quinta-feira, 8 de junho de 2023

Luiz Damo (Trovas do Sul) XLIII


A luz que o falso se inspira
é mentir sem ter piedade,
pois, na verdade, a mentira,
passa a ser sua verdade.
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Divino Espírito Santo
vinde iluminar as mentes,
dos que se amparam no pranto
para ocultar as sementes.
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Feliz quem acena a palma
com honras de um vencedor,
se doando em corpo e alma
ao condão de um lutador.
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Fim de tarde, o sol se deita,
num leito fosforescente,
sob a lua que o deleita
numa noite incandescente.
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Mesmo à pequenez, só fale,
se crês com profundidade.
Nada existe que se iguale,
à grandeza da humildade.
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Nada existe que não passe
sob o prisma material,
ninguém foge a um desenlace
da vida, no seu final.
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Nada há que à nossa alma fira
tanto quanto a falsidade,
tão disfarçada, a mentira,
se passando por verdade.
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Não tem batalha perdida
antes do final da guerra,
mesmo a luta ser renhida
só vence quem persevera.
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Não tem júbilo maior
que viver bem o presente,
se o passado foi pior,
nunca esmoreça, mas tente!
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Nenhuma planta esmoreça
nos desertos da existência,
sem que o fruto amadureça
num legado à descendência.
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No universo da existência
o tempo não corre, voa...
e o grito da onipotência
sobre as montanhas ecoa.
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Nunca faças do passado
o arquivo de frustrações,
nem do sonho fracassado
um fracasso sem razões.
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Nunca seja a mendicância,
uma extensão da opulência,
que agita o berço da infância,
nos braços da adolescência.
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O homem cai na decadência,
quando abandona os valores,
trocando-os pela indecência
de uns iníquos predadores.
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O homem deseja mudanças,
mas só muda na emergência,
sem fé, perde as esperanças
e inerte ganha a impotência.
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O homem que não se lapida
um pouquinho a cada dia,
dura, a aresta o dilapida,
transformando-o sem valia.
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O jejum, nalgum momento,
pode a alguém ser exigente,
mas, a quem falta alimento,
o jejum é permanente.
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Pelas quebradas da tarde
vejo o sol se despedir,
oxalá, nunca retarde,
seu brilho, amanhã luzir.
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Povo que vive recluso,
ou com outros, sem contato,
pode acabar sendo incluso
nas grades do anonimato.
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Pra que a veste fulgurante,
num Natal, só de presente?
Se o próprio aniversariante
da festa estiver ausente?
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Quando a luta for constante
a conquista é consequência,
brilha o sonho a todo instante
nos caminhos da existência.
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Quando à noite ando na rua,
na avenida ou nas ruelas,
vejo as estrelas e a lua
refletidas nas janelas.
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Quando os hábitos se alteram
no âmago da sociedade,
seus habitantes encerram
um salto à modernidade.
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Sê alerta à navegação:
há turbulências no mar.
Zelar com a embarcação
é melhor que naufragar.
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Se à liberdade procuras
a grande felicidade,
busca-a longe de aventuras
porém com austeridade.
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Se à vida, o momento doce
jamais cai no esquecimento,
viva-o bem, como se fosse
toda a vida num momento.
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Se o sonho que buscas, vês
transformar-se num fracasso,
olha se à estrada, talvez,
faltou-lhe o primeiro passo.
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Sobre tudo esteja atento,
metas, sonhos e esperanças,
nada afane o movimento
no reto rol das andanças.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Enviado pelo autor.

Euclides da Cunha (A vida das estátuas)

O artista de hoje é um vulgarizador das conquistas da inteligência e do sentimento. Extinguiu-se-lhe com a decadência das crenças religiosas a maior de suas fontes inspiradoras. Aparece num tempo em que as realidades demonstráveis dia a dia se avolumam, à medida que se desfazem todas as aparências enganadoras, todas as quimeras e miragens das velhas e novas teogonias, de onde a inspiração lhe rompia, libérrima, a se desafogar num majestoso simbolismo. Resta-lhe, para não desaparecer, uma missão difícil: descobrir, sobre as relações positivas cada vez mais numerosas, outras relações mais altas em que as verdades desvendadas pela análise objetiva se concentrem, subjetivamente, numa impressão dominante. Aos fatos capazes das definições científicas ele tem de sobrepor a imagem e as sensações, e este impressionismo que não se define, ou que palidamente se define "como uma nova relação, passiva de bem-estar moral, levando-nos a identificar a nossa sinergia própria com a harmonia natural".

É a "verdade extensa", de Diderot, ou o véu diáfano da fantasia, de Eça de Queiroz, distendido sobre todas as verdades sem as encobrir e sem as deformar, mas aformoseando-as e retificando-as, como a melodia musical se expande sobre as secas progressões harmônicas da acústica, e o arremessado maravilhoso das ogivas irrompe das linhas geométricas e das forças friamente calculadas da mecânica.

Daí as dificuldades crescentes para o artista moderno em ampliar e transmitir, ou reproduzir, a sua emoção pessoal. Entre ele e o espectador, ou o leitor, estão os elos intangíveis de uma série cada vez maior de noções comuns — o perpetuum mobile dessa vasta legislação que resume tudo o que se agita e vive e brilha e canta na existência universal. Diminui-se-lhe a primitiva originalidade. Vinculado cada vez mais ao meio, este lhe impõe a passividade de um prisma: refrata os brilhos de um aspecto da natureza, ou da sociedade, ampliando-os apenas e mal emprestando-lhe os cambiantes de um temperamento. Já lhe não é indiferente, nestes dias, a ideia ou o assunto que tenha de concretizar no mármore ou no livro.

O seu trabalho é a homogenia da sua afetividade e da consciência coletiva. E a sua personalidade pode imprimir-se fundamente num assunto, mas lá permanecerá inútil se destoar das ideias gerais e dos sentimentos da sua época...
***

Tomemos um exemplo.

Há uma estátua do marechal Ney, em que se têm partido todos os dentes da crítica acadêmica e reportada.

Dos múltiplos aspectos da vida dramática e tormentosa do valente, o escultor escolheu o mais fugitivo e revolto: o final de uma carga vitoriosa.

O general, cujo tronco se apruma num desgarre atrevido, mal equilibrado numa das pernas, enquanto a outra se alevanta em salto impetuoso, aparece no mais completo desmancho: a farda desabotoada, e a atitude arremetente num arranco terrível, que se denuncia menos na espada rijamente brandida que na face contorcida, onde os olhos se dilatam exageradamente e exageradissimamente a boca se abre num grito de triunfo.

É um instantâneo prodigioso. Uma vida que se funde no relance de um delírio e num bloco de metal. Um arremesso que se paralisa na imobilidade da matéria, mas para a animar, para a transfigurar e para a idealizar na ilusão extraordinária de uma vida subjetiva e eterna, perpetuamente a renascer das emoções e do entusiasmo admirativo dos que a contemplam.

Mas para muitos são perfeitamente ridículos aquela boca aberta e muda, aquele braço e aquela perna no ar. Em um quadro, sim, conclamam, à frente de um regimento, aquela atitude seria admirável. Ali, não; não se compreende aquela nevrose, aquela violência, aquela epilepsia heroica no isolamento de um pedestal.

Entretanto, o que a miopia da crítica até hoje ainda não distinguiu, adivinhou-o sempre a alma francesa; e o legitimista, o orleanista, o bonapartista e o republicano divergentes, ali se irmanam, enleados pelos mesmos sentimentos, escutando a ressoar para sempre naquela boca metálica o brado triunfal que rolou dos Pirineus à Rússia, e vendo na imprimadura (
passar a primeira demão de tinta) transparente e clara daqueles ares não o regimento tão complacentemente requisitado, mas todo o grande exército...

É que a escultura, sobretudo a escultura heroica, tem por vezes a simultaneidade representativa da pintura, de par com a sucessão rítmica da poesia ou da música. Basta-lhe para isto que se não limite a destacar um caráter dominante e especial, senão que também o harmonize com um sentimento dominante e generalizado.

Neste caso, malgrado o restrito de seus recursos e as exigências máximas de uma síntese artística, capaz de reproduzir toda a amplitude e toda a agitação de uma vida num bloco limitado e imóvel — este ideal é notavelmente favorecido pelo sentimento coletivo. A mais estática das artes, se permitem o dizer, vibra então na dinâmica poderosa das paixões e a estátua, um trabalho de colaboração em que entra mais o sentimento popular do que o gênio do artista, a estátua aparece-nos viva — positivamente viva, porque é toda a existência imortal de uma época, ou de um povo, numa fase qualquer de sua história que para perpetuar-se procura um organismo de bronze.

Porque há até uma gestação para estes entes privilegiados, que renascem maiores sobre os destroços da vida objetiva e transitória. Não bastam, às vezes, séculos. Durante séculos, gerações sucessivas os modelam e refazem e aprimoram, já exagerando-lhes os atributos superiores, já corrigindo-lhes os deslizes e vão transfigurando-os nas lendas que se transmitem de lar em lar e de época em época, até que se ultime a criação profundamente humana e vasta. De sorte que, não raro, a estátua virtual, a verdadeira estátua, está feita, restando apenas ao artista o trabalho material de um molde.

A de Anchieta, em São Paulo, é expressivo exemplo.

Tome-se o mais bisonho artista; e ele a modelará de um lance. Tão empolgante, tão sugestiva é a tradição popular em torno da memória do evangelizador, que o seu esforço se reduzirá ao trabalho reflexo de uma cópia. Não pode errar. As linhas ideais do predestinado corrigem-lhe os desvios do buril.

O elemento passivo, ali, não é a pedra ou o bronze, é o seu gênio. A alma poderosa do herói, nascente do culto de todas as almas, absorve-lhe toda a personalidade, e transfigura-o e imortaliza-o com o mais apagado reflexo da sua mesma imortalidade...

Mas há ocasiões (e aqui se nos antolha [
põe-se diante dos olhos] uma contraprova desta psicologia transcendental e ao parecer singularmente imaginosa) em que a estátua nasce prematura.

Falta-lhe a longa elaboração do elemento popular. Possui talvez admiráveis elementos capazes de a tornarem grande ao cabo de um longo tempo — um longo tempo em que se amorteçam as paixões e se apaguem, pelo só efeito de uma dilatada perspectiva histórica, todas as linhas secundárias de uma certa fase da existência nacional...

Mas não se aguarda esse tempo; não se respeita esse interregno, ou essa quarentena ideal, que livra as grandes vidas dos contágios perniciosos das nossas pequenas vidas; e decreta-se uma estátua, como se fosse possível decretar-se um grande homem.

Então, neste vir fora de tempo, ela é historicamente inviável. E não há golpes de gênio que a transfigurem.

É uma estátua morta.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Euclides da Cunha. Contrastes e confrontos. Publicado originalmente em 1907.

Ficção: História Alternativa (Ucronia)

História alternativa (também denominada ucronia), é um subgênero da ficção especulativa (ou da ficção científica) cuja trama transcorre num mundo no qual a história possui um ponto de divergência da história como nós a conhecemos. A literatura de história alternativa faz a seguinte pergunta: "o que aconteceria se a história tivesse transcorrido de maneira diferente?" A maioria das obras do gênero são baseadas em eventos históricos reais, ainda que aspectos sociais, geopolíticos e tecnológicos tenham se desenvolvido diferentemente. Embora em algum grau toda a ficção possa ser descrita como "história alternativa", um representante apropriado do subgênero contém ficção na qual um ponto de divergência ocorre no passado, fazendo com que a sociedade humana se desenvolva de maneira distinta da nossa.

Desde os anos 1950, este tipo de ficção fundiu-se em grande parte com os tropos da ficção científica envolvendo (a) entrecruzamento de períodos históricos, tempo paralelo, viagens entre histórias/universos alternativos (ou conhecimento psíquico da existência do "nosso" universo por pessoas em outro, como em obras de Philip K. Dick e Vladimir Nabokov), ou (b) viagens rotineiras "para cima" e "para baixo" no tempo resultando na partição da história em duas ou mais linhas temporais.

Cruzamento de épocas, partição do tempo e temas da história alternativa se tornaram tão entrelaçados que é impossível discuti-los separados uns dos outros. O livro de 1962 "O Homem do Castelo Alto" de Philip K. Dick, em que os nazistas venceram a Segunda Guerra Mundial é um dos exemplos mais famosos de história alternativa, tendo marcado profundamente este gênero.

Em francês, romances de história alternativa são denominados uchronie. Este neologismo é baseado na palavra utopia (um lugar que não existe) e na palavra grega para "tempo", chronos. Uma uchronie, então, é definida como um tempo que não existe. Outro termo ocasionalmente utilizado (principalmente em espanhol) é "alohistória" (lit. "outra história").

HISTÓRIA

O mais antigo exemplo conhecido de história alternativa aparece em História de Roma desde sua fundação de Tito Lívio, livro IX, seções 17-19. Nele, o autor reflete sobre a possibilidade de Alexandre, o Grande ter partido para a conquista à oeste, antes de lançar suas tropas para o leste, o que o teria feito atacar Roma no século IV a.C.

NA FRANÇA

A primeira obra efetivamente alo-histórica parece ter sido o romance de Louis Napoléon Geoffroy-Château, denominado Napoléon et la Conquête du Monde (1812-1813), no qual o autor imagina que Napoleão teria conquistado Moscou antes do desastroso inverno de 1812, o que lhe possibilitaria dominar boa parte do mundo.


NA INGLATERRA

Em língua inglesa, a primeira história alternativa conhecida parece ter sido o romance de Nathaniel Hawthorne, P.S. Correspondance, de 1845, livro cuja trama se volta para um homem aparentemente louco e que parece perceber uma realidade na qual figuras políticas e personalidades literárias já falecidas em 1845, tais como os poetas Burns, Byron, Shelley e Keats, o ator Edmund Kean, o político britânico George Canning e mesmo Napoleão Bonaparte ainda estão vivas. O primeiro romance inglês é Aristopia de Castello Holford (1895). Holford imagina o que teria sucedido se os primeiros colonizadores da Virgínia tivessem encontrado um recife de ouro puro, o que teria permitido estabelecer uma sociedade utópica na América do Norte.

EM PORTUGAL

O primeiro exemplo conhecido de literatura de história alternativa em português é o romance História Maravilhosa de D. Sebastião, Imperador do Atlântico (1940, embora a maioria das cópias estejam não datadas) do escritor regionalista beirão português Samuel Maia, obra curiosa que (numa lógica de louvor do Império Português e da ação deste por lógica luso-tropicalista) imagina uma realidade em que o rei D. Sebastião de Portugal venceu a batalha de Alcácer Quibir e Portugal se tornou império dominante no Atlântico.

NO BRASIL

O primeiro exemplo no Brasil é a novela do escritor brasileiro José J. Veiga (1915-1999), A Casca da Serpente (1989), que imagina que Antonio Conselheiro (1830-1897) sobreviveu ao Massacre de Canudos (1897) para fundar uma nova Canudos, que existiu ao longo do século XX até a sua destruição durante o regime militar na década de 1960.

O escritor brasileiro Gerson Lodi-Ribeiro tem feito muito para promover a história alternativa em língua portuguesa. Sua noveleta "A Ética da Traição" (1993) é considerada um clássico moderno da ficção científica brasileira. Imagina um presente alternativo em que o Brasil é um país muito menor, em razão da sua derrota na Guerra do Paraguai (1864-1870). Lodi-Ribeiro também escreveu história alternativa sob o pseudônimo de "Carla Cristina Pereira", explorando um cenário em que os portugueses chegaram à América antes de Colombo, e, aliados aos astecas, passam a construir um império global. Assumindo o pseudônimo em 2009, publicou com o seu próprio nome um romance dentro desse cenário, Xochiquetzal: Uma Princesa Asteca entre os Incas.

Publicada no Brasil em 2009, a antologia Steampunk: Histórias de um Passado Extraordinário, editada por Gianpaolo Celli, traz algumas histórias de história alternativa.

Em 2010, o escritor brasileiro Roberto de Sousa Causo teve publicada em livro a novela Selva Brasil, que imagina uma linha temporal alternativa em que o Brasil teria tentado invadir militarmente as Guianas, no início da década de 1960, ordenada pelo então presidente Jânio Quadros (1917-1992), a história é ambientada em 1993 e imagina um Brasil transformado por um conflito persistente em sua fronteira norte.

Em 2015, foram lançados os livros E de Extermínio e Segunda Pátria, ambos respectivamente das editoras Draco e Intrínseca. O primeiro, escrito por Cirilo Lemos, imagina um Brasil que permaneceu sob a monarquia até meados do século XX, até a eclosão de uma guerra civil entre republicanos, apoiados pelos americanos, e monarquistas, apoiados pelos soviéticos, após a saúde do imperador entrar em crise. O segundo, escrito por Miguel Sanches Neto, imagina a vida em um Brasil que às vésperas da Segunda Guerra Mundial, sob o governo de Getúlio Vargas, decide se aliar ao Eixo.

Em 2016, a editora paulista Linotipo Digital lançou o romance de estreia de Edson Miranda, O Agente do Imperador e o Dedo da Morte, que imagina a atuação do agente secreto brasileiro André Reis frente à uma ameaça nuclear. O livro tem como cenário um mundo no qual a monarquia brasileira sobreviveu até os dias atuais e se desenvolveu junto às potências do primeiro mundo.

Fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_alternativa

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Vanda Fagundes Queiroz (Trovando) “07”

 

A. A. de Assis (Rosas e Raízes)

Passamos diante da roseira e louvamos a beleza e o perfume das rosas. Passamos diante da parreira e proclamamos o sabor das uvas. Pouquíssimas pessoas “se lembram de lembrar” que somente existem rosas e uvas porque existem raízes sustentando roseiras e parreiras.

Mães lembram raízes. Sem elas, não existiria a humanidade. No entanto, quando celebramos os méritos de alguém, raríssimas vezes mencionamos o nome da mãe desse alguém. Sequer sabemos o nome dela. Sequer nos passa pela cabeça que aquela pessoa ilustre só existe porque um dia uma valorosa mulher a gerou no ventre, amamentou sua infância, carregou-a no colo e a preparou para a vida.

Quem sabe o nome da mãe do papa Francisco? Quem sabe o nome da mãe do líder indiano Gandhi? E da mãe do pastor Luther King? E da mãe da Ângela Merkel? E da mãe do Kennedy? E da mãe do Pelé? E da mãe do Frank Sinatra? E da mãe da Madonna? E da mãe do Roberto Carlos? E da mãe da Martha, a melhor jogadora de futebol do mundo? E da mãe do Getúlio Vargas? E da mãe do John Lennon? E da mãe da Lady Diana? E da mãe do Brad Pitt?…

Badala-se a rosa; esquece-se da raiz. Festejam-se o filho famoso e a filha estrela; esquece-se de que um e outra são badalados e brilhantes porque nasceram do ventre de alguém que os introduziu na vida e por eles muitas lágrimas derramou. Por eles perdeu muitas noites de sono. Por eles renunciou a muitas alegrias. Por eles se escondeu no anonimato.

Houve alguém que trocou as fraldas do Barack Obama. Houve alguém que passou talco no bumbum do Bill Gates. Houve alguém que deu de mamar à Ivete Sangalo. Houve alguém que colocou mingauzinho na boca da Julia Roberts. Houve alguém que limpou o cocô do Plácido Domingos. Houve alguém que um dia fez a camisa branca para o batizado do padre Zezinho. Houve alguém que ensinou a “Ave Maria” à Santa Paulina.

Houve alguém que ensinou Cristiano Ronaldo a dizer “mamãe”, “papai”. Houve alguém que levou Mário Quintana ao postinho pra tomar vacina. Houve alguém que muitas vezes levantou de madrugada para cobrir no berço o Tony Ramos. Houve alguém que sofreu as dores do parto para que nascesse a Elis Regina. Quem foi? Você, por acaso, já ouviu dizer?

Mas as mães são assim. Sempre foram. Mesmo as mais modernas são geralmente assim. Sua alegria está na alegria dos filhos e filhas. Sua vitória está na vitória das filhas e filhos. Sua vida está na vida daqueles e daquelas a quem transmitiu o dom da existência.

Não importa que ninguém saiba os seus nomes ou note a presença delas. Importa é que sem elas a humanidade não existiria.

Lá no fundo do seu coração bonito, elas sabem que, apesar de tudo, continuam sendo alvo do nosso mais carinhoso amor. Que Nossa Senhora, Maria querida, Mãe de Jesus, as abençoe.

(Crônica publicada na edição de 11 de maio de 2023, do Jornal do Povo)

Fonte:
Portal do Rigon
https://angelorigon.com.br/2023/05/11/rosas-e-raizes/

Filemon Martins (Poemas Escolhidos) XXIII


A CAMINHADA


Recordo, com prazer, a caminhada
e amigos que ganhei estrada afora.
Quantas vezes fiquei na encruzilhada
tentando achar a luz da nova aurora.

Passei manhãs ao som da passarada,
cavando a terra e pondo sem demora
a semente na terra abençoada,
enquanto a enxada tine a voz sonora.

Depois, parti. Tornei-me um peregrino
e a saudade marcou o meu destino
deixando-me profunda cicatriz...

Hoje, não deixo mágoas nem gemidos,
apenas flores — versos coloridos,
e a sensação de ser muito feliz!
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CÂNTICO DA ESPERANÇA

Depois de palmilhar estrada afora,
a vida, sutilmente, me ensinou
que em cada dia nasce nova aurora
e me diz que a Esperança não findou.

Na vida, muitos sonhos vão embora,
outros chegam... Nem tudo terminou,
A Luz há de brilhar a qualquer hora,
que um futuro melhor já começou.

— Ó vós que andais sozinhos pelo mundo
achando que o passado é charco imundo,
praticai sempre o bem seja a quem for…

Porque no coração — templo sagrado,
o sonho há de voltar — iluminado -
trazendo sempre uma lição de Amor!
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MORTE DA ÁRVORE
(Lendo o soneto “Árvore Morta”do Padre Saturnino de Freitas)

Arvore triste, que ontem foi bonita,
não tens mais ramos, frutos e nem flores,
dos pássaros não és mais favorita
e não abrigas mais tantos amores.

Neste teu tronco já ninguém habita,
sequer amantes loucos, sonhadores,
que outrora segredavam na Mesquita
de suas folhas vivas, multicores...

Quantas vezes ouviste namorados
em carinhos e beijos, descuidados,
como se o tempo não fosse passar.

Hoje, teus galhos secos, ressequidos,
são lembranças de sonhos esquecidos,
que nunca mais, na vida, vão voltar!
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O AMOR

Como a planta que nasce no quintal,
se bem cuidada cresce e fica linda.
Também o amor que nasce natural
pode crescer, viver, florir, ainda.

É preciso, porém, que o amor normal
seja cuidado com ternura infinda.
O verdadeiro amor não tem rival,
a beleza do corpo é que se finda.

Quando o amor se revela por inteiro,
o carinho renasce e vem primeiro
ornando a vida e sobrepondo a dor.

E juntos seguem pela vida afora
vivendo intensamente a nova aurora,
iluminados pela luz do amor!
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RESSURREIÇÃO

Já não lamento o fim daquele sonho
que o tempo, impiedoso, me levou.
— Venturas e alegrias — pressuponho
tombaram pelo chão — nada sobrou.

Por que sofrer, chorar, viver tristonho?
Se o vendaval que assusta já passou?
Reconstruir é tudo o que me imponho
e gritar para o mundo; aqui estou.

Tal como a fênix, ressurgir da morte
e as cinzas sacudir buscando a sorte,
embora os olhos marejados d'água.

Meus versos jorrarão como uma fonte
fervilhando de amor vencendo a ponte,
mesmo cobertos de saudade e mágoa!
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Fonte:
Enviado pelo autor.
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.

Marques de Carvalho (Que bom marido!)

A Juvenal Tavares

Não desejarás a mulher do teu próximo.
Mandamento de Deus.


Havia já três anos que estavam casados. Não tinham filhos. Viviam felizes, tranquilos, na sua casinha da estrada de S. Braz, de frente pintada a cal, onde o sol da manhã brincava alegremente numas cintilações que davam a nota de grande prazer interno ao passeante que para ela dirigisse perscrutador olhar.

Ele era um velho quarentão, amanuense de secretaria, obeso, rubicundo (rubro), de rosto espalmado e barbas hirsutas e grisalhas. A mocidade que tivera, — tempestuosa e puída nas orgias, — encanecera-lhe completamente os cabelos da cabeça, os quais desciam para o rosto, onde cruzavam-se numerosas rugas sobre a pele cor de ginja (cereja).

Ela tinha dezoito primaveras, — para me servir de uma velha expressão do romantismo; — ostentava uma carinha faceira, risonha, de olhos pretos e marotos. Tez morena e aveludada. Um sorriso excitantemente encantador descerrava-lhe os lábios vermelhos, mostrando duas filas de dentes mais alvos do que os de um cão da Terra-Nova. O corpo, flexível como a haste da angélica, era ágil e dotado de sedutores meneios, que impressionavam bem profundamente a mais de meia dúzia de gamenhos (janotas) vadios, — desses namoradores enfatuados que abundam por toda a parte.

O seu regime de vida era, invariavelmente, este: de manhã, ás 8 horas, depois do respectivo e parco almoço, o sr. Bonifácio escovava com a manga da sobrecasaca o solene chapéu alto, dava um xoxo (beijos e abraços) à mulher e saía para a repartição com o passo do empregado publico: — impassível e cadenciado.

Elvira acompanhava o esposo até à porta da rua, fazia-lhe uma pequena caricia e voltava à varanda, afim de dar algumas ordens acerca do jantar. Dispostas as coisas para a segunda refeição, ia sentar-se à máquina de costura, que dava-lhe não diminuta receita para as despesas diárias. O ganho desses trabalhos e os vencimentos do sr. Bonifácio formavam uma soma bem razoável todos os meses, a qual lhes permitia de tempos a tempos o luxo de um camarote no teatro da Paz e um passeio de bonde em noites de luar, um vestido novo para o círio de Nazareth, algumas dúzias de pistolas e bexiguinhas na festa de S. João e mais outras regalias, que alegravam o gorducho amanuense e forneciam à encantadora esposa dele ensejo de satisfazer a sua natural vaidade de mulher bonita e nova.

Como acontece algumas vezes, a virtuosa esposa do sr. Bonifácio tinha seus adoradores, — rapazes toleirões (palermas, tolos), aos quais ela, diga-se a verdade, não ligava muita importância. Entre esses moços, quem mais assiduamente a requisitava era um tal Jacinto, — um leão conquistador que falava pelos cotovelos, muito tolo, ignorante de tudo, exceto da arte do namoro atrevido. Este Jacinto apaixonara-se por Elvira poucos dias depois do casamento dela, por ocasião de um passeio a Benevides. Desde essa época, o pobre namorado sem ventura passava todas as tardes pela casa do Bonifácio, quando Elvira ia para a janela, enquanto o marido, na varanda, jogava o solo (jogo de cartas semelhante ao voltarete) com o taberneiro da esquina e o vizinho da direita. Ao passar em frente a Elvira, enviava-lhe um sorriso e um cumprimento. A esposa do honrado amanuense retribuía a este último e conservava-se muito séria, muito digna, sem corresponder àquele. Passavam os dias, passavam os meses, e Jacinto era pontual à entrevista, na qual Elvira já parecia interessar-se, pois que também não deixava de ir para a janela assim que, lá na varanda, o sr. Bonifácio, o taberneiro e o vizinho começavam no passo e no bolo. É que a interessante senhora tinha um espírito ardente, fantasista, que não podia se contentar com os sós afagos morosos e frios do velho Bonifácio. Não obstante, nenhum passo mau desejava dar. Entregava-se àquilo a que chamava "uma distração", mais para satisfazer uma vaga curiosidade do que para cometer um crime.


Jacinto não era um homem que perdesse a paciência. Assistia tranquilo a esse desperdício de tempo, convicto do axioma que reza: "Agua mole em pedra dura, tanto dá até que fura." Tinha confiança no futuro, que resolveria, com vantagem, — aquele interessante problema de amor.

Uma tarde, — era em meados de junho, passou o Jacinto, deveras admirado por ver que a sua querida não estava à janela. Olhou para os dois lados da rua e não enxergou ninguém. A estrada de S. Braz apresentava a aparência de um velho cemitério abandonado: nem um só vivente se via.

Constrangido, dispôs-se a continuar, quando avistou uma rapariguinha mulata, que saía da casa do sr. Bonifácio. Correu a ela e perguntou:

— Onde está a d. Elvira, minha filha?

A mulatinha fitou-o espantada e, curvando a cabeça para o peito, meteu na boca o indicador da mão direita, conservando-se calada.

— Vamos, fala, toma um tostão... Onde está a d. Elvira? — insistia o leão fazendo escorregar um níquel para o seio da pequena.

Esta, ao sentir o contacto da moeda, lembrou-se dos rebuçados da freguesa e disse, ainda meio acanhada:

— Está lá dentro....

— E o sr. Bonifácio?

— Saiu.

— Dou-te outro níquel se fores levar uma carta à tua senhora, queres?

— Eu quero...

Jacinto tirou do bolso uma carta que escrevera havia muito tempo e que, por cautela, não datara nem assinara. Entregou-a à mulatinha e conjuntamente outro tostão.

Depois seguiu pela estrada adiante.

Elvira não deu resposta àquela carta, que lhe revelara o grande amor que por ela sentia o Lovelace (namorador galante) paraense. Este não desanimou: deixou de passar pela estrada de S. Braz durante dois dias, após os quais voltou, seguindo pelo passeio, rente à janela. Sacudiu-lhe ao colo nova epístola. Repetiu o mesmo jogo por uma semana. Finalmente, Elvira não pôde resistir mais, mandou-lhe uma carta toda cheia de temores, toda receosa, na qual confessava que o Jacinto não era-lhe indiferente, mas que devia abrir mãos àquele amor, porquanto a sua "posição de mulher casada não lhe permitia tão gratas liberdades."

Desde então em diante, apesar desses receios continuaram as cartinhas a passar dos bolsos do Jacinto para o seio de Elvira e do seio desta para os bolsos daquele. É que houve uma tarde em que Elvira entrou a confrontar o físico do sr. Bonifácio com o de Jacinto. Esse confronto e as reminiscências de muitas leituras românticas deram causa à correspondência criminosa.

Havia já alguns meses que o amor dos dois não tivera outras expansões além daquelas missivas platônicas. O temperamento de Jacinto era mais exigente.

Uma tarde de dezembro, o sr. Bonifácio descia do bonde em frente de casa, de volta de uma visita que fora fazer a seu chefe de seção. Transpondo o limiar da porta, encontrou a mulatinha que saía apressadamente, escondendo mal entre as dobras do vestido um objeto que atraiu-lhe a atenção de velho curioso.

— Que levas aí? — perguntou.

— Não é nada... — respondeu a rapariga nessa voz cantada peculiar aos paraenses.

— Não mintas! Eu vi não sei quê! — bradou o sr. Bonifácio puxando-a pelo braço e apoderando-se do objeto.

Era um bilhete. Abriu-o, assestou-lhe os óculos e leu:

"Meu amigo, depois de amanhã, à meia noite, meu marido vai ouvir a missa do galo em Sant’-Anna. Finjo-me adoentada para ficar em casa, afim de conversar consigo e saber dessa novidade que prometeu contar-me. Venha à 1 hora. Acautele-se bem; que ninguém o veja.
ELVIRA.»

O Bonifácio subiu ao arame; ficou da cor da púrpura e sentiu uma violentíssima dor de cabeça. Teve ímpetos ardentes de ir assassinar a esposa infiel; refletiu, porém, e socorreu-se de um alvitre que lhe apareceu de súbito no espírito com rubros lampejos de sanguinária vingança.

— Toma, leva! — disse entregando a carta à rapariga.

E entrou.


Batem as 12 horas da noite de 24 de dezembro. Grupos folgazões de moços de ambos os sexos passam pelas ruas de Belém em direção ás diferentes igrejas onde se deve rezar a missa do galo.

O sr. Bonifácio, que levantou-se à ultima pancada das 11 horas, sai para a rua, deixando em casa a mulher incomodada "com muita dor de cabeça..."

À 1 hora, um vulto apareceu na esquina, aproximando-se a passos ligeiros até chegar em frente ao domicilio do amanuense Bonifácio. Era o Jacinto, que bateu pressuroso e baixinho em uma das janelas. Respondeu-lhe do interior um leve ruído. Jacinto estremeceu de contentamento, pregozando os prazeres que ia fruir na conversação de Elvira, quando subitamente exalou um grito, dando um salto para o lado.

Era o respeitável sr. Bonifácio, que saindo de trás da mangueira onde ocultara-se, desancava a bom desancar o peralvilho (janota, almofadinha) que tivera a lembrança de namorar-lhe a mulher.

Quando Jacinto saltou para o meio da rua, recorreu o sr. Bonifácio à pouca agilidade que ainda possuía e acompanhou-o, continuando a sova-lo fortemente, numa agitação febril...

O pobre rapaz gritava dolorosamente. Ninguém acudiu-lhe: todos os vizinhos haviam saído para a missa do galo.

Quando cansou, quando os braços negaram-se a continuar, o honrado amanuense, despedindo olhares terríveis para todos os lados, disse ao Jacinto, que achava-se por terra, com os ossos quase moídos:

— Vá-se embora, seu tratante e tenha mais juízo! Não torne a cair na asneira de namorar moças casadas!

E retirou-se para casa, a cuja porta entreaberta estava Elvira, transida (enregelada) de medo.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
João Marques de Carvalho. Contos Paraenses. PA: Pinto Barbosa e C., 1889.
Atualização do português por J. Feldman

terça-feira, 6 de junho de 2023

Isabel Furini (Poema 45): Inquieto

Fonte: Isabel Furini. Flores e Quimeras. 2017. Ebook.

Leandro Bertoldo Silva (Maternidade)

Maternidade era uma das palavras esquecidas no seu dicionário. Era fácil demais para algumas pessoas pensarem nisso, não para ela, de corpo perfeito e vida em liberdade. Por isso, seu ventre crescido estava na contramão de todos e recordava sua rejeição. Daquele invólucro perfeito, ficariam cicatrizes, marcas que sobreporiam ao efemeramente físico e atingiriam sonhos interrompidos.

Dejanira era mulher do mundo. Esse era o resguardo que nunca pensou em abandonar, nem sequer substituí-lo por um momento que fosse. Sentia-se sem vida, apesar da vida que crescia dentro de si. E, agora, mesmo sendo duas, teimava em sua solidão. O tempo passava, mas não levava a angústia que aumentava a cada dia que a circunscrição de seu estado apontava. Já dividia seu alimento, mesmo sem sua permissão, como seria dividir o resto? Era o que pensava desolada e inquieta. Só havia um jeito: acabar logo com aquilo. Porém, o feto crescido já era uma criança e, antes mesmo de pensar em qualquer outra coisa, de seu corpo redondo começou a emergir um líquido que, ao rebentar da bolsa, jorrou junto com uma sensação indefinível que a urgência do momento não permitiu reflexões. Elas só vieram quando, já com a criança liberta deitada em seu peito em meio aos médicos, começou a cantarolar uma cantiga de ninar no mesmo momento em que seus seios saciavam o filho que calava a ouvir.

Seus olhos recém-maternos se iluminaram, e o coração, que antes rejeitava, agora acalentava e se punha a descobrir uma desconhecida impressão felina e protetora.

A mulher do mundo sem fronteiras não sabia se o choro convulso que irrompia naquele instante era amor ou remorso, talvez fossem os dois. Aquele momento eternizado na música que embalava sua criança fazia pensar: afinal, é a mãe quem dá à luz um filho ou é o filho que faz nascer a mãe?

Fonte:
Árvore das Letras. Site do autor.
https://arvoredasletras.com.br/2023/05/14/maternidade-3/

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XXX


Soneto para Maria Helena


Tu que por crenças vãs a Vida arrasas
e ante o espelho não queres ver que és,
que imagina viver abrindo as asas
e te esqueces de andar com os próprios pés...

Que transforma o Sonho num revés
mesmo a acender o fogo em que abrasas,
e te algema as mãos, - as mãos escravas
como as do prisioneiro das galés.

Tu que te enganas a falar de alturas
com as palavras mais belas e mais puras
e te imolas num gesto superior,

não percebes nessa ânsia de suicida
que nada há enfim mais alto do que a Vida
quando a erguemos num brinde - ébrios de amor!
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Sorrio...

Ah! vieste me falar de antigamente
desse tempo em que fui sentimental,
quando o amor era um sonho puro e ardente
vestido em véu de espumas, nupcial...

Quando me dava, perdulariamente,
vivendo o mal sem conhecer o mal,
a levar a alma inquieta de quem sente
e de quem busca uma conquista ideal...

Era sestro da idade essa existência...
Sinal de pouca vida e muito sonho,
de muito sonho... e pouca experiência...

Hoje, no entanto, se a pensar me ponho:
- sorrio... Um vão sorriso de indulgência...
...Sinal de muita vida... e pouco sonho…
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Suprema  Ironia

Não digas que não sofro - o meu sofrer profundo
com um sorriso nos lábios muita vez apago...
A dor - é coo a pedra que cai - vai pro fundo
sob a face serena e tranquila do lago...

Um segundo de pura alegria - um segundo
muitas vezes me basta, e já me dou por pago...
Se invejo, invejo aquele que não tendo um mundo,
tem mundo para além do olhar ardente e vago...

Que eu não ando a dizer que sofro e me atormento!
É covardia a gente maldizer-se à toa
a viver esta vida entre um ai e um lamento...

Eu, não! Bem sei que sofro, mas sofrer - que importa ?
Digo aos homens que o mundo é belo, a vida é boa!
E... suprema ironia... a minha voz conforta!
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Supremo Orgulho

Nunca soube pedir...Nunca soube implorar...
Nasci, tendo este orgulho em minha lama irrequieta,
- há  um brilho que incendeia o meu altivo olhar
de crente superior... de indiferente asceta...

Minha fronte, jamais, eu soube curvar
na atitude servil de uma existência abjeta...
Ninguém é mais que eu!... Ninguém... e este meu ar
de orgulho, vem da glória imensa de ser poeta...

Sou pobre - mas riqueza alguma há igual à minha,
- a mulher que eu amar terá a glória suprema
de um dia se sentir maior que uma rainha....

Terá a glória de saber o seu nome
perpetuado por mim nas estrofes de um poema,
desses que a História guarda e o Tempo não consome !
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Surpresa

Começamos assim: - eu, tendo em mente
fingir gostar apenas: namorar,
como chamam na vida comumente
aos primeiros encontros de algum par...

Tu, disposta a prender-me ao teu olhar
por um mero capricho e, fatalmente,
depois que eu me curvasse a te adorar
trocar-me-ias por outro facilmente...

Começamos assim - logo, no entanto
- aquilo que pensei, não consegui,
nem conseguiste o que querias tanto...

E afinal - que belíssima surpresa !...
- Eu, de tanto fingir:  –  gostei de ti,
tu, querendo prender: - ficaste presa !...

Fonte:
JG de Araújo Jorge. Meus sonetos de amor. RJ: Ed. do Autor, 1961.

Machado de Assis (Habilidoso)

Paremos neste beco. Há aqui uma loja de trastes velhos, e duas dúzias de casas pequenas, formando tudo uma espécie de mundo insulado. Choveu de noite, e o sol ainda não acabou de secar a lama da rua, nem o par de calças que ali pende de uma janela, ensaboado de fresco. Pouco adiante das calças, vê-se chegar à rótula a cabeça de uma mocinha, que acabou agora mesmo o penteado, e vem mostrá-lo cá fora; mas cá fora estamos apenas o leitor e eu, mais um menino, a cavalo no peitoril de outra janela, batendo com os calcanhares na parede, à guisa de esporas, e ainda outros quatro, adiante, à porta da loja de trastes, olhando para dentro.

A loja é pequena, e não tem muito que vender, coisa pouco sensível ao dono, João Maria, que acumula o negócio com a arte, e dá-se à pintura nas horas que lhe sobram da outra ocupação, e não são raras. Agora mesmo está diante de uma pequena tela, tão metido consigo e com o trabalho, que podemos examiná-lo a gosto, antes que dê por nós.

Conta trinta e seis anos, e não se pode dizer que seja feio; a fisionomia, posto que trivial, não é desengraçada. Mas a vida estragou a natureza. A pele, de fina que era nos primeiros anos, está agora áspera, a barba emaranhada e inculta, embaixo do queixo, onde ele usa rapá-la, não passa navalha há mais de quinze dias. Tem o colarinho desabotoado e o peito à mostra, não veste paletó nem colete, e as mangas da camisa, arregaçadas, mostram o braço carnudo e peludo. As calças são de brim pardo, lavadas há pouco, e muito remendadas nos joelhos, remendos antigos, que não resistem à lavadeira, que os desfia na água, nem à costureira, que os recompõe. Uma e outra são a própria mulher de João Maria, que reúne aos dois misteres o de cozinheira da casa. Não há criados; o filho, de seis para sete anos, é que lhes vai às compras.

João Maria veio para este beco há uns quinze dias. Conta fazer alguma coisa, embora seja lugar de pouca passagem, mas não há, no bairro, outra casa de trastes velhos, e ele espera que a notoriedade vá trazendo os fregueses. Demais, não teve tempo de escolher, mudou-se às pressas, por intimação do antigo proprietário. Ao menos, aqui o aluguel é módico. Até agora, porém, não vendeu mais que um aparador e uma gaiola de arame. Não importa! Os primeiros tempos são mais difíceis. João Maria espera, pintando.

Pintando o que, e para quê? João Maria ignora absolutamente as primeiras lições do desenho, mas desde tenra idade pegou-lhe o sestro de copiar tudo o que lhe caía nas mãos, vinhetas de jornais, cartas de jogar, padrões de chitas, o papel das paredes, tudo. Também fazia bonecos de barro, ou esculpia-os a faca nos sarrafos e pedaços de caixão. Um dia aconteceu-lhe ir à exposição anual da Academia das Belas-Artes, e voltou de lá cheio de planos e ambições. Engenhou logo uma cena de assassinato, um conde que matava a outro conde; rigorosamente, parecia oferecer-lhe um punhal. Engenhou outros, alastrou as paredes, em casa, de narizes, de olhos, de orelhas, vendo na Rua da Quitanda um quadro que representava um prato de legumes, atirou-se aos legumes, depois, viu uma marinha, e tentou as marinhas.

Toda arte tem uma técnica; ele aborrecia a técnica, era avesso à aprendizagem, aos rudimentos das coisas. Ver um boi, reproduzi-lo na tela, era o mais que, no sentir dele, se podia exigir do artista. A cor apropriada era uma questão dos olhos, que Deus deu a todos os homens, assim também a exação (
precisão) dos contornos e das atitudes dependia da atenção, e nada mais. O resto cabia ao gênio do artista, e João Maria supunha tê-lo. Não dizia gênio, por não conhecer o vocábulo, senão no sentido restrito de índole — ter bom ou mau gênio —, mas repetia consigo mesmo a palavra, que ouvia aos parentes e aos amigos, desde criança.

— João Maria é muito habilidoso.

Assim se explica que, quando alguém disse um dia ao pai que o mandasse para a academia, e o pai consentiu em desfazer-se dele, João Maria recusasse a pés juntos. Foi assim também que, depois de andar por ofícios diversos, sem acabar nenhum, veio a abrir uma casa de trastes velhos, para a qual se lhe não exigiam estudos preparatórios.

Nem aprendeu nada, nem possuía o talento que adivinha e impele a aprender e a inventar. Via-se-lhe, ao menos, alguma coisa parecida com a faísca sagrada? Coisa nenhuma. Não se lhe via mais que a obstinação, filha de um desejo, que não correspondia às faculdades. Começou por brinco, puseram-lhe a fama de habilidoso, e não pôde mais voltar atrás. Quadro que lhe aparecesse, acendia-lhe os olhos, dava rebate às ambições da adolescência, e todas vinham de tropel, pegavam dele, para arrebatá-lo a uma glória, cuja visão o deslumbrava. Daí novo esforço, que o louvor a outros vinha incitar mais, como ao brio natural do cavalo se junta o estímulo das esporas.

Vede a tela que está pintando, à porta. É uma imagem de Nossa Senhora, copiada de outra que viu um dia, e esta é a sexta ou sétima em que trabalha.

Um dia, indo visitar a madrinha, viúva de um capitão que morreu em Monte Caseros, viu em casa dela uma Virgem, a óleo. Até então só conhecia as imagens de santos nos registros das igrejas, ou em casa dele mesmo, gravadas e metidas em caixilho. Ficou encantado; tão bonita! cores tão vivas! Tratou de a decorar para pintar outra, mas a própria madrinha emprestou-lhe o quadro. A primeira cópia que ele fez, não lhe saiu a gosto, mas a segunda pareceu-lhe que era, pelo menos, tão boa como o original. A mãe dele, porém, pediu-lha para pôr no oratório, e João Maria, que mirava o aplauso público, antes do que as bênçãos do céu, teve de sustentar um conflito longo e doloroso, afinal cedeu. E seja dito isto em honra dos seus sentimentos filiais, porque a mãe, D. Inácia dos Anjos, tinha tão pouca lição de arte, que não lhe consentiu nunca pôr na sala uma gravura, cópia de Hamon, que ele comprara na Rua da Carioca, por pouco mais de três mil réis. A cena representada era a de uma família grega, antiga, um rapaz que volta com um pássaro apanhado, e uma criança que esconde com a camisa a irmã mais velha, para dizer que ela não está em casa. O rapaz, ainda imberbe, traz nuas as suas belas pernas gregas.

— Não quero aqui estas francesas sem-vergonha! – bradou D. Inácia; e o filho não teve remédio senão encafuar (
esconder) a gravura no quartinho em que dormia, e no qual não havia luz.

João Maria cedeu a Virgem e foi pintar outra; era a terceira, acabou-a em poucos dias. Pareceu-lhe o melhor dos seus trabalhos: lembrou-se de expô-lo, e foi a uma casa de espelhos e gravuras, na Rua do Ouvidor. O dono hesitou, adiou, tergiversou, mas afinal aceitou o quadro, com a condição de não durar a exposição mais de três dias. João Maria, em troca, impôs outra: que ao quadro fosse apenso um rótulo, com o nome dele e a circunstância de não saber nada. A primeira noite, depois da aceitação do quadro, foi como uma véspera de bodas. De manhã, logo que almoçou, correu para a Rua do Ouvidor, a ver se havia muita gente a admirar o quadro. Não havia então ninguém. Ele foi para baixo, voltou para cima, rondando a porta, espiando, até que entrou e falou ao caixeiro.

— Tem vindo muita gente?

— Tem vindo algumas pessoas.

— E olham? Dizem alguma coisa?

— Olhar, olham! Agora se dizem alguma coisa, não tenho reparado, mas olham.

— Olham com atenção?

— Com atenção.

João Maria inclinou-se para o rótulo, e disse ao caixeiro que as letras deviam ter sido maiores; ninguém as lia da rua. E saiu à rua, para ver se podiam-se ler. Concluiu que não, deviam ter sido maiores as letras. Assim como a luz não lhe parecia boa. O quadro devia ficar mais perto da porta. Mas aqui o caixeiro acudiu, dizendo que não podia alterar a ordem do patrão. Estavam nisto, quando entrou alguém, um homem velho, que foi direito ao quadro. O coração de João Maria batia que arrebentava o peito. Deteve-se o visitante alguns momentos, viu o quadro, leu o rótulo, tornou a ver o quadro, e saiu. João Maria não pôde ler-lhe nada no rosto. Veio outro, vieram mais outros, uns por motivo diverso, que apenas davam ao quadro um olhar de passagem, outros atraídos por ele; alguns recuavam logo como embaçados. E o pobre diabo não lia nada, coisa nenhuma nas caras impassíveis.

Foi essa Virgem o assunto a que ele voltou mais vezes. A tela que está agora acabando, é a sexta ou sétima. As outras deu-as logo, e chegou a expor algumas, sem melhor resultado, porque os jornais não diziam palavra. João Maria não podia entender semelhante silêncio, a não ser intriga de um antigo namorado da moça, com quem estava para casar. Nada, nem uma linha, uma palavra que fosse. A própria casa da Rua do Ouvidor onde os expôs recusou-lhe a continuação do obséquio. Recorreu à outra da Rua do Hospício, depois a uma da Rua da Imperatriz, a outra do Rocio Pequeno. Finalmente não expôs mais nada.

Assim que, o círculo das ambições de João Maria foi-se estreitando, estreitando, estreitando, até ficar reduzido aos parentes e conhecidos. No dia do casamento forrou a parede da sala com as suas obras, ligando assim os dois grandes objetos que mais o preocupavam na vida. Com efeito, a opinião dos convidados é que ele era “um moço muito habilidoso”. Mas esse mesmo horizonte foi-se estreitando mais, o tempo arrebatou-lhe alguns parentes e amigos, uns pela morte, outros pela própria vida, e a arte de João Maria continuou a mergulhar na sombra.

Lá está agora diante da eterna Virgem. Retoca-lhe os anjinhos e o manto. A tela fica ao pé da porta. A mulher de João Maria veio agora de dentro, com o filho. Vai levá-lo a um consultório homeopático, onde lhe dão remédios de graça para o filho, que tem umas feridas na cabeça.

Ela faz algumas recomendações ao marido, enquanto este dá uma pincelada no painel.

— Você escutou, João Maria?

— Que é? - disse ele distraidamente, recuando a cabeça para ver o efeito de um rasgo.

— A panela fica no fogo. Você daqui a pouco vá ver.

João Maria respondeu que sim, mas provavelmente não prestou atenção.

A mulher, enquanto o filho conversa com os quatro meninos da vizinhança, que estão à porta, olhando para o quadro, ajusta o lenço ao pescoço. A fisionomia mostra a unhada do trabalho e da miséria, a figura é magra e cansada. Traz o seu vestido de sarja preta, o de sair, não tem outro, já amarelado nas mangas e roído na barra. O sapato de duraque (
espécie de sarja forte) tem a beirada da sola comida das pedras. Ajusta o lenço, dá a mão ao filho, e lá vai para o consultório. João Maria fica pintando; os meninos olham embasbacados.

Olhemos bem para ele. O sol enche agora o beco; o ar é puro e a luz magnífica. A mãe de um dos pequenos, que mora pouco adiante, brada-lhe da janela que vá para casa, que não esteja apanhando sol.

— Já vou, mamãe! Estou vendo uma coisa!

E fica a mirar a obra e o autor. Senta-se na soleira, os outros sentam-se também, e ficam todos a olhar boquiabertos. De quando em quando dizem alguma coisa ao ouvido um do outro, um reparo, uma pergunta, qual dos anjinhos é o Menino Jesus, ou o que quer dizer a lua debaixo dos pés de Nossa Senhora, ou então um simples aplauso ingênuo, mas tudo isso apenas cochichado, para não turvar a inspiração do artista. Também falam dele, mas falam menos, porque o autor de coisas tão bonitas e novas infunde-lhes uma admiração mesclada de adoração, não sei se diga de medo — em suma, um grande sentimento de inferioridade.

Ele, o eterno João Maria, não volta o rosto para os pequenos, finge que os não vê, mas sente-os ali, percebe e saboreia a admiração. Uma ou outra palavra que lhe chega aos ouvidos faz-lhe bem, muito bem. Não larga a palheta. Quando não passeia o pincel na tela, para, recua a cabeça, dá um jeito à esquerda, outro à direita, fixa a vista com mistério, diante dos meninos embasbacados. Depois, unta a ponta do pincel na tinta, retifica uma feição ou aviva o colorido.

Não lhe lembra a panela ao fogo, nem o filho que lá vai doente com a mãe. Todo ele está ali. Não tendo mais que avivar nem que retificar, aviva e retifica outra vez, amontoa as tintas, decompõe e recompõe, encurva mais este ombro, estica os raios àquela estrela. Interrompe-se para recuar, fita o quadro, cabeça à direita, cabeça à esquerda, multiplica as visagens, prolonga-as, e a plateia vai ficando a mais e mais pasmada. Que este é o último e derradeiro horizonte das suas ambições: um beco e quatro meninos.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Publicado originalmente em Gazeta de Notícias, de 06  de setembro de 1885.

Minha Estante de Livros (A Cor da Magia, de Terry Pratchett)


A Cor da Magia é um romance de fantasia, publicado em 1983, por Terry Pratchett, sendo o primeiro livro da série Discworld. O livro faz uma sátira aos livros de aventuras fantástica e tem bastante traços de criaturas de H.P. Lovecraft

ROTEIRO

O personagem principal é o cínico e incompetente mago chamado Rincewind Ele involuntariamente torna-se um guia para o tolo DuasFlor o primeiro e único turista do Discworld. Forçados a fugir da cidade de Ankh-Morpork para fugir de um terrível incêndio, começam uma jornada pelo Disco afora. Sem o conhecimento deles, sua jornada é controlada pelos Deuses jogando um jogo de tabuleiro. Em sua jornada eles se encontram continuamente com o Morte e conhecem Hrun, o Bárbaro. Enfrentam o deus Bel-Shamharoth em seu templo e sobrevivem, para fúria de Morte.

Eles visitam Wyrmberg uma montanha invertida lar dos dragões que só existem na imaginação. Eles quase caem pela cascata à beira do Disco, apenas para serem salvos pelo Reino de Krull uma cidade localizada na beira do Discworld por magos hidrofóbicos. Os Krullians querem descobrir o gênero da Grande A'Tuin, a gigante tartaruga que carrega o Discworld através do espaço, então decidiram construir uma cápsula espacial e lançá-la pela beira. Eles intencionam em sacrificar Rincewind e DuasFlor para que o Destino sorria para a viagem. No entanto, Rincewind e DuasFlor furtam a capsula em uma tentativa de fuga e são lançados para fora do Disco por própria conta.

A história continua no romance seguinte de Discworld A Luz Fantástica

A Cor da Magia é um livro de um total de oito, de Discworld.

GRAPHIC NOVEL

Uma graphic novel ilustrada por Steven Ross e adaptada por Scott Rockwell, foi publicada por Corgi em 1992. Esta graphic novel é dividida em uma série de capítulos como no livro.

Diferenças cruciais entre o livro e o quadrinho incluem o corte de algumas aventuras em Ankh-Morpork e Krull. Inclusive, no livro, as montadoras de dragão são descritas como seminuas, como mulheres bárbaras na ficção tendem a ser. No entanto, para abranger o público infantil, as mulheres usam cotas de malha nos seios como as descritas no livro. Foi publicado em capa dura junto com o romance de A Luz Fantástica, como The Discworld Graphic Novels.

ADAPTAÇÃO DE TV

The Mob Film Company e Sky One produziram uma adaptação em duas partes chamada The Colour of Magic (TV film) combinando A Cor da Magia e A Luz Fantástica e exibido em 2008. David Jason atuou no papel de Rincewind, Sean Astin ficou com o papel de DuasFlor, enquanto Christopher Lee dublou o personagem Morte.

Fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Cor_da_Magia

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 6

 

Graciliano Ramos (Um papagaio falador)

Quem principiou a história do papagaio foi Cesária, mas os homens se aproximaram da esteira onde ela cochichava com Das Dores e depois de alguns minutos Alexandre concluiu a narração. Cesária falou assim:

— O nosso casamento foi pouco depois da vaquejada. Você se lembra, Das Dores? O caso da novilha se espalhou de repente e o nome de Alexandre correu de boca em boca. Ele não disse isto porque não gosta de pabulagem (
gabolice), mas acredite que ficou o homem mais importante do sertão. Os fazendeiros tiravam o chapéu quando passavam por ele e cumprimentavam com respeito: — “Como vai a obrigação, major Alexandre?” É isto, Das Dores. Alexandre num instante virou major. Meu pai era pessoa de muito cabedal, e todo mundo por aquelas bandas queria casar comigo. Eu não fazia conta de ninguém, mas quando Alexandre se apresentou, bem vestido e bem-falante, quebrou-me as forças. Vinha preparado, com um rebenque de cabo de ouro, esporas de ouro...

— Montado no bode? – perguntou Das Dores.

— Não. – respondeu Cesária. – O bode era para as vaquejadas. Vinha num cavalo baixeiro, arreado com arreios de ouro, espelhando. Só queria que você visse, Das Dores. Meu pai ficou muito satisfeito com o pedido e eu concordei logo: — “Se vossemecê acha que deve ser, está certo.” Marcou-se o dia e preparou-se o enxoval, que foi uma beleza, Das Dores. Só queria que você visse. Um enxoval em que trabalharam todas as costureiras do lugar. A festa do nosso casamento durou uma semana. Muita dança, muita bebida, muita comedoria. Não ficou peru, nem porco para semente. Veio o vigário, veio o promotor, veio o comandante do destacamento, veio o prefeito. Meu pai estava-se estragando, mas era senhor de muitas posses e dizia: — “Festa é festa. Mais vale um gosto que quatro vinténs.” Quando os derradeiros convidados se retiraram, fomos morar na nossa casa nova, uma casa bonita como as da cidade. E o pai de Alexandre deu a ele um baú cheio de moedas de ouro. Aí era preciso a gente tratar da vida. Eu vendia e comprava, dirigia as coisas direito. Sempre tive cadência para as arrumações. Mas as viagens e as transações de muito dinheiro quem fazia era Alexandre. Na primeira viagem dele encomendei um papagaio. Queria um papagaio falador, custasse o que custasse. Agora você conta o resto, Alexandre.

— Não senhora! - respondeu o marido. – Você não começou a história? Então acabe.

— Não senhor! – replicou Cesária. – Comecei porque podia começar, mas acabar não acabo. Contei a minha parte, que dei a encomenda, mas quem comprou o papagaio foi você.

Depois de muitas razões, Alexandre se resolveu a tomar a palavra.

— Em vista disso, eu conto. Isto é, conto o fim da história, que o princípio os senhores já sabem. E nesse princípio não acrescento nada, porque tudo quanto Cesária disse é a pura verdade. Amarro o negócio no ponto em que ela ficou. Realmente esse caso não tem importância, e até nem sei como Cesária foi mexer nele. Papagaio é bicho besta, ninguém presta atenção a lorotas de papagaio. Esse era melhor que os outros, sem dúvida. Eu nem me lembrava dele, mas como a patroa foi desenterrá-lo, vá lá. Escutem. Estávamos na viagem, não é isto? Viagem do sertão à mata, para vender gado. Como era a primeira que eu fazia, a separação foi custosa. Cesária chorou, deu-me conselhos, afinal se aquietou com a esperança de possuir um louro falador. Prometer eu não prometia, que não ia oferecer a minha mulher um bicho ordinário, mas se aparecesse coisa boa, Cesária estava servida. Separei o gado, escolhi os tangerinos, despedi-me da mulher depois de muitos poréns e tomei o caminho do sul, sempre aumentando a boiada com o que havia de melhor por aquelas redondezas. Aves de pena vi em quantidade, araras, ararões, e canindés, mas viventes de pouca fala. Procurei, pedi informações — não achei nada que servisse. Larguei a encomenda e decidi levar uma lembrança diferente para Cesária, volta de ouro ou corte de pano fino.

“ Num dia de calor bati numa porta, com vontade de pedir água:

— “Ô de casa!”

Uma voz de homem perguntou lá de dentro: — “Ô de fora! Quem é?”

E eu respondi: — “É de paz. O senhor faz favor de arranjar uma sede de água para um viajante.”

— “Não posso, tornou a voz. Não posso porque estou amarrado.”

Espantei-me: — “Como? Quem amarrou o senhor? Diga, que eu desamarro.”

— “Não se incomode não, moço. – foi a resposta. – Aqui em casa o costume é este. Vivo acorrentado.”

Nessa altura uma velha apareceu com um caneco de água e falou: — “Cala a boca. Deixa de tomar confiança com quem tu não conheces.”

Bebi e ia agradecer quando percebi que ela se dirigia a um papagaio que batia as asas, na gaiola pendurada à parede. Não é que eu tinha sido embromado, comendo o bicho por gente?

— “Sinha dona, – perguntei - vossemecê me vende esse louro?”

— “Não vendo não, moço, é de estimação.”

Eu cantei a velha: — “Que seja de estimação não duvido. Mas pense direito, sinha dona. Quem tem vida morre. Se botarem mau-olhado nele, vossemecê fica sem mel nem cabaço. Eu pago bem. Faça preço no papagaio, dona.”

“A velha endureceu, depois chegou às boas e acabou pedindo pelo bicho um despropósito. Discutimos e findamos o ajuste, comprei o papagaio por quinhentos e cinquenta e quatro mil e setecentos réis. Vejam que dinheirão. Quinhentos e cinquenta e quatro mil e setecentos. Bem. Recebi a gaiola e fiquei atrapalhado. Como havia de levá-la numa viagem que ia durar meses? Depois de refletir, desocupei uma bolsa de roupa, fiz uns buracos nela e meti ali o papagaio, que protestou, muito contrariado. Arrumei a bolsa no meio de uma carga e tocamos para a frente. Onde andei e quanto ganhei não preciso contar, basta dizer que a boiada se vendeu e fiz bom negócio. Conheci homens de consideração e vi sobrados.

“Quando voltei, trazia um surrão cheio de ouro e cargas de mantimentos. Dei uma festa quase tão grande como a do casório. O povo da rua se admirou, meu pai e meu sogro arregalaram os olhos. Eu de correntão no peito, eu lorde, mandando abrir caixas de bebidas. Quem quisesse beber bebia até cair. Dinheiro não faltava. Enfim tudo se acomodou, o pessoal saiu e nós fomos endireitar a casa, varrer, lavar, limpar, arranjar as coisas. Cesária passou um dia arrumando a bagagem, abrindo malas e guardando troços nos armários.

No meio do trabalho me chamou: — “Está aqui uma bolsa furada, Alexandre. Que é isto?”

E eu me lembrei: — “Ai, Cesária! É o papagaio. Tranquei o papagaio na bolsa. Coitado. Esqueci-me dele e o pobre viajou sem comer.”

Corri mais que depressa e fui abrir a bolsa. Encontrei o infeliz nas últimas, enrolado num canto, feio como um pinto molhado. Cesária trouxe um pires de leite, mas era tarde, não havia jeito não. O papagaio olhou para mim, balançou a cabeça, levantou-se tremendo, encorujado, e disse baixinho:

— “Sim senhor, seu major, isto não é coisa que se faça.”

Amunhecou (
fraquejou) e morreu.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
RAMOS, Graciliano. Histórias de Alexandre. Publicado originalmente em 1944.

Maria Thereza Cavalheiro (Trovas para Refletir) – 1 -


A cada dia que passa,
a vida é prêmio em disputa.
A roupa é simples couraça
com que se parte pra luta.
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Amor... Paz... Fraternidade:
eis o trinômio perfeito
a fim de que a humanidade
tenha Deus dentro do peito.
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A vida é bem mais bonita
e tudo tem mais valor
quando se encontra a pepita
no próprio veio do amor!
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Cabelos soltos ao vento...
Pés de leve sobre a grama...
A vida toda é um momento
no coração de quem ama!
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Desgraça nem sempre dura,
pode a bonança voltar...
Infeliz da criatura
sem tempo para esperar!
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Deus ao homem, cada dia,
dá a sua preocupação,
mas há quem perca a alegria
por males que nem virão.
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É festa por toda a parte,
e até os dias têm mais cor,
quando a amizade, com arte,
veste a túnica do amor!
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É triste a paz que amortece,
torna os homens infelizes...
Alegre é a paz que floresce,
que tem seiva nas raízes!
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Há muito amor que demora
e é como as ondas do mar:
nem bem chega, vai-se embora;
quando vai, já quer voltar...
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Muito amor se faz fumaça
sem amargura nem queixa;
apenas o que não passa
é o desencanto que deixa.
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No mundo, todos têm medo;
no entanto ninguém o diz...
E há quem sufoque, em segredo,
o anseio de ser feliz!
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No tempo mais se comprova
quando é verdadeiro o amor,
que não quer jura nem prova,
não faz escravo ou senhor.
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O amor é sorriso... ou pranto.
O amor é nuvem... ou sol.
O amor é lágrima... ou canto.
O amor é treva... ou farol.
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Os cílios fazem cortina
para um palco de emoção,
que a luz do amor ilumina
quando canta o coração!
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Pensa que a vida é bonita
e a espera nem sempre é vã
para aquele que acredita
na surpresa do amanhã!
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Prefere ter em teu cofre
somente o que chega ao pão,
às riquezas de quem sofre
sem a paz no coração!
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Quando existe em nós a chama
de uma alegria interior,
é porque alguém que se ama
corresponde ao nosso amor!
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Quando ninguém te elogia,
não há perda nem proveito:
o que fazes dia a dia
somente a Deus diz respeito.
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Quem labuta e não receia
viver por seu ideal,
se da sela não apeia,
um dia chega, afinal.
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Quem não faz, risco não corre.
Erro... engano... quem não falha?
Só pode errar quem socorre,
age, executa, trabalha!
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Quem quiser vencer na vida,
não busque nenhum atalho;
é partir duro pra lida
e se impor pelo trabalho!
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Quem vive só do futuro
e esquece a vida que passa,
descobre claro no escuro
que fez projetos de graça.
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Reticências dizem tanto!
E entendê-las, é preciso:
nos olhos, podem ser pranto;
nos lábios, talvez sorriso...
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Riqueza não vale a pena
se vem e nos leva a paz...
No prado, a bela açucena
com a luz do sol se compraz!
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Se de novo o amor palpita,
o velho se faz criança...
E como a vida é bonita
no retorno da esperança!
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Se o peito de amor transborda
e as mãos não se veem sozinhas,
dentro em nós um deus acorda
ao som de mil campainhas!
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Trabalho não intimida
quem enfrenta os seus rigores.
E é bom que sejas na vida
o melhor no que tu fores!
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Vale a vida ser vivida?
De viver qual a razão?
- Até vale ser sofrida
quando vibra o coração!

Fonte:
Enviado pela Trovadora.
CAVALHEIRO, Maria Thereza. Trovas para refletir. SP: Edição do Autor, 2009.

Sílvio Romero (Dona Labismina)

(Folclore do Sergipe)


Uma vez havia uma rainha, casada já há muito tempo, que nunca tinha tido filhos, e tinha muita vontade de ter, tanto que uma vez disse: «Permita Deus que seja uma cobra!…»

Passados uns tempos apareceu grávida, e quando deu à luz foi uma menina com uma cobrinha enrolada no pescoço. Toda a família ficou muito desgostosa; mas não se podia tirar a cobrinha do pescoço da criança. Foram crescendo ambas juntamente, e a menina tomou muita amizade pela cobrinha. Quando já mocinha, costumava ir passear à beira do mar, e lá a cobra a deixava e fugia para as ondas, mas a princesinha punha-se a chorar até que a cobra voltava, se enrolava outra vez no seu pescoço e iam ambas para o palácio, onde ninguém sabia disso.

Assim foram indo até que um dia a cobra entrou no mar e não voltou mais, porém disse à irmã que, quando se visse em perigo, chamasse por ela. A cobra tinha o nome de Labismina e a princesa o de Maria.

Passados os anos, caiu doente a rainha, e morreu; mas na hora de morrer tirou do dedo uma joia e deu ao rei, dizendo: «Quando tiveres de casar outra vez, deve ser com uma princesa, na qual esta joia der, sem ficar nem frouxa, nem apertada.»

Depois de algum tempo, o rei quis se casar e mandou experimentar a joia nos dedos das princesas de todos os reinos, e não encontrou nenhuma em que o anel coubesse pela forma que lhe tinha recomendado a rainha. Só faltava a princesa Maria, sua filha; o rei chamou-a e botou a joia no seu dedo, e ficou muito boa. Então ele disse à filha que queria se casar com ela e, como palavra de rei não volta atrás, a moça ficou muito desgostosa e vivia chorando. Foi ter com Labismina na praia do mar; gritou por ela, e a cobra veio. Maria contou-lhe o caso, e a cobra respondeu: «Não tenha medo; diga ao rei que só casa com ele, se ele lhe der um vestido da cor do campo com todas as suas flores.»

Assim fez a princesa, e o rei ficou muito passado, mas disse que iria procurar. Levou nisto muito tempo, até que afinal conseguiu. Aí a princesa tornou a ficar muito triste, e foi ter com a irmã, que lhe disse: «Diga que só se casa com ele se lhe der um vestido da cor do mar com todos os seus peixes.»

A princesa assim fez, e o rei ainda mais aborrecido ficou. Levou muito tempo a procurar até que arranjou. A moça foi ter outra vez com a Dona Labismina, que lhe disse: «Diga que só casa, se ele lhe der um vestido da cor do céu com todas as suas estrelas.»

Ela assim disse ao pai, que ficou desesperado; mas prometeu arranjar. Levou nisto ainda mais tempo do que das duas outras vezes, até que conseguiu.

A princesa, quando o pai lhe deu o último vestido, viu-se perdida e correu para o mar, onde embarcou num navio que Dona Labismina tinha preparado, durante o tempo que o rei andou arranjando os vestidos. Labismina recomendou à irmã que seguisse naquele navio, e saltasse no reino onde ele parasse, que nessa terra ela encontraria casamento com um príncipe, e que na hora de casar, chamasse por ela três vezes, que ela se desencantaria numa princesa também.

Maria seguiu. No reino em que o navio parou ela saltou em terra. Não tendo de que viver, foi pedir um emprego à rainha, que a encarregou de guardar e criar as galinhas do rei. Passados uns tempos, houve três dias de festa na cidade. Todos do palácio iam á festa, e a criadora de galinhas ficava. Mas logo no primeiro dia, depois que todos saíram, ela se penteou, vestiu o seu vestido de cor do campo com todas as suas flores e pediu a Labismina uma bela carruagem e foi também à festa.

Todos ficaram muito embasbacados ao ver moça tão bonita e rica, e ninguém sabia quem era. O príncipe, filho do rei, ficou logo muito apaixonado por ela. Antes de acabar a festa, a moça partiu e meteu-se na sua roupinha velha, e foi cuidar das galinhas.

O príncipe, quando chegou ao palácio, disse à rainha: «Viu, minha mãe, que moça bonita apareceu hoje na festa? Quem me dera casar com ela! Só parecia a criadora de galinhas.»

— «Não digas isto, meu filho; aquela pobre tinha roupa tão fina e rica? Vai ver como ela está lá em baixo porca e esmolambada.»

O príncipe foi onde estava a criada e lhe disse: «Ó criadora de galinhas, eu hoje vi na festa uma moça que se parecia contigo…»

— «Oxente, príncipe, meu senhor, quer mangar comigo… Quem sou eu?»

No outro dia, nova festa, e a criadora de galinhas foi às escondidas com o seu vestido de cor de mar com todos os seus peixes, e numa carruagem ainda mais rica. Ainda mais apaixonado ficou o príncipe sem saber de quem.

No terceiro dia a mesma coisa, e a criadora de galinhas levou o vestido cor de céu com todas as suas estrelas. O príncipe ficou tão entusiasmado que foi se pôr ao pé dela e lhe atirou no colo uma joia, que ela guardou. Chegando ao palácio, o príncipe caiu doente de paixão e foi para cama. Não queria tomar nem um caldo; a rainha rogava a todas as pessoas para lhe levarem algum caldo, para ver se ele aceitava, e era o mesmo que nada.

Afinal só faltava a criadora de galinhas, e a rainha mandou-a chamar para levar o caldo ao príncipe.

Ela respondeu: «Ora, dá-se! Rainha, minha senhora, quer caçoar comigo?! Quem sou eu para o príncipe, meu senhor, aceitar um caldo da minha mão? O que eu posso fazer é preparar um caldo para mandar a ele.»

A rainha concordou, e a criada preparou o caldo, e botou dentro da xícara a joia que o príncipe lhe tinha dado na igreja. Quando ele meteu a colher e viu a joia, pulou da cama contente e dizendo que estava bom, e queria se casar com aquela moça que servia de criadora de galinhas.

Mandaram-na chamar, e, quando ela veio, já foi pronta, como quando ia à festa. Houve muita alegria e muito banquete, e a princesa Maria se casou com o príncipe; mas se esqueceu de chamar pelo nome de Labismina, que não se desencantou, e, por isso, ainda hoje o mar dá urros e se enfurece às vezes.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.  
Sílvio Romero. Contos Populares do Brazil.  Rio de Janeiro: 1894.
Atualização do português por J. Feldman

domingo, 4 de junho de 2023

Daniel Maurício (Poética) 53

 

Humberto de Campos (O Milagre de S. Benedito)

O corpo da pobre lavadeira Maria Jovita havia sido levado, na véspera, para o cemitério, por um carro mortuário da Santa Casa, deixando ali, naquela situação aflitiva, aquela pretinha de cinco anos, herdeira triste, e inocente, da sua cor e do seu destino. Atirada para o corredor do casarão, a pequenita passara uma noite encostada à parede, agasalhando-se como lhe era possível nos farrapos da camisinha de riscado grosseiro; uma vizinha de quarto condoeu-se, porém, da sua sorte, sendo a pretinha recolhida, então, por misericórdia, como alguém sem préstimo que se apanhasse piedosamente na rua.

Dois dias após a sua orfandade, era o dia dos mortos, como o de hoje. E como toda a gente, na casa de cômodos, se encaminhasse para o cemitério, em visita aos seus defuntos não esquecidos, a pequenita Carlota acompanhou-os, ferindo os pés descalços no pedroiço (
montão de pedras) do calçamento, e recebendo na carapinha (cabelo crespo e lanoso) descoberta, enroscada no couro da cabeça, toda a inclemência daquele horrível sol de verão. Chegada ao cemitério, perguntou a pretinha, medrosa:

- Onde está minha mãe?

As pessoas que tinham ido ao enterro da Maria Jovita indicaram-lhe um monte de terra fresca, molhada ainda, à cabeceira da qual a pequena se ajoelhou, juntando, numa prece fervente, os dois carvãozinhos das mãos. E estava ela sozinha, nessa postura, no silêncio daquela quadra abandonada, destinada aos humildes, aos desamparados, aos náufragos da vida e da morte, quando ouviu uma voz, que a chamava:

- Carlotinha?

A pretinha voltou-se, espantada, e sorriu, enxugando os olhos úmidos com as costas das mãozinhas encarvoadas: atrás dela, sorrindo-lhe com bondade, com doçura, com meiguice, estava, em ponto grande, do tamanho de uma pessoa, com a mesma cor, a mesma auréola e o mesmo burel (
hábito), a imagem do senhor São Benedito, que sua mãe, quando viva, possuía no quarto, no oratório de uma pequena caixa de papelão!

- Meu São Benedito!... - gemeu a pequena, atirando-se ao solo, e beijando-lhe, comovida, a fímbria do manto escuro.

E ia juntar as mãos para rezar, quando o santo lhe ordenou, paternal:

- Carlotinha, junta estas pedras.

A pretinha arrebanhou quanto pôde as pontas do vestidinho roto, e pôs-se a apanhar, um por um, os seixos miúdos que havia pelo chão, entre as sepulturas sem nome. E assim que enchia o regaço, despejava os calhaus (
seixos), como mandou o santo, sobre o monte de terra que assinalava, naquele oceano de túmulos, o lugar em que sua pobre mãe dormia para sempre.

De repente, cansadinha já daquela faina, a pretinha ouviu chamar, de longe, pelo seu nome:

- Carlota?

E como não respondesse, de fatigada, as pessoas da casa de cômodos foram à sua procura, até que, encontrando-a, recuaram, maravilhadas.

Diante da pretinha, que orava, de joelhos, a sepultura rasa de Maria Jovita, um simples cômoro (
monte) de areia, desaparecia, toda ela, sob um monte de rosas!

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.