segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 16

 

Rocha Pombo (O Gato Negro)


Desolado em minha sala, estava eu na hora das obsessões, o espírito muito para além, pela região dos problemas, bem longe do mundo e bem distante do bulício humano. Todo o movimento, todo o rumor cessara e a vida imergira na profundeza do seu sono. Quanto a coisas da terra, só me apercebo de que me vem lá de fora a impressão da alta noite, calma e solitária. A rua está deserta e numa grande mudez solene, a destacar-se no meu espírito como em contraste com a vertigem de poucas horas passadas.

Ainda assim, são fortes as emoções que me sugere a vasta solidão da noite. E é por isso que não tenho a coragem de maldizer o silêncio de necrópole que me chama lá das alturas em que anda meu espírito e que logo me absorve e me vence. Não posso imprecar... porque sinto que amo aquela escuridão.

Amiga suave e carinhosa das almas – noite sonhadora e amargurada! – tu és a imagem do mundo em que vive meu espírito. Pois que tu, noite amargurada, és o mistério que envolve a vida e tens no teu seio imenso, bem sensíveis, todas as dúvidas do universo moral. Tu és como o caos informe e indefinido de que vai sair daqui a instantes o prodígio da Criação, restituída à nossa ansiedade e ao nosso espanto.

Bendita a noite que nos faz novo o universo! Bendita a noite que me fecha de todo a alma no insondável escuro, onde erra meu espírito, à busca de signos indecisos e como se estivesse à espera de palavras augustas que vão ser faladas. A natureza está para mim numa atitude e numa pompa mística de cerimônia cultual. Há pouco em torno de mim havia tumultos e eu suspirava; havia todas as manifestações ruidosas da vida, e eu inquiria o destino numa sagrada ânsia de viver. E é só agora que meu coração se apercebe de que está no mundo onde se criou e em cujos paramos silenciosos tem vivido – mundo feito de sombras, de luares inefáveis, de horizontes sem limites como as voragens; mundo de seres intangíveis, de existências sem formas, de vultos sem contorno; mundo do vago extenso, da cor indefinida; mundo da névoa, da solidão e do assombro – ideal paragem das almas a vagar ansiosos neste oceano do tempo...

A cidade dorme, exausta das azáfamas e só se ouve, de momento a momento, muito por longe a perder-se na distancia, o ladrar de cães como aviso de sentinelas que a vida postasse neste amplo solar simbólico do além, para impedir que seja tranquilo o sono dos que dormem... Ouve-se ainda o cantar de galos, cantar que anuncia ressurreições, que alarma todo o instinto heroico, mesmo nas criaturas vencidas... Dir-se-ia que no meio daquele sono trabalha uma dolorosa obsessão de vigília... e que aqueles ladrares e aqueles cantos destacam ainda mais o silêncio temeroso que impera sobre as almas como angustia desconhecida.

E imagino então que estou no meio de uma grande noite polar... Em torno de mim há uma natureza morta, ruínas desoladas de um mundo que passou, desertos infinitos eternamente sepultados na escuridão e na erma quietude que ficou de tudo que foi...

Mas é naquelas mesmas estâncias solitárias que a alma readquire o vigor antigo, e em vez de sentir a morte e o nada, vou procurando na imensidade gelada os vestígios da vida.

E como seria bela e grandiosa aquela noite sem fim! Que mistérios não desvendaria eu na mudez daquele escuro! Que problemas, que dramas, que heroísmos estranhos me segredaria aquele silêncio de noite polar!

Eu ia absorto nas profundezas do meu pensamento, quando sobre o peitoril da janela aberta ergue-se o vulto sinistro de um gato negro, enorme, imóvel, a fitar-me, como um duende vindo do mistério. Tive ímpetos de fugir, de buscar alguém que me falasse, alguma voz humana que me restituísse a minha consciência. Depois, estaquei. Veio-me à lembrança o corvo do poeta – a ave da desilusão, ave que sabe de todas as línguas apenas aquelas duas palavras que gelam as almas: – o nunca mais! apavorante e desesperador.

– Mas tu, gato negro, tu andas na superstição das pobres criaturas envolto sempre na ideia dos demônios. Dos animais que convivem com os homens, és tu aquele que mais os espanta, porque tu amas o escuro e o silêncio, tu és o animal da noite, e como animal da noite és o emblema do pecado e do crime. Se as almas piedosas te vissem pousar esse vulto cor da treva no alto de um sepulcro – as almas obumbradas (sombrias) se afastariam, porque tu não te cevas de cadáveres como as hienas, mas de almas como o remorso.

Quem sabe se tu não és mesmo a encarnação de gênios maus, de espíritos malditos, de agouros errantes, e se não andas de mundo em mundo como exilado impenitente, a perseguir almas, na insânia do teu castigo... E se esse fulgor que tens nos olhos é ainda um resto do antigo brilho que te ficou da bem-aventurança perdida – tu és mais do que as aves, porque mais do que as aves já amaste e hoje odeias mais do que as aves.

Vem, pois, dizer-me o que sabes da vida. Não te inquiro sobre as Leonoras que se foram; nem desejo saber o que as almas amam no céu: diz-me apenas se o inferno de onde vieste é mais horrível do que a terra. Diz-me se lá também há crimes e se os crimes lá chegam a ser monstruosos como aqui... Se os entes lá também detestam Deus e aborrecem os homens... Se tanto como aqui a perfídia, a soberba e a impiedade estão no seu império... Diz-me se as almas lá vivem também de perseguir as almas...

Imóvel, o monstro parecia ruminar a minha aflição.

– Mas ouve-me, gato negro. Nas lendas deste mundo, tu figuras como o disfarce preferido no inferno e sem duvida, esse conspecto e essa cor escondem alguma coisa da cidade do pranto e do ranger de dentes... Vem dizer-me se lá nas entranhas do Orco há também Neros e Denys; se há juízes que condenam inocentes e absolvem culpados; se há lá consciências capazes de criar Lesurques e Dreifus; se há lá Marats e Herbets e se a liberdade é horrenda como os feros Moloques daqui. Vem dizer-me, tu que vieste do inferno, se lá os bons também padecem e se o premio da virtude é também lá o martírio eterno...

Uma palavra tua é bastante, animal sinistro, êxul da danação. Conta-me se os demônios do inferno são piores que os demônios da terra... Se há lá maldade que chegue a profanar o sagrado e abusar da inocência... Diz-me se há lá monstros que sem tremer vão até... envenenar a esmola com que matam a fome... Ou então, se perdeste a lembrança dos horrores do inferno ao ver os horrores da terra – fala-me ao menos por gestos e diz-me como são os castigos do inferno... Diz-me se lá também se conhece um castigo chamado sonho... este castigo que põe as almas, sob o silêncio das noites, num grande estatelamento em face do céu, sem saber por que vieram, sem saber como vivem, sem saber por que suspiram...

Ante a imobilidade do bruto, fico mais aterrado e cada vez mais exausto. Um medo supersticioso começa a invadir-me o coração e sem me aperceber me vou erguendo. O animal, como se houvesse crescido, levanta mais a cabeça e me fita firme e quase hostil. Num supremo esforço, grito para o vulto, cuja silhueta se destaca enorme e monstruosa à luz do gás da rua:

– Mas então, se no teu mundo não é como aqui; se lá não se extingue nas almas a doce e triste piedade, diz-me ao menos se lá também se ama e se adora...

Um longo miau formidável me faz tremer e o bruto, dum salto, desaparece no infinito da noite.

Fonte:
Rocha Pombo. Contos e pontos. Publicado em 1911.

Trovas Populares Brasileiras – 1


Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.


A cantiga que se canta,
não se torna a recantar;
O amor que se despreza
não se torna a procurar.
= = = = = = = = =

As cantigas que eu sabia,
todas me hão esquecido.
A que meu bem me ensinou
nunca me sai do sentido.
= = = = = = = = =

A viola sem a prima,
a prima sem o bordão,
parece mãe sem a filha,
a irmã sem seu irmão.
= = = = = = = = =

Cantemos, meu bem, cantemos,
cantemos, e bem juntinhos;
Os anjos cantam nos céus
nós também somos anjinhos.
= = = = = = = = =

Dizei-me o que significa,
o que vem significar:
Caminhar para tão longe,
cantando pra não chorar.
= = = = = = = = =

Eu hei de morrer cantando,
pois que chorando nasci,
para ver se recupero
o que chorando perdi.
= = = = = = = = =

— Eu não canto desafio,
nem que me paguem a vintém,
que não quero andar pegado
na abertura de ninguém.
= = = = = = = = =

Eu não canto por cantar,
nem por ser bom cantador,
canto por matar saudades
que tenho do meu amor.
= = = = = = = = =

Eu tenho um saco de versos
dependurado no oitão;
Se duvidares de mim,
eu dou co’o saco no chão.
= = = = = = = = =

Fui andando pela rua,
fui cantando o meu dandão;
As meninas 'tão dizendo:
ele é feio, mas é "bão".
= = = = = = = = =

Minha viola de pinho
pra tudo tu tens de dar:
Uns cantam pra divertir,
os outros pra não chorar.
= = = = = = = = =

Minha viola mais canta,
quanto mais sofro na vida.
Sou como cana no engenho:
Mais doce, mais espremida.
= = = = = = = = =

Não sei se ria ou se chore,
não sei que faça de mim:
Eu cantando dobro penas,
chorando penas sem fim.
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No lugar aonde eu canto
todos tiram-me o chapéu;
Cada repente que eu tiro
corre uma estrela no céu.
= = = = = = = = =

O errar numa cantiga
não se deve admirar,
que o melhor atirador
erra um pássaro no ar.
= = = = = = = = =

Quando eu pego por aqui,
e pego por acolá,
sou mesmo que dor de dente,
quando pega a "pinicá".
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Quem canta seu mal espanta,
quem chora seu mal aumenta.
Eu canto pra disfarçar
este mal que me atormenta.
= = = = = = = = =

Quem me vê andar cantando,
pensará com bem razão
Que eu ando alegre da vida ...
Sabe Deus, meu coração!
= = = = = = = = =

Quem me vê andar cantando
pensará que estou contente,
eu canto pra disfarçar,
dão dar gosto a muita gente.
= = = = = = = = =

Quem quiser cantar comigo
sente na ponta do banco,
que eu conheço gado bravo
de noite só pelo arranco.
= = = = = = = = =

Sou cantador afamado:
Se toco a prima e o bordão,
atrás de mim vou levando
a gente deste sertão.
= = = = = = = = =

Viola tu também amas,
também tu sentes paixão.
O teu corpo de madeira
tem forma de coração.
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— Você diz que sabe muito,
pois me destrinche esta conta:
Vinte cinco guardanapos,
dois vinténs em cada ponta.
= = = = = = = = =

Você me mandou cantar,
pensando que eu não sabia,
pois eu sou como cigarra,
quando canta, leva o dia.
= = = = = = = = =

Vou começar os meus versos
com voz alegre cantando
pr’amor de que os circunstantes
não passem a noite chorando.

Fonte:
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919.

Irmãos Grimm (O Irmão Folgazão)


Houve, em tempos muito remotos, uma grande guerra, finda a qual muitos soldados foram licenciados. Entre eles havia um, chamado Folgazão, por causa do seu permanente bom humor; na hora da baixa, recebeu apenas um pão de munição e quatro vinténs, e com isso foi andando.

À beira da estrada, estava São Pedro sentado, disfarçado em pobre mendigo e, quando Folgazão se aproximou, pediu-lhe esmola. Ele, então, respondeu: - Meu caro mendigo, que posso dar-te? Sou um pobre soldado que acaba de ter baixa e tenho como única fortuna este pão e quatro vinténs. Não será preciso muito para lhe ver o fim e, então, terei de mendigar como tu. Contudo, quero dar-te alguma coisa.

Partiu o pão em quatro pedaços, deu um ao apóstolo e mais um vintém. São Pedro agradeceu muito e foi andando; postou-se um pouco mais adiante, disfarçado em outro mendigo e, quando o soldado ia passando por ele, tornou a pedir-lhe uma esmola.

Folgazão respondeu como antes e deu-lhe outro pedaço de pão e mais um outro vintém. São Pedro agradeceu e foi postar-se mais adiante, ainda sob forma de um pobre mendigo, e pediu-lhe uma esmola. Folgazão deu-lhe o terceiro pedaço de pão com outro vintém. São Pedro agradeceu e Folgazão seguiu o caminho; nada mais possuia do que um pedaço de pão e um único vintém.

Entrou numa hospedaria, pediu um copo de cerveja e comeu o pão.

Depois, pôs-se novamente a caminho e eis que São Pedro veio-lhe ao encontro, sob o aspecto de um soldado licenciado, dizendo-lhe: - Bom dia, camarada; não poderias dar-me um pedaço de pão e um vintém para tomar um gole de cerveja?

- Onde irei buscá-los? - respondeu Folgazão - recebi a baixa e além dela nada mais que um pão e quatro vinténs. Encontrei pelo caminho três mendigos, a cada um deles dei um quarto de pão e um vintém. O último quarto comi-o agora na hospedaria e com o último vintém tomei um copo de cerveja. Agora estou a nenhum e se tu, também, não tens nada, poderemos pedir esmolas juntos.

- Não! - respondeu São Pedro - Ainda não estou reduzido a isso; eu entendo alguma coisa de medicina e pretendo assim ganhar para o meu sustento.

- Está certo! - disse Folgazão - Eu não entendo nada disso, portanto, irei mendigar sozinho.

- Ora, vem comigo! - disse São Pedro. - Poderás talvez ajudar-me; se eu ganhar alguma coisa, ofereço- te a metade.

- Ótimo! - disse Folgazão, e juntos saíram andando.

Logo, na primeira aldeia que atravessaram, passaram pela casa de camponeses onde se ouviam choros e lamentos; entraram e viram o dono da casa deitado na cama, agonizante; a mulher, e toda a família, achava-se em volta dele, chorando e gritando.

- Cessai de gritar e chorar! - disse São Pedro - Vou curar esse homem.

Tirou do bolso um frasco de unguento e, num instante, curou o doente, o qual se levantou vivo e são como um peixe. Marido e mulher, no auge da alegria, não sabiam como agradecer.

- Como poderemos recompensar-vos? Que poderemos dar-vos?

São Pedro, porém, não queria aceitar nada e quanto mais insistiam mais ele recusava. Folgazão deu-lhe uma cotovelada, dizendo baixinho: - Aceita alguma coisa; bem sabes que estamos necessitando.

Por fim, a mulher do camponês trouxe um lindo cordeirinho pedindo a São Pedro que o aceitasse, mas ele não queria. Então o amigo Folgazão dando-lhe uma cutucada nas costelas, disse-lhe: - Pois aceita, seu bobo, nós bem que precisamos!

Então São Pedro disse: - Pois bem, aceitarei o cordeirinho, mas eu não o carregarei. Se quiseres, tens que carregá-lo tu.

- Não seja essa a dúvida, - respondeu Folgazão - eu me incumbo disso.

Pôs o cordeiro no ombro e continuaram o caminho, chegando a uma floresta; o cordeiro começava a pesar e Folgazão, que já estava sentindo fome, disse ao companheiro:

- Olha que lugar convidativo. Aqui podemos assar o cordeiro e comê-lo.

- Está bem, - disse São Pedro - mas não quero cuidar da cozinha, se queres cozinhar, aqui tens um caldeirão, enquanto isso vou passear um pouco até ficar tudo pronto. Mas não podes começar a comer antes de eu voltar; estarei de volta em tempo.

- Não tenhas medo, vai! - disse o amigo Folgazão - Sei lidar na cozinha, prepararei tudo.

São Pedro afastou-se e Folgazão matou o cordeiro, acendeu o fogo, pôs a carne no caldeirão e deixou ferver. Já estava pronta e o apóstolo nada de aparecer; então o amigo Folgazão retirou o cordeiro da panela, trinchou-o e encontrou o coração.

- Este é o melhor bocado! - disse, e provou-o. De fato, era tão gostoso que acabou por o comer todo.

Finalmente chegou São Pedro, dizendo: - Podes comer todo o cordeiro, eu só quero o coração. Dá-me.

O amigo Folgazão pegou o garfo e a faca e fingiu procurar atentamente no meio da carne, sem conseguir encontrar o coração. Por fim disse, meio sem jeito: - Não o encontro!

- Onde estará? - perguntou o apóstolo.

- Não sei! - respondeu Folgazão - mas veja, que tolos somos os dois! Aqui a procurar o coração do cordeiro e não nos lembramos de que o cordeiro não tem coração.

- Oh! - disse São Pedro - que novidade! Todos os animais têm um coração. Por quê o cordeiro não tem?

- Não tem, estou certo disso. O cordeiro não tem coração. Reflete bem e verás como é certo.

- Bem, bem, não falemos mais! - disse São Pedro - desde que não tem coração, não quero mais nada, podes comer o cordeiro todo.

- O que não puder comer, guardarei na mochila. - disse Folgazão.

Comeu metade do cordeiro e o resto guardou na mochila.

Depois continuaram o caminho e São Pedro fez com que uma torrente de água lhes atravessasse o caminho e eles deviam transpô-la.

- Podemos atravessar a nado. - disse São Pedro - Vai na frente.

- Não! - respondeu o amigo Folgazão - Vai tu primeiro. - E pensava: "Se ele for para o fundo, eu ficarei por aqui."

São Pedro atravessou e a água só lhe chegava aos joelhos. Então o amigo Folgazão dispôs-se, também, a atravessar, mas a água subiu e chegou-lhe ao pescoço.

- Meu irmão, socorro! - gritou ele.

São Pedro respondeu-lhe: - Queres confessar que comeste o coração do cordeiro?

- Não, não o comi! - gritou o amigo.

Então a água cresceu mais e chegou-lhe até à boca.

- Socorro, irmão, socorro! - gritou o soldado.

São Pedro tornou u dizer: - Confessas ter comido o coração do cordeiro?

- Não! - respondeu ele - Não comi.

Apesar disso São Pedro não permitiu que ele se afogasse; fez descer a água e ajudou-o a passar para a outra margem.

Continuaram o caminho e chegaram a um reino, onde souberam que a filha do rei estava à morte.

- Olá, irmão! - disse o soldado a São Pedro - Que bela ocasião para nós; se a curarmos, ficaremos bem para o resto da vida!

E como São Pedro não se apressasse, continuou: - Vamos, irmão do coração, mexe as pernas e corramos um pouco para chegar a tempo e salvar a princesa.

Entretanto, por mais que Folgazão o incitasse, São Pedro caminhava sempre mais devagar, até que por fim ouviram dizer que a princesa havia falecido.

- Aí está! - disso o amigo Folgazão, - Tudo por culpa da tua indolência, viste?

- Acalma-te! - respondeu São Pedro - Eu posso fazer algo mais do que curar os doentes; posso também ressuscitar os mortos.

- Bem, se é assim, tanto melhor. - disse Folgazão - Se isso conseguires, o rei nos dará a metade do reino.

Chegaram ao castelo, onde toda a corte estava de luto fechado. São Pedro anunciou ao rei que faria ressuscitar a princesa. Levaram-no para junto dela e ele disse:

- Trazei-me um caldeirão cheio de água.

Quando lho trouxeram, mandou sair todo mundo. Somente Folgazão teve licença de ficar com ele. Aí retalhou todos os membros da defunta, colocou-os dentro da água, acendeu um bom fogo sob o caldeirão e deixou-os ferver. Quando a carne se desprendeu toda, pegou os ossos brancos colocou-os sobre a mesa dispondo-os um perto do outro, na sua ordem natural. Então disse por três vezes:

- Em nome da Santíssima Trindade, levanta-te, morta!

Na terceira vez, ela se levantou, viva, alegre e bonita como nunca. O rei, louco de alegria, disse a São Pedro:

- Pede-me a recompensa que desejas, mesmo que seja a metade do meu reino, eu a darei de boa vontade.

Mas São Pedro respondeu:

- Não quero nada.

- Oh, que imbecil! - disse o amigo Folgazão, cutucando-lhe as costas. - Não sejas tão cretino; se tu não queres nada, eu necessito de alguma coisa!

Mas São Pedro manteve-se firme na sua recusa. Entretanto, notando o rei que o outro não partilhava dos sentimentos do companheiro, mandou o tesoureiro encher-lhe a mochila de moedas de ouro.

Depois disso, continuaram a viagem e, tendo chegado a uma floresta, São Pedro disse:

- Agora vamos repartir esse ouro.

- Sim. - respondeu o outro - Vamos reparti-lo.

São Pedro repartiu as moedas em três partes iguais, enquanto isso Folgazão ia pensando: "Quem sabe lá que ideia se lhe meteu de novo na cabeça! Divide em três partes e somos apenas dois."

Mas São Pedro exclamou:

- Reparti com equidade: uma parte para mim, outra para ti e a terceira para aquele que comeu o coração do cordeirinho.

- Oh, fui eu mesmo! - respondeu Folgazão, e mais que depressa meteu o ouro no bolso. - Podes-me acreditar, comi-o eu!

- É impossível! - retrucou São Pedro - Um cordeirinho não tem coração!

- Ora, ora, meu irmão, que ideia! Um cordeiro tem um coração tal como os outros animais; por quê só ele não deveria tê-lo?

- Está bem, não discutamos mais. - disse São Pedro - Fica com todo o dinheiro, mas eu não continuarei em tua companhia, vou seguir o meu caminho sozinho.

- Como queiras, meu irmão. - respondeu o soldado - Adeus e passes muito bem.

São Pedro seguiu por uma estrada oposta e Folgazão ia pensando: "E' melhor que se vá; no fim de contas ele é um peregrino muito singular!"

Agora possuía dinheiro à vontade, mas não sabia empregá-lo com critério. Gastou, deu, e, por fim, depois de pouco tempo, estava novamente sem um níquel. Nessas condições, chegou a um país onde ouviu dizer que a filha do rei havia morrido.

- Olá! - disse - Isto começa bem. Esta eu mesmo ressuscitarei e far-me-ei pagar melhor do que a outra.

Apresentou-se ao rei, oferecendo-se para ressuscitar-lhe a filha. O rei ouvira contar que um soldado aposentado andava ressuscitando os defuntos e julgou que fosse o amigo Folgazão; mas, como não tinha muita confiança nele, primeiro quis saber a opinião de seus conselheiros, os quais responderam que tentasse, pois a filha estava mesmo morta.

Então, o amigo Folgazão mandou que se retirassem todas as pessoas. Cortou os membros da princesa colocando-os dentro do caldeirão, que pôs para ferver, exatamente como vira São Pedro fazer. A água começou a ferver e a carne se desprendeu completamente dos ossos; pegou neles mas não sabia como arranjá-los e arrumou-os sobre a mesa, tudo ao contrário e misturado. Feito isso, gritou por três vezes:

- Em nome da Santíssima Trindade, levanta-te, ó morta!

Repetiu essas palavras três vezes, mas os ossos não se mexiam. Tornou a repeti-las mais três vezes, mas sem melhor resultado. Então, raivoso, bateu os pés e exclamou:

- Levanta-te, diabo de uma princesa! Levanta-te, senão pobre de ti!

Mal acabava de pronunciar essas palavras, eis que São Pedro entrou pela janela, com o seu disfarce de soldado aposentado, e disse:

- Que estás fazendo aí, mau ímpio? Como pretendes ressuscitar a defunta se embaralhaste todos os ossos?

- Meu irmão, fiz o melhor que pude! - respondeu Folgazão.

- Bem, por esta vez ainda te vou tirar de apuros. Mas lembra-te disto: se tentares outra vez fazer milagres, as coisas te correrão mal. Também não penses em exigir ou aceitar qualquer recompensa do rei.

São Pedro dispôs os ossos na sua ordem natural e disse três vezes:

- Em nome da Santíssima Trindade levanta-te, ó morta!

A princesa levantou-se tão sadia e formosa como antes. Em seguida, o apóstolo tornou a sair pela janela, como havia entrado. Folgazão estava bem satisfeito por lhe ter corrido tudo bem, mas não se conformava em não receber nada: "Gostaria de saber o que se passa na sua cachola! - pensava consigo mesmo - O que ele dá com a mão direita tira com a esquerda. Não vejo bom senso nisso!"

Mas, indiretamente, por meio de alusões hábeis arranjou-se de modo a fazer com que o rei mandasse encher- lhe a mochila de ouro, depois foi-se embora.

Quando ia saindo, encontrou São Pedro na porta da cidade, que lhe disse:

- Vês, que espécie do homem tu és! Não te ordenei que não exigisses e não aceitasses nada? E eis-te com a mochila cheia de ouro!

- Que culpa tenho eu, - respondeu Folgazão - se me põem dentro à força?

- Previno-te que não tentes meter-te nessas coisas pela segunda vez, senão pobre de ti!

- Olá, irmão, não tenhas receio! Agora já tenho o ouro, para que hei de amolar-me a lavar ossos de defunto?

- Sim, sim! - disse São Pedro - O ouro não vai durar muito! Mas, para que não tornes a invadir searas alheias, darei à tua mochila uma virtude. Tudo quanto desejares ter, tê-lo-ás. Adeus, não me verás nunca mais.

- Adeus! disse Folgazão, enquanto pensava: "Estou contente que se vá esse tipo original! Naturalmente não te correrei atrás!" E nem sequer voltou a pensar no poder maravilhoso da mochila.

Foi andando de um lado para outro, perambulando e esbanjando alegremente o dinheiro como fizera da outra vez. Quando lhe restaram apenas quatro vinténs, passou por uma hospedaria e pensou: ''Livremo-nos deste dinheiro!" E mandou que lhe servissem três vinténs de vinho e um vintém de pão.

Estava lá sentado a beber e nisso chegou-lhe ao nariz um delicioso cheiro de pato assado. Olha para cá, olha para lá, viu que o hospedeiro tinha dois belos patos no forno. De repente, lembrou-se do que o seu camarada lhe dissera: que a mochila tinha a virtude de atrair para dentro dela tudo quanto ele desejasse. "Experimentemos com os patos!" E, saindo fora da hospedaria, disse:

- Quero na minha mochila os dois patos assados que estão no forno.

Acabou de dizer isso e desafivelou a mochila, e dentro dela viu os dois patos assados.

- Ah, assim está certo. - disse - Agora estou feito na vida.

Foi para o campo e lá tirou os patos para comer. Estava-os saboreando com grande prazer quando se aproximaram dois operários e ficaram a olhar cobiçosamente o pato, que ainda não fora cortado. O amigo Folgazão pensou: "Um chega bem para ti." Então chamou os dois operários.

- Vinde, meus amigos, aqui tendes este pato, comei-o à minha saúde.

Os operários agradeceram, dirigiram-se à hospedaria, pediram uma garrafa de vinho o um pão, depois desembrulharam o pato e puseram-se a comer. A hospedeira, que estava olhando para eles, disse ao marido:

- Esses dois operários estão comendo pato assado. Dá uma olhadela para ver se não é um dos nossos que estavam dentro do forno!

O hospedeiro foi depressa e viu que o forno estava vazio.

- Ah, raça de ladrões! Quereis comer patos à custa dos outros! Aqui o dinheiro, vamos, senão vos dou uma lavada com a vara de marmelo!

Os pobres responderam:

- Nós não somos ladrões; foi um soldado aposentado quem nos presenteou com esse pato. Ei-lo, lá fora no campo!

- Não me venham com histórias. O soldado esteve aqui mas saiu como qualquer homem honesto, eu reparei nele. Vós é que sois os ladrões, portanto deveis pagar-me.

Mas como não podiam pagar, o hospedeiro tocou-os para fora a pauladas.

Folgazão continuou o caminho e chegou a um lugar onde havia um magnífico castelo e, não muito longe, uma péssima hospedaria. Entrou e pediu um canto para dormir, o hospedeiro desculpou-se dizendo:

- Não há mais lugar, a hospedaria está toda cheia de hóspedes importantes.

- Admira-me que tais hóspedes venham para aqui em vez de irem para aquele esplêndido castelo!

- Realmente, - disse o hospedeiro - mas ninguém se arrisca a ir ao castelo, todos os que o tentaram, não saíram com vida de lá.

- Bem, - disse Folgazão - se outros tentaram a aventura, eu também quero tentar.

- Deixai disso! - replicou o hospedeiro - Arriscai a vida.

- Não será a primeira vez! - respondeu Folgazão. - Dai-me a chave e bastante de que comer e beber.

O hospedeiro entregou-lhe a chave e bastante comida e bebida. Folgazão dirigiu-se ao castelo, ceou alegremente e, quando ficou com sono, deitou-se no chão, pois não havia nem mesmo uma cama. Adormeceu logo, mas durante a noite foi despertado por um ruído infernal, e quando abriu os olhos viu na sua frente nove demônios que, fazendo uma roda, dançavam em volta dele. Então disse:

- Pulai quanto quiserdes, contanto que ninguém se aproxime de mim.

Os diabos, porém, aproximavam-se cada vez mais e com os pés horríveis quase lhe pisavam no rosto.

- Calma, calma, espíritos diabólicos! - disse Folgazão.

Mas os demônios comportavam-se cada vez pior. Então o amigo Folgazão zangou-se e gritou:

- Esperem, que vou acalmar-vos já!

Agarrou uma cadeira pelos pés e pôs-se a desancá-los. Mas nove demônios contra um soldado eram demais; quando ele malhava os que lhe estavam na frente, os outros que estavam atrás puxaram-no pelos cabelos e o arrastaram medonhamente pelo chão.

- Canalhas, diabos imundos. - gritou ele - Isso já é demais! Vamos, saltem todos para dentro da minha mochila.

Num abrir e fechar de olhos saltaram todos para dentro da mochila e ele, mais que depressa, afivelou-a bem e atirou-a para um canto. Fez-se logo profundo silêncio e Folgazão deitou-se novamente e dormiu até bem tarde. Então chegaram o hospedeiro e o fidalgo a quem pertencia o castelo a fim de saber o que havia acontecido. Vendo-o muito alegre e bem disposto, ficaram todos admirados e perguntaram:

- Como, os fantasmas não te fizeram nada?

- Que esperança! - respondeu Folgazão. - Prendi os nove na minha mochila. Podeis voltar tranquilamente para o vosso castelo. De hoje em diante não haverão mais fantasmas!

O fidalgo agradeceu muito, recompensou-o ricamente e pediu-lhe que ficasse ao seu serviço. Seria bem tratado e cuidado pelo resto da vida.

- Não! - disse Folgazão - estou muito habituado a correr mundo, prefiro continuar o meu caminho.

Despediu-se de todos e foi-se embora. Entrou numa forja, pôs a mochila sobre a bigorna e mandou o ferreiro e seus ajudantes malharem com toda força em cima dela. Os homens malharam com todo o gosto, fazendo cair seus enormes malhos sobre os demônios que urravam espantosamente. Quando Folgazão abriu a mochila, oito deles faziam mortos; o nono, porém, que se havia abrigado nas dobras do couro, estava vivo e saltou para fora, fugindo como um raio para o inferno.

Folgazão perambulou ainda muito tempo e teve tantas aventuras que seria longo demais contar. Por fim, ficou velho e pensou na morte. Então foi ter com um eremita, conhecido por todos como um santo varão, e lhe disse:

- Estou cansado de correr mundo. Agora quero cuidar de entrar no Reino do Céu.

O eremita respondeu-lhe:

- Meu filho, há dois caminhos: um é largo e agradável e conduz ao inferno; o outro é estreito e árduo, esse conduz ao paraíso.

"Bem louco seria se escolhesse o caminho estreito e áspero," - disse consigo mesmo o amigo Folgazão; e encaminhou-se pelo mais largo e agradável e assim foi ter a uma grande porta escura, que era a do Inferno. Bateu, e o porteiro foi ver quem era. Mas, dando com a cara do amigo Folgazão, assustou-se, pois era o nono diabo, aquele que conseguira escapar com alguns ferimentos das marteladas do ferreiro. Portanto, ao vê-lo aí, o dono da mochila, o diabo mais que depressa aferrolhou a porta e foi correndo dizer ao chefe:

- Aí fora está um sujeito que traz uma mochila nas costas e deseja entrar aqui. Por favor, não o deixeis entrar, senão ele obrigará todo o inferno a meter-se dentro daquela mochila. Estive uma vez lá dentro e ele mandou malhar terrivelmente, quase me matando.

Diante disso, os demônios disseram de dentro a Folgazão que se fosse embora. Ali ele não podia entrar.

"Se não me querem aqui, - resmungou ele, - irei ver se me aceitam no paraíso; em alguma parte tenho de me abrigar!"

Portanto, voltou para trás e andou, andou, até chegar à porta do paraíso. Lá bateu. O porteiro nesse dia era São Pedro; Folgazão logo o reconheceu e pensou: "Aqui pelo menos encontro um velho amigo, certamente terei mais sorte." Mas São Pedro foi dizendo:

- Suponho que desejas entrar no paraíso!

- Deixa-me entrar, meu irmão, pois tenho que alojar-me em algum lugar. Se me tivessem aceitado no Inferno, não viria amolar-te aqui.

- Não! - disse São Pedro - Tu não podes entrar.

- Então, se não queres deixar-me entrar, toma a mochila. Não quero nada de ti!

- Está bem, dá aqui! - respondeu São Pedro.

Folgazão fez passar a mochila através das grades, São Pedro pegou-a e pendurou-a perto da sua cadeira. Então o amigo Folgazão disse:

- Desejo entrar dentro da mochila.

E num relâmpago, lá estava. Assim entrou no paraíso e São Pedro não teve outra solução senão ficar com ele.

Fonte:
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819.

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa) Bairro de Campo de Ourique


Em Campo de Ourique já quase ninguém se recorda dos velhos moinhos e do pão que se distribuía pela cidade. Agora, apesar de cosmopolita, o bairro não abdica das suas avenidas frondosas e do Jardim da Parada.

O bairro que fornecia farinha e pão à grande cidade. Campo de Ourique era terra de moinhos e padeiros. Uma espécie de Campolide onde o trigo imperava. Está, essencialmente, dividido em duas zonas distintas: uma mais ligada a Santa Isabel, a outra chegada ao Santo Condestável. A primeira, a mais antiga, desenvolve-se a partir de 1755, ano do grande terremoto. Depois da catástrofe, a população concentrava-se nos locais menos atingidos. A segunda, tinha uma aparência moderna. Substituiu os olivais e as quintas que ali existiam. Apresentava traçados geométricos que remontam ao século XVll e às primeiras décadas dos anos 90.

A Arte Nova, corrente artística que se enraizou nas tendências criativas dos artistas do século XlX, deixou vestígios um pouco por todo o bairro. Já na segunda metade do século XlX, o bairro sentiu necessidade de projetar novas ruas. A razão foi a construção do Cemitério do Prazeres. Campo de Ourique passou a ser conhecido por “Bairro Latino”. A designação deve-se aos inúmeros e talentosos artistas que ali residiam. Vivia-se um ambiente de boêmia e intelectualidade.

Escritores, artistas e estudantes, completavam o cenário nos cafés e cervejarias da zona. Entre eles, Fernando Pessoa. A casa do artista é hoje um centro de cultura. Campo de Ourique passa a ser apelidada de liberal e republicana. O primeiro título justifica-se pela quantidade de ruas que homenageiam personagens do liberalismo, como sejam, Ferreira Borges ou Almeida e Sousa. O segundo, pela presença dos conspiradores de 1910, algures entre quatro paredes da Rua Saraiva de Carvalho.

A Sociedade Filarmônica Alunos de Apolo surge da união entre cabos de polícia e civis a 26 de Maio de 1872. O projeto inicial dos Cabos de Segurança Pública da Freguesia de Santa Isabel pretendia formar uma banda filarmônica. Tinha a intenção de chamar-lhe “União e Capricho”. Depois aceitaram a ajuda de alguns membros da população, e concluíram que esta nova estrutura não poderia funcionar, tal era a divergência de opiniões entre os dois grupos. A “União e Capricho” acabou por desaparecer e assim surgiu a SFAA – Sociedade Filarmônica Alunos de Apolo. Atualmente, a principal dinâmica do grupo são as danças de salão, que criou polos da modalidade no Porto, Santarém e Setúbal, formalizando a Federação Portuguesa de Dança Desportiva.
 
MARCHA DE CAMPO DE OURIQUE
(Alfacinha)

Letra de Constantino Menino
Música de Mário Gualdino


A marcha cá vai
Alegre contente
Por esta Lisboa ao luar
E Lisboa sai
Feliz sorridente
Pra ver a marcha passar.
É Campo de Ourique
Meu bairro aqui vai
Calados; não fiquem não
Venham para a rua
A noite está bela
Venham ver Lisboa
E cantem com ela.
(Refrão)

A marcha que passa
É Campo de Ourique
Com arte e com graça
Cá vai no despique
A canção qu’entoa
É alma é vida
Da nossa Lisboa
É minha é tua
Pois anda cantar
Olha como a lua
Está, hoje a brilhar
Vai lá meu bairro
Pra Rainha Santa
Te abençoar.

A noite é de festa
Por Santo Antoninho
Devoto e casamenteiro
Lisboa modesta
Enfeita o arquivo
E marcha com ar brejeiro
É Campo de Ourique
Meu bairro é pessoa
Na forma mais popular
Olhem que o meu bairro
É bem alfacinha
Reza a Santo António
E à Santa Rainha.
(Refrão) “


Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

domingo, 20 de novembro de 2022

Vanice Zimerman (Tela de Versos) 9: Feliz Halloween

 

Eduardo Affonso (Direito e Avesso)

O universo não se dividia, então, em luzes e sombras ou entre o Bem e o Mal, mas nos domínios do masculino e do feminino, representados pela máquina de escrever e a máquina de costura.

A primeira comandava o escritório do meu pai; a segunda, o quarto da minha mãe. Uma cercada de livros e silêncio; outra, de retalhos coloridos, música e risos.

Escrever, com os indicadores catando milho nas teclas da Remington, exigia concentração – ali, no âmbito das leis, não éramos bem-vindos. Nosso lugar era no chão, de tesoura da mão, recortando figuras das revistas de moda, aos pés da Singer.

Cada um desses mundos tinha seu vocabulário próprio, seu dialeto. Cerzir e sursis, corpetes e habeas corpus, evasês e evasões – palavras que se aproximavam, sem jamais se tocar.

Junto ao pedal da máquina de costura, imperava aquilo que mais tarde soube chamar-se francês: godê, plissê, cotelê, croqui. Nos raros momentos sob a escrivaninha, prevalecia o que desde sempre se chamou latim: animus, caput, data vênia, de cujus, pari passu, causa mortis, sine die.

Havia uma palpável hierarquia entre a matéria – o pano, a pence, o pesponto – e o espírito. Entre o braçal da carretilha, da agulha e do dedal, e o reino da autoridade intelectual, da retórica, da persuasão.

Essa divisão era ancestral: minha avó regia a roupa no varal, a labuta na cozinha, e meu avô, as conversas no salão, a posse do dicionário, as palavras cruzadas no jornal.

Um desses espaços era mais sentimental e mais lúdico: o do soutache, do ilhós, da passamanaria. Do cós, do viés, da sianinha, da lapela, do vivo, do gavião. Das revistas coloridas (o outro mundo não tinha figuras). Da tesoura que fazia ziguezague – da própria palavra ziguezague.

O outro mundo não oferecia grandes diversões além do perfurador, com o qual se podia fazer confete: não era permitido tocar a caneta-tinteiro, a carimbeira, o mata-borrão.

O mundo do papel manilha era melhor que o do papel almaço. A Burda, mais agradável de folhear que qualquer processo.

O quarto de costura era nosso quintal; o escritório, a sala de visita. Este, o território do não; aquele, o do sim. Um, o dos livros fora do alcance, na estante – o outro, o de sentar no chão, entre cortes de cambraia, retalhos de feltro, amostras de cetim.

Apesar de estar lá a cultura, de lá ficarem as letras, foi no lado de cá que se deu a descoberta de que cada palavra tem sua textura, seu caimento.

Assim o morim, a chita e o riscado, tão distantes da organza, do tafetá, do organdi – não só ao tato, mas também ao ouvido. Assim o linho e a flanela (ele, ríspido; ela, suave), o impecável poliéster e o suscetível algodão.

O mundo do Direito e o do avesso, o das Cortes e o da costura, o das Leis e o das linhas acabaram por se coser num só, este em que se pode chulear as frases, rematar sentenças e nelas ir alinhavando ideias e pregando as palavras como quem prega botão.
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 (publicado originalmente em 11 de abril de 2018)

Raul de Leoni (Antologia Poética) 2


FORÇA MALDITA


Eras fraco e feliz, sem meditar,
E na tua consciência vaga e obscura,
A vida, sob um olhar de iluminura,
Era um conto de fadas para o olhar.

Um dia, um rude e pérfido avatar
Vestiu-se de uma força ingrata e impura
E sonhaste a ciclópica aventura
De o espírito das coisas penetrar.

Mas, ah! homem ingênuo, desde quando
Deste o primeiro passo da escalada,
Foste, como um tristíssimo Sansão,

Na fúria da tua obra desgraçada,
Estremecendo, aluindo, derrubando
As colunas do Templo da Ilusão!…
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IMAGINAÇÃO

Scherazade do espírito, que rendas
Num fio ideal de verossimilhança
O Símbolo e a Ilusão, únicas prendas
Que nos vieram dos deuses como herança!

Transformando em alhambras nossas tendas,
Na tua voz, o nosso olhar alcança
As Mil e uma Noites de Esperança
E a esfera azul dos sonhos e das lendas!

Quando o despeito da Realidade
Nos fere, és quem de novo nos persuade,
Com teu consolo que nem sempre engana.

Porque, na tua esplêndida eloquência,
És o sexto sentido da Existência
E a memória divina da alma humana!
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INSTINTO

Glória ao Instinto, a lógica fatal
Das coisas, lei eterna da criação,
Mais sábia que o ascetismo de Pascal,
Mais bela do que sonho de Platão

Pura sabedoria natural
Que move os seres pelo coração,
Dentro da formidável ilusão,
Da fantasmagoria universal!

És a minha verdade, e a ti, entrego,
Ao teu sereno fatalismo cego
A minha linda e trágica inocência!

Ó soberano intérprete de tudo,
Invencível Édipo, eterno e mudo
De todas as esfinges da Existência!…
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PARA A VERTIGEM!

Alma, em teu delirante desalinho,
Crês que te moves espontaneamente,
Quando és na Vida um simples rodamoinho,
Formado dos encontros da torrente!

Moves-te porque ficas no caminho
Por onde as coisas passam, diariamente:
Não é o moinho que anda, é a água corrente
Que faz, passando, circular o Moinho...

Por isso, deves sempre conservar-te
Nas confluências do Mundo errante e vário,
Entre forças que vêm de toda parte.

Do contrário, serás, no isolamento,
A espiral, cujo giro imaginário
É apenas a Ilusão do Movimento!…
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VIVENDO

Nós, incautos e efêmeros passantes,
Vaidosas sombras desorientadas,
Sem mesmo olhar o rumo das passadas,
- Vamos andando para fins distantes...

Então, sutis, envolvem -nos ciladas
De pequenos acasos inconstantes,
Que vão desviando, a todos os instantes,
A linha leviana das estradas...

Um dia, todo o fim a que chegamos,
Vem de um nada fortuito, entristecido
Nas surpresas das horas em que vamos...

Para adiante! Ó ingênuos peregrinos!
Foi sempre por um passo distraído
Que começaram todos os destinos...

Fonte:
LEONI, Raul de. Luz mediterrânea. São Paulo: Livraria Martins, 1959

Volnei Zerbielli (Rota 66)


A oficina ROTA 66 não era apenas conhecida pela analogia, pelo menos daqueles que liam o letreiro pendurado na entrada, à famosíssima interestadual norte americana, mas pela excelente qualidade dos serviços que lá se realizavam, inclusive nos estrangeiros, pelos irmãos Meia-Roda e Meia-Boca.

Nessa oficina, assim como na famosa estrada, passavam por ali belíssimas máquinas, tanto as mais antigas que levam qualquer um a voltar no tempo do início da era do automóvel, nos remetendo a uma belíssima nostalgia, como as mais modernas, que fazem qualquer criança de 12 anos se tornarem um campeão das pistas. Tamanha a facilidade de se guiar um carro desses cheios de tecnologia.

Sabendo desses quesitos o Sr. Stewart, grande corredor da década de 60, levara a sua Masserati 1967 para que fosse acariciada pelos irmãos. Ela estava precisando de uma afinação, aquele motor V6, na gíria dos mecânicos, estava meio quadrado, dava um vácuo na aceleração, algo estava falhando.

Resolvido o problema o Sr. Stewart foi dar uma volta, experimentar para ver como ficou o seu brinquedo. Ficou boquiaberto. Nunca tinha corrido tanto de carro em sua vida, mesmo nas pistas, como ele correu naquela voltinha de ida e volta até o pedágio de Osório. Os 260 cavalos de potência do motor empurraram aquela belezinha à 285km/h. Como dizem os aficionados, literalmente trancou os ponteiros.

Voltou à oficina e disse aos rapazes, que eles eram loucos, perguntou o que fizeram no carro, pois tinha ficado um espetáculo. Pagou a conta com muito gosto, até queria dar mais uma gorjeta, mas os rapazes recusaram dizendo-lhe que a melhor gorjeta que eles poderiam receber era a inteira satisfação dos seus clientes. Ouvindo isso o Sr. Stewart disse que traria muitos amigos ali, e foi o que fez.

O Sr. Ferrari, aconselhado pelo seu amigo Stewart, levou até a oficina ROTA 66 o seu Buick 1958. Comentando com os rapazes que achou muito interessante o nome que deram para a oficina, disse que lá nos Estados Unidos, onde andou de Buick pela primeira vez, foi numa estrada chamada de ROUTE 66. Essa estrada é uma interestadual muito famosa por lá que atravessa o país de um lado a outro com os seus 3755 km, que seria o mesmo que ir de Porto Alegre até Aracajú.

Mas o Sr. Ferrari ficou espantado quando soube que os rapazes não conheciam e muito menos tinham ouvido falar nessa tal estrada. Intrigado, perguntou então como surgiu, para eles, o nome ROTA 66. E foi quando obteve a resposta.

Reparadores Obstinados Tarados por Automóveis Meia-Roda e Meia-Boca.

sábado, 19 de novembro de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 18

 

Nilto Maciel (Conselho de Luís XVIII)


Durante muito tempo Carlos Prado se considerou desenhista de primeira grandeza. Também muita gente o considerava assim.

Desde menino garatujava, desenhava, pintava. Criança-prodígio, diziam seus pais e parentes. Seria um Michelangelo. Pena ser brasileiro.

Fez-se homem. E, para sorte sua, chegou ao Brasil a Missão Artística Francesa. Com ela, Charles Pradier. Correu ao encontro do artista famoso. Conheceu-o. Viu seus desenhos brasileiros. Sobretudo os de D. João VI. Tudo lhe parecia magnífico. A corte portuguesa parecia a francesa. Magnifique! Elogiava todos os quadros do visitante. Sempre em francês. “Ah! que vous êtes génial!” E não largou mais o francês. Até decorou frases inteiras de Chateaubriand: “Une heure après le concher du soleil, la lune se montra au-dessus des arbres à l’horizon opposé”*. E também de Ronsard, Rabelais, Corneille, Racine, Molière, la Fontaine, Montesquieu, Voltaire, Rousseau, Diderot, e muitos outros. Quase morreu de tanto ler. Quase trocou o desenho pela literatura. E se se tornasse poeta? Sim, por que não escrever versos? Em francês, naturalmente. Tentou. Quis imitar André Chénier. Desistiu logo. Seu destino era mesmo o desenho.

A seguir, viajou à Europa. No rastro do suíço. Ah se pudesse hospedar-se na casa dele! Porém Charles nem deu ouvidos a Carlos. De qualquer modo, encontrava-se no Velho Mundo. No melhor dos mundos. Logo ficaria célebre e rico. Seu nome na boca dos reis. E, se tudo se desse como imaginava, logo arranjaria uma francesinha. Casaria na Sainte-Chapelle, na St.-Germain-l’Auxerrois, na Notre-Dame. Se tivesse mais sorte, com uma princesa. E nunca mais veria o Brasil, terra de índios e negros. Sim, nada de morrer no Brasil, obscuro e pobre. Queria seu lugar na galeria dos grandes pintores. Precisava retratar reis, rainhas, princesas. Seria famoso. Mais que Pradier e Debret.

Em Paris conheceu outros pintores e desenhistas. E também condes e condessas, duques e duquesas. O melhor da corte de Luís XVIII. Já falava francês como qualquer parisiense. E até pensou mudar de nome: Charles Pré. Aconselharam-no a mudar de ideia. O nome não agradava.

Na verdade, Carlos Prado queria mesmo conhecer Luís XVIII. E retratá-lo. Houve espanto. O rei nem sequer o receberia. Ele insistia, insistia. Procurava condes, cardeais, madames. Uns riam, outros não o viam. Talvez fosse maluco. Enfim lhe trouxeram a resposta do monarca. Resposta ingrata e desairosa: A França não precisava de desenhistas brasileiros. Fosse desenhar o rei do Brasil. Se é que lá havia rei. Ou se é que o Brasil existia mesmo.

Desiludido, ou mais iludido ainda, voltou à Pátria. E procurou seguir o conselho de Luís XVIII. Depois de muitas idas e vindas, conseguiu ver o rei. Extasiou-se. Finalmente diante de um rei. Embora brasileiro e português. Nesse dia adoeceu, teve insônia, embriagou-se. Tudo em vão. Pois o retrato que fez do rei quase o levou à prisão. D. João indignou-se. Aquilo não era arte. Aquela garatuja não valia nada. Um desaforo! Rei com cara de plebeu. Não, não parecia um rei. Aliás, aquilo não era retrato. Aquele idiota não desenhava nada.
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*Uma hora depois do pôr do sol, a lua surgiu acima das árvores no horizonte oposto.

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.

Caldeirão Poético LVI


Carlos Gildemar Pontes

Cajazeiras/PB

NA LUZ DA TUA IMAGEM


Quando em pensamento vivo
uma confusão ao certo,
se sou do teu sol cativo
ou do teu luar deserto.

Fez-se um desejo infinito
que até ao mar revolta,
mesmo velejando aflito
todo coração se solta.

Em toda vontade canto
mesmo que me choque a alma
se do amor sou oriundo,

vou te alentar com o manto
para embalar a calma
do meu sonho mais profundo.
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Manoel Virgílio
Rio de Janeiro/RJ

NADA


Difícil, nesta vida, o fazer nada!
O nada é um vazio; não se acaba.
Um nada que, sem cores, transparente,
é nulo e faz vazia a vida da gente.

Difícil programar não fazer nada!
Calar e não pensar, é dura saga.
Não sonhar, não querer, não desejar,
no nada se acabar; nada criar.

Viver sem nada ter, sem nada crer!
Sem crer a nossa vida já é nada,
um nada que, sem fé, em nada brada.

Negar a criatura, o próprio ser;
negar o criador, por vezes cada,
será negar razão, ao próprio nada!
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Nilze Costa e Silva
Natal/RN

NAVEGANDO

A Nave de Prata por trás da vidraça
Amanhece palavras, entardece ternura
Conduz seus versos com tanta candura
Anoitece nuvem no céu que se esgarça.

A Nave de Rubi por trás das canções
Procura caminhos por navegar
Singrando poemas em pleno mar
Transforma seus versos em orações.

O terno poeta, agora distante
Navega em nós pelo pensamento
E pela lembrança sempre constante

Deixando mais belo seu sonho lídimo
Foi poetar lá no firmamento
O imenso poeta Horácio Dídimo
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Paulo Roberto Coelho Ximenes
Fortaleza/CE

MAGIA NO MUNDAÚ

À noitinha, na praia, a lua brilhou
leiteando os contornos alquebrados
até a salsugem se quedou ao prateado
uma gaivota ia passando... E voltou.

Um artista se enamorou do violão
o coqueiro chamou o vento pra dançar
o sol nem tinha mais hora pra chegar,
a caipirinha empederniu a ilusão.

Do nada... uma sereia enfeitiçada!
Seu tênue rasto na areia se moldou
(no blues o devaneio se propaga).

A poesia no Mundaú se alastrou.
O poeta assistiu a tudo. Disse nada.
Mesmo assim, a lua brilhou!
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Vicente Vieira
Fortaleza/CE

LOUCO POETA

Sabemos que todo poeta é louco
Mas que nem todo louco é poeta
O primeiro se nota pouco a pouco
O segundo só estando bem alerta.

Como o poeta busca a fuga do real
E o louco dela sempre se locupleta
Não sei se para o bem ou para o mal
A semelhança dos dois: quase completa.

Há no entanto uma certa desavença
Pois o poeta incorpora sempre o belo
E o louco não adota nenhuma crença

É bem possível então notar a diferença
Ao tentar se estabelecer um paralelo:
A sensibilidade do poeta é sempre intensa.

Fonte:
Luciano Dídimo (org.). 100 sonetos de 100 poetas. Fortaleza/CE: Expressão Gráfica e Ed., 2019.

George Abrão (A minha igreja)


- Sua igreja, George?

- Sim, minha! E eu explico o porquê:

Desde a minha mais tenra infância, ou melhor, desde que nasci ela já era minha, pois lá fui batizado; depois, aos meus sete anos, nela fiz a minha Primeira Eucaristia; e mais tarde, o meu Crisma.

E durante todo esse tempo da minha infância e pré-adolescência a frequentei, nela vivi a minha religião. E ela chamava-se Igreja Matriz do Senhor Bom Jesus da Pedra Fria, desde o ano de 1822, até que, na Festa de Agosto do ano de 1958, no dia 08, por razões que aqui não valem ser mencionadas, a minha querida igreja foi fechada por período indeterminado, ficando proibida a realização de cerimônias religiosas oficiais do templo, tornando-se assim o mesmo um imóvel comum, pois a Matriz foi transferida para a Igreja São Francisco de Assis, na Cidade Baixa de Jaguariaíva. Então, todo o povo residente na Cidade Alta sentiu-se órfão, sem o seu ponto de referência e de encontro durante as novenas e as missas diárias e dominicais.

Mas, iluminado pelo Espírito Santo, um grupo de moradores, liderados pelo Sr Iraceu Pedroso (Zico da Caixa), que era auxiliado por sua esposa, dona Maria, por Santinha Bussi, por Eni Faria, pelas freiras do Colégio Bom Jesus, demais pessoas da vizinhança e muitos devotos de várias partes da cidade Alta, resolveu continuar com a reza de terços diários, todo início de noite, suprindo assim um pouco da falta de cerimônias religiosas dos moradores.

Lembro-me que para lá me dirigia sempre, no horário dos terços para, junto com meus primos e outros amigos auxiliarmos na reza.

Só que, como todo o sofrimento um dia acaba, passados alguns anos, a Igreja do Senhor Bom Jesus da Pedra Fria ganhou o status de Santuário do Senhor Bom Jesus da Pedra Fria, que conserva até hoje.

Então, a igreja é minha, pois vivi parte de minha vida nela, a amo e a revejo sempre em minhas lembranças e nos meus sonhos e, a cada vez que vou à minha terra natal, dirijo-me até ela onde faço minhas orações e choro a minha saudade.

Fonte:
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.
Ebook enviado pelo autor.

4 Concursos de Trovas com Inscrições Abertas


CONCURSO DE TROVAS DE TAUBATÉ
Prazo: 30 de novembro de 2022

NACIONAL / INTERNACIONAL
(Trovadores do Brasil e do mundo, exceto Estado de São Paulo):

Veteranos e Novos Trovadores
Tema: Livro (L/F)
Máximo de 02 trovas

Estadual (Trovadores do Estado de São Paulo, exceto Taubaté)     
Tema: Progresso (L/F)
Máximo de 02 trovas

Municipal (Trovadores de Taubaté):  
Tema: Prece (L/F)
Máximo de 02 trovas

HUMORÍSTICA (Todos os trovadores independente de categoria):  
Tema: SOGRO (no masculino mesmo)
Máximo de 02 trovas

Trovadores Mestres (título outorgado pela UBT Taubaté desde 2015)
Tema: Porvir (L/F)
Máximo de 02 trovas

- Valem palavras derivadas, cognatas e mesmo somente a ideia do tema contida na trova; a trova deve ser inédita, escrita em língua portuguesa e de autoria própria;

- É obrigatório que o Novo Trovador indique essa condição (no corpo do e-mail);

Envio por email:

Fiel Depositário - Raul Filho

ubttaubateconc@gmail.com

Ao enviar por e-mail: No campo Assunto colocar: Concurso de Trovas de Taubaté 2022;

- No corpo do e-mail são dados obrigatórios: o tema a que concorre, a trova, a condição junto a UBT Nacional caso seja Novo Trovador e a identificação (nome, cidade/estado/país, telefone/whatsApp e e-mail);
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CONCURSO DE TROVAS DE NATAL/RN
Prazo: 30 de novembro de 2022

NACIONAL/INTERNACIONAL E ESTADUAL
Estação(ões) (L/F):
1 (uma) Trova.

NACIONAL/INTERNACIONAL E ESTADUAL
Deslize(s) (Humor)
1 (uma) Trova.

A palavra tema deverá constar na Trova.

COMO ENVIAR:

No âmbito nacional/internacional, deverá haver menção à categoria (veterano ou novo trovador);

Enviar a identificação com nome, endereço, telefone e e-mail (se possuir);

ÂMBITO NACIONAL / INTERNACIONAL

 Por e-mail:
(Magnus Kelly)

magnuskelly@yahoo.com.br

ÂMBITO ESTADUAL
(Jerson Brito)

jersonbrito.pvh@gmail.com
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I CONCURSO DE TROVAS DA UBT- NOSSA SRA. APARECIDA/SE
Prazo: 31 de Dezembro de 2022.

NACIONAL/INTERNACIONAL
Veteranos: Roça (L/F)
01 trova inédita por concorrente

Novo Trovador: Sertão (L/F)
01 trova inédita por concorrente

Humor (todos os trovadores independentes da categoria): Chapéu (H)
01 trova inédita por concorrente

– É obrigatório constar a palavra tema na trova;

– Acima da trova o autor deve colocar a categoria na qual está concorrendo.

Enviar por e-mail:

ubtaparecida2021@gmail.com,

fiel depositário Ademarcos Dantas Santana.
 
– No mesmo corpo do e-mail com as trovas, deverá constar o endereço completo do Trovador (sem anexo).

CLASSIFICAÇÃO:

a) Veteranos:

5 Vencedores [1º ao 5º]
5 menções honrosas [6º ao 10º]
5 menções especiais [11º ao 15º].

b) Novos trovadores:
5 vencedoras [1º ao 5º]
5 menções honrosas [6º ao 10º]

c) Trovas humorísticas:
5 vencedoras [1º ao 5º]
5 menções honrosas [6º ao 10º]

– A premiação, composta de certificados, será enviada diretamente aos premiados via e-mail.
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I JOGOS FLORAIS DE IRATI/PR
Prazo: 28 de fevereiro de 2023.

ÂMBITOS ESTADUAL, NACIONAL/INTERNACIONAL

Trovas líricas ou filosóficas.

Veterano: (em todos os âmbitos)
tema: Pedra  
Máximo de 02 (duas) inéditas

Novo Trovador: (em todos os âmbitos)
tema: Rocha
Máximo de 02 (duas) inéditas

Humorística (em todos os âmbitos e categorias)
tema: Cascalho
Máximo de 02 (duas) inéditas

A palavra tema ou cognato devem obrigatoriamente constar do corpo da trova.

Modo de Envio:

Enviar no corpo do e-mail: as trovas, bem como, o tema, âmbito e a categoria pela qual concorre o trovador, bem como nome, endereço, telefones e e-mail. Não serão aceitos anexos.

Nacional/internacional

olgaagulhon@hotmail.com

Âmbito estadual

jersonbrito.pvh@gmail.com

A premiação acontecerá no dia 28 de julho de 2023, (sábado) às 15 horas, no Centro Cultural Clube do Comércio, em Irati (PR).

Serão concedidos Diplomas e medalhas aos classificados.

A premiação será enviada por correios para o premiado que não puder comparecer na data da premiação.
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sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Varal de Trovas n. 572

 

Aparecido Raimundo de Souza (Crotildo)


O CHULÉSIO RESOLVEU se desfazer do seu papagaio de estimação. Para ele, um ser exoticamente totêmico (1). Quase surreal. Claro, a separação se faria a contragosto, é verdade. Amava o bicho como um apaixonado que se encanta por uma jovem bela e formosa, extremamente gostosa a ponto de despertar paixões avassaladoramente pecaminosas. Na linha dos quarenta, precisava de grana para cobrir despesas urgentes e não tinha nada de valor que pudesse colocar à venda. Lembrou do Crotildo. Havia achado o coitadinho fazia tempos, em meio de um depósito de lixo, próximo a sua antiga moradia, quando ainda o louro se constituía num bebezinho dependendo de carinhos e cuidados.

Bleso (2) de nascença, Chulésio se via às voltas com certas dificuldades para se comunicar com as pessoas. Por conta da sua foniatria (3), ficava nervoso, perdia o bom senso e a lógica do raciocínio. Nessas ocasiões, levado pela alteração verbal, se sentia demolido, arrasado na segurança com a convivência entre seus próprios consanguíneos, totalmente desmantelado e claro, esfacelando os neurônios e confundindo tudo dentro da sua cabeça. Sem saída, preparou o Crotildo, para colocá-lo em exposição, à porta de casa. Morava num bairro próximo ao centro com a mulher e dois filhos numa edificação de alvenaria, herança do pai, onde um quintal enorme permitia que seus trabalhos de carroceiro fossem de vento em popa.

Entretanto, com a chegada da pandemia, os serviços caíram à zero. Viraram, da noite paro o dia, gatos pingados, até que cessaram de vez. E não só isso: o prefeito baixou por conta da Covid-19, uma ordem que proibia os donos de carroças colocarem seus animais para puxarem coisas que uma pessoa comum e normal não levaria à termo. Em razão disso, seus dois cavalos deixaram de contribuir cotidianamente para o aumento da renda, aumento esse que vinha exatamente das tranqueiras e quinquilharias as mais diversas que carregava de manhã à noite, além da entrega para um comércio de materiais de construção como areia, sacos de cimento, botijões de gás, tijolos, enfim, até móveis e instrumentos musicais entravam no extenso rol.

De repente, as carroças ao sabor das longas esperas no espaço sem produzir coisa alguma, seguidas dos belos pangarés tomando ar fresco e comendo às custas do infeliz-patrão, sem produzir o essencial, Chulésio passou a comercializar objetos que carecia até para seu uso imediato e pessoal. Nessa leva foram lotes de lajotas e telhas coloniais para o beleléu (pretendia fazer um puxadinho nos fundos do terreno), móveis de sala e quarto que ganhava em doações. Até aparelhos eletrodomésticos, como geladeira (ele tinha duas), televisão, fogão (eram em número de quatro) guarda roupas e, de lambuja, um berço novinho em folha. Sem um quadro de melhoras, e ao escasso das coisas armazenadas, careceu de partir para o “valha me Deus, nossa Senhora”.

Em meio dessa confusão desordenada, teve que dançar, ou melhor, pular de cabeça se adequando no meio da miserenta da fome conforme a música que ela tocava em sua barriga. Ou isso ou a sua família passaria pelo imensurável da fome negra. Sem eira nem beira, jogou em troca de alguns cobres, o leito do casal com colchão que ganhara da mãe e, desde então, se viu dormindo com a esposa numa esteira, bem como os jiraus (4) dos filhos, em repeteco, uma garota de doze anos e um garoto de quinze. Sem mais nada rendoso, final de tudo, restou o papagaio. Seu querido e amoroso Crotildo. Vender o Crotildo, era como se um médico precisasse, num piscar de olhos, arrancar uma parte de seu corpo.

Sem opção, a alma inteira derramando o fel da tristeza, escreveu numa cartolina as palavras simples, destituídas da longevidade correta do português: “VENDU UGENTI O CROTILDU, MEO PAPAGÁO”. Nos primeiros dias, os vizinhos tentaram demovê-lo da ideia. Contudo, sem uma opção mais digna, não havia como voltar atrás. Por assim, logo que acordava, levava o papagaio para a frente da residência. Final da tarde, o recolhia. Os “passantes” que se faziam alheios às dificuldades do desditoso (fosse por morarem fora e cruzarem com a rua para um simples corte de caminho), paravam para indagarem o que o Aua (5) comia.

E o Chulésio aos acanhados das tartamelâncias (6), explicava:

— Eli... co... co... mi... de... de... tu... tu... do.  Se... men... se... men... tes... de... gi... gi... ras... sol... ar... rois... fei... fei... jãum... ma... ma... car... rãum...  pã... um... pu... pu... ro... ou... com... um... ca... ca... fé... fe... ba... ba... na... na... chu... pa... pa... man... ga... ga... gos... ta... de... ce...  ce... nou... ra...  e... ma... ma... çã...

Em face dessa fartura alimentar, as pessoas iam embora sem mostrarem o devido interesse em ter o Crotildo como novo membro engrossando o clã (7). Assim foi o mês todo. Nada. Quando menos se esperava, surgia um filho de Deus e o Chulésio repetia o menu com toda a sutileza que o seu tatibitate (8) permitia:                       

— Eli... co... co... mi... de... de... tu... tu... do.  Se... men... se... men... tes... de... gi... gi... ras... sol... ar... rois... fei... fei... jãum... ma... ma... car... rãum...  pã... um... pu... pu... ro... ou... com... um... ca... ca... fé... fe... ba... ba... na... na... chu... pa... pa... man... ga... ga... gos... ta... de... ce...  ce... nou... ra...  e... ma... ma... çã...

Dois meses e nenhum avanço propício à negociação do popular Amazona aestiva (9). Final do dia, Chulésio em decorrência do seu borboró (10), se via cansado e desgastado, aflito e angustiado por não conseguir se desfazer da sua “criaturinha verde”. Três meses e a situação se complicou. O redizer veemente e reiterado do que o Crotildo mandava para a barriguinha (amiudado dez, quinze, vezes ou mais), o inquietou. Por derradeiro, final do quarto mês de tentativas infrutíferas, o cidadão se emputeceu de vez. Quase noite, quando resgatava do poleiro o seu melhor amigo, um gaiato se achegou e mandou a pergunta. Chulésio, enraivecido, fora de si, não deixou por menos:
— Eli... co... co... mi... de... de... tu... tu... do.  Se... men... se... men... tes... de... gi... gi... ras... sol... ar... rois... fei... fei... jãum... ma... ma... car... rãum...  pã... um... pu... pu... ro... ou... com... um... ca... ca... fé... fe... ba... ba... na... na... chu... pa... pa... man... ga... ga... gos... ta... de... ce...  ce... nou... ra...  e... ma... ma... çã... e... ca... ca... em... em... tre... nóis... Cro... Cro... til... do... man... man... da... vo... vo... cê...  pla… pla… plan…tar… tar… ba… ba… ta… tas.  
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Notas de rodapé:
1 Totêmico – Conjunto de ideias e práticas baseadas na crença da existência de um parentesco místico entre seres humanos.
2 Bleso – Aquele que gagueja. Grosso modo, o que fala picotado ou aos saltos.
3 Foniatria – Parte da medicina que estuda os distúrbios e as afecções da voz.
4 Jiraus – Apoios ou estrados para colchões.
5 Aua – Uma das muitas espécies de papagaios. Outras podem ser encontradas, como os Chauás, as Arinárias, os da Nova-Zelândia, os de-Peito-roxo, os Charão, e os Moleiro, entre outros.
6 Tartamelâncias – Uma das muitas maneiras de grafar aqueles que tartamudeiam ou falam com certa dificuldade.  
7 Clã – Grupo de pessoas pertencentes a uma família unidas pela consanguinidade.
8 Tatibitate – Pessoa que se comunica com a voz defeituosa.  
9 Amazona aestiva – Outro nome do Papagaio-verdadeiro.
10 Borboró – Sujeito gago, ou que tem conturbações no ritmo da linguagem.


Fonte:
Texto e notas enviadas pelo autor.

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 43

 

Humberto de Campos (Manias)


Em um trabalho recente na "Edinburgh Review", o crítico inglês John Browing denuncia, a título de curiosidade, um certo número de manias de escritores nacionais, procurando, ao que parece, demonstrar a feição patológica de todos eles. Por esse trabalho de pesquisa, foi que eu vim a saber, com espanto, que Walter Scott dormia com o chapéu na cabeça, que Wordsworth almoçava arrepiando o pelo de um gato, que Goldsmith só trabalhava assobiando, que James Macpherson gostava de estrangular passarinhos, e que Poppe, não obstante as aparências de saúde perfeita não conciliava o sono senão quando o criado fazia barulho no quarto contíguo, batendo desesperadamente numa bacia.

Para o crítico de Edimburgo, essas originalidades constituem anomalias, aberrações, moléstias mentais interessantíssimas, patenteadas, segundo diz na obra literária que as suas vítimas produziram. Eu me permito, entretanto, o direito de contestar semelhante tese, baseando-me no exemplo de um homem perfeitamente sadio, como é, no caso, o coronel Evaristo de Souza Portela.

O coronel Evaristo Portela, grande fazendeiro em Minas, era um dos homens mais virtuosos produzidos, até hoje, pelo município de Uberaba. Chefe de família exemplaríssimo, não havia passado, jamais, uma noite fora de casa. Viagem que ele fizesse, ou realizava-a em companhia da sua digna esposa, a veneranda D. Geralda, mãe dos seus únicos catorze filhos, ou fazia-a tão curta que estava de volta, à noite, para dormir na fazenda.

A posse do Sr. Raul Soares no cargo do ministro da Marinha determinou, entretanto, uma profunda modificação na vida do conceituado fazendeiro. Compadre do ilustre político e correligionário que lhe levara à pia dois filhos, o coronel não podia, absolutamente, faltar à grave cerimônia do cais dos Mineiros; como cumprir, porém, esse dever de amizade, de cortesia, e de solidariedade política, se D. Geralda, sua companheira inseparável de dezesseis anos de sono no mesmo leito, não se podia abalar para uma viagem tão tentadora, mas, ao mesmo tempo, tão rica de incômodos e inconvenientes?

- O que não tem remédio, remediado está! - exclamou, afinal, uma tarde, o coronel, depois de profundas cogitações.

E mandando arrumar duas malas de mão, tomou o trem, no dia seguinte, com destino ao Rio de janeiro.

A primeira noite de capital foi para o honrado fazendeiro um suplício, um martírio, um tormento. Habituado à vida rigorosamente domestica, não lhe foi possível, em absoluto, conciliar o sono. E de tal modo lhe nasceu a saudade da casa dos filhos, e, principalmente, da esposa, que o criado do Grande Hotel, onde ele se hospedara, ainda o encontrou com os olhos da véspera quando lhe foi, de manhã, levar o café.

O dia, passou-o o coronel mais ou menos distraído, fazendo compras, visitando amigos, palestrando com os conhecidos. À noite, porém, voltou, com a saudade, a tortura da insônia. Debalde fechava os olhos, apertando as pálpebras: à simples lembrança de que se achava tão longe, tão distante de casa, fugia-lhe o sono, deixando-o a remexer-se, aflito, no leito largo, a amassar nervosamente os lençóis.

À meia noite, após duas horas de martírio na cama, o coronel não pôde mais: ergueu-se do leito, em pijama, pondo-se a andar, nervoso, de um lado para outro do quarto. E estava já, há meia hora, nesse exercício, quando teve, de repente, uma ideia: tocou a campainha, chamou o criado, e pediu:

- O senhor não tem, por aí, uma escova, dessas para cabelo?

- Tem, sim, senhor.

- Traga-a.

O criado trouxe a escova, o coronel agarrou-a pelo meio, do lado do pelo, com a mão aberta, e, apagando a luz, atirou-se no leito.

E dormiu, sereno, até de manhã…

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

A. A. de Assis (Sutilezas semânticas)


Quando se fala disso, vem logo à mente a fundamental importância do acento. Dizem até que a violência entrou no mundo no momento em que alguém, ao transcrever a frase “Jesus mandou que nos ‘amássemos’ uns aos outros”, esqueceu-se do precioso acento... e deu no que deu: a doce sentença transformou-se num zangado pé de briga – “Jesus mandou que nos ‘amassemos’ uns aos outros” –, de onde resultou que até hoje continuamos  a nos amassar.

A simples troca de posição de uma palavra na oração, um errinho na acentuação, uma letrinha, uma desinência, um hífen, qualquer sinalzinho pode mudar completamente o sentido de uma frase, às vezes provocando sérios estragos. Vocês se lembram, por exemplo, das brincadeiras que a garotada fazia na escola: “Não se esqueça de colocar o acento no ‘cágado’”. “Cuidado... não ponha acento no segundo ‘o’ do ‘coco’’’...

Se você quiser continuar o brinquedo, chame alguém que esteja por perto e curta a magia de alguns mínimos sinais na construção dos significados:

O avião caiu no “rio” – O avião caiu no “Rio”.  A galinha vai “por” ali – A galinha vai “pôr” ali.   “Algum homem” já pisou na Lua, mas “homem algum” pisou em Vênus.

Um homem de “bem” – Um homem de “bens”. Ruim “de” bola – Ruim “da” bola. O menino caiu ”de” cama – O menino caiu “da” cama. Não gosto de “pão duro” – Não gosto de “pão-duro”. O médico chegou “” tempo – O médico chegou “a” tempo. Maria “saiu daqui há pouco” – Maria “sairá daqui a pouco”. Os dois são amigos do JoséOs amigos do José são dois. A volta à escola do filhoA volta do filho à escola. “Vendo tacho” – “Tá chovendo”.

Depois de “certa idade”, ninguém mais tem “idade certa”. Melhor um “cachorro amigo” do que um “amigo cachorro”. Quem não vive para servir não serve para viver. Melhor que ser um “bom orador” é ser um “orador bom”. Na lagoa, quem “nada” tem “tudo”.

O “concerto” da orquestra só poderá começar após o “conserto” do piano. Além de bom “cavaleiro”, ele é também um bom “cavalheiro”. Não sei se vou “amar-te” ou vou “a Marte”.

Vaga o vaga-lume: vaga luz num vago mundo procurando vaga. Rodo, rodo, rodo, devagar a divagar, divagando sobre o modo menos vago de vagar. A cada “hora” ele “ora”. Havia a via, “havia ação”, havia o espaço, “aviação”.

Acertei a “sexta” bola na “cesta”. O sineiro começa a “suar” quando faz “soar” o sino. Era um plebeu “com sorte”, tornou-se um príncipe “consorte”. Primeiro eu “boto a calça”, depois “calço a bota”.

O vô “houve por bem” dizer que não “ouve bem”. “Passo a passo” se chega ao “Paço”. Luísa “cose” a blusa enquanto Joana “coze” o frango. Só porque ele tem um “auto” acha que pode falar tão “alto”. Ave, “avós”, hão de um dia devolver “a vós” “a voz”.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – 20-10-2022)