quarta-feira, 22 de maio de 2019

Silmar Bohrer (Lampejos Poéticos) XIII


Arthur de Azevedo (Conto em Versos: Banhos de Mar)


Manuel Antônio de Carvalho Santos,
Negociante dos mais acreditados,
Tinha, em sessenta e tantos,
Uma casa de secos e molhados.

Na Rua do Trapiche. Toda a gente
– Gente alta e gente baixa –
O respeitava. Merecidamente:
A sua firma era dinheiro em caixa.
 
Rubicundo, roliço,
Era já outoniço,
Pois há muito passara dos quarenta
E caminhava já para os cinquenta.
 
O bom Manuel Antônio
(Que assim era chamado),
Quando do amor o deus (Deus ou demônio,
Porque como um demônio os homens tenta,
Trazendo-os num cortado)

Fê-lo gostar deveras
De uma menina que contava apenas
Dezoito primaveras,
E na candura de anjo
Causava inveja às próprias açucenas.

Tinha a menina um namorado, é certo;
Porém o pai, um madeireiro esperto,
Que no outro viu muito melhor arranjo,
Tratou de convencê-la
De que, aceitando a mão que lhe estendia
Manuel Antônio, a moça trocaria
De um vaga-lume a luz por uma estrela

Ela era boa, compassiva, terna,
E havia feito ao moço o juramento
De que a sua afeição seria eterna;
Porém dobrou-se à lógica paterna
Como uma planta se dobrara ao vento.

Sabia que seria
Tempo perdido protestar; sabia
Que, na opinião do pai, o casamento
Era um negócio e nada mais. Amava;
Sentia-se abrasada em chama viva;
Mas… tinha-se na conta de uma escrava,
Esperando, passiva,
Que um marido qualquer lhe fosse imposto,
Contra o seu coração, contra o seu gosto.

Calou-se. Que argumento
Podia a planta contrapor ao vento?
No dia em que a notícia
Do casamento se espalhou na praça,
A Praia Grande inteira achou-lhe graça
E comentou-a com feroz malícia,
E na porta da Alfândega,
E no leilão do Basto
Outro caso não houve era uma pândega!

Que às línguas fornecesse melhor pasto
Durante uma semana, ou uma quinzena,
Pois em terra pequena
Nenhum assunto é facilmente gasto,
E raramente um escândalo se pilha.
Quando um dizia: – A noiva do pateta
Podia muito bem ser sua filha,
Logo outro exagerava: – Ou sua neta!

O moço desdenhado,
Que na tesouraria era empregado,
E metido a poeta,
Durante muito tempo andou de preto,
Co’a barba por fazer, muito abatido;
Mas, se a barba não fez, fez um soneto,
Em que chorava o seu amor perdido.

Do barbeiro esquecido
Só foi à loja, e vestiu roupa clara,
Depois que a virgem que ele tanto amara
Saiu da igreja ao braço do marido.

Pois, meus senhores, o Manuel Antônio
Jamais se arrependeu do matrimônio;
Mas, passados três anos,
Sentiu que alguma coisa lhe faltava:

Não se realizava
O melhor dos seus planos.
Sim, faltava-lhe um filho, uma criança,
Na qual pudesse reviver contente,
E este sonho insistente,
E essa firme esperança
Fugiam lentamente.

À proporção que os dias e os trabalhos
Seus cabelos tornavam mais grisalhos.
Recorreu à Ciência:
Foi consultar um médico famoso,
De muita experiência,
E este, num tom bondoso,
Lhe disse: – A Medicina
Forçar não pode a natureza humana.

Se o contrário imagina,
Digo-lhe que se engana.
Manuel Antônio, logo entristecido,
Pôs os olhos no chão; mas, decorrido
Um ligeiro intervalo,
O médico aduziu, para animá-lo:

– Todavia, Verrier, se não me engano,
Diz que os banhos salgados
Dão belos resultados…
Experimente o oceano! –

No mesmo dia o bom Manuel Antônio,
Á vista de juízo tão idôneo, Tinha
casa alugada
Lá na Ponta d’Areia,
Praia de banhos muito frequentada,
Que está do porto à entrada
E o porto aformoseia.

Nessa praia, onde um forte
Do séc’lo dezessete
Tem tido vária sorte
E medo a ninguém mete;

Nessa praia, afamada
Pela revolta, logo sufocada
De um Manuel Joaquim Gomes,
Nome olvidado, como tantos nomes;
Nessa praia que… (Vide o dicionário
Do Doutor César Marques) nessa praia,
Passou três meses o quinquagenário,
Com a esposa e uma aia.

Não sei se coincidência
Ou propósito foi: o namorado
Que não tivera um dia a preferência,
Maldade que tamanhos
Ais lhe arrancou do coração magoado,
Também se achava a banhos

Lá na Ponta d’Areia…
Creia, leitor, ou, se quiser, não creia:
Manuel Antônio nunca o viu; bem cedo,
Sem receio, sem medo
De deixar a senhora ali sozinha,
Para a cidade vinha
Num escaler que havia contratado,
E voltava à tardinha.

Tempos depois – marido afortunado!
Viu que a senhora estava de esperanças…
Ela teve, de fato,
Duas belas crianças,
E o bondoso doutor, estupefato,
Um ótimo presente,
Que o pagou larga e principescamente!
Viva o banho de mar! ditoso banho!

Dizia, ardendo em júbilo, o marido.
– Eu pedia-lhe um filho, e dois apanho!
Doutor, meu bom doutor, agradecido!
Pouco tempo durou tanta ventura;
Fulminado por uma apoplexia,
Baixou Manuel Antônio à sepultura.

O desdenhado moço um belo dia
A viúva esposou, que lhe trazia
Amor, contos de réis e formosura.

E no leilão do Basto
Diziam todos os desocupados
Que nunca houve padrasto
Mais carinhoso para os enteados.

Carlos Drummond de Andrade (A Datilógrafa)


A Associação dos Antigos Alunos do Professor Penaforte é modelo do gênero. Os associados pagam pontualmente as mensalidades, reúnem-se cordialmente em almoço no último sábado do mês, e agora resolveram editar um boletim: publicação modesta, trinta e duas páginas, que divulgue êxitos profissionais dos colegas, movimento da AAPP, essas coisas.

Pequeno aumento nas contribuições não afeta os Antigos Alunos, todos bem de vida ou a caminho de. O menos bem é talvez dr. Ariosto: ainda não pôde abrir mão do empreguinho burocrático, ou não soube transformá-lo em doce cargo de muita remuneração e zero obrigação. Grande praça, dr. Ariosto: sempre disposto a ajudar, a fazer força, de modo que o lugar de redator-secretário do boletim lhe cabe indiscutivelmente, como lhe coube o de tesoureiro da AAPP, sem falar em todas as demais funções da diretoria, nos casos de impedimento temporário, isto é, permanente, de colegas ocupadíssimos, além de ilustríssimos.

Redator-secretário pressupõe existência de outros redatores, inclusive redator-chefe… mas deixa, Ariosto escreve para mim este artigo, pois no sítio lá em Pires do Rio o fim de semana é danado de barulhento. E assim por diante, dr. Ariosto dá conta de tudo, escreve, reescreve o que os outros alinhavaram mal mal. Só que os originais precisam ser uniformizados. Datilógrafa esmerada, rápida, como encontrá-la? D. Jerusa, colega de repartição, precisa de uns bicos: só o cabeleireiro leva metade do ordenado. Há tempos pedira a dr. Ariosto que, se soubesse de algum servicinho de máquina em embaixada, não deixasse de avisá-la: esses boletins mimeografados, sabe como é? Pois ali estava o boletim,
não de embaixada, mas de uma associação de gente distinta, que paga corretamente. D. Jerusa lamentou-se: fora atacada por esse monstro moderno, alergia. Não pode nem ver papel, quanto mais lidar com ele.

O bom dr. Ariosto resigna-se a ser datilógrafo de si mesmo e da AAPP, em sigilo. Como tudo que faz tem o selo do capricho, a AAPP felicita-o por ter arranjado uma datilógrafa perfeita. O presidente pergunta-lhe se, além de perfeita, é bonita. Ariosto sorri, quer omitir a informação, o outro insiste, ele admite que não é feia.

— Pois traga a moça aqui, para a cumprimentarmos pelo serviço.

— Não convém. É muito tímida.

Toda vez que chegam os originais, batidos impecavelmente, repete-se o coro de louvores.

— E nós que ainda não nos lembramos de pagar-lhe. Quanto deve ser?

— Não se preocupem — responde dr. Ariosto. — Ela faz isso de camaradagem. Não precisa de dinheiro.

— Deveras? Não é justo. Temos de remunerar o trabalho da moça. Qual o nome dela, o endereço?

Explicou que a moça fazia o serviço por amizade a ele, e recusava terminantemente gratificação, sob pena de não botar mais o dedo no boletim; além do mais, era admiradora do saudoso professor Penaforte. A essa altura, dr. Ariosto verificou, estupefato, sua própria capacidade de mentir, ele que é a verdade em pessoa. Amizade, hem? Acabaram imaginando que a datilógrafa era namorada dele. E concluíram que ela merecia um presente, com os agradecimentos da AAPP.

— Agradecimentos que devem constar na ata — ponderou o presidente. — Essa jovem é uma pérola.

Dr. Ariosto lutou como leão para impedir a homenagem, mas, perturbado, acabou dando o nome de d. Jerusa. Saiu em disparada para avisá-la, pedir-lhe mil desculpas. Quando aparecesse o mensageiro, com um embrulho de presente e um ofício…

— Não posso aceitar — disse d. Jerusa, inflexível. — Devolvo.

— Não faça isso!

— Então mando botar na sua mesa.

Foi uma áfrica obter que aceitasse a linha completa de produtos de beleza. No ofício, além do mais, o presidente convidava-a para um chá na sede, onde receberia cumprimentos.

— Pensando bem, dr. Ariosto, eu vou. Não devo desapontar o presidente. Parece tão simpático!

Bom, dr. Ariosto não tinha nada com d. Jerusa, mas não é que o picou um vago ciúme do presidente?

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

terça-feira, 21 de maio de 2019

Marcos Satoru Kawanami (Poemas Avulsos)


ARTE METAFÍSICA

Estranha arte é esta de escrever...
Sem pincel, sem cinzel a obra cresce
E toma forma, e nem forma carece
Para que a outrem venha a entreter!

Um papel sujo basta ao seu mister,
Um papel que no lixo alguém esquece...
Na folha rota que o desdém merece,
É nela que o poema vai nascer.

Poesia, prima-irmã da Matemática
Que no papel também faz teorema,
Acha ela sempre musa mais simpática.

Seguem Música e Dança o mesmo esquema,
Brotando da sublime e etérea prática
Qual do nada também brota um poema.

CARTA DO MALANDRO ESCRUPULOSO

Minha querida Daisy, custa-me dizer...
Para teu bem-estar, por tua dignidade,
ver-me-as nunca mais. E não sintas saudade
deste vadio que te tanto fingiu querer.

Eu bem sei..., alma pura, jamais vês maldade;
mas esta virtude há de desaparecer
com a ilusão que só inspirou-te o padecer
por partilhar de minha vil intimidade.

Esquece do Brasil, do Rio, do meu franzino
e fingido sorriso de ingênuo menino.
É inevitável: nova ilusão vais achar.

Porém se, por ventura no teu fog londrino,
lembrança vier, lembra deste alexandrino:
"Eu te desprezo para não te ver chorar".

O BURACO

Na existência do homem, o buraco é tudo:
De um buraco ele vem, e para outro ele vai;
E outro buraco, ainda, bastante o distrai
Furtando-lhe a razão num louco anelo agudo.

O buraco será sempre coisa enigmática,
Esfinge alcandorada para a confraria
Dos homens indefesos perante a magia
Magnética, hipnótica, orificiática.

O buraco é ornado por pomposa flora
A qual mais seu mistério vela, encobre, oculta.
Buraco, és flor, não do Lácio, mas inculta!

E tanto o peito másculo, voraz, devoras
Que se o levas ao val sombrio da sepultura,
Ser fiel ao buraco eterno o homem jura.

O BURACO (2)

O buraco tem um quê de absoluto:
Não é palpável, mas claro é que existe;
Seu não-ser o faz ser, e assim persiste.
Sina humana, buraco, és cabal luto.

A terra cava de naco em naco
O menino que brinca angelical
E, ingênuo, conclui filosofal:
Jamais pode existir meio buraco!

Oráculo o buraco é do mistério,
Do insondável, da coisa indefinida:
Um buraco nos deu o dom da vida!

E nos espera lá no cemitério
à espreita, na tocaia escondida,
O Buraco, ironia sem medida.

RÉPLICA A CAMÕES

Alma minha gentil, qual hei deixado,
quiçá mesmo em favor da Humanidade
que hora ganha a lusa celebridade
das armas e barões assinalados;

se cá pr'onde  subi contrariada
memória da outra vida se consente
nunca me esquecerei do ódio ardente
às rimas pelas quais fui eu trocada.

E se vires que pode merecer-te
algu'a migalha de ira — que sobrou —
cuida que obrando estou por socorrer-te

rogando ao que meus anos encurtou
que tão cedo Amor venha a abater-te
quão cedo em meu soçobro soçobrou.

SONETO DE NASALIDADE

De tudo ao meu nariz serei atento;
e tanto e pouco e no jamais e antes,
que mesmo em face de dois elefantes
m'nha tromba cause mais alumbramento.

Por ele hei de viver sempre asmático
de assoar minha alma, e escarrar sua escória;
enamorado e não menos pneumático...
da sublime função respiratória.

E assim, quando mais tarde me procure
quiçá o vexame, angústia de quem vive,
quiçá a rinite, conforme Deus mande;

possa eu me dizer do nariz (que tive):
que não seja imoral, inda que grande,
mas que seja aquilino, e não pendure.

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Marcos Satoru Kawanami nasceu na cidade de São Paulo, em 1975, e passou quase toda a infância e adolescência na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, onde estudou no Colégio Cenecista Capitão Lemos Cunha.

Aos 18 anos, ingressou no curso de Astronomia da UFRJ; no segundo período, foi cursar Engenharia de Minas e permaneceu por um ano em Ouro Preto, de onde voltou para prosseguir na UFRJ até o 6º período de Astronomia. Então, trancou a matrícula. Simultaneamente, trabalhou na Fundação Oswaldo Cruz. Em 2002, concluiu o curso de Letras da UNIFEV, em Votuporanga; e, em 2003, efetivou-se como professor  nas disciplinas de Português e Inglês.

Vinicius de Moraes (H2O)


Sete horas da manhã. Campainha na porta.

- Dez minutos de água, pessoal!

É a voz do seu Abel, o porteiro do meu edifício.

Água quer dizer banho. Há dois dias este corpinho só vê fricções de água-de-colônia. A ablução é um tanto ou quanto matinal demais, mas não há remédio: o homem é um escravo do quarto elemento, de que é ele próprio o composto químico: H-O-N-C. Os dois primeiros em combinação, dão água: H20. É ela!

A correria é infernal, enche-se desde o tanque de lavar roupa até os copos da casa. A lavação da louça suja é feita a toda, como para ganhar um campeonato. Ouvem-se profusas descargas de latrinas, torneiras escorrem ruidosamente, enchendo recipientes dos quais a banheira é o mais capaz. A barba é feita em dois minutos, havendo eu, muito de indústria, deixado pincel e aparelho adrede preparados. Depois vem o banho, às carreiras. Mas a verdade é que o tempo útil voa impressentido. Depois de bem ensaboado, o chuveiro começa a minguar assustadoramente, acabando por estar com um sinistro gorgolejo.

O nome feio anda pela casa, atravessa paredes, vai encontrar eco em outros apartamentos, desdobra-se até longínquos bairros, toma a cidade inteira. De repente todo mundo põe-se a berra-lo em uníssono. Ele é a expressão viva da realidade carioca. Aliás, um grande general de Napoleão já o usara em circunstâncias talvez não tão dramáticas, mas com vigor. Um homem ensaboado não se pode dizer que valha por dois, porque é o ser mais infeliz e ridículo da criação. Tem de se haver com o sistema da cuia. Seu corpo esfria, ele fica com um ar de pintainho molhado. É absolutamente lamentável.

Ontem à noite, o café foi feito com água mineral. Ficou com um gosto meio velhaco, mas não há de ser nada. É de esperar, contudo, que o recurso não se tenha de estender ao próprio banho, porque com a mineral a Cr$ 180, e sendo necessários uns cem litros para encher uma banheira, sai cada banho a 18 contos - o que torna a prática proibitiva para a classe média, ficando acessível apenas a uns poucos homens ricos e bem nutridos, que aliás devem ficar umas gracinhas dentro de um banho de água mineral, agitando os braços gordos e soltando milhões de borbulhas....

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor.

Trova 352 - Dorothy Jansson Moretti


segunda-feira, 20 de maio de 2019

Trova 351 - Odenir Follador


Carolina Ramos (O Amigo Discreto)


Celibatário por opção, Alfredo admirava e exaltava, a mais não poder, os amigos Lígia e Laércio, pela fidelidade sincera que deixavam transparecer no relacionamento conjugal.

Ele, Alfredo, optara pelo celibato. Nada de traumas ou pressões anteriores. Questão de foro íntimo. Melhor, só, do que ter de enfrentar a possibilidade de trair, ou de ser traído. Os tempos modernos, ou melhor dizendo, modernosos, de costumes desabridos e tendências liberais, ofereciam exemplos às dúzias. Se um dia viesse a casar, seria para valer. Nada de casa e descasa. Nada de filial por debaixo do pano. O "até que a morte nos separe", era o lema que tinha em mente. Na dúvida, preferia permanecer solteiro. Solteirão!

Lígia e Laércio eram caso ímpar. Par indestrutível! Quatro filhos. Quatro sólidas pilastras sustentando as bases seguras do edifício familiar. Construção perfeita! Sem deslizes, nem rachaduras.

Chovia naquela tarde em que, Alfredo, dolorosamente surpreendido, tremeu nas bases ao ver passar o amigo Laércio, aconchegando sob o mesmo guarda-chuva, os encantos loiríssimos daquela cujos ombros enlaçava carinhosamente. Uma loira espetacular!

Alfredo sentiu o estômago engulhado. Não podia ser... Laércio, logo Laércio!

Chocado, seguiu o par a distância. Não pretendia provocar o flagrante, vexatório, profundamente constrangedor, para qualquer das partes. Enxugou a testa coberta de suor frio. Compreendeu que nunca mais poderia encarar o amigo infiel, sem recriminá-lo interiormente. Sentia-se também traído. E quanto a Lígia, então?! Como enfrentar seu olhar cândido e meigo de esposa perfeita, vergonhosamente ludibriada pelo marido?!

Marido! Lá ia o descarado, sem o menor escrúpulo, a exibir a companheira, como quem exibe um troféu recentemente conquistado! Cachorro!

A raiva inflou as veias de Alfredo quando viu o casal sumir no carro de Laércio, estacionado adiante. Raiva pelo erro de julgamento. Laércio não era o que julgara ser. Não merecia sua amizade. Não o desmascarara, para poupar Lígia, que crescia no seu conceito.

Nessa mesma tarde, ao chegar em casa, abraçada pelo marido, Lígia sacudiu as roupas molhadas, olhando-se no espelho. Era bom demais sentir-se jovem, outra vez! Nova em folha! Que milagres faziam a dieta balanceada, o narizinho moldado pelo bisturi de um mestre e os reflexos dourados cobrindo a antiga cabeleira castanha. Era uma nova mulher. Uma loira espetacular!

Alguns anos depois, Lígia e Laércio questionavam, ainda, o inexplicável afastamento do amigo.

— E o Alfredo, hein? Que coisa estranha. Sumiu mesmo!

Laércio encerrou definitivamente a questão;

— Na certa, já chegou a esperada transferência. Foi para Curitiba e nem sequer se despediu! Cachorro! Em nossos dias, a gente não pode confiar nem no melhor amigo!

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XII


LÁGRIMA

Orvalho do sofrer - dentro do peito nasce
e nos olhos em pranto sem querer floresce;
aumenta a pouco e pouco, e cada vez mais cresce...
- e rola finalmente em gotas pela face...

sublime florescer da dor... se ela falasse
diria para o mundo a mais sentida prece,
no entanto, em seu silencio humilde é que enternece
pois guarda na mudez um triste desenlace...

Repentina, ela brota, assim como se fosse
( de um mar que em nosso peito as ondas estrugisse)
uma gota que o vento, aos nossos olhos, trouxe...

Nuns olhos de mulher, porém, ainda não disse:
- é a pérola de um mar completamente doce,
de um mar feito de amor... de sonho e de meiguice!

LEMBRANÇA

Bom tempo o que ficou - amei-te na alegria
de uma tarde azulada e linda de setembro,
- disso tudo, hoje, triste, eu muita vez me lembro
enquanto uma saudade o peito meu crucia...

Amei-te, como nunca outro alguém te amaria,
eras o meu sonhar de janeiro a dezembro...
Depois... Tu me deixaste, e ainda hoje se relembro,
amargo a mesma dor cruel daquele dia. . .

Agora, em solidão - sou um corpo sem alma -,
e indiferente a tudo vou chegando ao fim
como a tarde que cai bem suavemente em calma.

Já não sinto... não sofro... já nem vivo até.
- Se a vida ainda era vida ao ter-te junto a mim,
hoje, longe de ti, nem vida ao menos é!

LEVANTE!...

Apenas entre os lábios de uma aurora
sanguínea, o sol desponta num sorriso,
eu saio para o engenho, que diviso,
lá longe, no horizonte, estrada afora...

Os campos orvalhados - toda a flora
verdejante, é um espelho de improviso
dos céus, onde algum astro ainda indeciso
- não sabe se ficar ou se ir embora...

à beira dos caminhos, vez em quando,
passam lentos, os carros carregados,
que dois bois sonolentos vão puxando...

E a vida vai nascendo entre os currais...
- Os galos cacarejam nos cercados,
no espaço, ouve-se o canto dos pardais!...

LIRISMO...

Eu quero ser o poeta da ternura
o poeta dos carinhos, da meiguice,
das palavras de amor e de doçura
que ainda ninguém pensou... e ninguém disse...

O poeta dos "castelos" e dos beijos
quando vivemos longamente, a sós,
- que põe vultos de sonhos nos desejos
e que põe abajures na própria voz. . .

Eu quero ser o poeta que te enleia
e te encanta, e te embriaga, e te seduz,
- que no teu corpo branco como a areia
compõe versos de amor feitos de luz.

O poeta que em teus olhos, num momento
acende estranhos mundos e visões,
e que adivinha o teu deslumbramento
deslumbrado com as próprias emoções...

Eu quero ser o poeta dos anseios,    s
dessa minha alma, irrefletida e louca,
- e desvendando o encanto dos teus seios
murmurar versos para a tua boca!

Quero ser esse poeta que tu queres
e os meus versos, assim como um perfume,
hão de embriagar a alma das mulheres
para o teu sofrimento. . . e o teu ciúme. . .

Eu quero ser o poeta da ternura  
que espalha poemas e a sonhar caminha,
e que encontra afinal toda a ventura
nessa ventura de sentir-te minha!

O poeta que põe alma nos sentidos
e as belezas incógnitas desvenda,
- que murmura canções aos teus ouvidos
e fala sobre o amor num tom de lenda....      
      
O poeta a quem tua alma se prendeu,
esse que chamas louco e sonhador,      
para imortalizar teu nome e o meu
na imortalização do nosso amor!



Má que tu foste - me negaste aquela
última dança que eu pedi, no entanto
eu lá fiquei pelo salão a um canto
debruçado sozinho na janela...

E magoado, a te olhar, vi-te tão bela
nos braços de outro - que chorei, e o pranto
secava em minhas faces por encanto
como se fossem lágrimas de vela...

De que serve chorar - pensei - de nada
vale mostrar aquela que adoramos
a dor que temos na alma sepultada...

E me pus a dançar... Brinquei... Sorri...
E os dois sorrimos... nós dois brincamos...
Mas tu sofreste!... E eu - quanto sofri!...

MALDADE

Tu podes ser igual a todo o mundo
teres defeitos mais que toda a gente,
- que importa ? se este amor cego e profundo
teima em dizer que te acha diferente !

Para mim (eu que te amo como um louco)
os que falam de ti são línguas más,
- ah ! todo o amor que te dedico é pouco
e é sempre pouco o amor que tu me dás !

Sou a sombra que segue os teus desejos
e aos teus pés, numa oferta extraordinária
a minha alma vendeu-se por teus beijos...

Falam de ti... Escuto-os... Fico mudo...
Quanta maldade cruel, desnecessária
se eu já sei quem tu és... se eu sei de tudo !

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Alberto Braga (A Sesta do Avô)


Há quatro dias, vejo todas as tardes, quando chego à janela, o meu vizinho a passear em frente da casa, amparado ao braço da netinha.

O avô é já muito velho, muito velho, com a face coberta de rugas, os olhos pequenos, as mãos encarquilhadas, as pernas trêmulas, e a dobrarem-se nos joelhos. E a neta, que se chama Izaura, e é linda como os amores, tem doze anos, os cabelos loiros, como fios de ouro, e os olhos muito azuis, como duas safiras.

Ele chama-se Macário; mas eu, quando lhe falo, dou à minha voz um tom marcial e digo-lhe alto ao ouvido:

- Como vai o nosso bravo capitão? Como passa o meu valente capitão?

E então, na vizinhança é mais conhecido pelo capitão "Feroz", que foi a alcunha que lhe ficou, por ter sido um militar valente e corajoso como poucos!

Quando os franceses vieram a Portugal... - Ai! - disse-me ele um dia, referindo-me as façanhas da guerra - quem me caçara naquele tempo! Eu tinha então dezoito anos, umas pernas rijas, o olho fino!... Olhe, só de uma vez me falhou a pontaria. Eu lhe conto. No convento de Santa Clara, de Thomar, estava recolhida uma menina, de quem eu gostava muito e com a qual depois casei. Um oficial francês, passando-lhe debaixo da grade, disse-lhe um galanteio, e piscou-lhe o olho direito. Ora eu, que estava ao longe a observar tudo, disse comigo: espera, que já te arranjo. E meti a espingarda à cara, fiz pontaria para o olho direito do francês, e...

-- E?

-- E, truz! Meti-lhe a bala no olho esquerdo! Errei dessa vez!

E ainda lhe fulguravam os olhos e o rosto se lhe iluminava, quando contava destas coisas.

Depois prosseguiu:

- Ao final, chegou-me a vez de ser vencido! Eu, que nunca tremi na guerra, a primeira vez que falei à minha santa, que Deus tenha, dei em tremer como varas verdes! Mas aquilo sim! Era formosa duma vez! O senhor vê a minha filha! É a cara da mãe.

O capitão não se enganava. A filha era realmente formosa; mas duma formosura, que é menos dos contornos do rosto, do que da graça interior da alma.

Havia um ano que era viúva de um industrial trabalhador, honesto e inteligente. Ficara a viver na companhia do pai e com dois filhos: - a Izaura, e o mais pequenino, o Abel, que tinha pouco mais de um ano e uma cabecinha loira de querubim.

Que santa vida a daquela família obscura!

A viúva repartia pelos três todo o generoso afeto do seu coração; e, até, como o pai era tão velhinho, quase que já carecia dos cuidados de uma criança. Que os bons velhos, coitadinhos, são fáceis de contentar! Basta-lhes uma réstia de sol, uns carinhos de filha e umas histórias da neta!

Quando perguntei ao Macário, porque passeava depois do jantar, respondeu-me:

--O sono é bom para a noite. Quando durmo depois de jantar, tenho sonhos maus.

E, beijando a cabeça de Izaura, acrescentou:

- Quero antes passear com a minha neta, que me conta histórias muito lindas.

E continuaram os dois, o velho pelo braço de Izaura, arrastando vagarosamente os pés nas lages do passeio.
*       *       *       *       *

Depois do jantar, o velho arrastava-se até à poltrona, que tinha ao canto da janela; e, bem refastelado, com os pés estendidos, as mãos cruzadas sobre o ventre e a cabeça encostada no espaldar, dormia patriarcalmente a boa sonata da sesta.

De uma vez, era em julho, e, às duas horas da tarde, fazia um calor insuportável. Até parece que a natureza também dormia a sesta! Lá fora, no quinteiro, as folhas das arvores pendiam desfalecidas. Ouvia-se o murmúrio monótono da bica d'água a cair, como uma lágrima, sobre uma pia de pedra, debaixo de uma latada. As portas das janelas estavam entreabertas para deixar entrar na sala um raio de sol, que se estendia aos pés do velhinho, como uma esteira de luz.

No outro canto da sala, a filha do capitão, sentada numa cadeirinha de pau, pospontava uma camisa de criança, mas tão pequenina, que parecia uma camisa de boneca! Ouviam-se até uns pequenos estalidos secos da agulha, atravessando a goma do morim (pano branco e fino de algodão) novo e em folha. O Abel!... Era um regalo vê-lo sentado no chão, em camisa, com as pernas roliças á mostra, um ventre redondinho de abade feliz, e os pezinhos cor de rosa!

Aos pés do avô, na réstia do sol, tremia a sombra dumas folhas do plátano do jardim. A criança engatinhou para lá. Como uma pequenina fera, atirando-se de golpe sobre a presa, o Abel lançou-se rapidamente sobre a sombra tremula das folhas - mas, que ludibrio! - ficou triste, espantado, com os olhos muito abertos, a contemplar a palma da mão vazia!

Ao lado estavam os grandes pés do avô, metidos nos dois grandes chinelos de tapete. Oh! eram duas colinas! E as pernas? As pernas pareciam dois enormes castelos roqueiros.

No espírito belicoso da criança surgiu a ideia terrível de os assaltar. Fincou as mãozinhas nos chinelos do avô, levantou-se valentemente nos pés, e upa! upa! arriba!

Nessa ocasião o velho sonhava:

Tinha remoçado cinquenta anos! Os franceses invadiam Portugal! Quando ele estava na tenda de campanha, a dormir no dia seguinte ao de uma batalha, viu entrar inesperadamente o exército de Bonaparte. As paredes de lona da tenda iam recuando, recuando, para dar entrada às hostes imensas do inimigo. Os esquadrões insofridos da cavalaria corriam sobre ele. Em volta da tenda levantou-se rapidamente - como nas mágicas do teatro! - uma bateria, com as bocas dos canhões apontadas para o leito. Os piquetes de infantaria corriam a marche-marche, de baionetas caladas, para o surpreenderem no sono. Ao fundo, no viso de um outeiro, Bonaparte, o terrível Bonaparte, com as suas botas de escudeiro e o seu chapéu de bicos posto de través, como o chapéu de um estudante de Salamanca, assestava sobre ele o óculo de alcance, sorrindo
alegremente da vitória!

O capitão Macário via tudo aquilo, ouvia o estrépito dos cavalos, o tropel da infantaria, as gargalhadas de Bonaparte, e sentia-se preso ao leito, impotente, inerme, ansiado, sem poder gritar!... Façam ideia!

De repente, todo aquele exército enorme se transformou num gigante, que lhe prendeu brutalmente as pernas com dois grilhões de ferro!

O capitão esforçou-se ainda por se levantar; mas conseguiu, apenas, depois de muito custo, soltar este brado aflitivo, com uma voz convulsa:

- Às armas!

E despertou, ouvindo as gargalhadas de... Bonaparte!

O velho abriu desmesuradamente os olhos, volveu-os espantado em torno de si; e, quando um instante depois, se sentiu completamente acordado, deu com o netinho, que lhe puxava pelas pernas, para lhe subir ao colo!

A criancinha estava com os olhos levantados para o avô, a sorrir, muito alegre, porque julgou que tinha sido para ela, como brincadeira, aquele grito sufocado - "Às armas"!

Fonte:
Alberto Braga. Contos d'Aldeia. Porto/Portugal: Cia. Portugueza Ed.,  1916.