segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Adega de Versos 55: Divenei Boseli

Fonte da Imagem: Revista Contemporartes

Lima Barreto (Na janela)

— Você sabe: o Alfredo não me trouxe o broche.

— Que desculpa ele deu?

— Que o sete não tinha dado a noite toda...

— Vai ver, Mercedes, que ele foi gastar com a Candinha... Ah! Os homens! São uns malandros!

— Não sei, mas... enfim todos eles são iguais.

— No começo é aquilo, parece que a gente é pouca ou que eles são muito mais. Vivem atrás de nós, descobrem, adivinham os nossos pensamentos; depois... não sei o que dá neles... esfriam, esfriam...

— Meu marido foi assim. No tempo de noivo, nem sabia falar quando estava perto de mim; olhava-me só e o seu olhar parecia que me vestia, que me beijava, que me ameigava... Meses depois de casada, deixou-me só, sem dinheiro, sem parentes, nesta cidade tão grande... Bem fez você que não se casou!

— Mas namorei...

— Muitos?

— Sem conta!

— Você não amou nenhum?

— Não sei... Creio que todos me agradavam o bastante para casar.

— É difícil compreender.

— Ora, é fácil... Eu fui sempre engraçada. Aos treze anos, quando saía com meu pai, todos na rua me olhavam. Um dia até, no bonde, uma senhora de aparência rica, muito grande, muito alta, perguntou a meu pai: é sua filha? Sim, respondeu ele. A senhora olhou-nos muito, a mim e a ele, virou a cara e sorriu duvidosa. Aos quatorze, tive o primeiro namorado. Era o caixeiro da venda... Um portuguesinho louro, que dizia "binho", "benda", mas com uns olhos azuis cor do céu pelas bonitas manhã. E daí não parei mais. Tive um segundo, um terceiro... quando cheguei ao quinto já escrevia cartas. Minha mãe pegou uma e deu-me uma surra; mas não me emendei — continuei. Não sabia resistir... Eles choravam, juravam.., e eu namorava quase ao mesmo tempo. Era como se — em grande riqueza inesgotável — não negasse esmolas. Você sabe: quando se tem muito vai se dando.

Parece que não acaba; mas acaba e então chora-se pitanga. Fui assim: pediam-me beijos, abraços, cabelos; e eu dava por pena, unicamente. Se eu tivesse sido mais sovina, não estava "nesta vida"... E a sorte, que se há de fazer?

— Mas, e o “tal”?

— É verdade! Um dia fui a um baile, como sempre, tinha lá uma chusma de adoradores; mas apareceu um novo. Não sabia quem era, muito diferente de todos. Educado, parecia doutor ou estudante de verdade, de estudos difíceis. Olhou-me e eu olhei, e namorei-o. Não troquei palavra. Dancei com ele e o ouvi falar a um outro. Que voz! Antes da meia-noite saiu. No outro ano, em dia de festa na mesma casa, já não pude ir lá mais; tinha vindo a tal encrenca... corpo de delito... Você sabe... Não deu em nada; ou antes: deu "nisto".

— Nunca mais você viu “ele"?

— O "tal"? Há dois anos que sempre o vejo na rua do Ouvidor, nos teatros...

— Ele não fala com você?

— Não. Olha-me um instante e baixa a cabeça.

— Engraçado! Outro qualquer...

— É verdade! Perguntei quem era, disseram é um doutor fulano de tal e é solteiro.

— Mas nunca você procurou falar com ele?

— Só uma vez. Cheguei-me e sem mais aquela sentei-me à mesa em que estava. Perguntei-lhe se não me conhecia. De vista, respondeu. Se não tinha ido a um baile assim, assim. Nunca! afirmou. Contei-lhe então a história e indaguei-lhe se, de fato, fosse ele não se daria a conhecer. Hesitou e, por fim, respondeu-me umas coisas embrulhadas que, afinal, me pareceu quererem dizer que eu, a menina do baile, era outra coisa que não sou eu mesma atualmente; e quem me tinha visto no baile não me via ali, num jardim de teatro.

— Era um tolo; um...

— Não. Eu o vi, mais tarde, muito alegre, com uma outra no automóvel...

Nos elétricos que passavam, os passageiros que olhavam aquelas duas mulheres com olhares cheios de desejos não seriam capazes de adivinhar a inocência de sua conversa, na janela de uma casa suspeita.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXII

 “Do seu longínquo reino cor-de-rosa”

Do seu longínquo reino cor-de-rosa,
Voando pela noite silenciosa,
A fada das crianças vem, luzindo.
Papoulas a coroam, e , cobrindo
Seu  corpo todo, a tornam misteriosa.

À criança que dorme chega leve,
E, pondo-lhe na fronte a mão de neve,
Os seus cabelos de ouro acaricia  -
E sonhos lindos, como ninguém teve,
A sentir a criança principia.

E todos os brinquedos se transformam
Em coisas vivas, e um cortejo formam:
Cavalos e soldados e bonecas,
Ursos e pretos, que vêm, vão e tornam,
E palhaços que tocam em rabecas...

E há figuras pequenas e engraçadas
Que brincam e dão saltos e passadas...
Mas vem o dia, e, leve e graciosa,
Pé ante pé, volta a melhor das fadas
Ao seu longínquo reino cor-de-rosa.
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“Doura o dia. Silente, o vento dura”
 
Doura o dia. Silente, o vento dura.
Verde as árvores, mole a terra escura,
Onde flores, vazia a álea e os bancos.
No pinal erva cresce nos barrancos.
Nuvens vagas no pérfido horizonte.
O moinho longínquo no ermo monte.
Eu alma, que contempla tudo isto,
Nada conhece e tudo reconhece.
Nestas sombras de me sentir existo,
E é falsa a teia que tecer me tece.
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“Doze signos do céu o Sol percorre”
 
Doze signos do céu o Sol percorre,
E, renovando o curso, nasce e morre
Nos horizontes do que contemplamos.
Tudo em nós é o ponto de onde estamos.

Ficções da nossa mesma consciência,
Jazemos o instinto e a ciência.
E o sol parado nunca percorreu
Os doze signos que não há no céu.
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“Durmo, cheio de nada, e amanhã”
 
Durmo, cheio de nada, e amanhã
é, em meu coração,
Qualquer coisa sem ser, pública e vã
Dada a um público vão.

O sono! este mistério entre dois dias
Que traz ao que não dorme
À terra que de aqui visões nuas, vazias,
Num outro mundo enorme.

O sono! que cansaço me vem dar
O que não mais me traz
Que uma onda lenta, sempre a ressacar,
Sobre o que a vida faz?!
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“Durmo. Regresso ou espero?”
 
Durmo. Regresso ou espero?
Não sei. Um outro flui
Entre o que sou e o que quero
Entre o que sou e o que fui.
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“É boa! Se fossem malmequeres!”
 
É boa! Se fossem malmequeres!
E é uma papoula
Sozinha, com esse ar de "queres?"
Veludo da natureza tola.

Coitada!
Por  ela
Saí da marcha pela estrada.
Não a ponho na lapela.

Oscila ao leve vento, muito
Encarnada a arroxear.
Deixei no chão  o meu intuito.
Caminharei sem regressar.
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É Inda Quente
 
É inda quente o fim do dia...
Meu coração tem tédio e nada...
Da vida sobe maresia...
Uma luz azulada e fria
Para nas pedras da calçada...
Uma luz azulada e vaga
Um resto anônimo do dia...
Meu coração não se embriaga
Vejo como quem vê e divaga...
E uma luz azulada e fria.
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O Louco
 
 E fala aos constelados céus  
De trás das mágoas e das grades  
Talvez com sonhos como os meus ...  
Talvez, meu Deus!, com que verdades!  

As grades de uma cela estreita  
Separam-no de céu e terra...
Às grades mãos humanas deita  
E com voz não humana berra...

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).

Raul Pompéia (Dia de gala)

Era duplamente dotada de fibra e de imaginação; com este aparelho arma-se uma criatura terrível; terrível ou deliciosa: pontos de vista. Para completar, moça e viúva.

A viuvinha sofria, assim, de uma viuvez carnal, saudade orgânica do esposo (esposo aqui em gênero, não em caso) como deve padecer a roda dentada, da ausência absurda da engrenagem conjugante.

Era religiosa. No êxtase da crença, oferecia aos numes do oratório o sacrifício difícil dos seus desgostos.

Na restrita pobreza dos recursos de costureira, por meio de vida, faltavam-lhe divertimentos. Ela morava ali, no largo do Paço, naquela casa de perspectiva secular que parece como uma boa velha antiquíssima a debruçar-se para a gente a contar histórias do Sr. D. João VI, que Deus tenha. Valia-lhe de prazer o panorama do mar e por exceção, na monotonia da vida, as procissões do Carmo e as paradas de grande gala

As procissões produziam-lhe um meio enlevo beato, agradável como uma baforada de incenso, mas triste no fundo: como em geral nas solenidades eclesiásticas parecidas todas com um funeral. O seu melhor prazer eram as paradas. Fazia-lhe gosto à viuvez solitária ver em massa tantos homens fortes.

As dragonas, sacudindo ouro aos ombros de alta patente, as baionetas cintilando à grande gala do sol, percorridas de frêmitos incertos, como uma seara metálica, os penachos cor-de-rosa da oficialidade, arrufando as penas como aves guerreiras sobre as barretinas e a temerosa cavalaria, mascando impaciência, transpirando espuma sob os arreios, os possantes corcéis apeados de estátuas equestres. E o tinir seco das bainhas contra as esporas e as vozes nervosas impertinentes de comando, na boca de capitães obesos e as salvas à hora do beija-mão, na marinha de guerra e nas fortalezas. O rumor, o espetáculo produziam-lhe estranho abalo. Ela pensava em combates, multidões armadas atropelando-se, desaparecendo em fumo, surgindo em sangue; pensava nos acampamentos cobertos de tendas e marmitas; deixava-se levar na meditação imaginadora a conceber a reação de amor selvagem dessas populações nômades sem família, depois de uma jornada de morticínio; pensava nas mulheres do campo dos lugares por onde passa um exército e nas vivandeiras moças; pensava com terror lascivo nas cidades entregues ao saque, em que os soldados acham que vale a pena poupar a vida às mulheres; ocorria-lhe um episódio da campanha russo-turca, citado no Jornal do Comércio: quarenta mulheres vitimadas por um batalhão inteiro, num paiol abandonado, entre elas uma de doze anos apenas... a medida que passeava ao longo das filas um binóculo de teatro, visitando a infinidade de caras, bronze fundidos na soalheira das marchas.

Não foi, porém, na predisposição comum que a surpreendeu aquela data: dois de dezembro. Sentia-se presa de um mal-estar indefinido, um alvoroço no organismo que a inquietava como a iminência de uma crise, um desassossego de espírito que lhe tolhia a atenção para o trabalho, impossibilitando mesmo que lhe morasse no cérebro por dois segundos a mesma ideia, ímpetos de choro sem causa, vontade louca de rolar no chão em assomos de convulsões.

Dois de dezembro, cortejo no Paço da cidade.

Era um presente de céu aquela data, pensava ela desfolhando o calendário à parede. Pertencia-lhe a grande gala. O que em outra ocasião fora um divertimento, naquele dia era uma necessidade; naquele dia, distrair-se era um curativo.

Às onze e meia já lá estavam os pelotões em forma. Pelas objetivas do binóculo começou a passar a tropa sucessivamente, em revista sui generis da curiosidade feminina. Uma por uma sucediam-se as caras da soldadesca em cerrada continuidade de galeria numismática. E do sótão ignorado caíam, chuva de rosas sobre as fileiras, olhares de simpatia tão bons, tão expansivos que fariam esquecer o serra-fila ao galucho basbaque que os colhesse no ar.

Tinham decidida preferência as fisionomias duras, viris, douradas a fogo pelo verão das campanhas, riscadas de preto no vinco das rugas, indelével gravura do ritos de severidade marcial que é como o uniforme dos rostos. Mas, que interessante variedade! as faces deformadas por um gilvaz glorioso e devastador, outras picadas de varíola em caprichosas granulações de carne; cá, um semblante de criança grandes olhos negros sobre malares proeminentes do Norte, nadando em candura, ao lado da baioneta feroz; mais além, uma cara branca, crivada de sardas, sobrancelhas louras ásperas; algumas reclamando a baixa do serviço ativo na expressão mórbida; em compensação, algumas apopléticas, sufocadas na gravata de couro como no laço de uma forca.

A viúva olhava como se aspirasse de longe a emanação do pano grosso das fardas suarentas, úmidas às axilas e na constrição dos talins.

Depois o binóculo visitava os oficiais. Era outra coisa. A rudez militar suavizava-se geralmente em fisionomias elegantes, peles aristocráticas amaciadas na sinecura das comissões de paz, carinhas guardadas em algodão e perfumadas para a ostentação oportuna das paradas, altivas, sobre a plebe do exército, como lambrequins de luxo sobre uma torre de ferro, militares de salão meigos e amáveis que possuem palas de tartaruga para a rua do Ouvidor e frascos de brilhantina para a perpétua frescura do bigode; soldados queridos de outras mulheres, não dela, dessas mulheres masculinas que desejam no homem o desconto do que no próprio caráter há de mais. Ela preferia os oficiais de grosso trato, que lembravam o marido, um bravo do Paraguai, que lhe morrera nos braços não sei por que, talvez mesmo porque ela o amara muito.

Ia por estas conjunturas quando o binóculo parou sobre o rosto do capitão Mauro, do 13.o, formado ali, sob as janelas do Paço.

Fazia um tempo admirável. A pobre solitária bebia tentações no ambiente da praça, sobre a florescência de sangue dos flamboyants.

Formosa era ela. Não achava segundo marido por muitas razões, a primeira: por essa desconfiança que persegue as belas viúvas, muito razoável em teoria, mas injusta de fato. Muitas razões ou, pode ser, simplesmente para dar assunto a esta narrativa.

Foi um relâmpago.

— Emília!

Emília era a criada, trefegazinha e esperta. Discreta ou não, no momento convinha que fosse. Foi-lhe confiado este bilhete em letra miúda e nervosa, este lacônico bilhete:

"Hoje, às quatro horas, sr. capitão, espera-o alguém na rua... numero... para dizer-lhe duas palavras amáveis."

O lugar do encontro era a casa de uma amiga ausente, de que tinha a chave a viuvinha.

A nossa heroína esperou que a carta tivesse partido para arrepender-se, mas o arrependimento foi vivíssimo. Aterrou-se com a imagem da temeridade a que se arrojara. Ela conhecia o capitão Mauro, frequentador da casa nos tempos do marido. Um homem atirado, audaz para todas as empresas, na sua construção de aço e saúde. Estava sinceramente arrependida. Tranquilizou-a, felizmente, o alea jacta dos supremos apertos, acolitado pela ponderação de que não custava nada deixar o capitão bater com o nariz na porta.

Emília tinha ordem de acompanhar o batalhão no fim do cortejo e entregar a missiva no quartel.

A viúva avistou no largo a criada insinuando-se pela multidão. Viu sair o imperador, no coche de ouro, para S. Cristóvão, com os seus Polichinelos sovados de libré verde e galões largos à traseira e os empoeirados jóqueis, dirigindo a atrelagem, de corpete curto, camisa a mostra, sobre o cós dos calções e a cavalaria lascando a calçada com a violência do galope; viu afinal desfilar a tropa música à frente Nunca lhe pareceram tão verdes as bandeiras cobrindo os pelotões, abertas amplas ao vento do mar.

Depois, distraidamente foi ao guarda-roupa e tirou uma pequena máscara que lá estava, velha lembrança de um baile Com a tesourinha pôs-se a cortar o veludo, alargando o rasgão dos olhos o mais possível; deixando bastante pano, contudo, para que não a reconhecesse o capitão Mauro. Pobrezinha! Como se já não estivesse decidida a afogar brutalmente no peito mais aquele sonho culpado...

Apesar dos impedimentos possíveis da disciplina, o nosso oficial à noitinha, mandava apalpar as dragonas perguntando se não sentiam ainda o metal quente - da insolação do cortejo, é possível, mas provavelmente de um colar de braços nus que o haviam estrangulado. Agora é que sei, notava mais, o que é ter amor à farda.

E muito tempo depois, entre outras boas histórias de sacristia, um padre do Carmo contava, sem violação do sigilo, o que certa confissão lhe dissera de um dia de gala na monotonia triste da viuvez.

Fonte:
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.

domingo, 7 de novembro de 2021

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 8

 

Oscar Nakasato (Menino na árvore)

Num domingo — era bem cedinho —, o menino subiu na mangueira e não quis descer mais. Era dia de missa, e a obrigação era vestir a melhor roupa — o que se traduzia em calça azul-marinho com pregas e camisa branca de mangas compridas e com botões até o pescoço — e ir à igreja cantar e ouvir o padre Lourenço. O menino cumpria a obrigação em parte, já que quase não prestava atenção às palavras do padre, tão interessado estava sempre nas meninas, que também vestiam as suas melhores roupas.

Um pouco antes das sete horas, a avó viu o menino passar pela cozinha e ir para o quintal sem dizer nada, mas não deu importância. Após preparar a mesa para o café da manhã, chamou o menino e o pai do menino — seu filho —, que estava no quarto vestindo também a sua melhor roupa. O pai respondeu que esperasse só mais um minutinho. O menino não respondeu.

— Onde se meteu esse menino?

Quando o pai foi à cozinha, a avó já estava nervosa.

— O menino desapareceu.

— Como desapareceu?

— Eu já procurei pela casa inteira e não o encontrei.

O pai sabia que o menino detestava ir à missa. Mas era assim: não tinha querer ou não querer. Então a avó viu aquela expressão de ódio, ultimamente tão frequente, embrutecer e enfear o rosto do pai.

— Esse menino precisa é de uma boa surra.

E foi o pai procurar pelo menino, gritando ameaças. Deu uma volta ao redor da casa, procurou nos quartos, olhou até debaixo das camas. Por fim, desistiu.

A avó já estava quase chorando:

— O que aconteceu ao menino?

— Tá na rua. Fugiu pra não ir à missa. Mas ele que me espere!

E foram os dois à igreja.

Era assim: a mãe era bonita e meiga e morreu de câncer após meses de sofrimento. O pai chorou como uma criança, envelheceu e foi morar com a avó porque precisava de alguém que tomasse conta do menino. A culpa, então, era sempre da avó, que precisava tomar conta da criança e não tomava.

No caminho de volta da igreja, ela, resignada, ouviu o que sabia que iria ouvir:

— A culpa é da senhora, mamãe. Não sabe dar bronca, não sabe bater. Em mim a senhora batia.

É claro que batia! Era mãe! E ele que não pensasse que mãe e avó são a mesma coisa. Jamais! Mas ele, que se equilibrava no papel de pai da própria mãe, o que tornava irmãos a avó e o neto, não poderia compreender. Por isso ela se calava, ainda que soubesse que consentia ao ficar quieta.

O pai esperava, ao voltar da missa, encontrar o menino em casa lendo uma revista do Super-homem ou assistindo à televisão. Não o encontrou. Deu uma volta pelas ruas do bairro, foi até o campinho de futebol, procurou nas casas dos amigos do menino. Nada. Quando retornou à casa, agora mais preocupado que bravo, encontrou a avó sorrindo.

— Imagina que o menino estava todo o tempo lá em cima, na mangueira.

Que o menino gostava de subir na mangueira, todos sabiam. Mas em tempo de manga madura, não agora, no meio de agosto, o tempo ainda assim, meio frio. Quem iria imaginar?

— Desce já daí!

O menino estava com os pés apoiados no tronco e encostado em um galho grosso, meio deitado. Nas mãos, uma revista do herói que voa. O pai, embaixo, segurando uma cinta, ameaçava com palavras e gestos. Mas os olhos do menino não eram medrosos. Por que, então, não descia?

A avó não compreendia.

— Você, com essa cara e esse cinto, você acha que o menino vai descer?

— A senhora fique quieta, mãe! Ele é quem sabe. Tá ouvindo? É ele quem sabe! Quanto mais demorar mais vai apanhar!

Se pudesse, se não fosse o problema na coluna, subiria e desceria com o menino à força. Mas não podia. Então continuou gritando:

— Ah, quando eu te pegar!

Mas desistiu. Confiou que o menino logo ficaria com fome e desceria. Então acertaria as contas com o filho.

Quando ficou sozinha embaixo da árvore, a avó, a voz mais mansa que a de costume, perguntou:

— O que você fez de errado? Quebrou alguma coisa do seu pai?

— Eu não fiz nada, vovó.

— Então por que não desce daí?

— Eu gosto de ficar aqui.

Mais cinco minutos de conversa, e a avó também desistiu.

Na hora do almoço, o menino desceu. O pai o esperou na porta da cozinha, com a cinta na mão. O menino não correu. A avó se fechou no quarto para não ver o menino apanhar. E como apanhou! Mas aguentou firme, sem reclamar, sem chorar. Depois foi consolado pela avó, almoçou e voltou à mangueira.

Quando o pai soube, teve um ataque de nervos e quase não conseguiu falar. Não podia entender por que o menino o estava afrontando. Foi até a mangueira e novamente gritou insultos e ameaças.

— Ele que fique por lá — disse, enfim.

No final da tarde, apareceu um amigo, que chamou o menino para jogar bola no campinho.

— Não tô com vontade.

— Mas todo mundo vai.

— Hoje não tô com vontade de jogar bola. Eu vou outro dia.

O amigo não insistiu.

No dia seguinte, após ter passado a noite em sua cama, o menino voltou à árvore e não quis ir à escola.

E se passaram dias. O menino descia para comer, ir ao banheiro e dormir. Às vezes, tomava banho. O pai, um dia, trancou o menino no quarto. Que não fosse à escola, mas também não subiria na árvore. O menino ficou o dia inteiro trancado, sem dizer nada, sem pedir à avó que o libertasse. E ele sabia que se pedisse com jeitinho a avó desobedeceria ao filho e abriria a porta. À noite, quando retornou, o pai perguntou ao menino se iria à escola no dia seguinte, e ele respondeu que não. Assim o menino ficou uma semana trancado no quarto.

Numa segunda-feira, o pai desistiu e deixou a porta do quarto aberta. O menino disparou para o quintal e subiu na mangueira. Os vizinhos ficaram sabendo e foram ver o que estava acontecendo, uns por solidariedade, para ajudar, outros por curiosidade, nunca tinham visto algo assim. Vieram os tios, os primos. Começaram a falar em macumba, em inveja de algum conhecido. Por isso chamaram o padre Lourenço, que ficou dez minutos tentando conversar com o menino. Foi embora prometendo que rezaria muito por ele. Depois, sem que o pai soubesse — Deus me livre se ele ficasse sabendo —, chamaram um curandeiro, que pedia como pagamento da visita o que a família quisesse dar. Não adiantou. Falaram em loucura e chamaram um psiquiatra.

Nada. Vieram os amigos da escola, a professora. Até que o pai decidiu:

— Vou cortar essa maldita árvore!

Alguns aprovaram, outros foram contra. A avó consultou o psiquiatra, que achou absurda a ideia. Mas estava decidido. Um dia, ao tomar o café da manhã e correr para o quintal, o menino não encontrou a árvore. Ele ficou dez minutos parado, olhando o vazio que restara no lugar da velha mangueira.

Depois nunca mais se soube do menino. Um inquérito policial foi instaurado, e o pai disse que no dia do corte da árvore foi trabalhar e, ao voltar para o almoço, não encontrou mais o filho. A avó, com os olhos perdidos em algum ponto da parede da delegacia, afirmou que o neto desaparecera enquanto estava no banheiro. O inquérito foi arquivado.

O pai e a avó não falam mais sobre o assunto. Uns dizem que o menino enlouqueceu de vez e foi internado pelo pai num sanatório, na capital. Outros dizem tê-lo visto com uma mochila na rodoviária, tomando um ônibus. Há aqueles que acreditam que quando a nova mangueira — plantada pelo pai no lugar da outra — crescer, o menino voltará.

Fonte:
Luiz Ruffato (org.). Antologia de contos paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXXIII

 
MOCIDADE! NOVAMENTE!

MOTE:
Se eu, por milagre ou magia,
retornasse à flor da idade,
agora, sim, saberia
desfrutar a mocidade!

José Lucas de Barros
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN


GLOSA:
Se eu, por milagre ou magia,

pudesse fazer voltar
o tempo, o que eu faria?
- Faria somente amar!

No tempo, voltando, então,
retornasse à flor da idade,
faria do coração
o templo dessa verdade!

Viagens! Muita alegria!
Muita paixão! Muito amor!
Agora, sim, saberia
degustar-lhes o sabor!

Viver! Sonhar! Nada mais!
Meu Deus! Que felicidade,
e poder, como jamais,
desfrutar a mocidade!
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REGANDO A FELICIDADE

MOTE:
Esquece o triste passado
que te deixa descontente...
Se o teu "ontem" foi nublado,
põe um sol no teu "presente"!

José Tavares de Lima
Juiz de Fora/MG


GLOSA:
Esquece o triste passado

não lembres o que é ruim,
mesmo se, muito malvado,
agora chegou ao fim!

Esse passado tão triste
que te deixa descontente...
agora, não mais existe,
está, para sempre, ausente!

Faze o teu dia encantado,
cultiva sempre a alegria,
se o teu "ontem" foi nublado,
transforma-o em poesia!

A poesia, com carinho,
é sempre a boa semente...
Dando um brilho ao teu caminho,
põe um sol no teu "presente"!

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LIBERDADE...

MOTE:
Pisar na areia molhada,
navegar mares sem fim,
voar como a passarada...
A liberdade é assim!!!

Lisete Johnson de Oliveira
Butiá/RS, 1950 – 2020, Porto Alegre/RS


GLOSA:
Pisar na areia molhada,

caminhando devagar,
com mil espumas, bordada,
é sinônimo de amar!

Realizar uma utopia,
navegar mares sem fim,
e um porto só de alegria
decerto, encontrará, sim!

Ver o nascer da alvorada
faz feliz a todos nós,
voar como a passarada...
não nos deixa nunca a sós!

Ao vivenciar tudo isto
eu sinto dentro de mim,
está muito mais que visto:
A liberdade é assim!!!
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MURMÚRIOS

MOTE:
Os murmúrios das gaivotas,
em noites de lua cheia,
são canções deixando as notas
nas pautas brancas da areia.

Miguel Russowsky
Santa Maria/RS ,1923 – 2009, Joaçaba/SC


GLOSA:
Os murmúrios das gaivotas,
com grande sonoridade
parecem preces devotas
respingadas de saudade!

O luar lindo, prateado,
em noites de lua cheia,
voa junto, lado a lado,
numa iluminada teia.

E superando as derrotas,
vão cantando, assim, ao léu,
são canções deixando as notas
gravadas no azul do céu!

Os murmúrios e o luar
em delicada cadeia,
vão sua marca deixar
nas pautas brancas da areia.
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A SOMBRINHA

MOTE:
Você sozinho... Eu sozinha!...
Por sorte, a chuva caiu
e, sob a mesma sombrinha,
o destino nos uniu!

Therezinha D. Brisolla
(São Paulo/SP)


GLOSA:
Você sozinho... Eu sozinha!...

o dia quase findando...
lusco fusco – já noitinha,
fomos nos aproximando!

Mas como ficar contigo?
por sorte, a chuva caiu,
me ofereceste um abrigo,
e a dúvida, então, sumiu!

Me senti uma rainha.
Lado a lado, assim, ficamos
e, sob a mesma sombrinha,
juntinhos, nós caminhamos!...

Sentindo imensa alegria
o meu coração sorriu.
Com a sombrinha, esse dia
o destino nos uniu!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XVI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Março 2004.

Nilto Maciel (Muito Antes Disso)

Joana plantava e colhia verduras no quintal. Comprava estrume e sementes e organizava canteiros, cercados de pedras. Erigiu também canteiros suspensos em estacas, para preservar as plantas da fome de gatos, ratos e galinhas. Convocava os filhos a ajudá-la no revolver a terra e aguar as verduras. As minhocas, retorcendo-se, davam nojo nos meninos. Sobretudo em Juvêncio. Para aumentar o sacrifício, foram obrigados a fazer entregas em domicílios e levar o produto da safra à feira da cidade. Uma vergonha!

Muito antes disso, Joana se escondia na cozinha ou no quintal, a lavar roupas. Juvêncio se arreliava quando ela o impedia de brincar na calçada. Escondia-se de si mesmo durante horas. Parecia dormir em pé ou sentado. Despertava assustado. Não sabia mais por onde andava a mãe. Talvez dormisse também, sofrida. E onde se achavam os irmãos? Talvez matassem lagartixas no quintal. O pai certamente conversava lorotas na mercearia.

De noite, no quarto, havia sempre uma lamparina acesa. Joana dormia numa rede, junto às dos filhos. O pai noutro quarto. Sem sono, ela saía da rede e se punha a matar muriçocas. Não demorou muito, apareceram em seu corpo eczemas. Ela se maldizia continuamente. Coçava-se sem parar. E mandava Juvêncio comprar pomada Minâncora. Fosse à mercearia pedir dinheiro ao pai. O caminho mais curto, uma ruazinha estreita, parecia ao menino o pior dos caminhos, porque de repente saíam dos quintais manadas de bois. Antes de dormir, o menino rezava e pedia a Deus e a todos os santos pela saúde da mãe. Não por medo dos bois, mas para não ver Joana sofrer.

Mais do que dos animais, Ju tinha pavor de tomar banho. Não da água fria, mas da grande caixa d’água suspensa abaixo do telhado. Às vezes a água saía pelo ladrão. Ju olhava para cima e imaginava a caixa a desabar. Banhava-se às pressas. Joana se irritava: fosse tomar banho direito, tirar a rabugem. Ou queria virar porco?

Chegada a noite, outro medo maior se apossava dele: do escuro, da escuridão. Ir à cozinha, nem pensar. Ao lado dela a despensa cheia de baratas e assombrações. Ir à sala de jantar somente enquanto a mãe por lá estivesse, na cozinha, lavando panelas e pratos, ajeitando uma coisa ou outra, fechando portas e janelas. Se queria beber água, aguentava a sede. Se queria urinar, deixava para mais tarde, na rede, embora o castigo por isso fosse horrível. Almas e outras entidades habitavam as trevas.

Joana também precisava cozinhar. E novamente mandava Juvêncio à mercearia. Tarefa penosa essa de conduzir, nos braços, achas para o fogão. Não somente pelo peso delas, mas, sobretudo, pelo incômodo que causavam. Ora, da mercearia até a casa ia uma distância de mais de quinhentos metros, no mínimo. Os braços se feriam, se enchiam de calombos. E a vergonha de andar pelas ruas feito um burro de carga? Vergonha de que, se você não está roubando?

O pior se dava, porém, quando as baratas, aninhadas entre as madeiras, resolviam passear por seus braços. Não havia outra alternativa senão arremessar tudo ao chão. O pior momento ainda não seria esse, mas o anterior – quando descia ao porão da mercearia, pelos fundos, onde a lenha se amontoava. Uma descida aos infernos! Primeiro um portão de madeira, depois a treva. No meio dela, os paus arrumados horizontalmente junto à parede e, entre eles, toda a sorte de insetos e bichos: sapos, ratos, lagartas, aranhas, lacraias, formigas e as terríveis baratas. Todas enormes, pretas e fedorentas.

Antes de dormir, o menino pedia a bênção à mãe, fechava os olhos e suplicava a Deus e a todos os santos o prêmio maior da loteria para o pai e, para a mãe, a cura das eczemas. Acordava sobressaltado, quando a mãe batia em suas pernas na vã tentativa de livrá-lo dos insetos. O pai roncava no quarto ao lado. Durma, meu filho. Estou matando muriçocas. E ele dormia de novo.

Muito antes disso, porém, Juvêncio apenas brincava e via nos olhos de Joana um sorriso de quem era feliz.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

sábado, 6 de novembro de 2021

Varal de Trovas n. 532

 


Solange Colombara (No meu tempo...)

"Seu Abílio" gostava muito de contar histórias (algumas pura ficção, mas nós acreditávamos em todas!) e adorávamos ouvir, fazer perguntas... Eu viajava no tempo... Quase podia me imaginar "pegando o bonde andando".

Lembro que meu avô (é, "Seu Abílio" é meu avô materno), além de pegar o bonde andando, frequentava os bailes, confeitarias, cinemas, todos no centro de São Paulo.

Era um boêmio, bon vivant e apreciador de tudo de bom que a vida lhe proporcionava. Mas de vez em quando levava minha avó para o "chá das cinco" na Confeitaria Vienense ou para fazer compras no Mappin, onde também havia o famoso chá londrino.

E com quem fui ao cinema pela primeira vez? Sim! Com meu querido e amado avô Abílio. Fomos assistir Roberto Carlos em Ritmo de Aventura, eu com seis ou sete anos de idade. Não lembro em qual cinema, mas com certeza foi no centro da cidade de São Paulo.

Todos os nossos passeios eram no centro de São Paulo, fosse para lanchar, fazer compras ou simplesmente ficarmos em cima do Viaduto do Chá olhando o movimento lá embaixo. Ficávamos também na escadaria do Theatro Municipal, minha irmã e eu brincando e meu avô, todo majestoso, conversando com seus colegas, como ele dizia.

Quantos finais de tarde íamos na Praça da Sé dar milho aos pombos e nos sentávamos na escada da Catedral. E íamos a pé, pois meu avô morava no Cambuci, pertinho do centro.

Eu dizia ao meu avô que quando crescesse iria trabalhar naquele prédio enorme, onde, olhando da calçada, parecíamos formiguinhas. Sim, estou falando dele mesmo, o Banespa, um dos cartões postais do centro de São Paulo e ponto turístico. Nunca trabalhei ali, mas meu primeiro emprego foi na OAB, também no centro de São Paulo.

Voltávamos para a casa do meu avô depois desses passeios maravilhosos, onde minha avó nos esperava com um delicioso bolo de pão de ló e meu avô contava pela enésima, centésima ou milésima vez de quando ele foi cozinheiro na II Guerra Mundial,

Mas essa, é uma outra história...

Fonte:
Solange Colombara. Dançando com as palavras. SP: Futurama, 2018.
Livro enviado pela autora.

Vanice Zimerman (Poemas Escolhidos) 7

A JANELA ENTREABERTA

O Vento deixou
A janela  entreaberta,
E o Tempo tentou fechá-la,
Mas, não conseguiu
O Vento sorriu, enquanto
A noite trouxe a chuva,
Deslizaram gotas d’água
Em meu rosto,
E em cada gota, senti  uma carícia
Repleta  de Saudade,
Beijos em movimento…
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CHUVA FORTE

Uma pétala de rosa
E uma pequena folha,
Quase cobertas de granizo,
Ainda sobrevivem…
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ESQUINA

Fim de tarde,
Dilui-se tua imagem na esquina
Tento chamá-lo, mas minha voz se dispersa
Na chuva que começa...
Dilui-se tua imagem na esquina
E, em gotas d’água
A saudade  cintila.
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LAMBREQUINS

O tempo passeia sem pressa
Impresso nos antigos  lambrequins,
Enquanto uma saudade azul
Toca os sinos-de-vento,
Uma borboleta pousa em minha mão…
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PÉTALAS DOURADAS

O toque suave
E intenso das tuas mãos,
Desenha poemas,
Pincelando sonhos
E tingindo de dourado
As pétalas de rosas,
Do meu jardim...
O toque suave
E intenso das tuas mãos
Envolve meus dias,
E a noite aconchega-se
Às minhas lembranças,
E aquece-me com tuas carícias.
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SILÊNCIO E SAUDADE

Na pausa da chuva
A Lua  brinca de esconde-esconde,
Enquanto fecho o livro de poesias,
Ah, tanto silêncio e saudade...
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TECENDO O DESTINO

De dia ela tece,
E a noite, ponto por ponto
Ela destece...
À espera do seu Amor,
Tecendo o Destino…

Sammis Reachers (A gravata solucionadora de tretas)

Nos idos de 2016, quando a empresa Rosana, pertencente à Ingá, resolveu acabar com os cobradores, alguns deles, os mais antigos, foram realocados para a Ingá.

Nessa leva de cobradores, veio um irmãozinho muito sério e de pouquíssimas palavras. Negro de raiz nordestina, ele estava sempre com sua camisa de manga fechada na gola e de gravata por cima, mesmo trabalhando em carros sem ar condicionado, situação em que a empresa não requisitava o uso de camisa de manga longa, e muito menos da gravata.

Acontece que um velho e sacana cobrador da Ingá, o controvertido dinossauro Joair, cismou de ficar manjando o tal cidadão. E assim os dias se passavam e Joair se espantava vendo o bitelo, num calor des-gra-ça-do, trabalhando com aquela gravata apertando-lhe o pescoço, gravata que ele não tirava nem mesmo após largar do trabalho. Além do Joair, a galera toda já estava com medo:

"Vai que essa moda pega? Vai que o homem decide que todos devem usar gravata, mesmo no ônibus 'quentão'?"

Num belo dia de terrível calor, sufocante, Joair, após sair do trabalho e ver que o indivíduo largara ao mesmo tempo que ele, e se dirigia para o ponto de ônibus, sempre encapado até o gargalo, não aguentou mais e perguntou:

- Ô, ô meu irmão, com licença. Querido, um calor desses... porque você não tira ao menos essa gravata?

- Eu vou resolver um problema - respondeu o irmão, pego de surpresa.

Joair, que nunca foi de perdoar um mole, concluiu:

– Ué? Mas quem vai resolver o problema? É você ou a gravata?

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Minha Estante de Livros (O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós)


Eça de Queirós nasceu em Portugal, em 1845, e morreu em Paris, em 1900. Eça é considerado o melhor ficcionista do Realismo português e, também, enquadrado como naturalista pela ênfase às teses cientificistas da época. Sua ficção fecunda procurou fazer um verdadeiro estudo da sociedade portuguesa de seu tempo. Adotou o Realismo no que este tem de análise da sociedade. Sem sair dessa orientação, demonstrou desencanto com a civilização técnica que evoluía. Foi quando criou o personagem Fradique Mendes, um gozador da vida, completamente desligado de preocupações coletivas. À medida que foi amadurecendo em sua arte literária, Eça se aperfeiçoou na apresentação de tipos e grupos típicos, exatamente linha de Flaubert, realista, e Zola, naturalista.

O denominador comum de toda a sua ficção foi a crítica dos princípios burgueses que dominavam seu país. A família e a Igreja, por exemplo, foram duramente atacadas por ele, não por si mesmas, mas pela mentalidade burguesa que as dominava. Para isso, serviu-se dos fatos observados tanto no relacionamento diário dos compatriotas, quanto nos acontecimentos nacionais e internacionais que ele soube interpretar com lucidez. Além de descomplicar a sintaxe, tornou os diálogos bem naturais, recorrendo a termos populares. Muitas vezes usou o discurso indireto livre, no qual o autor reproduz a fala dos personagens com fidelidade, sem a forma do diálogo direto.

Para quebrar a monotonia do estilo documental, introduziu situações meio fantásticas, caricaturas de tipos, personagens com ar de aparições, cenas melodramáticas, mas sempre com moderação. Além de tudo isso, sua ficção se revela não propriamente como realidade, mas como humor, como subjetividade desmascarada. É o toque da ironia.

Principais romances: Os Maias – O crime do Padre Amaro – O Primo Basílio – A Capital – A ilustre Casa de Ramires – A Cidade e as Serras – Correspondência de Fradique Mendes.

PERSONAGENS

PADRE AMARO VIEIRA: de origem pobre, aos 6 anos órfão de pai e de mãe, foi educado na casa de uma marquesa viúva, de quem seus pais tinham sido empregados domésticos; como padre muito jovem, nomearam-no vigário de Leiria, sede de bispado, por ser protegido do Ministro da Justiça.

CÔNEGO DIAS: padre idoso, rico, influente, morador de Leiria, conselheiro e confidente do Pe. Amaro, de quem tinha sido professor de Moral no seminário; amante não declarado de D. Augusta Caminha, conhecida como S. Joaneira.

S. JOANEIRA: viúva pobre, cuja residência era um ponto de encontro de padres para se divertirem; alugava quartos de sua casa para hóspedes.

AMÉLIA: filha única da S. Joaneira, bonita, solteira, morava com a mãe; desde menina era muito ligada aos padres freqüentadores da sua casa.

JOÃO EDUARDO: rapaz humilde, solteiro, escrevente de tabelião, apaixonado por Amélia, de quem chegou a ser noivo.

D. JOSEFA
: solteirona, irmã do Côn. Dias, com quem morava.

D. MARIA ASSUNÇÃO
: beata rica.

CONDE DE RIBAMAR: pessoa influente junto ao governo, casado com uma das filhas da marquesa que criou Amaro.

LIBANINHO
: beato fofoqueiro, efeminado.

ENREDO

Por decisão da marquesa que o educara na infância, Amaro seria padre. Dois anos antes de ir para o seminário, ele passou a morar na casa de um tio pobre, que o punha para trabalhar. Não desagradava àquele adolescente de educação desfibrada a ideia de vir a se tornar padre, embora não tivesse sido consultado. O período sofrido na casa do tio o animou a ingressar no seminário, ainda que fosse somente para ficar livre daquela vida.

Às vésperas, porém, de mudar-se para o seminário, já não estimava tanto a ideia: tinha vontade de estar com as mulheres, de abraçar alguém, de não se sentir só. Julgava-se infeliz e pensava em matar-se. Às escondidas, na companhia de colegas, fumava cigarros. Emagrecia, andava meio amarelo. Começava a sentir desânimo pela vida de padre, porque não poderia casar-se.

No seminário, isolados da cidade e da convivência com estranhos, Amaro e seus colegas, na maioria não vocacionados para o sacerdócio, viviam tristemente. Como se fossem prisioneiros, eles invejavam os que viviam fora, com a imaginação aguçada pela diligência que viam passar todas as tardes numa curva da estrada.

Amaro não deixara muita lembrança boa para trás. Mesmo assim, tinha saudades dos passeios, da volta da escola, das vitrines das lojas, onde parava para apreciar a nudez das bonecas.

Lentamente, com sua personalidade fraca, adaptou-se ao seminário como uma ovelha conformada do rebanho. Os colegas eram de vários tipos, todos com o ideal de, saindo do seminário como padres ou não, comer bem, ganhar dinheiro e conhecer as mulheres.

Amaro não desejava nada, mas, influenciado pelos que queriam até fugir do seminário, ficava nervoso, perdia o sono e desejava as mulheres. Na imagem de Nossa Senhora que havia em sua cela via apenas uma linda moça loura, desejada sexualmente, pecado que ele nunca contou no confessionário. A disciplina do seminário deu-lhe hábitos maquinais; interiormente, porém, os desejos sensuais moviam-se como um ninho de serpentes imperturbadas. Ele quase invejava os colegas estudiosos: ao menos eles estavam contentes e eram respeitados. No entanto, nunca conseguiu ser um deles. Era piedoso, rezava, tinha fé ilimitada em certos santos e um terror angustioso de Deus; mas odiava a clausura do seminário.

Logo depois de ordenado padre, Amaro ficou sabendo que a marquesa havia morrido e não deixara herança nenhuma para ele.

O novo padre foi nomeado para Feirão, região muito pobre, de pastores, quase desabitada. Ficou lá um tempo, cheio de tédio. Indo a Lisboa, procurou a Condessa de Ribamar, uma das filhas da marquesa que o educara. Ela lhe prometeu interceder por ele junto a ministro amigo do conde, seu marido. Uma semana depois, Amaro estava nomeado para Leiria, sede de bispado, apesar de ser padre novo – o ministro intercedera junto ao bispo.

Orientado pelo Cônego Dias, o novo pároco foi morar na casa da S. Joaneira, contrariando a opinião do coadjutor – padre auxiliar, pessoa de respeito, mas sem influência – o qual havia ponderado que isso seria imprudente por causa de Amélia, poderia haver comentários maliciosos. O quarto do Pe. Amaro ficava no térreo, exatamente embaixo do quarto de Amélia, cuja movimentação ele podia ouvir nitidamente.

Na noite do primeiro dia de Amaro na casa da S.Joaneira, ela reuniu algumas velhas, João Eduardo e o Cônego Dias. Jogaram o lote. Por coincidência, Amaro e Amélia, sentados lado a lado, quinaram. O jovem padre ficou impressionado com a moça. Depois que todos saíram e os de casa se deitaram, Amaro foi buscar água na cozinha e viu Amélia de camisola. Ela se escondeu, mas não o censurou. No quarto, nervoso, atormentado pela visão de Amélia, Amaro não conseguiu rezar nem dormir.

Amélia também não dormiu logo e ficou recordando sua vida. Não chegou a conhecer o pai, militar, que morreu novo. Com 15 anos de idade, ela teve a primeira experiência de ser amada e de amar, quando passou umas férias na praia. Na véspera de o rapaz partir, ele a beijou sofregamente, às escondidas. Algum tempo depois, já em Leiria, ela soube que ele ia se casar com outra. Triste e acreditando não voltar mais a ter alegria, Amélia tornou-se uma beata e pensou em se fazer freira. Por esse tempo, o Côn. Dias e sua irmã Josefa começaram a frequentar a casa em que Amélia morava. Falava-se muito da ligação do cônego com a mãe dela. Aos 23 anos, a moça conheceu João Eduardo, que chegou a falar em casamento, mas ela quis esperar até que o rapaz obtivesse o lugar de amanuense, a ele prometido.

Amaro estava se sentindo bem em sua rotina: celebrava a missa cedo para um grupo de devotas; à tarde e à noite deliciava-se na companhia doméstica da S. Joaneira e, sobretudo, de Amélia. Atraídos um pelo outro, estavam liberando os sentimentos. Na presença do noivo, porém, a moça nem olhava para o padre, o que lhe causava ciúmes.

Numa tarde, Amaro chegou sem ser esperado e flagrou o Cônego Dias na cama com a S. Joaneira. Ficou surpreso e saiu sem ser notado. Em contato com outros padres, ficou sabendo que eles tinham casos com mulheres.

Aos poucos, Amaro e Amélia começaram a demonstrar, um para o outro, seu envolvimento emocional. Ela se tornou totalmente apaixonada: acompanhava-o com os olhos sempre e, quando ele não estava em casa, ia ao quarto dele, colecionava os fios de cabelo que tinham ficado no pente, beijava o travesseiro. Tinha ciúmes dele ao saber que alguma mulher o escolhera como confessor.

Amedrontado com a evolução de seus sentimentos e temendo se deixar dominar pela paixão, Amaro pediu ao Cônego Dias que lhe arrumasse outra moradia, onde vivesse sozinho. Assim se fez. Sua vida solitária era muito monótona. Não visitava ninguém e só recebia a visita do coadjutor, servil, sem assunto. Sentia-se muito pouco padre, longe da “panelinha” eclesiástica.

Por sua vez, Amélia se sentia desconsolada pelo afastamento de Amaro. Depois de algum tempo, ele voltou a frequentar a casa da S. Joaneira. Os dois não estavam conseguindo mais esconder a paixão recíproca. Enciumado, João Eduardo tentou apressar o casamento. Amélia estava enfastiada dele, mas tentou fingir-se apaixonada, para evitar escândalo. Mesmo assim, a paixão pelo padre falava mais forte.

Certa noite, indignado por ver Amaro segredar algo no ouvido de Amélia, João Eduardo redigiu e fez publicar no jornal de Leiria um artigo: “Os modernos fariseus”, no qual ele contava as imoralidades de alguns padres da cidade, inclusive do Cônego Dias e do Pe. Amaro, a quem chamou de sedutor de donzelas inexperientes. O artigo saiu como um comunicado e assinado por “um liberal”. Os padres mencionados se enfureceram e passaram a investigar quem seria o autor.

Abalada com as possíveis repercussões do artigo e magoada com o que ela achou covardia de Amaro (depois do artigo ele sumiu da casa dela), Amélia aceitou marcar o casamento com João Eduardo.

De fato, Amaro se retraíra. Seus sentimentos estavam confusos; não teria mesmo coragem de assumir o amor de Amélia e abandonar o sacerdócio, mas crescia sua raiva contra João Eduardo.

Através da confissão da mulher do responsável pelo jornal, os padres vieram a saber quem havia redigido o artigo maldito. A vingança foi cruel: João Eduardo perdeu o emprego, por influência deles. Ao contar para Amélia quem fora o articulista, Amaro afirmou que não deixaria, em nome de Deus, que ela se casasse com um ateu. Ao dizer isso, pela primeira vez os dois se beijaram com paixão.

Com aprovação da família, Amaro se tornou o confessor de Amélia, a fim de orientá-la melhor.

A moça desfez o noivado. Desolado, João Eduardo procurou apoio e não recebeu: ninguém queria manifestar-se claramente contra o clero. Certa noite, completamente embriagado, o rapaz passou por Amaro na rua e deu-lhe um soco, sem feri-lo gravemente. Armou-se uma enorme confusão. A polícia levou João Eduardo para a Administração. No entanto, atendendo a um pedido do Pe. Amaro, o administrador retirou a ocorrência. Na reunião da noite na casa da S. Joaneira, o jovem padre foi considerado um santo. A atração de Amélia por ele aumentou e o desejo de Amaro por ela também.

A empregada do Pe. Amaro ficou doente e foi substituída pela irmã, Dionísia, famosa por ser alcoviteira. Essa contratação contrariou a opinião das beatas que achavam conveniente o padre voltar para a casa da S. Joaneira. Ele quis continuar só, sem deixar, é claro, de frequentar as reuniões noturnas junto de Amélia.

Um dia, voltando os dois sozinhos, sob forte chuva, da casa do Cônego Dias, que passara mal, Amaro levou Amélia para a casa dele, enquanto esperavam o tempo melhorar. Por meia hora, o padre dispensou Dionísia. Naquele momento, os dois apaixonados tiveram sua primeira relação sexual.

No dia seguinte, Dionísia falou ao padre que era perigoso a moça ir lá daquele jeito. Insinuando-se como protetora da união dos dois, sugeriu que se encontrassem na casa do sineiro, o tio Esguelhas, ao lado da igreja. Relutante a princípio, Amaro aceitou e até gratificou a empregada com meia libra. Tio Esguelhas, viúvo e sem uma perna, morava naquela casa com uma filha paralítica, Antônia, que ele chamava de Totó.

Inteligentemente, o padre convenceu o sineiro da seguinte história: Amélia queria ser freira – o que devia ser mantido em segredo – e aquela casa era o lugar ideal para ele conversar com a moça, orientá-la espiritualmente, longe dos olhos de todos.

Amélia concordou com o plano. Para a família e para os amigos, contudo, ela iria uma ou duas vezes por semana à casa do sineiro para ensinar leitura e religião à Totó. Isso seria sigiloso por se tratar de um ato de caridade, que não deveria ser divulgado para não favorecer a vaidade.

Assim, Amaro e Amélia passaram a se encontrar regularmente na maior discrição. A paralítica, sentindo-se alvo de atenções, apaixonou-se pelo padre, sem o declarar, evidentemente; com a mesma intensidade, odiava Amélia. Esta dava um pouquinho de atenção à doente e depois ia se deitar com o padre no quarto de cima, do pai, que naquela hora sagrada saía de casa. Amaro ia direto para o quarto, nem olhava para Totó.

Aquele foi o período mais feliz da vida de Amaro. Ele se achava na graça de Deus. Tudo dava certo. Amélia cada vez mais se tornava cativa dele. Nada lhe interessava a não ser Amaro. Ele, por sua vez, afirmava crescentemente sua dominação. Compensava com ela toda a subserviência do passado. Ciumento, procurava controlar até os pensamentos da moça. Amélia se entregava inteiramente a esse domínio. E ninguém parecia estar notando tudo isso; pelo menos, não havia qualquer insinuação.

Uma circunstância inesperada veio estragar aquelas manhãs na casa do sineiro: Totó agora não suportava Amélia. Quando ela chegava, Totó parecia ter um surto de fúria. Tanto que Amélia deixou de vê-la, subia direto para o quarto com Amaro. Mas foi pior; assim que a doente percebia que os dois haviam passado, começava a gritar: “Estão a pegar-se os cães!” A partir de então, Amélia começou a ter crises de remorso. Nos braços de Amaro, esquecia tudo; mas, depois, a crise lhe vinha. A perturbação atingiu o máximo de intensidade na ocasião em que Amaro, na sacristia, experimentou nela um manto rico que haviam doado para a imagem de Nossa Senhora. Nesse dia, não conseguiu se encontrar com Amaro de tão desnorteada.

A S. Joaneira pediu que o cônego verificasse o que estava acontecendo com a filha que, à noite principalmente, tinha surtos de nervosismo, empalidecia, gritava... Dias ficou de espreita e acompanhou Amélia, sem se fazer notar, até a casa do sineiro. Pelas palavras de Totó, percebeu o que estava acontecendo. Depois que Amélia saiu, conversou com a paralítica e se certificou de tudo. Indignado, procurou Amaro na sacristia e o censurou com violência. O outro revidou e quase bateu no velho. Mas depois acalmaram-se quando Amaro declarou saber que o cônego se encontrava com a S.Joaneira. No final, reconciliados, fizeram um pacto de silêncio. O cônego chegou a elogiar Amaro pela escolha da devota mais bonita de Leiria. Os dois concordaram: “é o melhor que se leva desta vida!”

A partir de então, Amaro ficou tranqüilo. Chegava a chamar o cônego de sogro. Insistia em que Amélia andasse bonita, para saborear intimamente o prazer da conquista. A moça, entretanto, depois de um início de total submissão, passou a ter consciência crítica: era concubina de um padre! Temia, então, o castigo de Deus. Amaro se enervava com estes escrúpulos e a censurava. Ele estava mais seguro porque o médico fora ver Totó e lhe dera pouco tempo de vida.

Amélia ficou grávida. Já no primeiro mês, a gravidez foi detectada. Amaro entrou em pânico. Foi pedir a ajuda do Cônego Dias. A solução seria casar a moça com João Eduardo o mais depressa possível. Amaro convenceu Amélia a casar-se com o ex-noivo. Ela, a princípio, revoltou-se com ele, vendo-se objeto na sua mão. Mas acabou aceitando a idéia; Amaro é que ficou enciumado com a situação que ele próprio criara. Os dois combinaram que continuariam amantes após o casamento, o que acalmou os ciúmes do padre.

Tudo daria certo se João Eduardo, depois de tudo o que aconteceu, não tivesse ido para o Brasil, em lugar ignorado. Ele só foi descoberto quando a gravidez atingiu o terceiro mês! E nada estava resolvido, para desespero dos padres.

As piores semanas da vida de Amélia foram aquelas em que se aguardavam notícias do ex-noivo. Os encontros na casa do sineiro se espaçavam. Amaro a considerava agora uma “beata histérica”, porque ela se julgava castigada por Deus e tinha crises constantes.

Nessa ocasião, D. Josefa ficou doente. Para se restabelecer, aconselharam-na a ir passar uma temporada na roça. Amaro teve, então, uma idéia brilhante. Enquanto o Cônego Dias e a S. Joaneira iriam para a praia, Amélia ficaria na propriedade rural do Côn. Dias, na Ricoça, região vizinha a Leiria, acompanhando D. Josefa em sua convalescença. Para que a irmã do cônego aceitasse a moça com ela, Pe. Amaro lhe segredou – e pediu sigilo – que Amélia fora engravidada por um homem casado. Para evitar escândalo, a moça daria à luz no período em que estivesse na roça sob a proteção de D. Josefa. A velha senhora acreditou na história e resolveu cooperar. Amélia se sentiu infeliz de ir para a roça, pois gostava muito da praia. Sua mãe sofreu por separar-se da filha.

Nesse ínterim, Totó morreu. Tio Esguelhas lamentou o fato de Amaro não ter chegado a tempo para a Unção dos Enfermos, pois a filha tinha pedido muito a presença dele.

Amaro, solitário em Leiria, se enfastiava da monotonia. Ocioso, as ocupações do sacerdócio o aborreciam ainda mais. Abandonou todas as orações e meditações pessoais. Amélia na Ricoça sofria muito. D. Josefa a desprezava por ser uma pecadora. Atormentada, a pobre infeliz passou a ouvir, à noite, vozes de condenação. O que a confortava eram as visitas que o abade Ferrão lhes fazia. Homem esclarecido na fé, preferia conversar com Amélia, desgastado com os escrúpulos absurdos da velha doente. Ele disse à desorientada grávida que suas perturbações não vinham de Deus, que Ele não fica a falar para as pessoas; o problema dela estava na consciência. Se ela quisesse, a confessaria para aliviar-se. Animada, a moça procurou-o para a confissão.

Amaro foi visitá-la algumas vezes. Sabendo da confissão que Amélia fizera com o abade, enciumou-se, ficou furioso e evitava conversar com ela. Arrependido e mais apaixonado ainda, escreveu-lhe uma carta. A resposta da moça, entregue por um rapazinho, foi: “Peço-lhe que me deixe em paz com meus pecados.” Amaro chegou a desconfiar de que ela estivesse de “homem novo”. Mas não desistiu, continuou as visitas freqüentes; a moça evitava vê-lo.

Quem reapareceu morando perto da Ricoça foi João Eduardo. Permanecia apaixonado por Amélia. Ficou conhecido do abade Ferrão, que simpatizou com ele e teve a idéia de fazê-lo casar-se com Amélia, a qual também o via com bons olhos. O abade tinha pensado em induzir Amélia a ser freira. Desistiu, todavia, porque percebeu que, embora a paixão por Amaro houvesse acabado, o desejo do prazer sexual ainda existia nela.

Amaro resolveu “dar um gelo” em Amélia: foi passar um tempo na praia. Ela se enfureceu com a frieza dele, pois a época do parto estava se aproximando e ele não tomava nenhuma providência. Por orgulho, ela não quis escrever-lhe pedindo ajuda. Na verdade, essa viagem de Amaro era estratégica. Ele aprendera que, se fugirmos da mulher que nos interessa, ela nos procura. Várias vezes, quando retornou da praia, visitou D. Josefa e se retirou sem nem olhar para Amélia. Numa dessas visitas, ela não agüentou mais: cercou-o, impediu-o de sair sem lhe dar satisfação. Estavam sós e acabaram indo para a cama. Combinaram encontrar-se à noite. Amaro foi, mas os cães latiram e o afugentaram.

O padre sondou de Dionísia a indicação de uma ama para ficar com a criança logo após o nascimento. Havia duas possíveis: uma seria a aconselhável pelo bom senso; a outra, Carlota, era uma “tecedeira de anjos”, pois matava os recém-nascidos. Ele saiu para procurar a primeira; como dispunha de tempo, contudo, foi conhecer Carlota e resolveu optar por esta (seria mais conveniente que a criança desaparecesse).

Amélia estava em permanente sobressalto, à medida que se aproximava o dia do parto: às vezes, queria o filho; outras vezes, se horrorizava, tinha pressentimentos ruins. Uma ideia passou a animá-la: casar-se com João Eduardo e, quem sabe, conseguir que ele aceitasse a criança. Pediu ao abade Ferrão que realizasse esse seu desejo.

Chegou o momento do parto. Amélia foi assistida por Dionísia e pelo Dr. Gouveia, velho e discreto médico, que cuidava de D. Josefa. O menino nasceu bem. Dionísia o entregou ao Pe.Amaro, que aguardava fora de casa e o levou para Carlota, recomendando que o mantivesse vivo, já arrependido de não ter contratado a outra ama. Em seguida, o padre voltou para Leiria, certo de que tudo correra bem com a amante. Na verdade, entretanto, Amélia, depois de dar à luz, teve convulsões e, apesar do esforço intenso do médico e de Dionísia para salvá-la, não resistiu, morreu, deixando desolado o abade Ferrão.

Na manhã seguinte, Amaro teve um choque enorme ao saber da morte através de Dionísia. Passado o primeiro impacto, partiu imediatamente em busca de Carlota, na esperança de tirar o filho da guarda dela e levá-lo para a outra ama. Infelizmente, a criança já havia morrido.

Completamente desnorteado, o Pe. Amaro resolveu sair de Leiria. Sob o pretexto de que sua irmã estava doente em Lisboa, conseguiu licença e viajou.

Amélia foi enterrada na Ricoça, enterro oficiado pelo abade Ferrão, com acompanhamento de algumas pessoas do lugar e de João Eduardo, que chorou muito aquela morte.

Pe. Amaro foi removido de Leiria e passou muito tempo sem ver ninguém de lá. Certa feita, encontraram-se casualmente no Largo do Loreto, em Lisboa, junto à estátua de Camões, o Côn. Dias e o Pe. Amaro. Este estava procurando transferência para uma boa paróquia e procurava a influência do Conde de Ribamar.

Os dois padres conversaram sobre Leiria, onde o cônego ainda morava. Amaro lhe disse que as primeiras sensações após a morte de Amélia – remorso, tristeza, depressão... – estavam superadas definitivamente. “Tudo passa”, disse e o cônego confirmou: “Tudo passa”.

A eles juntou-se o Conde de Ribamar. Os três comentaram o horror da situação: estava-se nos fins de maio de 1872 e em Lisboa havia alvoroço com as notícias vindas da França, do massacre da Comuna de Paris, quando foram mortos pelo governo francês, em uma semana, cerca de 25.000 operários rebeldes. O Conde de Ribamar deu uma lição de política aos dois padres que ouviam e apoiavam seu discurso inflamado contra os rebeldes e elogioso a Portugal que mantinha a ordem e a paz.

“Meus senhores, não admira realmente que sejamos a inveja da Europa! E o homem de Estado, os dois homens de religião, todos três em linha, junto às grades do monumento, gozavam de cabeça alta essa certeza gloriosa da grandeza do seu país – ali ao pé daquele pedestal, sob o frio olhar de bronze do velho poeta, ereto e nobre, com os seus largos ombros de cavaleiro forte, a epopéia sobre o coração, a espada firme, cercado de cronistas e dos poetas heróicos da antiga pátria – pátria para sempre passada, memória quase perdida!”

COMENTÁRIO

Paralelamente ao enredo, Eça de Queirós desenvolveu algumas ideias, por exemplo:

Política e clero

No diálogo do Conde de Ribamar com um ministro do Governo, ficou patenteado que os homens públicos contavam com os padres para influenciarem o povo na aceitação pacífica das medidas que as autoridades impusessem, sempre tomadas a favor dos interesses dos poderosos, inclusive fazendo estes ganharem as eleições.

O autor fez menção de explicitar a subserviência dos membros do clero às autoridades governamentais como forma de ser mantida uma situação que era confortável para ambos.

A confissão


Num almoço que reuniu vários padres na casa de um deles, mostrou-se a confissão como sendo um recurso que usavam para manipular as consciências e tirar proveito pessoal. Na verdade, os padres não acreditavam que Deus estivesse perdoando através deles.

Está clara a intenção do autor de dessacralizar o sagrado: nem os próprios padres acreditavam no poder sacramental.

O celibato dos padres

Impaciente por não poder ter uma vida sexual como a das pessoas comuns, Pe. Amaro se revoltava interiormente, dizendo para si mesmo que não abrira mão de sua virilidade: “Tinham-no impelido para o sacerdócio como um boi para o curral!” Nesses momentos, ele repassava na memória o que lhe haviam ensinado no seminário a favor do celibato, que quem o abraçasse evitaria o assédio dos três inimigos da alma: o Mundo, o Diabo, a Carne: o diabo ele nunca tinha visto; como evitaria o mundo (riquezas, cavalos, palacete...) e a carne (uma mulher bonita que o amava e era a consolação de sua vida)? Só se fugisse para o deserto! Então, ele justificava seu amor com exemplos da Bíblia que se referiam a casamentos. O celibato, afirmava o Pe. Amaro em seu íntimo, foi inventado por um concílio de bispos velhos, inúteis como eunucos! Ele concluía que o seu amor era apenas uma infração ao Direito Canônico, isto é, às normas da Igreja, mas não uma ofensa a Deus.

O autor, ao propor essa situação de conflito interior em um padre não vocacionado para o sacerdócio, evidenciava forte questionamento quanto à formação do clero burguês, a quem não se dava formação convincente, mas se impunham regulamentos sob a forma repressora.

A opinião da “ciência” sobre a Igreja

Carlos, personagem secundário e ridículo, dono de uma farmácia, se dizia liberal e adepto da ciência; não era um homem de Igreja, é claro. Contudo ficou indignado com o artigo de João Eduardo contra os padres. Afirmava o “adepto da ciência” que a religião é a base da sociedade. Ele não considerava os padres uns santos, mas os ateus republicanos deveriam ser eliminados do convívio social sadio.

Eça mostrou, nesse episódio, a visão reacionária dos falsos cientistas, pessoas medíocres, defensores de uma tradição conservadora e radical.

Redigido em terceira pessoa, o foco narrativo do livro é a visão onisciente do autor-narrador, que analisa os fatos de fora deles.

Publicado em 1876, foi o primeiro romance português de expressão que questionou o Romantismo feito de sonhos e idealizações.

O estilo descritivo não para na pura descrição, mas mostra o que está por trás dos fatos da realidade provinciana de Portugal. O clero, desvirtuado por uma defeituosa educação do seminário, serve à ordem estabelecida pelos poderosos dirigentes, representados pelo Conde de Ribamar.

Tendo como motivo inspirador uma história de sedução, Eça de Queirós pretendeu mostrar um clero decadente em Portugal. Aliás, essa mesma motivação o levou a documentar a decadência da família portuguesa em “O Primo Basílio”.

Como pano de fundo dessas obras, portanto, há uma constante: os indivíduos são vítimas de um sistema social degenerado – no caso, a burguesia.

Especificamente em “O Crime do Pe. Amaro”, o sistema social burguês formou uma religiosidade hipócrita, de aparência virtuosa e de realidade viciada. Era sintomático que o Côn. Dias – um homem conscientemente sem escrúpulos para manipular as pessoas – tivesse sido professor de Moral dos futuros padres. As beatas, orientadas pelos próprios sacerdotes a bajulá-los e a respeitá-los como “homens de Deus”, tornaram-se vítimas dos detentores do poder através da religão. Amélia foi a sacrificada; as mais velhas, porém, embora não houvessem sido levadas à morte física, tinham suas vidas tolhidas pelos padres egoístas e ilimitados na consecução de sus objetivos interesseiros.

O Pe. Amaro – representante maior do grupo de vilões da história – saiu ileso no final. O mesmo aconteceu com Basílio em “O Primo Basílio”. Eça delineia, assim, uma situação de clara ironia: é a sociedade burguesa a verdadeira vilã e ela está viva em sua trajetória deformadora de uns – as beatas – e destruidora de outros – Amélia. Algumas pessoas escapam dessa avalanche, como é o caso do abade Ferrão e do Dr. Gouveia, figuras positivas que se apresentam como exceções não afetadas pela podridão.

Trata-se de um romance de tese, em que o Determinismo sobressai: o momento histórico, o meio social e os instintos atuam nos indivíduos, que passam a agir impulsionados por essas forças irresistíveis. Amaro e Amélia são os protagonistas dessa situação: ele, padre sem vocação, incapaz de uma reação pessoal que demonstrasse personalidade forte; ela, totalmente identificada com a hipocrisia em que crescera; ambos se deixam arrastar, sem reagir, pela pura paixão carnal.

Portanto, o livro expressa a documentação crítica do Realismo e o avanço destrutivo das paixões, característica do Naturalismo.

Como é do feitio de Eça de Queirós, a cena final contém a dose definitiva de ironia: o olhar frio de Camões sobre os representantes do clero e da política estabelece o contraste entre o heroísmo ideal (o épico renascentista) e a cega mediocridade real (os três interlocutores), incapazes estes últimos de perceber que seu país estava decadente, pois, a seus olhos, a Europa invejava Portugal por sua paz e prosperidade! Essa “estabilidade” portuguesa era construída pelos hipócritas líderes da monarquia liberal conservadora e assimilada pelas pessoas simples, absolutamente desprovidas de visão crítica.

Apesar do aparente ceticismo do autor ao documentar a derrota do bem pelo mal, o livro é moralista, porque dá ao leitor a visão clara de que os vencedores aparentes são os vencidos na realidade, no sentido de se constituírem as pessoas erradas, os imorais dominadores.

É uma literatura que visa a contribuir para a transformação da sociedade, ao mostrar suas falhas.

Fonte:
Digerati. CEC 0004. (CD-Rom)

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Versejando 85

 

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Sérgio Doveinis

Ele tinha e demonstrava forte certeza de que um dia nos reencontraremos todos no céu. Foi para lá no dia 2 de agosto e deve estar agora sentado embaixo de uma árvore florida pondo a conversa em dia com os amigos que foram antes.

Dr. Sérgio Doveinis, médico oftalmotorrinolaringologista (olhos, ouvidos, nariz e garganta), nasceu paulista em Jundiaí no dia 22 de abril de l935, filho de imigrantes lituanos. Ainda criança, mudou-se para a cidade de Assis. Formou-se em medicina em 1960 em Curitiba, na Universidade Federal do Paraná. Em 1961, a convite do Dr. Said Ferreira (seu amigo e contemporâneo de faculdade), veio para o noroeste do estado. Trabalhou dois anos em Paranavaí, em 1963 veio para Maringá e aqui permaneceu até a partida para a paz eterna. Cuidou dos meus olhos durante longos anos e ao se aposentar me entregou aos cuidados do filho, também oftalmo, Sérgio Augusto (para mim, carinhosamente, Serginho).

Conheci-o no início dos anos 1970, no movimento de Cursilhos de Cristandade, onde por cerca de 30 anos tive a graça de trabalhar em equipe com ele. Sérgio era um líder natural, enérgico às vezes, porém extremamente generoso. Todo mundo gostava dele. Tinha um carisma que conquistava as pessoas logo ao primeiro contato.

Estudioso de filosofia e teologia, junto com a esposa Magali dedicou boa parte do seu tempo disponível à semeadura da fé e da esperança, especialmente mediante memoráveis palestras nos Cursilhos. Gostava também de trocar ideias por horas a fio com os amigos. Com ele aprendi muito nessas conversas.

Na última vez em que o encontrei, recordamos bons momentos e falamos sobre uma efeméride grandemente significativa: o cinquentenário do movimento de Cursilhos na arquidiocese de Maringá, a ser comemorado em setembro próximo.

Os Cursilhos tiveram origem na Espanha. Em 1949 foram integrados oficialmente na Pastoral da Igreja por Dom Juan Hervás, então bispo da diocese de Palma de Maiorca.

O primeiro Cursilho no Brasil ocorreu em 1962, em Itaici, São Paulo. O primeiro do Paraná em 1967, em Telêmaco Borba, diocese de Ponta Grossa. Em Maringá, o primeiro Cursilho realizou-se há 50 anos, nos dias 23 a 26 de setembro de 1971.

O auge do movimento deu-se ao longo das décadas de 1970, 1980 e 1990, e todos se lembram da repercussão que os Cursilhos tiveram na época, a ponto de serem definidos por alguns como “um novo milagre”. De fato produziram preciosos frutos. Muita gente mudou de vida, para muito melhor, após passar por essa inesquecível experiência.

Sérgio Doveinis foi um dos mais entusiastas entre os grandes incentivadores desse movimento em Maringá. Ajudou assim a preparar milhares de almas na caminhada rumo às bênçãos da eternidade. Deus, certamente, o recebeu de braços abertos. Até lá, Serjão.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 19-8-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Lairton Trovão de Andrade (Panaceia de Trovas) IX

A fogueira de São João,
com as chamas reluzentes,
traz calor à tradição
com alegrias ardentes.
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A frequente impunidade,
que bem nos atesta a Imprensa,
leva a criminalidade
pensar que o crime compensa.
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Ainda que o seu passado
não tenha sido de glória,
você, com muito bom grado,
pode escrever nova história.
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A jaó*, na mata ao longe,
põe tristeza no seu canto,
chora o funeral do monge
que vai para o campo santo.
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Jaó = é uma ave também conhecida como macucauá, sururina (Amazonas e Pará) e juó. Pertence a uma das mais antigas famílias do continente sul-americano, os tinamídeos. Com formato de corpo semelhante a galinhas, embora sem nenhum parentesco próximo com os galináceos.
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A Lua foi testemunha
das juras de um trovador;
você, então me propunha
eternizar este amor.
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Ao cair da noite, a Lua
se levanta no horizonte
e beija o Sol que a cultua
com tanta luz em sua fronte.
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A santa cruz que te dei,
sem Jesus, ali, pregado,
prega o quanto te adorei,
ficando eu crucificado.
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As pombas, que têm saudade,
voltam à tarde aos pombais;
mas quem foi pra eternidade,
ao tempo, não volta mais.
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Indescritível bondade
tem o bom livro ao leitor;
com postura e seriedade,
é um exímio educador.
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Muitos não viajam de avião,
- terrível coisa da altura -
têm sufoco e aflição,
que se traduz em paúra.
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Mulher, de um cofre, é segredo
com muitos mistérios no ar;
entra em seu selo, mais cedo,
quem o amor lhe devotar.
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Na florida minha Terra,
há riquezas naturais.
Na verde mata e na serra
- mananciais d'alvos cristais.
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Na madrugada serena,
os campos brilham de prata,
a Lua, dona da cena,
poemas faz à cascata.
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Nesta rua, onde moro,
passa a vida em liberdade;
mas não passa quem adoro
nem, de mim, passa a saudade.
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Ontem - Cidade Menina,
hoje – a mais linda senhora!
E terás sempre, Londrina,
os esplendores da aurora.
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Pequeninas mãos rosadas
de mil graças - carinhosas,
de boninas perfumadas,
meigas mãos, sois milagrosas.
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Pinhalão dos cafezais,
Pátria minha dos primores,
mil riquezas sem iguais,
terra amada sempre em flores!
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Quanta surpresa na vida
com as histórias de amor!
Quando a esperança é perdida,
fica uma história de dor.
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Que venha a paz à minha alma,
qual brisa amena do sul,
que eu receba a meiga palma
da felicidade azul!
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Você, sim, me surpreendeu
ao me dizer "vou-me embora"!
Era amor que já morreu,
sepultado co'a senhora!
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Zabelê é uma jaó
que vela nalgum sertão;
seu canto é tristeza só,
- lembra a dor da solidão.

HOMENAGEM EM TROVAS

Vivo no mundo da Trova,
sou feliz e não me queixo;
cada dia, há quadra nova
no "Jornal do Seu Aleixo*.
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Obrigado, grande Aleixo,
"Trovadoresco"* agradece.
Seria injusto desleixo
não aplaudir sua messe.
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Salve, grande Benfeitor,
Seu Aleixo e sua Imprensa,
que dão sempre ao trovador
alegria mais intensa.
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Seu Aleixo: Proprietário de Jornal e amigo dos trovadores.
"O Trovadoresco": Jornal de poesias e trovas de Natal -RN - idealizado pelo poeta e trovador Ademar Macedo.

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Nesta rua do meu sonho
brilham trovas desde a aurora;
dar-lhe a mão eu me proponho
em Trovápolis* agora.
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Trovápolis: Cidade imaginária dos trovadores, criada pelo trovador potiguar. Francisco Macedo, irmão de Ademar Macedo. Uma das ruas da cidade leva o nome do autor.

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Perene alvorecer. 2016.
Livro enviado pelo autor.

Luiz Paulo Faccioli (O big bang de todos os dias)

O novato entrega seus escritos ao colega veterano para as avaliações de praxe. De boa vontade, o mais experiente lê o material, imagina que a proposta seja o conto, mas observa que ele não está bem realizado. Sugere então que as histórias sejam trabalhadas de outra forma, levando-se em conta certas regras estabelecidas para o gênero. O aspirante à carreira contrapõe dizendo que não havia sido essa a pretensão e pergunta, não sem uma nota de desdém pela sugestão, se inexiste outra possibilidade para a narrativa curta além do engessamento formal próprio do conto ou da liberdade opinativa da crônica. O veterano cofia a barba antes de responder que sim, pode haver, desde que o texto consiga também tocar, de alguma maneira, a sensibilidade do leitor. Cita como exemplo Luis Fernando Veríssimo, que mescla conto e crônica de um modo personalíssimo e muito bem-sucedido. Mas afirma e reafirma que, assim como está, o texto analisado carece de virtudes literárias que levem o leitor a se interessar por ele.

A essas alturas, o novato talvez não compreenda muito bem o que significa ter um leitor anônimo, de fora de sua família ou de seu círculo de amizades. Em outras palavras, alguém que não esteja de antemão comprometido com ele por razões de afeto. Talvez sequer tenha pensado que o objetivo maior de quem escreve visando à publicação é atingir esse ente desconhecido. Ao veterano só resta então dar de ombros: um dia talvez o novato aprenda e se torne um escritor digno de preencher com este substantivo o campo "profissão" em qualquer formulário de cadastro pessoal.

A hipotética situação narrada acima põe em evidência um componente essencial à literatura e frequentemente ignorado por alguns escritores: a pessoa sem nome e CPF conhecidos para a qual se escreve. E não se pretende aqui afirmar que o objetivo do escritor deva ser exclusivamente o de agradar seu leitor: atingir, tocar a sensibilidade, fazer pensar, instigar, provocar ou até mesmo incomodar, desacomodar é o que se pede; também agradar, se e quando isso for possível. Quem se propuser a falar só para si não encontrará outro leitor além de si próprio, salvo, talvez, os já referidos familiares e amigos.

Outro viés do exemplo, também relevante para o que se quer tratar, é a figura do gênero híbrido ou da peça de ficção que não se enquadra em nenhum gênero predefinido. Nesse sentido, raras são as experiências exitosas, não porque a literatura seja refratária a inovações, bem pelo contrário, mas porque a premissa básica é que escritor e leitor se comuniquem, e a sintonia sempre é mais fácil de acontecer num terreno que o leitor já conheça.

João Gilberto Noll é um caso emblemático na literatura brasileira, na medida em que aparentemente vem desafiando o mandamento sagrado de escrever com foco no leitor anônimo, ao tempo em que mantém seu prestígio em alta, pelo menos junto à crítica especializada e à academia. É bem verdade que, antes de se aventurar a qualquer transgressão, soube fazer pelo modelo vigente. Verdade, também, que nunca foi muito ortodoxo, mas suas histórias - notadamente os contos, que marcaram sua estreia num livro sempre muito bem referido, O Cego e a Dançarina, de 1980 - tinham enredo, personagens, conflito, ingredientes tão comezinhos quanto relevantes ao texto de caráter ficcional. Trilhando uma carreira ascendente de vários prêmios literários - inclusive três Jabutis, um deles já com o primeiro livro, que também mereceu o da Associação Paulista de Críticos de Arte -, adaptações de suas obras para o cinema (uma das grandes paixões do escritor), passagens pelos Estados Unidos como bolsista da Universidade de Iowa e professor de literatura brasileira na Universidade da Califórnia, Noll foi-se libertando das amarras que ainda o ligavam ao discurso convencional e enveredou por um estilo inimitável de ficção, cujo ápice acontece com Berkeley em Bellagio. Nesse romance de 2002, composto de um único parágrafo, Noll exercita uma narrativa "labiríntica", como bem definiu o crítico e escritor Bernardo Ajzenberg.

O movimento de transição que deságua em Berkeley... foi tão paulatino que não é adequado se falar em fases distintas da produção de Noll. (Tampouco a pretensão desta matéria é abarcar todos os nove romances, além da já citada coletânea de contos e de uma outra, inusitada em sua concepção, Romances e contos reunidos, de 1997. O interesse aqui é tão-somente comentar o último livro lançado, para o que se torna inevitável falar brevemente sobre o contexto no qual ele se insere.) Cada novo livro avançava um pouco mais em direção a uma arquitetura narrativa que privilegia a catarse íntima, no sentido em que parece estar atrelada exclusivamente a uma necessidade pessoal do autor de escrever, pôr para fora, desabafar, nada mais distante daquilo que o nosso escritor veterano tentava ensinar ao calouro. Por mais incrível que isso possa parecer, em Noll a heresia funciona.

Mínimos, múltiplos, comuns (Francis, 2003) é um projeto ambicioso. Trata-se de 338 pequenas narrativas que Noll já havia publicado no jornal Folha de São Paulo sob o título de Relâmpagos, duas por semana, entre agosto de 1998 e dezembro de 2001, e cuja reunião pretende agora nada menos do que compor "um painel minimalista da Criação", palavras de Wagner Carelli que intitulam o brilhante ensaio de apresentação do livro. Carelli, junto com Noll, também participa da concepção do projeto. A edição da Francis é primorosa: 480 páginas impressas em papel pólen, com belas ilustrações e uso privilegiado do preto. Osmane Garcia Filho assina a edição de arte, num trabalho de grande apelo visual. A fonte tipográfica usada é a Janson, e a Editora chega ao requinte de explicar, na página final, a origem de tal fonte, que remonta ao século 17. Antes de alcançar o texto propriamente dito, o leitor já está encantado com o bom gosto da edição e adentra o volume com curiosidade respeitosa.

As narrativas, chamadas de "instantes ficcionais" pelo autor, tiveram como parâmetro um máximo de 130 palavras. A definição, tão ampla quanto vaga, é mais do que apropriada, e qualifica uma experiência de certa forma inédita. Os "instantes" não têm compromisso algum com a estrutura formal do conto, embora alguma exceção ocorra, caso de Línguas, logo no início, um delicioso miniconto de cores borgianas. Tampouco encontram na crônica qualquer parentesco possível, pois não comentam nem opinam sobre uma história real ou fictícia, característica básica desse gênero.

Noll chegou a declarar que Mínimos... é o seu trabalho que mais reúne elementos autobiográficos. Não há como se duvidar de tal afirmação, pois os relatos - se é que podemos chamá-los assim - são como instantâneos fotográficos de situações observadas ou vivenciadas pelo autor, é claro que sempre por um prisma absolutamente insólito e que surpreende o leitor pela sua estranheza. Mas a proposta passa ao largo da memorialística. O conhecimento e o gosto pela linguagem cinematográfica são evidentes. O autor também admitiu a tentativa de unir prosa e poesia na procura obsessiva da síntese, decorrente da limitação imposta. Várias passagens de Mínimos... demonstram que essa intenção se confirmou.

A ideia do "painel da Criação" veio a posteriori da publicação semanal. Em seu ensaio, Wagner Carelli explica que a ordem cronológica em que foram escritos os minitextos era "caótica e carente da lógica interna, quase linear que os une"; na sequência em que surgiram, eles "têm seus limites comprometidos à estreiteza do espaço e induzem a um entendimento reducionista, que pode tomá-los como abstrações de sentido escasso e circunscrito à forma". Carelli compara então o trabalho ao "expressionismo abstrato" do pintor letão-americano Mark Rothko e diz que a experiência de se ler os relatos na forma avulsa em que foram inicialmente publicados equivaleria a se apreciar as telas de Rothko "nas dimensões diminutas e apartadas de um catálogo". Ordenados de forma a comporem o painel, os textos foram então divididos em cinco grandes grupos, pensando-se numa estrutura cronológica da Criação: Gênese, Os elementos, As criaturas, O mundo e O retorno. Cada um desses conjuntos é subdividido em grupos menores, estes, em outros, que finalmente agrupam os textos de temática mínima equivalente. Desnecessário dizer que a ótica norteadora da organização foi absolutamente pessoal e subjetiva, mas teve a competência de definir uma trilha para o leitor, quase como o texto explicativo que acompanha algumas obras de arte contemporâneas, sem o qual uma parte importante da compreensão ficaria comprometida.

Contudo, a analogia desses Mínimos... com a pintura abstrata talvez não seja a mais adequada. Talvez no cubismo encontremos elementos mais apropriados ao exercício de comparação. Como se sabe, no cubismo as figuras são decompostas (às vezes "fatiadas") e remontadas de modo a aparecerem em conformações excêntricas. Mas elas subsistem à transformação, ou seja, um rosto continua sendo um rosto, apesar de sua forma caótica. O quadro cubista consegue retratar uma cena, sempre inusitada em sua composição, mas ainda uma cena. O mesmo acontece com os minitextos.

Os 338 "instantes", tomados como peças autônomas, não têm qualquer relação com a arquitetura "labiríntica" de Berkeley... No máximo, na condição de exercícios da estética minimalista, poder-se-ia considerá-los como uma espécie de ensaio preparatório para o romance. Depois de reunidos e classificados, ficam evidentes as semelhanças, para além do fato de as duas obras terem saído da mesma pena. A impressão que se tem é de que o desapego a um fluxo narrativo previsível foi primeiro exercitado numa escala menor, os minitextos, encadeados depois para comporem uma estrutura maior, ainda sem compromisso com uma lógica de causa-efeito, o que veio a mostrar ao autor a possibilidade de um romance inteiro assim alicerçado. A cronologia real, como se viu, não foi bem essa, embora não se possa afirmar com precisão o instante em que as ideias nascem, nem como elas se estruturam e se desenvolvem na cabeça do artista.

Dono de um discurso sempre impecável, Noll supera-se em Mínimos... Os anos dedicados ao estudo da música e ao canto naturalmente produziram nele um senso privilegiado de ritmo e harmonia, refletido depois numa prosa que se nutre sobejamente desses elementos. À procura da síntese, do essencial, além da pretendida mescla de prosa e poesia, Noll aprofunda e sistematiza (ainda que isso possa ocorrer intuitivamente) a observância do ritmo e da sonoridade das frases. Mesmo se ao leitor comum os relatos não fizerem lá muito sentido, restará a ele o prazer da fruição de um texto irretocável. O léxico é preciso, gerando uma tensão intrínseca à concisão desejada.

O acento essencialmente citadino dos relatos contrasta com a evocação constante dos elementos da natureza. Quando estes aparecem, vêm com a função de provocar a ruptura: um movimento ora desagregador ora epífano, mas sempre com a nítida intenção de desviar o fluxo "racional" da narrativa para um plano "inconsciente", de onde ela jamais retorna. Como em A gruta:

"O homem entrou no boteco e se sentou. Fugia de uma tontura que o atacara na esquina. Viu a porta do recinto e no meio do seu anuviamento lhe passou a imagem de uma caverna escura e úmida por onde ele entrava encharcado de suor. Agora o rapaz ali lhe perguntava o que queria. O homem ouvia apenas o pingar de uma água insistente que vinha do fundo da gruta. O rapaz perguntou pela segunda vez. Aí sim o homem escutou a voz de alguém. Mas essa voz parecia vir de muito longe, da fantasia de um moribundo abandonado por qualquer outra voz que não aquela que ele ia fabricando do nada, na sua paralisia cerebral. O rapaz voltou a perguntar. O homem viu que não teria forças para responder. Sentiu a beira de um copo d`água entre os dentes. Puxou um gole. E outro."

As epifanias e os impulsos dissonantes, nem sempre tão óbvios como no exemplo acima, ao tempo em que respondem pela estranheza maior da obra também costuram sua unidade. Por outro lado, o big bang da Criação em Mínimos... está mimetizado na primeira narrativa, Tecido penumbroso:

"Como posso sofrer porque as coisas pararam? Elas andavam tão estouvadas! Por que não deixa-las dormir agora um pouco? Tudo se aquietou, é noite, o mundo vive pra dentro, cegando-se ao sol do sonho. Preciso um pouco desse conteúdo inóspito, ermo como um quase-nada. Não, não é morte, é uma espécie de lacuna essencial, sem a aparência eterna do mármore ou, por outro lado, sem as inscrições carcomidas. Pode-se respirar também na contravida. Depois a gente volta para o velho ritmo; aí já não nos reconheceremos ao espelho explícito, tamanha a qualidade desse tecido penumbroso que provamos."

Ou seja, o instante deflagrador do processo é uma parada, seguida de uma implosão interior e um realinhamento à luz desse "sol do sonho"; por fim, o retorno, mas a um estágio onde as coisas não fazem mais o sentido que faziam antes. Todas as narrativas apresentam esse mesmo movimento, repetindo 338 vezes o ciclo proposto da Criação, num diálogo óbvio e metalinguístico com a criação artística.

Seguindo à risca as indicações, nosso leitor anônimo, antes de cogitar ter sofrido mais uma vez o vilipêndio por um texto que não o leva em consideração, descobrirá um micro-universo rico, pulsante, inimaginável sob a mesmice do cotidiano. Algo que só a ousadia de João Gilberto Noll consegue transformar em superior literatura.

Publicado no Jornal Rascunho. Curitiba/PR: fevereiro/2004. 
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LUIZ PAULO FACCIOLI nasceu em Caxias do Sul em 1958 e mudou-se para Porto Alegre, onde mora atualmente. É músico, compositor, Instrutor pela The International Cat Association — TICA. Autor de Elepê (contos, 2000), Estudo das Teclas Pretas (novela, 2004), Cida, a Gata Maravilha (infanto-juvenil, 2008) e Trocando em miúdos (contos, 2008), participou das antologias Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século e 35 segredos para chegar a lugar nenhum (crônicas), entre outras. Integrou o grupo Casa Verde, participando das seis coletâneas lançadas entre 2005 e 2008: Fatais, Contos de bolso, Contos de bolsa, Era uma Vez em Porto Alegre, Contos de algibeira e Contos comprimidos. Integra o grupo Osseis de POA, com duas novelas para o público juvenil já lançadas: Aqui dentro há um longe imenso e Foi o que coube na mochila. É crítico literário, colunista de literatura da Band News Porto Alegre e colaborador do Jornal Rascunho de Curitiba.