segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Lima Barreto (Miss Edith e seu Tio )


A pensão familiar “Boa Vista” ocupava uma grande casa da praia do Flamengo, muito feia de fachada, com dois pavimentos, possuindo bons quartos, uns nascidos com o prédio e outros que a adaptação ao seu novo destino fizera surgir com a divisão de antigas salas e a amputação de outros aposentos.

Tinha boas paredes de sólida alvenaria de tijolos e pequenas janelas de portadas de granito e linha reta, que olhavam para o mar e para uma rua lateral, à esquerda.

A construção devia datar de cerca de sessenta anos atrás e, nos seus bons tempos, certamente possuiria, como complemento, uma chácara que se estendia para o lado direito e para os fundos, chácara desaparecida, em cujo chão se erguem atualmente prédios modernos, muito pelintras e enfezados, ao lado da velha, forte e pesadona edificação dos outros tempos.

Os aposentos e corredores da obsoleta moradia tinham uma luz especial, uma quase penumbra, esse toque de sombra do interior das velhas casas, no seio da qual flutuam sugestões e lembranças.

O prédio sofrera acréscimos e mutilações. Da antiga chácara, das mangueiras que a “viração” todas as tardes penteava a alta cabeleira verde, das jaqueiras, de ramos desorientados, das jabuticabeiras, dos sapotizeiros tristes, só restava um tamarindeiro no fundo do exíguo quintal, para abrigar nos posmerídios de canícula, sob os ramos que caíam lentamente como lágrimas, algum hóspede sedentário e amoroso da sombra maternal das grandes árvores.

O grande salão da frente – a sala de honra das recepções e bailes – estava dividido em fatias de quartos e dele só ficara, para lembrar o seu antigo e nobre mister, um corredor acanhado, onde os hóspedes se reuniam, após o jantar, conversando sentados em cadeiras de vime, ignobilmente mercenárias.

Dirigia a pensão Mme. Barbosa, uma respeitável viúva de seus cinquenta anos, um tanto gorda e atochada, amável como todas as donas de casas de hóspedes e ainda bem conservada, se bem que houvesse sido mãe muitas vezes, tendo até em sua companhia uma filha solteira, de vinte e poucos anos por aí, Mlle. Irene, que teimava em ficar noiva, de onde em onde, de um dos hóspedes de sua progenitora.

Mlle. Irene, ou melhor: Dona Irene escolhia com muito cuidado os noivos. Procurava-os sempre entre os estudantes que residiam na pensão, e, entre estes, aqueles que estivessem nos últimos anos do curso, para que o noivado não se prolongasse e o noivo não deixasse de pagar a mensalidade à sua mãe.

Isto não impedia, entretanto, que o insucesso viesse coroar os seus esforços. Já fora noiva de um estudante de direito, de um outro de medicina, de um de engenharia e descera até um de dentista sem, contudo, ser levada à presença do pretor por qualquer deles.

Voltara-se agora para os empregados públicos e toda a gente na pensão esperava o seu próximo enlace com o Senhor Magalhães, escriturário da alfândega, hóspede também da “Boa Vista”, moço muito estimado pelos chefes, não só pela assiduidade ao emprego como pela competência em coisas de sua burocracia aduaneira e outras mais distantes.

Irene caíra do seu ideal de doutor até aceitar um burocrata, sem saltos, suavemente; e consolava-se interiormente com essa degradação do seu sonho matrimonial, sentindo que o seu namorado era tão ilustrado como muitos doutores e tinha razoáveis vencimentos.

Na mesa, quando a conversa se generalizava, ela via com orgulho Magalhães discutir Gramática com o doutor Benevente, um moço formado que escrevia nos jornais, levá-lo à parede e explicar-lhe tropos de Camões.

E não era só nesse ponto que o seu próximo noivo demonstrava ser forte; ele o era também em Matemática, como provara questionando com um estudante da Politécnica sobre Geometria e com o doutorando Alves altercava sobre a eficácia da vacina, dando a entender que conhecia alguma coisa de Medicina.

Não era, pois, por esse lado do saber que lhe vinha a ponta de descontentamento. De resto, em que pode interessar a uma noiva o saber do noivo?

Aborrecia-lhe um pouco a pequenez do Magalhães, verdadeiramente ridícula e, ainda por cima, o seu canhestrismo de maneiras e vestuário.

Não que ela fosse muito alta, como se pode supor; porém, algo mais do que ele, era Irene fina de talhe, longa de pescoço, ao contrário do futuro noivo que, grosso de corpo e curto de pescoço, ainda parecia mais baixo.

Naquela manhã, quando já se ia em meio dos preparativos do almoço, o tímpano elétrico anunciou estrepitosamente um visitante.

Mme. Barbosa, que superintendia na cozinha o preparo da primeira refeição dos seus hóspedes, àquele apelo da campainha elétrica, de lá mesmo gritou à Angélica:

— Vá ver quem está, Angélica!

Essa Angélica era o braço direito da patroa. Cozinheira, copeira, arrumadeira e lavadeira, exercia alternativamente cada um dos ofícios, quando não dois e mais a um só tempo.

Muito nova, viera para a casa de Mme. Barbosa ao tempo em que esta não era ainda dona de pensão; e, em companhia dela, ia envelhecendo sem revoltas, nem desgostos ou maiores desejos.

Confidente da patroa e, tendo visto crianças todos os seus filhos, partilhando as alegrias e agruras da casa, recebendo por isso festas e palavras doces de todos, não se julgava bem uma criada, mas uma parenta pobre, a quem as mais ricas haviam recolhido e posto a coberto dos azares da vida inexorável.

Cultivava por Mme. Barbosa uma gratidão ilimitada e procurava com o seu auxílio humilde minorar as dificuldades da protetora.

Tinha guardado uma ingenuidade e uma simplicidade de criança que, de modo algum, diminuíam a atividade pouco metódica e interesseira dos seus quarenta e tantos anos.

Se faltava a cozinheira, lá estava ela na cozinha; se bruscamente se despedia a lavadeira, lá ia para o tanque; se não havia cozinheira e copeiro, Angélica fazia o serviço de uma e de outro; e sempre alegre, sempre agradecida à Mme. Barbosa, Dona Sinhá, como ela chamava e gostava de chamar, não sei por que irreprimível manifestação de ternura e intimidade.

A preta andava lá pelo primeiro andar na faina de arrumar os quartos dos hóspedes mais madrugadores e não ouviu nem o tinir do tímpano, nem a ordem da patroa. Não tardou que a campainha soasse outra vez e desta, imperiosa e autoritária, forte e rude, dando a entender que falava por ela a própria alma impaciente e voluntariosa da pessoa que a tocava.

Sentiu a dona da pensão que o estúpido aparelho lhe queria dizer qualquer coisa importante e não mais esperou a mansa Angélica. Foi em pessoa ver quem batia. Quando atravessou o “salão”, reparou um instante na arrumação e ainda ajeitou a palmeirita que, no seu pote de faiança, se esforçava por embelezar a mesa do centro e fazer gracioso todo o aposento.

Prontificou-se em abrir a porta envidraçada e logo encontrou um casal de aparência estrangeira. Sem mais preâmbulos, o cavalheiro foi dizendo com voz breve e de comando:

— Mim quer quarto.

Percebeu Mme. Barbosa que lidava com ingleses e, com essa descoberta, muito se alegrou porque, como todos nós, ela tinha também a imprecisa e parva admiração que os ingleses, com a sua arrogância e língua pouco compreendida, souberam nos inspirar. De resto, os ingleses têm fama de dispor de muito dinheiro e ganhem duzentos, trezentos, quinhentos mil réis por mês, todos nós logo os supomos dispondo dos milhões dos Rothschilds.

Mme. Barbosa alegrou-se, portanto, com a distinção social de tais hóspedes e com a perspectiva dos extraordinários lucros, que certamente lhe daria a riqueza deles. Apressou-se em ir pessoalmente mostrar a tão nobres personagens os cômodos que havia vagos.

Subiram ao primeiro andar e a dona da pensão apresentou com os maiores gabos um amplo quarto com vista para a entrada da baía – um rasgão na tela mutável do oceano infinito.

— Creio que servirá este. Aqui morou o doutor Elesbão, deputado por Sergipe. Conhecem?

— Oh, não, fez o inglês, secamente.

— Mando pôr uma cama de casal…

Ia continuando Mme. Barbosa, quando o cidadão britânico interrompeu-a, como se estivesse zangado:

— Oh! Mim não é casada. Miss aqui, meu sobrinha.

A miss por aí baixou os olhos cheios de candura e inocência; Mme. Barbosa arrependeu-se da culpa que não tinha, e desculpou-se:

— Perdoe-me… Não sabia…

E ajuntou logo:

— Então querem dois quartos?

A companheira do inglês, até aí muda, respondeu com calor pouco britânico:

— Oh! sim, senhora!

Mme. Barbosa prontificou-se:

— Tenho, além deste quarto, um outro.

— Where? perguntou o inglês.

— Como? fez a proprietária.

— Onde? traduziu miss.

— Ali.

E Mme. Barbosa indicou uma porta quase fronteira à do aposento que mostrara em primeiro lugar. Os olhos do inglês fuzilaram bruscamente de alegria e, nos de miss, houve um relâmpago de satisfação. A um tempo, exclamaram:

— Muito bom!

— All right!

Examinaram com pressa os aposentos e já se dispunham a descer quando, no patamar da escada, se encontraram com a Angélica. A preta olhou-os demorada e fixamente, com espanto e respeito; parou estática, como em face de uma visão radiante. A luz mortiça da claraboia empoeirada, ela viu, naqueles rostos muito alvos, naqueles cabelos louros, naqueles olhos azuis, de um azul tão doce e imaterial, santos, gênios, alguma coisa de oratório, de igreja, da mitologia de suas crenças híbridas e ainda selvagens.

Ao fim de instantes de muda contemplação, continuou o seu caminho, carregando baldes, jarros, moringas, inebriada na visão, enquanto a sua patroa e os ingleses iniciaram a descida, durante a qual não se cansou Mme. Barbosa de elogiar o sossego e o respeito que havia na sua casa. Mister dizia – yes; e miss também- yes.

Prometeram mandar as malas no dia seguinte e a dona da pensão, tão comovida e honrada com a futura presença de tão soberbos hóspedes, que nem lhes falou no pagamento adiantado ou fiança.

Na porta da rua, ainda madame se deixou ficar embevecida, contemplando os ingleses. Viu-os entrar no bonde; admirou-lhes o império verdadeiramente britânico com que ordenaram a parada do veículo e a segurança com que se colocaram nele; e só depois de perdê-los de vista foi que leu o cartão que o cavalheiro lhe dera:

— George T. Mac. Nabs—C. E.

Radiante, certa da prosperidade de sua pensão, antevendo a sua futura riqueza e descanso dos seus velhos dias, Dona Sinhá, no carinhoso tratamento da Angélica, penetrou pelo interior do casarão adentro com um demorado sorriso nos lábios e uma grande satisfação no olhar.

Quando chegou a hora do almoço, logo que os hóspedes se reuniram na sala de jantar, Mme. Barbosa procurou um pretexto para anunciar aos seus comensais a boa nova, a notícia maravilhosamente feliz da vinda de dois ingleses para a sua casa de pensão.

Olhando a sala, escolhera a mesa que destinaria ao tio e sobrinha. Ficaria a um canto, bem junto à última janela, que dava para a rua, ao lado, e à primeira que se voltava para o quintal. Era o lugar mais fresco da sala e também o mais cômodo, por ficar bem distante das outras mesas. E, pensando nessa homenagem aos seus novos fregueses, de pé na sala, encostada ao imenso étagère, foi que Mme. Barbosa recomendou ao copeiro em voz alta:

— Pedro, amanhã reserve a “mesa das janelas” para os novos hóspedes.

A sala de jantar da Pensão “Boa Vista” tinha a clássica mesa de centro e outras pequenas ao redor. Forrada de papel cor-de-rosa com ramagens, era decorada com umas velhas e empoeiradas oleogravuras, representando peças de caça, mortas, entre as quais um coelho que teimava em voltar o ventre encardido para fora do quadro, dando aos fregueses de Mme. Barbosa sugestões de festins luculescos. Havia também algumas de frutas e um espelho oval. Era dos poucos compartimentos da casa que não sofrera alteração o mais bem iluminado. Tinha três janelas que davam para a rua, à esquerda, e duas outras, com uma porta ao centro, que miravam o quintal, além das comunicações interiores.

Ouvindo tão imprevista recomendação, os hóspedes todos dirigiram o olhar para ela, cheios de estranheza, como querendo perguntar quem eram os hóspedes merecedores de tão excessiva homenagem; mas a pergunta que estava em todos os olhos só foi feita por Dona Sofia. Sendo a mais antiga hóspede e possuindo uma razoável renda em prédios e apólices, gozava esta última senhora de uma tal ou qual intimidade com a proprietária. Dessa forma, sem rodeios, suspendendo um instante a refeição já começada, perguntou:

— Quem são esses príncipes, madame?

Mme. Barbosa retrucou bem alto e com certo orgulho:

— Uns ingleses ricos—tio e sobrinha.

Dona Sofia, que farejava desconfiada o contentamento da viúva Barbosa com os novos inquilinos, não pôde evitar um movimento de mau humor: arrebitou mais o nariz, já de si arrebitado, deu um muxoxo e observou:

— Não gosto desses estrangeiros.

Dona Sofia havia sido casada com um negociante português que a deixara viúva rica; por isso, e muito naturalmente, não gostava desses estrangeiros; mas teve logo, para contrariá-la, a opinião do doutor Benevente.

— Não diga tal, Dona Sofia. O que nós precisamos é de estrangeiros… Que venham… Demais, os ingleses são, por todos os títulos, credores da nossa admiração.

De há muito, o doutor procurava captar a simpatia da rica viúva, cuja abastança, famosa na pensão, atraía-o, embora a vulgaridade dela devesse repeli-lo.

Dona Sofia não respondeu à contestação do bacharel e continuou a almoçar, cheia do mais absoluto desdém.

Magalhães, no entanto, julgou-se obrigado a dizer qualquer coisa, e o fez nestes termos:

— O doutor gosta dos ingleses; pois olhe: não simpatizo com eles… Um povo frio, egoísta. `

— E um engano, veio com pressa Benevente. A Inglaterra está cheia de grandes estabelecimentos de caridade, de instrução, criados e mantidos pela iniciativa particular… Os ingleses não são esses egoístas que dizem. O que eles não são é esses sentimentais piegas que nós somos, choramingas e incapazes. São fortes e…

— Fortes! Uns ladrões! Uns usurpadores! exclamou o Major Meto.

Meto era um empregado público, promovido, guindado pela República, que impressionava à primeira vista pelo seu aspecto de candidato à apoplexia. Quem lhe visse o rosto sanguíneo, o pescoço taurino, não lhe podia vaticinar outro fim. Morava com a mulher na pensão, desde que casara as filhas; e, tendo sido auxiliar, ou coisa que valha do Marechal Floriano, guardava no espírito aquele jacobinismo do 93, jacobinismo de exclamações e objurgatórias, que era o seu modo habitual de falar.

Benevente, muito calmo, sorrindo com ironia superior, como se estivesse a discutir numa academia, com outro confrade, foi ao encontro do adversário furioso:

— Meu caro senhor; é do mundo: os fortes devem vencer os fracos. Estamos condenados…

O bacharel usava e abusava desse fácil darwinismo de segunda mão; era o seu sistema favorito, com o qual se dava ares de erudição superior. A bem dizer, nunca lera Darwin e confundia o que o próprio sábio inglês chama de metáforas, com realidades, existências, verdades inconcussas. Do que a crítica tem oposto aos exageros dos discípulos de Darwin, dos seus amplificadores literários ou sociais, do que, enfim, se vem chamando as limitações do darwinismo, ele nada sabia, mas falava com a segurança de inovador de há quarenta anos passados e ênfase de bacharel recente, sem as hesitações e dúvidas do verdadeiro estudioso, como se tivesse entre as mãos a explicação cabal do mistério da vida e das sociedades. Essa segurança, certamente inferior, dava-lhe força e o impunha aos tolos e néscios; e, só uma inteligência mais fina, mais apta a desmontar máquinas de embuste, seria capaz de fazer reservas discretas aos méritos de Benevente. Na pensão, porém, onde as não havia, todos recebiam aquelas afirmações como ousadias inteligentes, sábias e ultramodernas.

Melo, ouvindo a afirmação do doutor, não se conteve, exaltou-se e exclamou:

— E por isso que não progredimos… Homens há, como o senhor, que dizem tais coisas… Nós precisávamos de Floriano… Aquele sim…

O nome de Floriano era para Melo uma espécie de amuleto patriótico, de égide da nacionalidade. O seu gênio político seria capaz de fazer todos os milagres, de realizar todos os progressos e modificações na índole do país.

Benevente não lhe deixou muito tempo e objetou, pondo de lado a parte de Floriano:

— E um fato, meu caro senhor. O nosso amor à verdade leva-nos a tal convicção. Que se há de fazer? A ciência prova.

A palavra altissonante de ciência, pronunciada naquela sala mediocremente espiritual, ressoou com estridências de clarim a anunciar vitória. Dona Sofia virou-se e olhou com espanto o bacharel; Magalhães abaixou afirmativamente a cabeça; Irene arregalou os olhos; e Mme. Barbosa deixou de arrumar as xícaras de chá no étugère.

Melo não discutiu mais e Benevente continuou a exaltar as virtudes dos ingleses. Todos concordaram com ele sobre os grandes méritos do povo britânico: a sua capacidade de iniciativa, a sua audácia comercial, industrial e financeira, a sua honestidade, a sua lealdade e, sobretudo, rematou Florentino: a sua moralidade.

— Na Inglaterra, afirmou este último, os rapazes se casam tão puros como as raparigas.

Irene enrubesceu ligeiramente e Dona Sofia levantou-se estrepitosamente, arrastando a cadeira em que estava sentada.

Florentino, hóspede quase sempre mudo, era um velho juiz de direito aposentado, espiritista convencido, que vagava no mundo o olhar perdido de quem perscruta o invisível.

Não percebeu que a sua afirmação havia escandalizado as senhoras e continuou serenamente:

— Lá não há esse nosso desregramento, essa falta de respeito, essa impudicícia de costumes… Há moral… O senhor quer ver uma coisa: outro dia fui ao teatro. Quer saber o que me aconteceu? Não pude ficar lá… Era tal a imoralidade que…

— Que peça era, doutor?—indagou Mme. Barbosa.

— Não sei bem… Era Iaiá me deixe.

— Ainda não vi, disse candidamente Irene.

— Pois não vá, menina! fez com indignação o doutor Florentino. Não se esqueça do que Marcos diz: “Qualquer que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, e minha irmã, e minha mãe, isto é, de Jesus.”

Florentino gostava dos Evangelhos e os citava a cada passo, com ou sem propósito.

Alguns hóspedes levantaram-se, muitos já se tinham retirado. A sala esvaziava-se e não tardou que o jovem Benevente se erguesse também e saísse. Antes passeou pela sala o seu olhar de pequeno símio, cheio de pequeninas espertezas, rematou sentenciosamente:

— Todos os povos fortes, como os homens, são morais, isto é, são castos, doutor Florentino. Concordo com o senhor.

Conforme tinham prometido, no dia seguinte, vieram as malas dos ingleses; mas não apareceram nesse dia na sala de jantar, nem em outras partes da pensão se mostraram aos hóspedes. Só no outro dia imediato, pela manhã, à hora do almoço, foram vistos. Entraram sem descansar o olhar sobre ninguém; cumprimentaram entre os dentes e foram sentar-se no lugar que Mme. Barbosa lhes indicou.

Como parecessem não gostar dos pratos que lhes foram apresentados, Dona Sinhá apressou-se em ir receber as suas ordens e logo se pôs a par de suas exigências e correu à cozinha para as providências necessárias.

Miss Edith, como se sonhe mais tarde chamar-se a moça inglesa, e o tio comiam calados, lendo cada um para o seu lado, desinteressados de toda a sala.

Vendo Dona Sofia os rapapés que a dona da pensão fazia ao par albiônico, não pôde deixar de dar um muxoxo, que era o seu modo costumeiro de criticar e desprezar.

Todos, porém, olhavam de soslaio para os dois, sem animo de dirigir-lhes a palavra ou fixá-los mais demoradamente. Assim foi o primeiro e nos dias que se seguiram. A sala fez-se silenciosa; as conversas bulhentos cessaram; e, se alguém queria pedir qualquer coisa ao copeiro, falava baixo. Era como se de todos se tivesse apossado a emoção que a presença dos ingleses trouxera ao débil e infantil espírito da preta Angélica.

Os hóspedes acharam neles não sei o que de superior, de superterrestre; deslumbraram-se e acharam-se de um respeito religioso diante daquelas banalíssimas criaturas nascidas numa ilha da Europa ocidental.

A moça, mais que o homem, inspirava esse respeito. Ela não tinha a fealdade habitual das inglesas de exportação. Era até bem gentil de rosto, com uma boca leve e uns lindos cabelos louros, a puxar para o veneziano de fogo. As suas atitudes eram graves e os seus movimentos lentos, sem preguiça ou indolência. Vestia-se com simplicidade e discreta elegância.

O inglês era outra coisa: brutal de modos e fisionomia. Posava sempre de Lord Nelson ou Duque de Wellington; olhava todos com desdém e superioridade esmagadora e realçava essa sua superioridade não usando ceroulas, ou vestindo blusas de jogadores de golfe ou bebendo cerveja com rum.

Não se ligaram a ninguém na pensão e todos suportavam aquele desprezo como justo e digno de entes tão superiores.

Nem mesmo à tarde, quando, após o jantar, vinham todos, ou quase, para a sala da frente, eles se dignavam trocar palavras com os companheiros de casa. Afastavam-se e iam para a porta da rua, onde se mantinham geralmente calados: o inglês fumando, com os olhos semicerrados, como se incubasse pensamentos transcendentes; e Miss Edith, com o cotovelo direito apoiado no braço da cadeira e a mão na face, olhando as nuvens, o céu, as montanhas, o mar, todos esses mistérios fundidos na hora misteriosa do crepúsculo, como se o quisesse absorver, decifrá-lo e tirar dele o segredo das coisas futuras. Os poetas que passassem no bonde, certamente, veriam nela uma casta druidesa, uma Veleda, descobrindo naquele instante imperecível o que havia de ser pelos dias vindouros em fora.

Eram assim na pensão, onde faziam trabalhar as imaginações no imenso campo do sonho. Benevente julgava-os nobres, um duque e sobrinha; tinham o ar de raça, maneiras de comando, depósito da hereditariedade secular dos seus ancestrais, começando por algum vagabundo companheiro de Guilherme da Normandia; Magalhães pensava-os parentes dos Rothschilds; Mme. Barbosa supunha Mr. Mac. Nabs gerente de um banco, metendo todos os dias as mãos em tesouros da gruta de Ali-Babá; Irene admitia que ele fosse um almirante, viajando por todos os mares da terra, a bordo de poderoso couraçado; Florentino, que consultara os espaços, sabia-os protegidos por um espírito superior; e o próprio Meio calara a sua indignação jacobina para admirar as fortes botas do inglês, que pareciam durar a eternidade.

Todo o tempo em que estiveram na pensão, o sentimento, que a respeito deles dominava os seus companheiros de casa, não se modificou. Até em alguns cresceu, solidificou-se, cristalizou-se em uma admiração beata e a própria Dona Sofia, vendo que a sua consideração na casa não diminuía, partilhou a admiração geral.

Em Angélica, a coisa tomara feição intensamente religiosa. Pela manhã, quando levava chocolate ao quarto da miss, a pobre preta entrava medrosa, tímida, sem saber como tratar a moça, se de dona, se de moça, se de patroa, se de minha Nossa Senhora.

Muitas vezes temia interromper-lhe o sono, quebrar-lhe o sereno encanto do rosto adormecido na moldura dos cabelos louros. Deixava o chocolate sobre a mesa de cabeceira; a infusão esfriava e a pobre negra era mais tarde repreendida, em uma algaravia ininteligível, pela deusa que ela adorava. Não se emendava, porém; e, se encontrava a inglesa dormindo, a emoção do momento apagava a lembrança da repreensão. Angélica deixava o chocolate a esfriar, não despertava a moça e era de novo repreendida.

Em uma dessas manhãs, em que a preta foi levar o chocolate à sobrinha de Mr. George, com grande surpresa sua, não a encontrou no quarto. Em começo pensou que estivesse no banheiro; mas havia passado por ele e o vira aberto. Onde estaria? Farejou um milagre, uma ascensão aos céus, por entre nuvens douradas; e a miss bem o merecia, com o seu rosto tão puramente oval e aqueles olhos de céu sem nuvens…

Premida pelo serviço, Angélica saiu do aposento da inglesa; e foi nesse instante que viu a santa sair do quarto do tio, em trajes de dormir. O espanto foi imenso, a sua ingenuidade dissipou-se e a verdade queimou-lhe os olhos. Deixou-a entrar no quarto e, cá no corredor, mal equilibrando a bandeja nas mãos, a deslumbrada criada murmurou entre os dentes:

— Que pouca vergonha! Vá a gente fiar-se nesses estrangeiros… Eles são como nós…

E continuou pelos quartos, no seu humilde e desprezado mister.

domingo, 25 de agosto de 2019

Varal de Trovas n. 63


Malba Tahan (A Seita dos Iakinis)


Quando o príncipe Livati de Miapola voltava de uma caçada, na grande floresta de Baladeva, viu, casualmente, junto a uma casa rústica da estrada, formosa rapariga,
que trabalhava em grosseiro tear.

Apaixonou-se o príncipe por essa jovem, e, como não pudesse refrear os impulsos de seu coração, dirigiu-se, no mesmo instante, à encantadora desconhecida e pediu-a em casamento.

- Não posso aceitar a vossa generosa proposta, ó príncipe! Porque já sou casada!

E contou, pesarosa, o seu triste romance:

- Meu nome é Vitória - começou - e sou filha de um brâmane muito pobre. Quando eu tinha doze anos de idade, meu pai vendeu-me a um homem perverso chamado Jaradgava, dando-me em troca de uma dívida que fizera no jogo. Meu marido, da casta dos vaixias, tem alma de chandala [1]; trata-me com desprezo, e, não raras vezes, espanca-me impiedosamente!

- Pois fujamos desse bruto! - propôs o príncipe. - Iremos para Hiamavanta e, lá bem longe, casaremos!

- Não posso fugir - replicou a moça. - Embora não sinta a menor afeição por meu algoz, estou presa por um juramento que fui obrigada a fazer!

- Vou oferecer ao teu marido avultada quantia - ajuntou o mancebo. - Estou certo de que a cobiça fará com que ele, repudiando-te, consinta em nosso casamento!

- Nada conseguireis pelo dinheiro - respondeu a moça. - Jaradgava é caprichoso e ciumento. Já apunhalou, por minha causa, um rico mercador de Benares.

E a infeliz, com voz repassada de profunda mágoa, ajuntou:

- Só poderei ser vossa esposa se for levada ao vosso palácio e entregue aos vossos cuidados pela própria mão de meu marido! E isso é impossível! Completamente impossível!

Quando o príncipe regressou, nesse dia, ao castelo, estava triste e abatido. Procurou um velho brâmane, chamado Iama, seu confidente e amigo, contou-lhe o que se havia passado e pediu-lhe que o auxiliasse a vencer a teimosia e o ciúme do facinoroso Jaradgava.

- Estou certo - respondeu o brâmane - de que V. Alteza só poderá vencer esse vaicia [2] perverso, se quiser entrar para a seita dos Iakinis!

O príncipe de Baladeva nunca ouvira falar em semelhante seita: mas resolveu seguir confiante as instruções do prudente brâmane.

No dia seguinte Livati mandou convidar o perigoso Jaradgava para exercer o cargo de mordomo do castelo oferecendo-lhe ótimo salário.  O  ciumento  vaicia  - que  ignorava a paixão do príncipe por sua esposa - aceitou, sem hesitar, o generoso oferecimento.

Alguns dias depois, o príncipe chamou Jaradgava e disse-lhe, em tom confidencial:

- Naturalmente já sabes, meu amigo, que eu pertenço à grande seita dos Iakinis. Os filiados a essa doutrina secreta dedicam a todas as mulheres um amor puro e desinteressado. Quero, portanto, que tragas hoje, ao castelo, uma rapariga de casta elevada e que seja digna, pelos seus dotes naturais, de receber as homenagens que sou obrigado a prestar, segundo as formalidades prescritas pelos iakinistas.

Não se pode calcular a surpresa com que o vaicia ouviu estas palavras. Que seita seria essa? Não estaria o rico senhor de Baladeva sofrendo das faculdades mentais?

O príncipe, como se não percebesse o espanto que a sua inesperada revelação havia causado ao administrador, ajuntou:

- Quando trouxeres a rapariga, deveras levá-la ao salão de honra. E apresentando-a, deveras dizer: - "Eis aqui a mulher que Vossa Alteza pediu!"

Jaradgava retirou-se, tendo prometido que tudo faria como fora ordenado.

Intrigava-o, porém, aquele caso.

- Vou desvendar esse mistério! - pensou. E, no dia seguinte, procurou uma rapariga muito viva e alegre, chamada Noila, e propôs-lhe que o acompanhasse até o castelo de Maipola. Noila, que cultivava toda sorte de aventuras, aquiesceu de bom grado.

Jaradgava levou-a à presença do príncipe.

- Eis aqui - exclamou, solene - a mulher que Vossa Alteza pediu!

O príncipe tomou Noila pela mão e conduziu-a, respeitosamente, ao salão de honra do castelo, cuja porta fechou.

- Vamos ter belos idílios! - murmurou o mordomo.

Quando Noila, momentos depois saiu da sala, perguntou-lhe Jaradgava que galanteios lhe havia dito o príncipe.

- Nada - respondeu Noila. - Sua Alteza colocou-me em um trono riquíssimo, ajoelhou-se a meus pés e adorou-me como se eu fosse uma nova deusa! Obsequiou-me, por fim, dando-me vestidos, enfeites e joias!

E a jovem mostrou ao mordomo do castelo os ricos anéis, os colares, as pomadas e as rutilantes peças de ouro que recebera.

- É estranha essa religião! - murmurou Jaradgava.

Alguns dias depois, o príncipe ordenou a Jaradgava que lhe trouxesse outra rapariga, pois já era chegada, novamente, a ocasião de prestar as homenagens devidas à deusa dos Iakinis.

O mordomo trouxe, desta vez, uma donzela chamada Naraína. Passou-se tudo como da primeira vez. recebendo a jovem, que era da casta dos párias [3], valiosa recompensa.

- É extraordinário! - pensava Jaradgava, cada vez mais intrigado. - Parece-me que essa seita dos Iakinis não passa de uma loucura do príncipe! Não creio existirem no mundo dois homens que tenham, em relação às mulheres formosas, tão estranha maneira de proceder!

Um dia, porém, quando o desconfiado Jaradgava voltava de casa, encontrou sob uma árvore, junto à estrada, um velho brâmane. absorto com a leitura de um grande livro.

E Jaradgava, aproximando-se do velho, perguntou-lhe:

- É verdade, ó brâmane! Que existe no mundo uma seita chamada Iakinis?

O brâmane, que não era outro senão o prudente Iama, que naquele lugar fora postar-se já de propósito - respondeu:

- É verdade, sim, meu filho! A grande seita dos Iakinis existe, há mais de dez séculos, espalhada pelo mundo. Os adeptos dessa elevada doutrina faz o juramento sagrado de respeitar a mulher e de prestar homenagens constantes ao sexo feminino, reduzindo todo esse culto a uma admiração platônica, pura e desinteressada.

E o sábio concluiu, gravemente:

– Os iakinistas, homens extremamente puros, são incapazes de tocar em uma mulher!

Agradeceu Jaradgava ao bom brâmane a preciosa informação e, nesse dia, quando regressou ao castelo, estava já plenamente convencido de que a seita dos Iakinis era, na Índia, uma grande realidade.

Uma semana depois, o príncipe pediu ao seu mordomo que trouxesse ao castelo, para o cerimônia iakinista, uma jovem de boa família.

- E se eu trouxesse minha esposa? - pensou Jaradgava. - É claro que não haveria nisso mal algum! Esses bons iakinistas são inofensivos!

E murmurou, cheio de ambição:

- Bela ideia! Com os presentes que Vitória receber do príncipe estarei riquíssimo em pouco tempo!

O ambicioso vaicia foi nesse mesmo dia a casa e disse à esposa:

- Vou levar-te ao castelo do príncipe de Maipola. Deverás, ao chegar, obedecer a tudo o que o príncipe determinar!

A jovem fitou com indizível espanto o seu terrível marido. Quem teria feito mudar de ideia àquele homem caprichoso e mau?

Jaradgava levou a esposa ao castelo e, na presença do príncipe, exclamou, como já fizera das outras vezes:

- Eis aqui a mulher que Vossa Alteza pediu!
   
O príncipe tomou-a pela mão, levou-a para o grande salão do castelo e, depois de ter fechado cuidadosamente a porta, assim falou:

- Bem vês, querida Vitória, que foi o teu próprio marido que para aqui te quis trazer! Estás desligada de teu juramento! Convenci-o de que ele deveria consentir em nosso matrimônio!

E, ante o incalculável espanto da moça, o príncipe ajuntou:

- Fujamos depressa! Jaradgava pode arrepender-se, de repente, do ato de generosidade que acaba de praticar.

O príncipe abriu uma porta secreta que ficava ao fundo do salão. Foi por essa porta que os dois namorados fugiram, sem que Jaradgava pudesse perceber.

Algumas horas depois foi o rancoroso vaicia sabedor do logro em que havia caído. Era, porém, muito tarde para qualquer vingança. O príncipe e Vitória já estavam longe!

E ainda hoje, na índia, os velhos brâmanes contam:

- Era uma vez uma moça chamada Vitória, que entrou por uma porta, saiu por outra e... acabou-se a história!
_________________________
Notas:
[1] Chandala, na Índia, é o indivíduo expulso da sua casa.
[2] Vaicia - Uma das quatro maiores castas em que se divide o povo hindu.
[3] Párias - Casta antiga, perfeitamente definida, que não é a última nem das últimas. Os párias não se reputam miseráveis e abjetos nem são refugo da sociedade: entretêm o mesmo pudor de sua casta - ou o "castismo", como se diz na Índia - que os brâmanes e os xatrias e tratam as camadas que consideram mais baixas, como as de sapateiros e lavadeiras, com o puritanismo e desdém análogos aos das castas superiores.


Fonte:
Malba Tahan. Os Segredos da Alma Feminina nas Lendas do Oriente.

Cecy Barbosa Campos (Aldravias Infantis) II


15
zebrinha
não
quer
listas
quer
bolinhas

16
bolsa
de
canguru
não
é
Louis Vitton

17
peixinho
no
aquário
sonha
com
mar

18
lagartixa
ficou
triste
queria
ser
jacaré

19
sabiá
na
gaiola
cantou
muito
triste

20
canguru
leva
filhote
aconchegado
na
bolsa

21
pinguim
de
geladeira
quer
tomar
sorvete

22
toneladas
de
doçura
rinoceronte
adora
mel

23
dar
pão
aos
peixinhos
grande
diversão

24
formigas
guardam
alimento
na
dispensa
formigueiro

25
tigre-de-bengala
na
Ásia
não
usa]
bengala

26
tatu-bola
não
quer
chute
para
gol

27
raposa
astuta
rouba
ovos
do
galinheiro

28
no
circo
elefante
grandão
pedala
bicicleta

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. animais encantados na poesia: aldravias infantis. Mariana/MG: Aldravia Letras e Artes, 2014.

Mark Mielke de Lima (A Sétima Badalada)

Pintura de Marcelo Miguel
Soa a primeira badalada do relógio da igreja por toda a cidadezinha do litoral brasileiro. Com o calor, grande parte dos habitantes estão deitados nas varandas das casas, em redes ou colchões, fazendo a digestão. Janelas abertas, rádios e televisões ligados, a brisa marítima irrompe pelas ruas e traz frescor a pescadores, comerciantes, trabalhadores braçais e donas de casa. As crianças, algumas recém-chegadas do turno matinal na escola, outras se preparando para ir daqui a pouco - são as únicas que enfrentam o sol forte na agitação das brincadeiras. Quando o carro de sorvete passa, os pais abrem as carteiras.

Às duas badaladas, os homens já estão no trabalho, enquanto grande parte das mulheres está em casa assistindo ao Videoshow. As crianças perambulam pelas casas, ruas e praças, a pé ou de bicicleta, todas acompanhadas de amigos da mesma idade. As que estudam à tarde se refrescam na aula com o ventilador sobre o quadro negro. Por toda a cidade, dentro dos escritórios, oficinas, consultórios e lojas, quando desprovidos de ar-condicionado, também fazem uso do ventilador.

Três badaladas e o movimento de crianças e banhistas na praia é grande. Pela cidade, velhos, adultos e jovens desocupados ocupara uma ou outra mesa nos diversos bares e botecos. As moças passeiam à moda da estação, com minisshorts e biquínis, recebendo assobios e olhares gulosos. Há batida de música em todas as ruas, entremeada por ruído de motocicletas. Passa um carro com alto-falante anunciando as promoções de uma loja de roupas. Pelos frigoríficos, forte cheiro de peixe.

Com a quarta badalada, a quantidade de pessoas nas ruas vai lentamente aumentando. O sol já está mais baixo e o calor um pouco mais ameno. Nas obras, pedreiros e serventes se animam ao ouvir esses quatro toques que anunciam a última hora de trabalho do dia. Aumentam o volume dos rádios e seguem o serviço cantando. Pelas ondas da praia, deslizam incansáveis surfistas. No cais, há trânsito de pessoas entre os barcos de pesca, alguns dos quais recém-chegados, outros se aprontando para partir na madrugada seguinte. Velhos pescadores observam o movimento fumando cigarros de palha. Na praça central, quiosques e sorveterias estão cheios de nativos e turistas. Aí também se veem os grupinhos das adolescentes, todas com risada fácil e um celular no bolso. Pelos botecos, a maior parte da freguesia vespertina dos respectivos estabelecimentos já está embriagada.

Cinco badaladas. O som é igual ao de um sino, mas emitido por uma gravação no alto-falante, Com o frescor dessa hora, as ruas e praças ficam apinhadas de gente, ao passo em que o movimento na praia começa a diminuir. Servidores públicos e trabalhadores braçais encerram a jornada, aumentando a clientela dos botecos. Com a saída dos alunos do período da tarde, a agitação no trânsito é mais intensa. É forte o volume da música que vem dos carros, alguns parados em frente aos bares repletos de gente tomando cerveja. Na pista de skate, os rapazes andam como engrenagens de um relógio.

Vem a sexta badalada. Esta é acompanhada da mesma musiquinha todos os dias. Restaurantes e lanchonetes atendem a um grande número de pessoas nesta hora. Breve, o sol irá se pôr e a fresca brisa do mar pouco a pouco trará um leve friozinho. Jovens se reúnem combinando a badalação da noite, enquanto crianças brincam as últimas brincadeiras antes de voltar para casa a tomar banho e jantar. No campinho de futebol, há um jogo em andamento e bastante gente assiste a ele, esperando sua vez de entrar em campo à saída do time perdedor. As donas de casa recolhem as roupas do varal. Espocam rojões por conta de alguma festa de aniversário.

Com a sétima badalada soando do alto da torre da igreja, mais uma noite de verão toma a cena e traz o crepúsculo que, por sua vez, abriga com a mesma escuridão ao sono e à farra. A essa hora, as estrelas que pontilham o céu à entrada da missa e à do prostíbulo são as mesmas. A penumbra que é cúmplice de casais, também o é de gatunos e viciados. As ondas do mar brilham à luz da lua. À diferença das grandes cidades, um dia mais terminou sem que ninguém fosse morto ou assaltado. Aqui também o que conta é a aparência e o que vale é o dinheiro, mas nem uma nem outra coisa estraga o prazer de pisar na morna areia da praia numa noite de verão. Longe do barulho e dos arranha-céus e perto do horizonte marítimo, depois da sétima badalada, um ser urbano pode por um momento até esquecer a grande mentira da civilização. Já um nativo, para fazê-lo, tem que ir mais longe e adentrar o mar.

Fonte:
Alcir Chiari et al. Novos Autores Curitibanos: crônicas, poesias, contos. Curitiba/PR: Gusto Ed., 2013.

sábado, 24 de agosto de 2019

Silmar Böhrer (Lampejos) XX


Nilto Maciel (Til Ananias e Seus Policarpos)


Afagado pela língua de um cão, Policarpo misturava nos olhos imagens antigas ao furor do patrão. – Por acaso estais duvidando da fama de Til Ananias, autor de autos e farsas, relações e epopeias, e mil outras maneiras de inventar a vida de sanchos como tu? Como ousas afirmar a negação? Incompetente, cego e maneta, como é possível não me encontrares neste cosmos gutenberguiano?

Policarpo recordava os primeiros passos em busca do afamado autor. Depois, a angústia maior. Na calçada, meninos brincavam, surdos às palmas tímidas e frias. Talvez não houvesse ninguém no casarão do velho Ananias. Batia e escutava o eco das palmas cantadas. E, quando ia bater novas palmas, uma bola de meia atingiu-lhe o rosto. Ao mesmo tempo, um rosto de bola abria meia porta, devagarzinho e assustado.

– Que deseja?

Atarantado, Policarpo não sabia se devia se voltar para os moleques ou fugir daquela voz de mofo e sono. Preferiu fechar os ouvidos às molecagens da rua. E pôs-se a gaguejar. Um escritor muito atarefado, acho que é este o endereço, a cabeça muito cheia de pesadelos, andava perdido no meio das letras de hebdomadários e resenhas, as mãos trôpegas, colunas sociais e linguísticas, necessita de um ledor, digo, de um secretário, ativo, inteligente, que saiba ler as cento e tantas, não sei, línguas faladas e escritas, para recortar o seu nome, deixe ver, Til Ananias, escritor famoso, autor de pasquins e outras inutilidades.

Os moleques ouviram, calados e tristes, a bola esquecida entre as patas de um cão sonolento, o tímido falar de Policarpo.

Quando o sono desembolou-se das patas do cão, os dois senhores entraram a tratar dos detalhes do ofício de recortar periódicos.

Uma hora depois, a mesma fatídica bola de meia molhada acertou a outra face de Policarpo. Mais uma vez nada reclamou. Já contratado, precisava ir logo à banca de jornais.

Ainda aturdido, Policarpo regressou ao casarão. Sobraçava alguns quilos de jornais e revistas. Na calçada, os garotos riam e gargalhavam. Um homenzinho amarelo batia palmas diante do portão de Til Ananias.

– Palmas para o campeão das palmas! – conclamava um dos moleques.

A rua inteira se encheu de sons de palmas. Mulheres de todos os gêneros acorreram às janelas, aflitas. E gritavam: parem com isso!

A porta se abriu e o velho meteu a língua no ouvido esquerdo do novo Policarpo. Não precisava mais do primeiro. Fosse atrás de outro emprego.

– Trouxe o anúncio?

O rapaz estendeu a senha amassada.

– Comece a pesquisa a partir de 31 de março de 1917.

O novo empregado não se assustou, mas teve a ousadia de fazer uma pergunta.

– Porque esta é a data de meu nascimento.

E meteram-se os dois entre os jornais.

– Já encontrou alguma coisa?

– Nada, senhor escritor.

E se enfurnaram tempo a fundo. Til Ananias pelas edições futuras, Policarpo pelas passadas – útero letrado.

– Em que data você está?

– 30 de janeiro de 1945.

De repente, um grito. Policarpo tremeu e parou. Ameaçavam-no garras homicidas de manchetes. Sufocavam-no mãos negras de notícias terríveis. Desmaiou e, inconsciente, se viu caminhando de encontro ao velho escritor.

– Senhor, achei uma mentira.

Til Ananias iniciava o século XXI, carregado de cãs e suores, pendurado num caibro podre.

– Diz que faleceu hoje, vítima de um choque elétrico, o fracassado escritor...

– Continue.

– Til Ananias.

Sufocado pela fumaça que vinha da sala onde estavam depositados os jornais da década de 20, o novo Policarpo acordou. Buscou fugir do passado. O fogo devorava, célere, os anos, reduzindo-os a cinza. Apavorado, o rapaz correu e, pisando as letras, alcançou a rua. Diante de si, o primeiro Policarpo ainda chorava o emprego perdido, alheio aos moleques que gritavam: vamos chamar os bombeiros para apagar a História. E mais gritaram quando viram o milagre acontecer – a fusão dos dois Policarpos.

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.

José Lucas de Barros (Pantuns)


Nota do blog:
No Pantum as trovas utilizam no primeiro e terceiro verso (negritados), o segundo e quarto verso da trova anterior, iniciando-se na trova-tema. A última trova finaliza com o quarto verso usando o primeiro da trova-tema (negritada em itálico).
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ECLOSÃO DO AMOR

Trova-tema:
Eu vi o amor eclodindo
na mensagem de um chamado:
o mar, despido, sorrindo...
O Sol se pondo, apressado.
(Mara Melinni)


Na mensagem de um chamado,
Vinha um toque de magia:
O Sol se pondo, apressado,
visto que a noite caía.

Vinha um toque de magia
naquele doce arrebol,
visto que a noite caía,
logo após o adeus do Sol.

Naquele doce arrebol,
quase fiquei de alma nua,
logo após o adeus do Sol,
ao primeiro olhar da Lua.

Quase fiquei de alma nua,
e, num êxtase tão lindo,
ao primeiro olhar da Lua,
eu vi o amor eclodindo.


MULHER FORMOSA

Trova-tema:
Mulher, joia primorosa,
sinal de vida e de amor,
tens o perfume da rosa
e a formosura da flor.
(Djalma Mota)


Sinal de vida e de amor,
tens no ventre feminino,
e a formosura da flor
marca-te o rosto divino.

Tens no ventre feminino
o dom da humana esperança;
marca-te o rosto divino
um sorriso de criança.

O dom da humana esperança,
em ti, é santo reflexo:
Um sorriso de criança.
És, de fato, o belo sexo.

Em ti, é santo reflexo
essa fragrância de rosa.
És, de fato, o belo sexo,
mulher, joia primorosa!


PERSISTÊNCIA NO AMOR

Trova-tema:
Não desista sem tentar,
mesmo se você sofrer;
liberte a alma pra amar,
não deixe esse amor morrer!
(Eva Yanni)


Mesmo se você sofrer,
na estrada longa e dorida,
não deixe esse amor morrer!
Ele faz parte da vida.

Na longa estrada dorida,
só o amor é essencial.
Ele faz parte da vida;

é a luz do bem contra o mal.

Só o amor é essencial
entre os dons que a gente almeja.
É a luz do bem contra o mal,
por mais difícil que seja.

Entre os dons que a gente almeja,
ele é, de fato, sem par...
Por mais difícil que seja,
não desista sem tentar!


VONTADE DE AMAR

Trova-tema:
Gotas de orvalho na mata,
um cheiro de terra no ar,
o branco véu da cascata,
me dá vontade de amar.
(Carmen Pio)


Um cheiro de terra no ar,
depois de uma noite linda,
me dá vontade de amar
como ninguém viu ainda.

Depois de uma noite linda,
a natureza desperta
como ninguém viu ainda...
Nasce o amor na fonte aberta.

A natureza desperta
sob um sol que Deus conduz;
nasce o amor na fonte aberta,
surge um bordado de luz.

Sob um sol que Deus conduz,
a flor do sonho desata;
surge um bordado de luz:
Gotas de orvalho na mata.

 
AMOR INFINITO

Trova-tema:
Tudo é tão encantador,
nosso amor é tão bonito,
“que em cada noite de amor
ultrapassa o infinito”
(Gislaine Canales)

Nosso amor é tão bonito!
Até nos leva a cantar...
Ultrapassa o infinito
nossa vontade de amar.

Até nos leva a cantar
baladas e cavatinas...
Nossa vontade de amar
vem das paragens divinas.

Baladas e cavatinas,
canto para ti, querida;
vem das paragens divinas,
nos ternos sonhos da vida.

Canto para ti, querida,
meus versos de trovador...
Nos ternos sonhos da vida,
tudo é tão encantador!


Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão. Natal/RN: CJA Ed., 2014

Carlos Drummond de Andrade (Caso de Almoço)


A mulher prevenira: domingo não haveria almoço. Era dia de folga da copeira, a cozinheira pedira para sair cedo: queria passar o aniversário do filho em Niterói. O casal tinha de almoçar fora. E depois, você sabe, sem feijão, sem açúcar, sem nada, o melhor é mesmo deixar o fogão em paz.

— Está bem, almoçaremos fora. Ótimo.

Quando chegou domingo, chegou também a preguiça, em forma de pijama, jornalada para ler, disco novo para botar na vitrola, e esse frio… Ele tentou fugir ao compromisso.

— Faz aí uns sanduíches, qualquer coisa para enganar a fome.

— Que qualquer coisa, filhinho? Não tem nada na geladeira, e além disso você me prometeu.

Ela não disse “você concordou”, disse “você me prometeu”, e só então ele sentiu como aquele almoço fora de portas quebrava a rotina ajantarada, era uma novidade, não uma contingência.

Saíram à procura de restaurante. O hábito de não sair de casa para comer tornava-os indecisos na escolha. Nem havia mesmo como escolher. Tudo cheio, o bairro inteiro despencara-se para a rua, na fome incoercível, universal, dos domingos.

Afinal, no salão repleto, defenderam a mesa que uma senhora deixara. Ele, com complexo de velhice, avaliava satisfeito a média de idade dos clientes.

— Estou me sentindo à vontade. Gente de cinquenta para cima.

Ela protestou:

— Não viu aqueles brotos?

— Minoria. Repare na discrição do pessoal, na roupa, nas maneiras. Até gravatas.

O garçom era atencioso, você sabia que ainda há garçons atenciosos? E a toalha alva, a flor natural no vaso, tudo era bom, limpo, cortês. Sentiam-se mais moços por dentro, num Rio também mais moço — ou mais antigo? — de antes de outubro de 1930.

Ela observou:

— Aquela senhora ali deve ser desquitada. Com certeza o garoto saiu do colégio para passar o fim de semana com ela. Repara como trata o menino, alisa os cabelos dele. E ele quase não liga.

Ele, por sua vez:

— Estão bebendo champanha na mesa da direita.

Aniversário pessoal, ou de casamento? O certo é que muitas pessoas, em mesas diferentes, brandiam sua champanhota, faziam brindes em tom menor.

Ele assanhou-se:

— Vou pedir para nós também.

— Calma, rapaz. Espere as bodas de ouro.

Nisso a orquestra, a boa orquestra romântica dos restaurantes da velha guarda, atacou “Parabéns pra você” e, logo depois, “Cidade maravilhosa”.

Houve palmas.

À sobremesa, antes que ele pedisse, o garçom trouxe a garrafa e as taças.

— A casa pede licença para oferecer. Em comemoração ao aniversário da firma.

Os dois entreolharam-se, feito menino que ganhou bala, e desejaram felicidades à firma. Com uma reserva, do lado feminino:

— Vai ver que é nacional.

— Francês — concluiu o lado masculino, degustando; a casa tem tradição.

— Vai ver que a nota será aumentada, para pagar a cortesia…

— Ó mulher de pouca fé, que duvidas dos outros como de teu marido!

A nota não trazia qualquer majoração, era a honestidade mesma. Os dois saíram rindo, sob a impressão de que voltara o reino da boa vontade na terra. E decididos a, todo ano, almoçarem aquele dia naquele restaurante.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Carolina Ramos (Ser Emília... )



Ah! Lobato, bom amigo,
que minha infância enfeitaste...
Os caminhos que hoje sigo,
sem querer, delineaste!

Eu já fui menina arteira,
que brincava com boneca.
“Narizinho” reinadeira,
cheia de sonhos!... Moleca!

Tal qual “Pedrinho”, eu, também,
pelos campos cavalgava!
Sem caçadas!... sou do bem...
E amiga da bicharada!

Sem “Pó de Pirlimpimpim”,
fiz muita viagem gostosa!
Do saber, ao vê-lo afim,
conquistou-me o “Sabugosa”!

Lobato, só coisa linda,
de ti me veio, portanto,
guardo, com ternura infinda,
saudades por todo canto!

E tive um Príncipe, sim!
Lindo “Príncipe Encantado”!
Hoje... tão longe de mim...
Para os céus arrebatado...

Já fritei muitos bolinhos,
como “Anastácia” fazia...
E rodeada de netinhos,
agora, com alegria,

sou qual feliz “Dona Benta”,
entre anjos vindos do céu,
mas... a paz...nenhum alenta,
ao correr de déu-em-déu!...

Lobato... Os teus personagens,
Rabicó, a Cuca, o Anjinho,
a Emília a contar vantagens...
floriram o meu caminho!

E ao ver seres perturbando
os rumos da Pátria nossa, 
tal qual Saci “sacizando”,
lembro os Sacis lá da roça!

Os daqui...duas pernas têm...
os da roça têm só uma! 
Mas diabruras de ambos vêm,
e ...coisa boa? - Nenhuma!

Ah!... queria ser agora
essa Emília irreverente!
- Bonequinha que não chora,
mas...pensa... E diz o que sente!

Fonte:
Versos enviados pela autora.