viu o amigo na loja Rouaix [...] Halim queria comprar um chapéu francês [...] Abbas se adiantou a madame Rouaix, cutucou o amigo, saíram da loja [...] Halim desabafou, e Abbas sugeriu que desse a Zana um gazal, não um chapéu [...] Abbas escreveu em árabe um gazal com quinze dísticos, que ele mesmo traduziu para o português. Halim leu e releu os versos rimados: lua com nua, amêndoa com tenda, amada com almofada. Pôs a folha de papel num envelope e no dia seguinte fingiu esquecê-lo na mesa do restaurante [...] na manhã daquele sábado, Halim entrou cambaleando no Biblos [...] deu três passos na direção de Zana, aprumou o corpo e começou a declamar os gazais, um por um, a voz firme, grave e melodiosa, as mãos em gestos de enlevo [...] dois meses depois voltou como esposo de Zana. (HATOUM, 2000, p. 48-51)

Quanto a Carlos Drummond de Andrade, integrante do Modernismo Mineiro e em atividade literária desde 1928, a frequentação de personagens árabes se verificaria a partir de 1952. Atento, como Machado de Assis, ao que se passa no mundo, Carlos Drummond de Andrade publica a crônica, “Sinais do tempo: reflexões sobre o fanatismo”, que integra seu livro Passeios na Ilha (DRUMMOND, 1988, p. 1405-1406). Nesse texto, originado de um período marcado pelas dissensões entre interesses do capitalismo ocidental e os interesses árabes, o poeta de Itabira apreenderia a paisagem política mundial, através da apreensão dos conflitos religiosos, conflitos muitas vezes mascaradores dos interesses políticos.

Nessa apreensão, Drummond retoma Voltaire, endossando-lhe a crítica ao Concílio de Nicéia, marco inicial das guerras de religião, segundo os dois escritores. Assim, problematiza a Fé e o Político, no contexto do segundo quartel do século passado, enquanto expressa a estranha condição da sociedade moderna, desejosa de paz, mas arredia às diferenças e profundamente bélica:

Não é fácil decidir se nossa época se caracteriza pelo excesso ou pela míngua da crença Enquanto o século XVIII ficou marcado pelo racionalismo filosófico e revolucionário, e o século XIX pelo cientificismo e a ideia socialista, o período em que vivemos não logrou ainda definir-se como um tempo ateu, místico e idealista, materialista, hedonista, surrealista, infantil ou bárbaro [...] Ao definir em seu Dicionário Filosófico o conceito de tolerância (“perdoemo-nos reciprocamente nossas tolices; é a primeira lei da natureza”.), Voltaire tinha em mente as guerras de religião, que desde o primeiro concílio de Nicéia vinham ensanguentando o mundo. Hoje em dia os concílios não têm mais poder para devorar o homem; mas os partidos, certos partidos, têm [...] Aspiramos a uma terra pacífica, através da crescente militarização dos espíritos, para já não falar na preparação bélica total. Pretendemos o congraçamento humano, eliminando a divergência política ou estética. (DRUMMOND, 1988, p. 1405-1407)

Ao aproximar-se do fim do século, Drummond retomaria a tematização do mundo árabe, de forma mais explícita e específica. Em seu poema, “Turcos”, do livro Boitempo (1968), o poeta imortaliza a presença árabe entre nós, caminhando por uma ambiguidade poética que ora problematiza a presença árabe (síria) na região mineira – A língua cifrada/ cria um mundo-problema, em nosso mundo/ como um punhal cravado/ – ora se pergunta se os árabes já não são mineiros de tanta convivência com as Minas Gerais. Nesse artifício poético, Drummond terminaria por se aproximar da mesma perspectiva solidária em que o árabe assimila o Brasil e o Brasil assimila o árabe. Assim, terminaria por configurá-lo como a balança, o espelho, o perfume de Minas Gerais, num reconhecimento do entranhamento dos traços arábicos na cultura mineira, conforme se verifica a seguir:

OS TURCOS nasceram para vender
bugigangas coloridas em canastras
ambulantes.
Têm bigodes pontudos, caras
de couro curtido,
braços tatuados de estrelas.
Se abrem a canastra, quem resiste
ao impulso de compra?
É barato! Barato! Compra logo!
Paga depois! Mas compra!

A cachaça, a geléia, o trescalante
fumo de rolo: para cada um
o seu prazer. Os turcos jogam cartas
com alarido. A língua cifrada
cria um mundo problema, em nosso mundo
como um punhal cravado.
Entendê-los, quem pode?
.......................................

A turca, ei-la que atende
A fregueses sem pressa,
Dá de mamar, purinha, a seu turquinho
O seio mais que farto.
Jacó, talvez poeta
Sem verso e sem saber que existe verso
Altas horas exila-se
No alto da cidade, a detectar
No escuro céu por trás das serras
Incorpóreas Turquias. E se algum
Passante inesperado chega perto
Jacó não o conhece. Não é o mesmo
Jacó de todo dia em sua venda.
É o ser não mercantil, um elemento
Da noite perquirinte, sem fronteiras

Os turcos,
meu professor corrige: Os turcos
não são turcos. São sírios oprimidos
pelos turcos cruéis. Mas Jorge Turco
aí está respondendo pelo nome,
e turcos todos são, nesse retrato

tirado para sempre.... Ou são mineiros
de tanto conviver, vender, trocar e ser
em Minas: a balança
no balcão, e na canastra aberta
o espelho, o perfume, o bracelete, a seda,
a visão de Paris por uns poucos mil-réis?
(DRUMMOND, 1988, p. 604-606)

Como se pode observar, através dos exemplos anteriores, a tematização árabe em nossa literatura ultrapassaria a fase dinâmica do Modernismo, compreendida pelo período que vai de 1922 a 1945 (CANDIDO; CASTELLO, 1983, p. 7), persistindo nos meados do século XX e nos anos que se aproximam do fim do século, nos mais variados modernismos, nas mais variadas formas e nas mais diversas concepções literárias.

Em face do contexto atual, marcado pelas invasões e guerras no mundo árabe, pelos mais diversos tipos de terrorismo, não é demais assinalar que, em seu poema “Elegia 1938”, do livro Sentimento do mundo (1940), considerado como marco de reorientação de sua estética, Drummond abriria sua poesia para os conflitos do mundo externo, confessando, nos últimos versos, o desejo desesperado de implodir o centro financeiro dos Estados Unidos, Manhattan, como se lê na última estrofe do poema:

Coração orgulhoso, tens pressa em confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
Porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
(DRUMMOND, 1988, p. 73)

Numa ininterrupta continuidade, as gentes árabes voltariam à nossa narrativa com o lançamento, em 1956, do romance de João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas. Acolhido, entusiasticamente, pelos leitores e pela crítica brasileira, o livro de Guimarães Rosa tematizaria a relação interétnica no Brasil, através de dois personagens imigrantes, um árabe e um alemão.

Estudiosa de Guimarães Rosa, Walnice Nogueira Galvão é a primeira a observar, na representação do imigrante, procedida pelas letras do romancista mineiro, a diferença de tratamento dada ao imigrante árabe e ao imigrante alemão. Sem a perspectiva histórico-literária assumida por esse trabalho, o artigo “Forasteiros” (1998, p. 15-28), de Walnice Galvão, acentuaria essa diferença, embora não observe que a conduta literária, adotada por Guimarães na representação árabe, se constitui numa tradição, iniciada desde os inícios do Modernismo:

Um alemão e um turco aparecem inextricavelmente ligados em Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa [...] O turco de Grande sertão: veredas se chama Seo Assis Wababa e o seu nome próprio árabe Azis aparece assimilado ao sobrenome luso-brasileiro. É o proprietário da venda O Primeiro Barateiro da Primavera de São José, cidadão instalado na vida, comerciante de reputação e pai de família numerosa. Riobaldo, assíduo conviva, aprende a apreciar as comidas típicas [...] Contrastando com Seo Assis Wababa, de quem Riobaldo é amigo e cuja casa frequenta, há o alemão Vupes. Mascate e portanto itinerante, é admirado por Riobaldo, que lhe realça as qualidades de sensatez, bom humor, sangue frio, completadas pela capacidade de procurar seu conforto [...] Essas são, em suma, as relações de Riobaldo com os dois expatriados. Mais rica em implicações para a narrativa é a oposição entre os dois homens de negócios, o alemão e o turco. Enquanto este, como vimos, encarna a estabilidade, a permanência, a respeitabilidade familiar, e sua casa se abre para receber os nômades, o alemão, inversamente, está sempre passando. Ele vem de fora [...] E será fora do horizonte tanto da narrativa quanto do sertão que o Alemão Vupes vai-se sedentarizar, ao instalar-se um dia como abastado comerciante “na capital”.
(GALVÃO, 1998, p. 15-19)

Se os modernistas de São Paulo, Graça Aranha (egresso do pré-modernismo) e Menotti Del Picchia, inauguram a tematização do imigrante em nossas letras, seria no Movimento Modernista do Nordeste, especialmente em Jorge Amado, que essa representação, notadamente a árabe, se tornaria, sistêmica e assídua, como se observa da leitura de todos os seus romances, notadamente configurados com a presença de personagens árabes, em especial o protagonismo do sírio Nacib, personagem a quem dedicaremos nossos estudos, com a finalidade de fundamentar nossas afirmações.

continua
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Fonte:
VILLAR, Valter Luciano Gonçalves. A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum. Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008