quinta-feira, 20 de abril de 2023

Raul Arruda Filho (Iabadabadu!)

O Brasil é o país das crônicas – e dos cronistas. Em cada esquina (ou jornal ou revista), alguém está de plantão, pronto para colher, na fonte, as boas (e más) histórias que integram o cotidiano. Nesse caminhar trôpego, “ligeiramente embriagadíssimo”, como repetia mestre Nereu Goss, a crônica é uma espécie de comentário datado sobre algum acontecimento – e que, se não fosse pelo registro fatual, acabaria desaparecendo na seqüência de eventos “maiores” que constituem a vida urbana.

Como nunca foi considerada “a” musa da literatura brasileira, muito antes pelo contrário, não falta quem a classifique como um gênero “menor”, quer dizer, sejamos francos, texto de segunda classe, desses bem vagabundos, que qualquer um (qualquer um!) pode escrever para ganhar uns trocados.

A turma “do contra” costuma usar uma fórmula divertida: dizem que se trata de uma forma híbrida (e o uso da palavra “híbrida” sempre está envolto no papel celofane do desprezo) de literatura e jornalismo, e que só existe para preencher aquele espaço que não foi utilizado com a notícia. Trocando em miúdos, um calhau, cujo futuro é embrulhar o peixe (ou coisa pior) no dia seguinte à sua publicação.

“São os teus olhos”, rebatem os cronistas, toda vez que recebem uma crítica negativa, uma patada amorosa, recalques de quem não sabe (ou não quer) dizer “eu te amo”. Tia Zulmira explica, complica, simplifica, amplifica. Ou deixa pra lá, porque “as amargas, não”, como dizia um velho cronista, Álvaro Moreyra, escritor que, como poderia ser diferente?, ninguém lembra mais, inclusive porque jamais participou de “reality show” ou gozou de merecidos 15 minutos de fama na Rede Globo.

De qualquer maneira, a crônica consegue ser refratária à “sua mais completa tradução”. E isso é um desafio para o mundo acadêmico. Basta lembrar que, nessa seara, alguns teóricos não economizaram papel e tinta de impressão para impressionar o distinto público com as certezas do mundo. Esforço em vão, diga-se de passagem, pois o santo Graal – ainda – continua desaparecido. Por isso, entre lamentos e sorrisos colgate (modelo gato de Cheshire), algumas “otoridades”, não podendo eludir o deserto das indefinições, acabaram iludindo a si mesmas com o “embromeichom”. Existem vários estudos refinadíssimos, trezentas notas de rodapé, bibliografias quilométricas, biscoitos finos, sabor quase (quase!) idêntico ao daqueles amanteigados dinamarqueses. Todos concluem em agradável surpresa: tudo continua como dantes, no quartel de Abrantes.

De qualquer forma, alguma coisa se salvou: os comentários sobre a linguagem que a crônica utiliza para se comunicar com o leitor. Transitando entre o relato coloquial e a prosa poética, ela permite aventuras estilísticas que abrangem desde a compreensão do mundo através do particular até o escracho monumental. De fato, a crônica é aquele texto onde você pode soltar expressões como “iabadabadu”, “aiou, Silver” ou “fala, amendoeira” no meio da frase e ninguém vai reclamar do conteúdo – ao contrário, são essas situações humanas, demasiadamente humanas (um lampejo daquela cena em que o cara molhava o biscoito no chazinho tépido e entrava em transe para escrever umas 3.000 páginas) que possibilitam ao leitor o reencontro com a ilusão, momento em que é possível acreditar que toda a sabedoria do mundo estava contida nas sagradas páginas do Almanaque Sadol (ou Biotônico Fontoura ou Capivarol). Vai dizer que você não se lembra disso?

Noves fora zero, o aspecto secundário da contradição principal (como lembrava, didaticamente, o camarada Mao Tse Tung) está na constatação de que a crônica, com exceção de alguns clássicos (Rubem Braga, Stanislaw Ponte Preta, Fernando Sabino e Luís Fernando Veríssimo), jamais foi convidada para tomar assento no panteão das letras. Nos jornais, tudo bem. Nas últimas páginas das revistas, nenhum problema. No entanto, como ensina a regra que divide a idolatrada salve salve em Casa Grande e Senzala, “é preciso saber o seu lugar”.

Que tal começar com algum Fernando Sabino? Não é preciso escolher, qualquer um dos seus livros está repleto de “quero mais”, o cara sabia das coisas e escrevia como se estivesse conversando com o leitor, aquela mistura de sabedoria e bom humor que só os gênios conseguem reunir.

Ou Aldir Blanc e Ivan Lessa? Aldir Blanc, náufrago de boleros e sambas-canções (“Eu hoje me embriagando / de uísque com guaraná / ouvi tua voz murmurando: / são dois pra lá, dois pra cá”), fez questão de colocar na lâmina do microscópio social a verdadeira tragédia suburbana: churrasco no quintal, cerveja gelada, palavrões e a sadia sacanagem com a vítima que estiver de plantão. E, óbvio, um imenso dane-se para o politicamente correto! Ivan Lessa é um pouco diferente: com um texto mais aristocrático, nunca negou as raízes de quem nasceu em berço de ouro e leu tudo antes dos vinte anos – agora, olhando as ruínas, cospe sabedoria nos menos aquinhoados. Pois é, com esses dois sujeitos todo cuidado é pouco, toda palavra é armadilha, “Você conhece o Lochas?” “Aquele que...”

Ou Antonio Maria e Stanislaw Ponte Preta? Nos textos dessa distinta dupla, as dores de corno são passageiras habituais do bonde que leva os cafundós do Judas até o lugar onde o diabo perdeu as botas. Nesse cenário fofo, não dá para evitar a parada obrigatória, algum boteco sórdido, onde, ao final da noite, muitos guerreiros tentam afogar as mágoas com martelinhos de pinga com mentruz, ou, se o sujeito ainda dispuser de alguma força, no corpo de alguma das “certinhas do Lalau”, verdadeiro bilhete de loteria premiado (aquele mesmo que tantas vezes ficou para trás, acenando promessas).

Também é possível ler alguma coisa do Luís Fernando Veríssimo, prato cheio para quem gosta de humor pasteurizado, revestido com o verniz intelectual pequeno-burguês, típico de quem, na infância, sempre teve dinheiro para completar o álbum de figurinhas. Pelo mesmo caminho segue um escritor de qualidade, apesar de chatinho: Rubem Braga. Esbanjando uma lírica que sempre defendeu que o Rio de Janeiro é o umbigo do mundo, o ilustre cronista definitivamente desconhecia o que significa morar em palafita, andar de pés descalços por não ter dinheiro para comprar chinelo ou as delícias de roubar manga (como fez tantas vezes o Carlos Heitor Cony, que, guardadas as devidas proporções, é vinho de outra pipa, safra nobre, item de colecionador).

Há outros cronistas. Claro que há. Um punhado de humoristas, um caminhão de trágicos. Além dos “mais ou menos” – desses há milhares, bilhões. É cronista que não acaba mais, Deus nos acuda! De qualquer maneira, uma seleção de craques poderia ser escalada assim: Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector, José Carlos de Oliveira, Roberto Drummond, Nelson Rodrigues, Lourenço Diaféria, João Ubaldo Ribeiro, Raquel de Queiroz, Millor Fernandes. Na reserva: Raul Drewnick, Maria Rita Kehl, Zuenir Ventura, Mário Prata, Marcelo Rubens Paiva, Martha Medeiros e Danuza Leão, entre tantos outros.

Por essas e outras, muitas outras, só nos resta lembrar Fernando Sabino, que, em momento ternurinha, parodiou um verso de Manuel Bandeira, e escreveu que queria que as suas crônicas fossem puras como um sorriso. Nunca me pareceu que estivesse pedindo algum absurdo.

Fonte:
Escritores do Sul. Acesso em 17 out 2011.

terça-feira, 18 de abril de 2023

Vanda Fagundes Queiroz (Trovando) “04”

 

Jaqueline Machado ( O Estrangeiro, de Alberto Camus)

Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei”.

A abertura de “O estrangeiro",  obra escrita pelo escritor francês Albert Camus e publicada em 1942, é uma das mais famosas da literatura. 

Esta fala inicial é proferida pelo protagonista, Mersault, que demonstra frieza e quase desdém em relação à triste noticia.

Veja bem: “Hoje mamãe morreu”. Essa frase tem um tom neutro, talvez um tanto reflexivo, mas não diz muita coisa, e já na frase seguinte: “Talvez ontem, não sei”. É revelada a indiferença do filho em relação à perda de sua mãe. Ele, estranhamente, não parecia estar bem a par sobre o instante do falecimento da idosa, que vivia num asilo.

A narrativa trata de um cara  estrangeiro de si mesmo. Já que era um ser humano sem humanidade, insensível às coisas fundamentais da vida: amor, família, estudo e trabalho. Vivia num eterno “Tanto faz”. Aliás, esta frase é uma constante no livro, quase um mantra.   

Mersault corre para resolver tudo do enterro, como faz qualquer cidadão de bem, mas durante o velório, não chora, bebe café e ainda cochila.

Logo depois, parte para casa e pensa: preciso dormir umas doze horas. No outro dia vai à praia com a namorada e ao cinema assistir um filme engraçado.

Quando Maria, sua namorada, pergunta se ele a ama, ele responde que não. Ela quer casar. Ele leva o convite em consideração, já que isso parecia ser importante para a moça, mas para ele, casar ou não, não tinha importância alguma.

Em seguida, recebe de seu chefe uma proposta de trabalho em Paris. E o que ele responde ao patrão? “Tanto faz...

A história passa por uma reviravolta, quando um de seus vizinhos bate na amante e pergunta se Mersault  pode testemunhar a seu favor, dizendo que a briga foi uma coisa banal. Ele aceita. Como recompensa, ganhou uns dias numa praia. Nessa praia, nota a presença do irmão da moça espancada, que começa a perseguir o agressor. O calor é intenso, o sol ardia em sua pele, a água parecia um mar de fogo. A ira tomou conta do seu íntimo. Irritadíssimo, puxou sua arma e atirou no homem. Um tiro bastava para matá-lo, mas ele aproximou-se do corpo e atirou mais quatro vezes.

Por nada, matou um homem, comprando uma briga que nem era dele. É processado, condenado à execução, e fica a refletir: - “Que importa ser condenado à morte? Morrer aos trinta e poucos ou aos setenta? De toda forma estamos todos condenados à morte”. E aí entra outra vez a intenção do tanto faz.

Segundo os críticos literários, esta obra foi inspirada no absurdismo que é a teoria filosófica de que a vida em geral é absurda. E sem nexo. Mas psicanaliticamente falando, nos faz refletir profundamente a insensibilidade, o que torna um ser humano incapaz de sentir, de apaixonar-se pela existência.

O sentido da vida se encontra dentro do indivíduo que sente o perfume das flores, que vê beleza nos astros e que ama amar tudo e a todos. Sem essas percepções, realmente tudo perde a cor, o valor... O sentido de tudo se faz nulo e a razão de existir se torna ausente. Ok! Até aí, eu entendo, mas o que leva de fato um ser humano ser um estrangeiro em sua própria natureza? Sinceramente, nem Freud explica. 

Fonte:
Texto enviado pelo autora.

Luiz Otávio (Um coração em ternura…) 11

CANTIGAS DE CONTRASTES

Os homens, infelizmente,
não concordam com a Sorte.,.
— Alguns suplicam a Vida...
Outros procuram a Morte...

Há tanta gente descrente!
E nós — felizes, querida...
…Há tanta vida na gente!
E quanta gente sem vida!

No meu sonho apaixonado,
tanta realidade eu ponho,
que penso quando acordado,
que a Realidade é um Sonho!...
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HIPÓTESES

Se eu ficasse surdo!?...
Que tristeza se eu nunca mais ouvisse!
Um doce canto... este rumor da Vida
das aves a taful tagarelice...
e a tua veludosa voz, querida,
tão cheia de ternura e de meiguice...
Que tristeza se eu nada mais ouvisse.

Se eu ficasse mudo!?...
ah que tortura se eu ficasse mudo!
Ouvir a tua voz apaixonada,
em carícias macias de veludo,
não podendo sequer dizer um nada,
para dizer-te tendo n'alma: tudo...
Ah! que tortura se eu ficasse mudo!

Se eu ficasse cego ?!...
Que desgraça se nunca mais eu visse!
Não ver o azul do céu, o azul do mar!
Não ver essa expressão toda meiguice,
que tomas logo após eu te beijar
ou escutando coisas que eu já disse...
Que desgraça se nunca mais eu visse í

Mas julgo que pior inda seria:,
que ser surdo, ser cego ou então mudo,
se acaso o teu amor perdesse um dia,
pois se eu perdesse o amor perdia tudo...
Ah! não poder te amar! oh! que tristeza!
Que vida tão atroz, minha querida!
— Falar… Ouvir-te a voz... Ver-te a beleza!
Sem ter o teu amor, — a própria vida!...
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O CORRER DO TEMPO

Há anos tão venturosos,
tão repletos de alegrias,
que ao passarem, nós julgamos
ter vivido apenas dias...

E há dias tão tormentosos,
tão cheios de desenganos,
que julgamos ter vivido
nestes dias, muitos anos!...
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VELHO TRONCO
(Á Colombina)

Aquele velho tronco derrubado,
vai renascendo, aos poucos, outra vez…
Deu sombra ao caminhante fatigado!
Teve flores e frutos! Foi copado!
Aos homens quanto Bem ele já fez!

Mas um dia de morte foi ferido,
por este mesmo alguém de instintos brutos
que viera, um dia, exausto, combalido,
após longo caminho percorrido,
— provar a sua sombra e os seus frutos...

Imita o velho tronco derrubado,
ó poeta de alma livre, caluniado,
ferido por um mal que nunca fez!
Esquece o teu algoz de instintos brutos!
Da-lhe outra vez teus versos: — os teus frutos,
e a Sombra do Perdão mais uma vez…

Fonte:
Luiz Otávio. Um coração em ternura…: poesias. RJ: Irmãos Pongetti, 1947.

Aparecido Raimundo de Souza (Coisas)

MINHAS MÃOS AMANHECIDAS vieram lavar meu rosto de saudade. Nesse instante, o destino ingrato parece dar uma pausa. Uma delonga mínima, onde tudo está na mais profunda calma e mansidão. Qual o quê! Tudo em derredor não vai além de uma impressão passageira. Na verdade, minha alma está poluída, congestionada de tantas sujeiras. Impurezas, frutos de um bocado de estercos deixados pela sórdida tristeza que habita em meu ser. Igualmente da agonia escárnia que não me deixa. Não me resta outra saída, pelo menos nesse momento crucial, senão chorar.  

Me debulhar em lágrimas sentidas como uma criança que se perdeu dos pais em meio de uma multidão de estranhos. Tento extravasar os momentos cruciantes que me tolhem a vontade de respirar, de continuar vivendo, de ser um pouco feliz. O meu coração está preso a correntes fortes, como também minha alma. Ambos não se movimentam nem para um lado, nem para outro. Somente a procissão das lágrimas caminhantes conseguem me libertar das amarras fortes que me prendem e propiciam um pouco de sossego, um bocadinho da paz que realmente mereço. Contudo, apesar dos pesares, embora continue com o peito despedaçado, consigo vislumbrar uma tênue luz no fim do túnel. 

Sinto que do céu se esvaem pingos de ternura. À medida que caem, escorrem paralelo ao furacão desenfreado que flui do recôndito do meu “eu” interior. Nessa confusão desordenada, apenas sou um pedaço perdido de mim. Resíduos de um amor fracassado, de um caminho interrompido, de um amanhã que não nasceu. Me sinto uma coisa fútil, banal. Me vejo como restos desfalecidos de um corpo sem vida. No fundo, me assemelho a destroços de uma existência inteira jogada à mercê de fortes temporais. Olho para o infinito distante e procuro alguma brecha lá em cima. Uma lacuna-escape, onde possa enfiar minha tristeza e conversar um pouco com Deus. 

Ensaio uma prece: Oro baixinho: “Ó Pai Eterno, venha em meu socorro! Sem sua presença em minha vida o que será de mim? Não sei de nada. Nem mesmo do que me espera, se é que alguma coisa me aguarda. Se abre, diante de minha estrada, um futuro incerto. O caminho percorrido até este momento, me fechou todas as passagens. A única ponte que poderia me devolver ao passado, ficou tão longínqua que mal consigo enxergar a trilha de regresso”.  
De repente, do nada, uma luz – uma luz no fim do túnel (embora ofuscada por densas nuvens negras), me dá um pouco de alento. Afinal de contas, minhas mãos amanhecidas continuam lavando meu rosto entristecido. No fundo, queria retirar da face, o sol sem brilho que me asfixia. 

Quem me dera arrancar de uma vez por todas o meu olhar perdido. Bem ainda afastar a visão deformada das coisas que me cercam. Como seria gratificante espantar para bem longe os fragmentos de sonhos mal sonhados... abraçar as empolgações que encontrei há muito tempo atrás, numa quimera de esquecimento? Sei que tudo o que restou de mim está aqui. Do que fui, também está aqui. Do que construí está aqui. Do que terminou, do que sou agora, tudo, tudo jaz aqui. Será que atinei com a descoberta de algo importante? Difícil dizer! Tenho consciência de que meu tempo acabou. É por isso que cansei de caminhar por estradas de agonia, buscando em cada cidade por onde passei, um coração solitário, como o meu, que me desse pousada. 

Quisera encontrar uma mão amiga que me estendesse e me abrigasse com aconchego, amor, carinho, sobretudo, que me reconstruísse... meu tempo, realmente acabou. De onde estou agora, daria tudo de mim para voltar a bolinar no fiozinho do destino. Abriria mão dos dias que ainda me restam para sobreviver a essa jornada longa, cansativa e maçante que me atropela os dias, notadamente aqueles que me foram levados pelos momentos de solidão. Enfim, continuo vencido. Tenho, pois, que tirar do rosto –, preciso arrancar do meu rosto, essas mãos amanhecidas –, esconder no caderno do passado a vida desfeita em cinzas. Urgentemente fazer rebrilhar no olhar, a ilusão de um novo dia de sol e de esperanças. 

Tenho que prosseguir e progredir. Topar com alguma coisa que garanta a minha permanência nessa terra cansada de sofrer junto comigo as intempéries e as preocupações com um porvir desfeito, soterrado, desmoronado... careço, urgentemente regressar ao viver. Contudo, compreendo, meu tempo acabou. Apesar disso, positivo voltar a sorrir, a cantar, a amar, a ser feliz e alegre. Apesar desse quadro desolador, do tempo ter se escasseado, apesar dessa tristeza mesquinha... alimento a convicção e a certeza de estar construindo algo sólido e maciço. Algo realmente inquebrável e talvez até imutável. Me entojei desse olhar não aderente ao brilho das boas coisas da vida. 

Me amofinei dessa solidão apática que teima e me persegue. Meu tempo acabou, mas estou vivo, e como tal, sonho coisas lindas. Não com castelos de areia, ou sereias encantadas. Não quero um mundo de ilusões deformadas pelas torpezas do espaço que agora me esmaga. Nada disso me fará feliz.  Sonho com um amanhã menos cruel e opressivo. Farejo dias de sol, sem ventos fortes. Profetizo, enfim, com a liberdade de ser eu mesmo. Sem ninguém para tolher os caminhos, as sendas a serem seguidas. Engendro mais:  romantizo coisas palpáveis, ainda que difíceis para conseguir, jamais perderei o foco. Meu tempo acabou. Apesar dele ter findado, não desistirei de alcançar tudo o que almejei, e, se necessário for, aplicarei uma boa dose de perseverança e amor em minha alma. Beberei um cálice de vontade férrea, para enfrentar as lutas e as pelejas que surgirem. Quero me esquecer no tempo. Fluir como as águas de um rio imenso e desembocar no mar. 

O mar, para mim, significa transpor o túnel que tenho à frente.  Chegar do outro lado. Mesmo sabendo que meu tempo acabou. Mesmo tendo consciência que minhas mãos amanhecidas vieram lavar meu rosto de saudade. Ainda assim, e, sobretudo, haverei de plantar no útero da vida, a semente de um ser vivente. Um ente que desabroche para o mundo. Como as flores de um jardim se abrindo para encantar a natureza. Estou retirando do meu rosto as mãos amanhecidas. Essas, cuja via sacra é uma espécie de relicário de recordações. Reminiscências que não devem, jamais, despertar do sono eterno que vislumbro para elas. Picuinhas do meu passado tristonho e melancólico. Fragmentos que residem dentro de mim:  mazelas que devem ficar, para sempre, sepultadas desse lado do túnel.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

segunda-feira, 17 de abril de 2023

Arquivo Spina 52: Artur José Carreira

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 80

Tanta coisa que a gente não saboreia, não degusta e diz que não gosta.  E assim se perde o sabor da vida.  E são tantos !

O sabor de uma comida, um bom papo sem hora para terminar, um viagem (quase) sem rumo, a leitura de um poema, pescaria com os amigos. A listinha vai longe... 

E se dispensamos ou contestamos iguarias, momentos ou prazeres, é quase certo que renunciamos verdadeiros regalos que fazem a vida ser saborosa. Porque sabores não faltam no mundo. O que pode faltar é a capacidade de sentir, degustar e saciar com prazer.

Fonte:
Texto enviado pelo autor. 

Guerra Junqueiro (O primeiro pecado de Margarida)

Chamava-se Margarida, e estavam à espera dela no céu, porque Deus tinha dito:

- É uma boa alma, e, como lá embaixo no mundo pode lhe acontecer alguma desgraça, vou trazê-la um destes dias para o paraíso.

Margarida era uma virgem cândida, matinal como a aurora, fresca como ela; todos os dias ao acordar rezava as orações que sua mãe tinha lhe ensinado, e vestia-se depois na sua pequenina alcova. E, como não tinha joias preciosas, nem ricos adornos, dispensava o espelho.

Depois disto, para viver honradamente, punha-se a trabalhar, e ao mesmo tempo cigarra e abelha, trabalhava cantando uma bela canção de amor e de glória, que já embalara muitos berços, e que podia sensibilizar uma alma inocente, sem lhe perturbar a limpidez.

Numa tarde de verão, estava ela sentada à porta de casa fiando linho, na hora em que as estrelas começam a aparecer, uma a uma no firmamento. Estava cantando a sua canção, quando passou por ali uma das suas vizinhas, que ia a uma romaria, muito asseada, com um vestido novo. Parou diante de Margarida, para que lhe admirasse os seus brincos e o colar de ouro que levava ao pescoço; apertou-lhe a mão para que visse bem o anel que brilhava no seu dedo, e foi-se embora a rir, toda contente. E Margarida a foi seguindo com um olhar de inveja, o que inquietou no Paraíso o seu anjo da guarda.

O fio de linho já não passava tão rapidamente entre os dedos de Margarida, a roda cessara o seu barulho monótono, e o fuso caíra-lhe das mãos. Ao cair o fuso, despertou do êxtase, abriu os olhos, e viu diante de si um cavaleiro magnificamente vestido, tendo na mão um gorro de veludo preto, com uma pluma vermelha, da cor do fogo. 

O cavaleiro saudou-a respeitosamente, e, com uma voz harmoniosa e galanteadora, perguntou-lhe:

- Qual é o caminho da cidade?

Margarida estendeu a mão para lhe indicar, e o forasteiro inclinando-se tirou do dedo um anel de ouro com um diamante, que brilhava como uma estrela, e meteu-o no dedo de Margarida, que o achou mais belo do que o anel da sua companheira. 

O rosto do cavaleiro alumiou-se então com um sorriso estranho e diabólico.

Nisto passou por ali um mendigo coberto de farrapos, parou diante de Margarida, e pediu-lhe uma esmola.

Margarida tirou do dedo o anel, e ofereceu-o ao pobre desgraçado.

O cavaleiro então, soltando um grito de cólera, ia lançar-se sobre Margarida, mas o mendigo - que era o seu anjo da guarda disfarçado - cobriu-a com as asas.

O cavaleiro, isto é Satanás, que tinha vindo para a tentar, recuou aniquilado diante do espírito celeste.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Guerra Junqueiro. Contos para a Infância. Publicado originalmente em 1877.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XL

 A flor quando desabrocha
em seu discreto canteiro,
balançando acende a tocha
que aquece o jardim inteiro.
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Antes de cruzar os braços
pra ver o tempo passar,
aceleremos os passos,
porém sem descompassar.
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A pedra, se for jogada,
sobre nós pode voltar,
fazendo com que a pedrada
danos venha provocar.
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Buscar vida, nada incauta
fora do nosso planeta,
é tarefa pra astronauta
que até dispensa luneta.
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É de paz que o mundo anseia
e é de luz que o ser procura,
pra quem estrelas semeia
nunca vai ter noite escura.
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Embora 'muito' não temos
nada nos faz lamentar,
se ter tudo não podemos
com pouco vamos lutar.
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Entre a plena liberdade
e a dureza da prisão,
para alguns só tem a grade,
a outros um simples portão.
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Longas noites mal dormidas
pode ser o resultado,
dum excesso de bebidas
ou cansaço exacerbado.
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Mais que um amigo por perto
para as pedras superar,
é escolher o rumo certo
e o jeito de caminhar.
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Motorista equilibrado
não deixa de socorrer,
um colega acidentado
que acabara de bater.
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Navego no pensamento,
retorno, se necessário,
traço outro procedimento
na forma de itinerário.
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Nunca conte com a sorte
quando requer seriedade,
pode ser que seja a morte
o prêmio da liberdade.
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Nunca faltam argumentos
para o falso demonstrar,
que em seus posicionamentos
a verdade quer mostrar.
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O mundo guarda caminhos
sinuosos e escarpados,
ladeados por espinhos
e poucos são ladrilhados.
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O passado não distante
nossa memória o refaz,
e todo o fato importante
bem presente ela nos traz.
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O passado traz saudade
e além dos confins se estende,
laços de fraternidade,
que nem sempre o ser entende.
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Para chegar a bom termo
em qualquer enfermidade,
é devolver a um enfermo
sua total sanidade.
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Pelos dons que recebemos
é que vamos responder.
Quando será? Não sabemos!
Nem mesmo como vai ser.
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Pingos de chuva rolando
deixam os campos molhados,
parecem nuvens chorando
debruçadas nos telhados.
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Por qualquer futilidade
hoje, o casal se separa
e o fruto de uma unidade
em fragmentos se depara.
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Se na vida nós não temos
forças para caminhar,
sigamos com fé e veremos
como é mais fácil andar.
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Todo o bom profissional
prima pela perfeição,
vê crescer seu potencial
numa célere ascensão.
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Todo o dano provocado
deverá ser ressarcido,
pelo autor mal-educado
a quem se achar ofendido.
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Todo o povo sem passado
nada tem pra cultuar,
vê seu mundo arremessado
nas profundezas do mar.
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Vendaval devastador
sopra sem se intimidar,
muito mais que assustador
intimida ao devastar.
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Fonte:
Enviado pelo trovador.
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.

Arthur Conan Doyle (O funil de couro)

Meu amigo Lionel Dacre morava na Avenida de Wagram, em Paris. Era uma casa pequena, com 
grades de ferro e um estreito gramado na frente, à esquerda de quem passa o Arco do Triunfo.

Imagino que existira ali muito antes da construção da avenida, pois o telhado cinzento era manchado de liquens e as paredes descoradas e mofadas pelo tempo. Vista da rua era uma casa pequena, com cinco janelas na frente, se não me falha a memória, mas alongava-se para os fundos num cômodo único. Era ali que Dacre tinha a sua extraordinária biblioteca de ocultismo, e fantásticas curiosidades que eram para ele uma mania e para os amigos uma diversão. Homem rico, de gosto excêntrico e refinado, despendera boa parte da vida e da fortuna reunindo o que passava por uma inigualada coleção particular de obras mágicas, talmúdicas e cabalísticas, muitas das quais de grande raridade e valor.

Seus gostos inclinavam-no para o sobrenatural e para o monstruoso, e ouvi dizer que os seus experimentos em matéria do desconhecido ultrapassaram todos os limites da civilização e do decoro. 

Com seus amigos ingleses ele nunca mencionava tais assuntos, e assumia o tom de um erudito e virtuoso; mas um francês cujos interesses eram da mesma natureza garantiu-me que os piores excessos da missa negra foram perpetrados naquela vasta e majestosa galeria, forrada com as estantes dos seus livros e com as arcas do seu museu.

A aparência de Dacre era suficiente para demonstrar que o seu profundo interesse em assuntos psíquicos era mais intelectual do que espiritual. Não se via traço de ascetismo em seu carão maciço, mas havia uma grande força mental no seu enorme crânio abaulado, que se projetava para cima por entre os cabelos ralos, como um pico nevado emergindo de uma franja de pinheiros. Seu saber era maior que sua prudência, e seus poderes superavam de muito o seu caráter. Seus olhos pequenos, profundamente encravados na face carnuda, brilhavam de inteligência e de uma insaciável curiosidade sobre a vida, mas eram olhos de um sensual e de um egoísta. E basta quanto ao homem, pois hoje ele está morto, coitado, e morreu precisamente no momento em que se assegurava de, por fim, ter descoberto o elixir da longa vida. Não é do seu complexo caráter que me proponho falar, mas do estranho e inexplicável incidente que teve a sua origem quando eu o visitei, na primavera de 82.

Eu conhecera Dacre na Inglaterra, pois estava empreendendo umas pesquisas no Salão Assírio do Museu Britânico na mesma ocasião em que ele se empenhava em demonstrar um significado místico e esotérico em tabuinhas babilônicas, e essa comunidade de interesses nos pôs em contato.

Reparos casuais tinham levado a conversações diárias, e estas a algo que se aproximava da amizade. Eu prometera procurá-lo em minha próxima visita a Paris. Quando se apresentou o ensejo de cumprir o pacto, eu estava morando numa pequena casa de campo em Fontainebleau, e como os trens noturnos eram desconfortáveis ele me convidou para passar a noite em sua casa.

– Tenho apenas uma cama disponível. – disse ele, apontando para um amplo sofá no vasto salão. – Espero que fique bem acomodado.

Era um quarto de dormir bem singular, com suas altas paredes de volumes pardos, mas não podia haver decoração mais agradável para um rato de biblioteca como eu, e não há perfume mais grato às minhas narinas que os eflúvios leves e sutis que se desprendem de um livro antigo.

Assegurei-lhe que não podia desejar melhor alojamento ou um ambiente mais adequado.

– A decoração pode não ser conveniente nem convencional, mas pelo menos é custosa – disse ele, olhando as estantes. – Gastei perto de um quarto de milhão com esses objetos que o circundam. Livros, armas, joias, estatuetas, tapeçarias, imagens – não há quase aqui um único objeto que não tenha a sua história, e geralmente uma história que merece ser contada.

Ele estava sentado de um dos lados da lareira aberta, e eu do outro. Sua mesa de leitura ficava à direita, e uma forte lâmpada acima dela a envolvia num círculo vívido de luz dourada. Um palimpsesto parcialmente enrolado ocupava o centro, e em torno dele viam-se estranhas peças de bricabraque. Uma delas era um grande funil, como os usados para encher tonéis de vinho. Parecia feito de madeira escura, com uma borda de latão descorado.

– Que objeto curioso. – observei. – Qual é a sua história?

– Ah! – disse ele – É o que me tenho muitas vezes perguntado. Daria tudo para saber. Pegue-o o senhor mesmo e o examine.

Obedeci, e verifiquei que o que imaginara ser madeira era na verdade couro, embora o tempo o tivesse ressecado e tornado extremamente duro. Era um funil grande, e comportaria um quarto de galão quando cheio. Um aro de latão debruava a boca, e a ponta também era revestida de metal.

– Que pensa que seja? – perguntou Dacre.

– Imagino que tenha pertencido a algum vinheiro ou cervejeiro da Idade Média. – respondi – Já vi na Inglaterra canjirões do século dezessete – black Jacks, como eram chamados – da mesma cor e dureza deste funil.

– Eu diria que a data deve ser mais ou menos a mesma – disse Dacre – e, sem dúvida, deve ter sido usado para encher de líquido algum recipiente. Se, no entanto, minhas suposições forem corretas, era um estranho vinheiro o que o usava, e um estranho vaso o que era enchido. Não notou algo esquisito no bico do funil?

Levantando-o na luz, observei que a umas cinco polegadas da ponta de latão o estreito gargalo do funil de couro era todo arranhado e machucado, como se alguém o tivesse entalhado com uma faca cega. Era o único ponto em que havia uma aspereza na superfície escura e lisa.

– Alguém tentou cortar o bico.

– Chamaria a isso um corte?

– Está esfolado e lacerado. Deve ter sido necessária certa força para deixar estas marcas num material tão duro, qualquer que fosse o instrumento. Mas, o senhor o que pensa? Tenho certeza de que sabe mais do que diz.

Dacre sorriu, e seus olhinhos piscaram com malícia.

– O senhor incluiu a psicologia dos sonhos entre os seus estudos eruditos? – perguntou.

– Nem sabia da existência dessa espécie de psicologia.

– Meu caro amigo, aquela estante sobre o balcão de joias está repleta de livros, de Albertus Magnus para a frente, que não tratam de outra coisa. É uma ciência em si mesma.

– Ciência de charlatães.

– O charlatão é sempre um pioneiro. Do astrólogo veio o astrônomo, do alquimista, o químico, do mesmerista, o psicólogo experimental. O curandeiro de ontem é o médico de amanhã. Mesmo coisas sutis e impalpáveis como os sonhos serão no devido tempo reduzidas ao sistema e à ordem. Quando esse tempo chegar, as pesquisas dos nossos amigos naquela estante já não serão divertimentos do místico, mas os fundamentos da ciência.

– Supondo que assim seja, o que tem a ver a ciência dos sonhos com este grande funil preto debruado de latão?

– Já lhe explico. Como sabe, eu tenho um agente que está sempre à espreita de raridades e curiosidades para a minha coleção. Algum tempo atrás ele ouviu falar num adeleiro de um dos cais que adquirira uns velhos trastes encontrados num armário de uma velha casa situada nos fundos da rua Mathurin, no Quartier Latin. A sala de jantar dessa velha construção é decorada com um escudo de armas, asnas e bandas encarnadas em campo prateado, que investigações mostraram ser o brasão de Nicholas de la Reynie, alto funcionário do rei Luís XIV. Não cabe dúvida de que outras peças achadas no armário remontam aos primeiros tempos desse rei. A inferência é, pois, que fossem todas propriedades desse Nicholas de la Reynie, que foi, ao que me consta, o cavalheiro especialmente encarregado de manter e executar as leis draconianas daquela época.

– E então?

– Sugiro-lhe que pegue outra vez o funil e examine a borda metálica superior. Vê nela alguma inscrição?

De fato havia nela uns sulcos, quase obliterados pelo tempo. A impressão geral era de uma sequência de letras, a última das quais guardava certa semelhança com um B.

– Parece-lhe ver um B?

– Sim, com efeito.

– A mim também. Aliás, não tenho qualquer dúvida de que seja um B.

– Mas o fidalgo de que fala teria um R por inicial.

– Exatamente! Aí é que está a beleza da coisa. Ele possuía esse objeto curioso, e no entanto tinha iniciais de outrem gravadas nele. Por quê?

– Não posso imaginar. E o senhor?

– Bem. Posso, talvez, adivinhar. Não percebe alguma coisa desenhada na borda, um pouco adiante?

– Diria que é uma coroa.

– Sem dúvida é uma coroa; mas, se a examinar em boa luz, verificará que não é uma coroa comum. É uma coroa heráldica – uma insígnia de nobreza, e consiste numa alternação de quatro pérolas com folhas de morango, o distintivo de um marquês. Podemos deduzir, portanto, que a pessoa cujas iniciais terminam num B tinha a prerrogativa de usar essa coroa.

– Então este simples funil de couro pertencia a um marquês?

Dacre fez um sorriso enigmático.

– Ou a algum membro da família de um marquês – respondeu. – É o que claramente se conclui desse aro gravado.

– Mas o que tem tudo isso a ver com sonhos?

Não sei se foi devido a uma expressão no rosto de Dacre, ou a uma sutil sugestão nos seus modos, mas um sentimento de repugnância, de inexplicável horror, assaltou-me enquanto eu contemplava a velha e surrada peça de couro.

– Mais de uma vez recebi importantes esclarecimentos por via dos meus sonhos – disse o meu companheiro na feição didática que gostava de assumir. – Agora, adotei como regra sempre que me vejo em dúvida sobre alguma questão especial, colocar ao meu lado enquanto durmo a peça em causa, e esperar uma elucidação. O processo não me parece tão misterioso, embora ainda não tenha a sanção da ciência ortodoxa. Segundo a minha teoria, qualquer objeto que tenha estado intimamente associado com algum supremo paroxismo de emoção humana, quer de prazer quer de dor, reterá uma certa atmosfera ou conexão passível de comunicar-se a uma mente sensitiva. Quando falo de uma mente sensitiva, não me refiro a uma mente anormal, mas a uma mente educada e cultivada como a sua ou como a minha.

– Quer dizer, por exemplo, que se eu dormisse junto àquela velha espada pendurada na parede, poderia sonhar com algum incidente sangrento em que essa mesma espada tivesse participado?

– Um excelente exemplo, já que, por sinal, essa espada foi usada por mim dessa maneira, e eu vi em meu sono a morte do seu dono. Ele pereceu numa breve escaramuça, que não me foi dado identificar, mas que ocorreu ao tempo das guerras dos frondistas. Pensando bem, algumas das usanças populares são a prova de que o fato já era conhecido dos nossos ancestrais, ainda que nós, em nossa sapiência, o classifiquemos entre as superstições.

– Por exemplo?

– Por exemplo, colocar um bolo de noiva sob a cama para provocar no ocupante sonhos agradáveis. É um dos muitos exemplos que o senhor encontrará citados numa pequena memória que estou escrevendo sobre o assunto. Mas, voltando ao ponto, uma noite eu dormi com esse funil perto de mim e tive um sonho que sem dúvida lança uma luz bem singular sobre o seu uso e origem.

– Como foi esse sonho?

– Sonhei... – Ele interrompeu-se e uma expressão intensamente interessada surgiu-lhe nas feições massudas. – Por Júpiter, é uma grande ideia. Será uma experiência sobremodo interessante. O senhor é um excelente paciente psíquico, com nervos que respondem prontamente a qualquer estímulo.

– Nunca me pus à prova nesse campo.

– Vamos prová-lo hoje. Posso pedir-lhe como um favor especial que, ao ocupar esta noite esse sofá, durma com esse velho funil junto à sua cabeceira?

O pedido pareceu-me grotesco; mas eu mesmo, em minha complexa natureza, tenho uma grande inclinação para tudo que é fantástico e incomum. Não acreditava nem um pouco na teoria de Dacre, nem esperava resultados da tal experiência; ainda assim, divertia-me prestar-me a ela. Dacre, com muita gravidade, puxou uma mesinha para junto do sofá e colocou o funil sobre ela. Conversamos mais um pouco, depois ele me desejou boa noite e deixou-me.

Por algum tempo fiquei sentado a fumar junto ao fogo lento da lareira, repassando em pensamento o curioso tema da conversa, e a estranha experiência que possivelmente me aguardava.

Por cético que eu fosse, havia algo impressionante na segurança de Dacre, e o ambiente extravagante que me rodeava, aquela enorme sala, aqueles objetos heteróclitos e não raro sinistros dispostos ao redor incutiam-me na alma um sentimento de solenidade. Por fim despi-me, apaguei a candeia e me deitei. Depois de muito remexer-me, adormeci.

Tentarei descrever com a máxima fidelidade possível a cena que me veio em meus sonhos. Ela se conserva ainda hoje em minha memória mais claramente do que qualquer coisa que eu tenha visto com meus olhos despertos.

Era um aposento que tinha a aparência de uma cripta. Quatro rins partindo dos cantos subiam para juntar-se numa abóbada pontuda. A arquitetura era tosca mas robusta. Evidentemente fazia parte de um grande edifício.

Três homens de preto, com curiosos chapéus de veludo negro de grandes copas, estavam sentados em linha sobre um estrado atapetado de vermelho. Seus rostos eram tristes e solenes. À esquerda, de pé, dois homens em túnicas longas sobraçavam pastas que pareciam recheadas de papéis. À direita, olhando para mim, uma mulher pequena, de cabelos louros e olhos singulares, azuis-claros – olhos de criança. Já passara da primeira juventude, mas não podia ainda dizer-se de meia-idade. Seu talhe tendia à corpulência e seu porte era orgulhoso e confiante. O rosto estava pálido mas sereno. Era um rosto estranho, bonito mas felino, com um quê sutil de crueldade na boca pequena, reta e firme e no queixo arredondado. Estava envolvida numa espécie de camisolão branco, comprido e solto. Ao lado dela um padre magro e ansioso, que continuamente erguia um crucifixo diante dela. Ela voltou a cabeça e encarou fixamente, para além do crucifixo, os três homens de negro, que eram, pressenti, os seus juízes.

Enquanto eu olhava espantado, os três homens puseram-se de pé e disseram qualquer coisa, mas eu não pude distinguir palavras, embora percebesse que era o do centro que falava. Depois retiraram-se majestosamente, acompanhados dos dois com papéis. No mesmo instante vários indivíduos de aspecto rude, vestindo grossos gibões, entraram azafamadamente e removeram primeiro o tapete vermelho, depois as tábuas que formavam o estrado, de modo a desimpedir por completo o recinto. Retirado aquele anteparo, vi algumas singulares peças de mobília atrás dele. Uma parecia uma cama, com rolos de madeira em cada extremidade e uma manivela para regular-lhe o comprimento. Outra era um cavalo de madeira. Havia vários outros objetos esquisitos, e diversas cordas penduradas que passavam em polias. Não era muito diferente de um moderno ginásio.

Depois que a sala foi esvaziada, uma nova figura apareceu em cena. Era um homem alto e magro, todo vestido de negro, com uma face austera e descarnada. O aspecto dele fez-me estremecer.

Sua roupa era lustrosa de graxa e pintalgada de manchas. Portava-se com dignidade lenta e impressionante, como se a partir de sua entrada assumisse o controle de tudo. A despeito da aparência rude e da sórdida indumentária, era agora a sua alçada, a sua sala, o seu comando. No antebraço esquerdo ele trazia um feixe de cordas finas. A dama olhou-o de alto a baixo com um olhar indagador, mas sua expressão se manteve inalterada. Confiante – desafiadora mesmo. Com o padre se passava coisa bem diversa. Seu rosto estava mortalmente branco, e eu vi a umidade brilhar e escorrer em sua testa alta e fugidia. Ele levantou as mãos em oração e continuamente se inclinava para murmurar palavras agitadas ao ouvido da mulher.

O homem de negro adiantou-se e, tomando uma das cordas do braço esquerdo, amarrou as mãos da mulher. Ela as manteve docilmente estendidas para ele enquanto ele o fazia. Em seguida ele agarrou-lhe o braço com uma preensão brutal e a conduziu em direção ao cavalo de madeira, que era pouco mais alto que a cintura dela. Ela foi erguida e deitada sobre o cavalo, o rosto voltado para o teto, enquanto o padre, trêmulo de horror, se precipitava para fora da sala. Os lábios da mulher moviam-se rapidamente, e embora nada ouvisse eu sabia que ela estava orando. Seus pés pendiam de cada lado do cavalo, e eu vi que os labregos que serviam de ajudantes tinham amarrado cordas aos seus tornozelos e prendido as outras pontas a argolas de ferro chumbadas ao piso de pedra.

Meu coração confrangeu-se dentro de mim quando vi esses preparativos ominosos, mas ainda assim a fascinação do horror me pregava no lugar, e eu não conseguia desviar os olhos do insólito espetáculo. Um homem entrou na sala com um balde de água em cada mão. Um outro o seguia com um terceiro balde. Os baldes foram colocados ao lado do cavalo de madeira. O segundo homem tinha na outra mão um colherão de pau – uma concha com um cabo reto – e entregou-a ao homem de negro. Ao mesmo tempo um dos ajudantes aproximou-se trazendo um objeto escuro, que mesmo no meu sonho inspirou-me uma vaga impressão de familiaridade. Era um funil de couro. Com horrível violência ele o introduziu... mas eu não pude mais suportar. Meus cabelos se eriçaram de horror. Contorci-me, debati-me, rompi os laços do sono e emergi com um grito na minha própria vida, e dei comigo deitado e tremendo de terror na enorme biblioteca, com o luar jorrando através da janela e projetando estranhos arabescos negros e prateados na parede oposta. Ah! que abençoado alívio sentir-me de volta ao século dezenove – sair de um subterrâneo medieval para um mundo em que os homens tinham no peito corações humanos. 

Sentei-me no sofá, tremendo em todo o corpo, a mente dividida entre o horror e a gratidão. Pensar que coisas como aquela tinham sido praticadas – que pudessem sê-lo sem que Deus fulminasse os celerados! Seria tudo uma fantasia, ou representava realmente algo que acontecera em dias negros e cruéis da história do mundo? Enterrei a cabeça latejante nas mãos trêmulas. E então, de repente, meu coração pareceu parar no peito, e eu não consegui sequer gritar, tamanho era o meu terror. Alguma coisa avançava para mim na escuridão da sala.

É um horror seguindo outro horror que quebra o espírito de um homem. Eu não podia refletir, não podia orar; tudo que podia era ficar sentado como uma imagem congelada e fitar o vulto escuro que se aproximava pela grande galeria. Então ele penetrou no feixe de luar, e eu voltei a respirar. Era Dacre, e sua fisionomia revelava que ele estava tão assustado quanto eu.

– Foi o senhor? Pelo amor de Deus, o que houve? – perguntou ele em voz rouca.

– Puxa, Dacre, que prazer vê-lo! Estive no inferno. Foi horrível.

– Então foi o senhor quem gritou?

– Suponho que sim.

– Ecoou na casa inteira. Os criados estão apavorados. – Ele riscou um fósforo e acendeu a candeia. – Acho que podemos reacender o fogo – acrescentou, atirando algumas achas sobre as brasas. – Bom Deus, meu caro amigo, como está pálido! Parece que viu um fantasma.

– E vi... Vários.

– Então o funil de couro funcionou?

– Eu não dormiria outra vez perto dessa coisa infernal por todo o dinheiro que o senhor me pudesse oferecer.

Dacre deu uma risada.

– Imaginei que teria uma noite animada – disse. – E o senhor tirou a sua desforra, pois o seu grito não foi um som muito agradável de se ouvir às duas da manhã. Suponho, pelo que me diz, que viu a coisa toda.

– Que coisa?

– A tortura da água – a “Inquirição Extraordinária”, como era chamada nos alegres dias de “Le Roi Soleil”. Conseguiu aguentar até o fim?

– Não, graças a Deus, acordei antes mesmo que começasse propriamente.

– Ah! Tanto melhor para o senhor. Eu aguentei até o terceiro balde. Bem, é uma velha história, e agora estão todos em suas covas; seja como for, portanto, que diferença faz a maneira como lá chegaram? O senhor provavelmente não faz ideia do que era o que viu?

– A tortura de alguma criminosa. Deve ter sido uma terrível malfeitora, se os seus crimes foram proporcionais ao castigo.

– Bem, temos esse pequeno consolo – disse Dacre, traçando o roupão em volta do corpo e curvando-se para mais perto do fogo. – Eles foram proporcionais ao castigo. Isto é, se estou certo quanto à identidade da dama.

– Como é possível que conheça a sua identidade?

Em resposta, Dacre apanhou de uma prateleira um velho volume encadernado em velino.

– Ouça isto. Está em francês do século XVII, mas eu irei traduzindo aproximadamente à medida que leio. O senhor julgará por si mesmo se eu decifrei ou não o enigma.

“A prisioneira foi levada perante as Grands Chambres e Tournelles do Parlamento, reunidas como corte de justiça, acusada de ter assassinado M. Dreux d’Aubray, seu pai, e seus dois irmãos MM. d’Aubray, um deles, lugar-tenente civil, o outro, conselheiro do Parlamento. Vendo-a em pessoa, era difícil acreditar que ela tivesse realmente cometido esses atos perversos, pois era de aparência frágil e estatura pequena, tinha a pele clara e os olhos azuis. Ainda assim o tribunal, julgando-a culpada, condenou-a à inquirição ordinária e à extraordinária para forçá-la a apontar os seus cúmplices, após o que ela seria conduzida em carreta à Place de Grève para lá ser decapitada, devendo em seguida o corpo ser queimado e suas cinzas espalhadas ao vento.

“A data deste assentamento é 16 de julho de 1676.”

– Interessante, – disse eu – mas não conclusivo. Como prova que as duas mulheres eram a mesma?

– Já chego lá. A narrativa prossegue falando do comportamento da mulher ao ser inquirida. “Quando o verdugo se aproximou, ela o reconheceu pelas cordas que ele trazia nas mãos, e prontamente estendeu-lhe as suas próprias, olhando-o de alto a baixo sem dizer palavra.” Que tal?

– Sim, foi como aconteceu.

– ‘‘Ela fitou imperturbável o cavalo de madeira e as argolas que haviam torcido tantos membros e arrancado tantos gritos de agonia. Ao dar com os olhos nos três baldes de água preparados para ela, disse sorrindo: ‘Toda esta água deve ter sido trazida com o fim de me afogar, monsieur. O senhor não imagina, espero, obrigar uma pessoa pequena como eu a engoli-la toda’. ” Quer que eu leia os pormenores da tortura?

– Não, pelo amor de Deus!

– Cá está uma frase que certamente há de demonstrar-lhe que o que aqui se encontra registrado foi exatamente a cena a que o senhor assistiu esta noite: “O bom Abbé Pirot, incapaz de contemplar os sofrimentos infligidos à sua penitente, fugira apressadamente do recinto”. Isto o convence?

– Completamente. Não cabe dúvida de que se trata dos mesmos fatos. Mas quem foi afinal essa dama de aspecto tão atraente e que teve um fim tão horrível?

Em resposta Dacre chegou-se a mim e colocou a candeia sobre a mesa junto à minha cama. Levantando o malfadado funil, voltou o aro de latão de modo que a luz incidisse em cheio sobre ele. Dessa forma, a inscrição era mais claramente visível do que o fora na noite da véspera.

– Já concordamos em que isto seja a insígnia de um marquês ou de uma marquesa – disse ele. – Também estabelecemos que a última letra é um B.

– Sim, não há dúvida.

– Agora eu lhe sugiro que as outras letras, da esquerda para a direita, são M, M, um d minúsculo, A, outro d minúsculo, e então vem o B final.

– Sim, estou certo de que tem razão. Vejo os dois dês minúsculos distintamente.

– O que acabo de ler-lhe – disse Dacre – é o registro oficial do julgamento de Marie Madeleine d’Aubray, Marquesa de Brinvilliers, uma das mais célebres envenenadoras e assassinas de todos os tempos.

Quedei sentado em silêncio, assoberbado pela extraordinária natureza do episódio, e ante as provas cabais com que Dacre expusera o seu verdadeiro significado. De um modo vago vieram-me à lembrança alguns detalhes da história da mulher, sua devassidão desenfreada, a prolongada tortura do pai doente praticada a sangue-frio, o assassinato dos irmãos por motivo de mesquinhos interesses.

Lembrei-me também de que a bravura do seu fim fizera algo por redimir o horror da sua vida, e de que Paris em peso se apiedara dela em seus últimos momentos e a bendissera como a uma mártir dias depois de tê-la amaldiçoado como assassina. Uma objeção, e apenas uma, ocorreu-me ao pensamento.

– Por que as suas iniciais e o seu distintivo no funil? Certamente a reverência medieval à nobreza não ia ao ponto de decorarem instrumentos de tortura com seus títulos.

– Também a mim esta questão intrigou. – disse Dacre. – Mas ela admite uma explicação simples. O caso excitou enorme interesse na época, e nada mais natural que La Reynie, o chefe de polícia, conservasse o funil como um sinistro souvenir. Não era comum que uma marquesa da França sofresse a inquirição extraordinária. Que ele gravasse na peça as iniciais para informação de outros seria da parte dele um procedimento perfeitamente explicável.

– E isto? – perguntei, apontando as marcas no bico do funil.

– Ela era uma tigresa feroz. – disse Dacre, voltando-se para sair. – Parece-me evidente que, como outras tigresas, ela tivesse dentes fortes e aguçados.

Fonte:
Publicado em 1902, na McClure’s Magazine.
Disponível em Domínio Público.