segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Baú de Trovas LXXIII


Tão pão-duro é o sujeitinho,
que até para dar risada
pede ao bondoso vizinho
a dentadura emprestada!…
A. A. de Assis
Maringá/PR
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Divide aquilo que tens
com quem tem fome e padece.
A partilha dos teus bens
tem mais valor que uma prece!
Alba Helena Corrêa
Niterói/RJ
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O meu melhor agasalho
é o colo de minha amada,
pois quando nele me encalho
não temo o frio ou geada!
Amilton Maciel Monteiro
São José dos Campos/SP
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Sonho um mundo sem arenas,
mais justo, mais solidário,
onde a paz não seja, apenas,
três letras no dicionário.
Antonio Juraci Siqueira
Belém/PA
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Se na memória eu não falho,
o poeta, qual todo artista,
é alguém que não dá trabalho
ao doutor cardiologista...
Antônio Mário Manicardi
Maringá/PR
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Não temas portas fechadas,
nem mesmo fracassos temas;
há sempre forças guardadas
para as conquistas supremas.
Carolina Ramos
Santos/SP
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Quanto mais a idade avança,
no longo tempo a correr,
eu tenho mais esperança
e mais prazer em viver...
Cônego Benedito Vieira Telles +
Maringá/PR
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Carimbar no coração
o dom - autenticidade -
é levar à multidão
um selo de qualidade!
Cristina Cacossi
Bragança Paulista/SP
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Esse aroma ...tentação,
que deixaste...traiçoeiro,
abala meu coração,
dormindo em meu travesseiro!
Cynira Antunes de Moura
Santos/SP
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Por mais que a vida se oponha,
traze os sonhos junto a ti,
porque, aos olhos de quem sonha,
o Infinito...é logo ali!
Edmar Japiassú Maia
Nova Friburgo/RJ
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Eu vejo a noite indo embora
com seu véu de negros laços...
Deus acende a luz da aurora
e traz o sol em seus braços!
Edna Gallo
Santos/SP
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Abro a janela, e a neblina
lacrimeja na vidraça...
A saudade dobra a esquina,
entra em meu quarto e me abraça.
Eduardo A. O. Toledo
Pouso Alegre/MG
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Sobreviver, nesta vida,
é travar uma batalha;
--chora-se a cada partida...
- vibra-se a cada medalha!
Eulinda Barreto
Bauru/SP
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Entre os sonhos e a lembrança,
veja a vida, em seus compassos,
colher versos de esperança
na herança dos próprios passos!
Eva Garcia
Caicó/RN
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Quando a seca nos acossa
e o rio mostra seu leito,
a tristeza que há na roça
roça com força em meu peito!
Francisco José Pessoa
Fortaleza/CE, 1949 - 2020
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Aquele casebre pobre,
lodo em palha ornamentado,
oculta um coração nobre
que o tempo deixou marcado!
Francisco Maia
Caicó/RN
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Alvorada dos meus dias
teus olhos - luzes pagãs
acendem com poesias
o céu de minhas manhãs...
Gilvan Carneiro da Silva
São Gonçalo/RJ
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No cais da vida, a distância,
eu vislumbrei, na verdade,
a acenar-me a doce infância,
com o lenço azul da saudade!
Giselda Medeiros
Fortaleza/CE
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Se o coração de quem ama
fosse capaz de compor,
o eletrocardiograma
seria um hino de amor!
Jaime Pina da Silveira
São Paulo/SP
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Escrava do teu olhar
quis fugir... mas que surpresa!
Tentando me libertar,
cada vez fico mais presa.
Janske Niemann Schlenker
Curitiba/PR
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A minha Mãe natureza,
que nada deixa faltar,
me faz saber, com certeza
que vale a pena sonhar…
Jaqueline Machado
Cachoeira do Sul/RS
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O murmúrio deste rio
plangente, triste a passar,
às vezes eu desconfio:
É pra meu sono embalar.
João Alfredo P. de Lima Neto
Natal/RN
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Minha fonte de alegria,
meu amor, minha paixão...
Tu és, ó doce poesia,
da minha vida a razão!
Jota de Jesus
Itabaiana/SE, 1947 – 2017, Saquarema/RJ
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Se as águas banham meu rosto,
refletindo o meu cansaço,
entrego a Deus meu desgosto
e ganho D'Ele, um abraço.
Karla Cristiane Bitencourt
Colombo/PR
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Nesta rua, onde moro,
passa a vida em liberdade;
mas não passa quem adoro
nem, de mim, passa a saudade.
Lairton Trovão de Andrade
Pinhalão/PR
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Em parte da minha essência
já nem sei mais quem sou eu…
quando choro pela ausência
de um sonho que já morreu!
Lucélia Santos
Patu/RN
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Na saudade intransigente,
o coração se revolta;
a estrada diz: – Segue em frente;
o coração pede: - Volta!
Luiz Poeta
Rio de Janeiro/RJ
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Eu tenho razão de sobra
ao chorar o amor perdido.
Minha face sempre mostra
um vazio refletido.
Luiza Nelma Fillus
Irati/PR
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Ele cai... não retrocede!...
Continua... até sozinho...
que a fibra também se mede
pelas quedas no caminho…
Luiz Otávio
Rio de Janeiro/RJ, 1916 -1977, Santos/SP
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Busquei tanto a liberdade,
e hoje, no Bar da Ilusão,
me embriago de saudade
na taça da solidão!…
Maria de Lourdes Ouverney
Pindamonhangaba/SP
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Na caminhada da vida,
nos momentos mais festeiros,
nessa dureza da lida,
os livros são companheiros.
Maria Luiza Walendowsky
Brusque/SC
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“Sem uma “prova de amor”
sumo de vez e te esqueço!”
-“Pois some logo: - É um favor,
porque esse truque ... eu conheço!!!“
Maria Madalena Ferreira
Magé/RJ
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Bandolim, meu amigão,
sai de dentro do baú,
vem tocar uma canção
pra gente de Tambaú!
Mário Beltrame
São Paulo/SP, ??? – 2007
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De esperas fiz meu passado…
E compondo a vida assim,
tornei-me um barco ancorado
no cais do porto de mim…
Marisa Olivaes
Porto Alegre/RS
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Eu peço ao Deus da bondade:
– Não me tire a fantasia,
pois viver só realidade
é impossível, noite e dial
Nilsa Alves de Melo
Maringá/PR
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O meu palácio encantado
onde o ano todo é Natal,
é um quadradinho, alugado,
chamado caixa-postal.
Nilton Manoel Teixeira
Ribeirão Preto/SP
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Se quiser ser campeão,
nesta guerrilha de amor,
leve a paz no coração
e da luz, todo o esplendor!
Olga Maria Dias Ferreira
Pelotas/RS
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Faço versos e no entanto
aquele amor, que é loucura,
só deixa meu peito em pranto,
ao sentir que me tortura!
Sarah Rodrigues
Belém/PA
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Amar; dar educação.
Amor com sabedoria
enriquece o coração
e enche a vida de alegria,
Sônia Regina Rocha Rodrigues
New Westminster, BC/ Canadá
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Era um sonho, tão bonito!
Nas estrelas se escondeu.
Quis voltar lá do infinito,
mas na volta, se perdeu.
Sônia Sobreira
Rio de Janeiro/RJ
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Teu retrato até rasguei
para fugir à verdade...
"Sem lembranças"... eu pensei,
mas ninguém rasga a saudade.
Thereza Costa Val
Viçosa/MG, 1933 – 2014, Belo Horizontes/MG 
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Garota que, muitas vezes,
com jantares se tapeia,
vai, durante nove meses,
“chorar... de barriga cheia!”
Therezinha Dieguez Brisolla
São Paulo/SP
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Contadora de meus casos
dos bons tempos que vivi!…
Saudade não marca prazos
para me ver por aqui.
Wagner Marques Lopes
Pedro Leopoldo/MG
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Contos e Lendas da África (Por que os bodes são animais domésticos?)

Personagens

Tomba-Ya-Taba (bode)
Etoli — (camundongo)
Vyâdu — (antílope)
Njâ (leopardo)
Ko (rato silvestre)
Njâku (elefante)
Homem
Nyati (boi)

O Bode vivia com sua mãe na aldeia. Um dia ele disse:

— Consegui uma poção que me fará vencer qualquer luta. Ninguém será capaz de me derrubar ou derrotar. Vencerei todos os animais. 

Os outros animais ficaram sabendo dessa bravata e foram desafiá-lo. Os primeiros a chegar foram os camundongos, centenas deles, e assim se deu o primeiro embate. O Bode derrotou um por um de seus duzentos desafiantes. Os camundongos reconheceram que não eram páreo para ele e foram embora.

Então os ratos silvestres chegaram e lutaram com o Bode. Mais uma vez, todos foram derrotados e voltaram para casa.

Em seguida vieram os antílopes. O Bode venceu cada um do bando, nenhum foi capaz de derrotá-lo. E também se foram.

Os elefantes foram os próximos, a manada inteira veio desafiar o Bode. Todos voltaram para casa derrotados.

E assim aconteceu com todos os outros animais. Chegavam e eram vencidos da mesma maneira e, como os outros, também iam embora. Apenas um ainda não havia tentado. O Leopardo decidiu enfrentar o Bode, certo de que sairia vitorioso. No entanto, também foi derrotado e assim ficou provado que não havia um único animal na selva capaz de vencer o Bode.

O Pai de Todos-os-Leopardos ficou sabendo daquilo e disse:

— Que vergonha um animal desse tamanho derrotar um de nossa espécie. Vou matá-lo!

E planejou sua vingança. Foi até a nascente usada pelos Homens e se escondeu ali perto. Alguns moradores da cidade apareceram para pegar água e o Leopardo matou dois deles. As pessoas então foram até o Bode e pediram:

— Vá embora daqui! O Leopardo está matando nosso povo por sua causa.

A mãe do Bode então aconselhou seu filho:

— Se isso for verdade, devemos ir visitar meu irmão Antílope.

Então foram até a aldeia do Tio Antílope e contaram tudo o que estava acontecendo.

— Pois fiquem em minha casa! — disse Antílope. — Quero ver se o leopardo tem coragem de aparecer aqui!

Permaneceram na aldeia do Antílope por dois dias. No terceiro, por volta das oito da manhã, o Leopardo apareceu por lá como se estivesse apenas dando um passeio. Ao vê-lo, o Bode e sua mãe se esconderam, enquanto o Antílope foi conversar com ele:

— Qual é o problema? Por que você está bravo com meu sobrinho?

Antes mesmo que o Antílope terminasse de falar, o Leopardo arrancou-lhe uma orelha.

— Por que me atacou? — gritou Antílope.

— Mostre-me onde Tomba-Taba (bode) e sua mãe estão — ordenou o Leopardo.

Amedrontado, o Antílope respondeu:

— Venha hoje à noite e mostrarei onde dormem. Faça o que quiser com eles, mas não me mate.

O Bode ouviu a conversa e foi avisar sua mãe:

— Temos de fugir ou Njâ (leopardo) nos matará.

Quando o sol se pôs, o Bode e sua mãe fugiram para a casa do Elefante. O Leopardo voltou à aldeia do Antílope por volta da meia noite, conforme o combinado. Procurou em todas as casas do vilarejo e, contrariado por não encontrar o Bode, foi até o Antílope e o matou.

Continuou suas buscas e enfim encontrou o rastro de sua caça. Seguiu no encalço do Bode até chegar à vila do Elefante. Njâku (elefante) o recebeu com indignação:

— Qual é o problema? — e o Elefante repetiu as mesmas palavras que o Antílope.

E como o Bode e sua mãe fugiram para a aldeia do Boi, o Elefante teve o mesmo destino que o Antílope: acabou assassinado pelo felino.

O Leopardo então foi até a aldeia do Boi, que repetiu a mesma conversa e teve o mesmo destino dos outros antes dele. Foi assassinado, mas o Bode conseguiu escapar.

A mãe do Bode, já cansada de tanto fugir e desgostosa com a morte de seus protetores, enfim disse:

— Meu filho! Se continuarmos a fugir de aldeia e aldeia, Njâ nos seguirá matando todos os animais. Vamos para as casas dos Homens.

Fugiram novamente e chegaram até a aldeia dos Homens, onde contaram sua história e foram bem recebidos. Um dos moradores acolheu o Bode e sua mãe como convidados, e mais tarde deu a eles uma casa.

Certa noite o Leopardo chegou à cidade, procurando o Bode. O Homem, ao vê-lo, disse:

— Os animais que você assassinou não souberam te matar. Mas aqui na nossa cidade nós o mataremos.

O Leopardo então voltou para sua casa.

Dias depois, o Homem construiu uma armadilha com dois compartimentos. Colocou o Bode em um deles. Quando chegou a noite, o Leopardo saiu novamente à procura do Bode e voltou para a cidade. Apurou os ouvidos e farejou o cheiro de sua presa.

— Esta noite finalmente o matarei — pensou.

Notou uma trilha que levava até uma casa. Abriu o que acreditou ser uma porta e caiu na armadilha. Podia ver o Bode pelas aberturas da parede, sem conseguir tocá-lo.

— Meu amigo! Você queria me matar, mas não vai conseguir — caçoou o Bode.

Quando o dia amanheceu, os habitantes da cidade encontraram o Leopardo preso na armadilha. Mataram-no a tiros e golpes de facão. O Homem então disse ao Bode:

— Não volte mais para a floresta. Fique aqui para sempre. 

Esta é a razão de os bodes viverem junto dos homens: o medo dos leopardos.

Fonte: texto por Robert Hamill Nassau, in Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 1. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC. Distribuição gratuita.

domingo, 3 de dezembro de 2023

Versejando 127

 

Mensagem na Garrafa – 46 –


Cecy Barbosa Campos
Juiz de Fora/MG

SOLIDÃO

Muitas pessoas veem a solidão como um problema. Porém, o que é a solidão? Entende-se que é o fato de estar só. E estar só é um problema? Isto depende da situação de cada um. Há quem se aceite como uma boa companhia e que se adapte a viver sozinho, sem família ou amigos ao redor.

Quando a solidão é resultante de separação física, forçada ou voluntária, é natural que o sentimento de perda cause sofrimento a quem ficou só, entretanto, o sofrimento pode ser superado pelas boas lembranças. Sentir falta de alguém é um indício de que há coisas boas a serem lembradas, e se temos boas lembranças, elas tolhem o sentimento de solidão.

Diz-se que a pior solidão é aquela de quem vive cercado de muita gente. Neste caso, ela não é aparente, mas é intensa. O indivíduo passa a levar uma vida artificial, ensimesmado em seu interior. Nega-se a aceitar o mundo em que vive, e sua revolta é tão grande que passa a rejeitar o convívio das pessoas que lhe são próximas. Cultiva a sua dor, apieda-se de si próprio e consegue, afinal, afastar de si os amigos bem intencionados que o perturbam.

Conciliando as presenças que habitam em nosso coração com aquelas que, hoje, fazem parte de nossas vidas, nunca nos sentiremos sozinhos e amargurados por problemas de solidão.

Monsenhor Orivaldo Robles (Lágrimas de homem)

Se, como dizem, homem não chora, estou mal na foto. Por muito pouco, mesmo com esforço para segurar, acabo caindo no choro. Justifico-me apelando para as sete décadas que carrego nas costas. Idosos são emocionalmente mais frágeis que jovens. O duro é que no meu caso deve ser não consequência da idade, mas jeito da madeira. Minha saída de Paranacity foi prova clara. Eu estava com trinta anos. No discurso de despedida daquele povo que eu tanto amava, destampei numa choradeira inconsolável. Não consegui pronunciar mais que três ou quatro palavras. Dei um vexame histórico.

Remexendo o fundo do baú de meu coração mole, encontro o pesar imenso que me causa a dor especialmente de crianças. O sofrimento desses inocentes – ah, não dá – me engrola a língua e me arranca lágrimas. Isso vem de longe. Eu tinha três ou quatro anos quando a mãe nos contou, a mim e a meu irmão, um episódio que só de recordar ainda me entristece. O Eraldo, mais velho, já um pouco habituado, quem sabe, às brutalidades da vida, não pareceu ter-se impressionado tanto. Mas a mim, que não podia imaginar ninguém mais pobre do que nós – e, contudo, nunca nos faltara o que comer – por noites seguidas, foi-me difícil conciliar o sono. Voltava-me à imaginação a pobre mulher (que não vi, mas a mãe contou), em conversa com o filho pequeno a lhe implorar comida. Ela argumentava: “Mas você não comeu duas veis (sic)”? Ainda que repetido, o prato não fora bastante para seu infantil apetite. Ou para sua fome, que é mais pungente que qualquer apetite. Não sei que providência minha mãe tomou. Com certeza, não foi capaz de dar solução definitiva ao problema.

Sofrimento de criança não é aceitável para ninguém. Adulto ainda vá lá; pode explicar a dor ou lhe oferecer resistência. Mas criança, não. Para criança a vida teria que reservar sorriso e nada mais. Criança é botão de flor que desabrocha. É manhã de dia que o sol clareia.

Tristeza de criança me desata um pranto que, só a custo, quando consigo, não deixo rolar dos olhos. Como no atendimento à jovem mulher que veio lamentar o sumiço do companheiro. Não dava notícia havia três meses. Ela não sabia para onde ele fora nem se voltaria. Estava sem dinheiro para o leite do garotinho. Não sabia a quem recorrer. Podia trabalhar, mas com quem deixá-lo? Enfrentaria qualquer serviço, mas não dispunha de ninguém para cuidar do pequeno. O bebê tinha uma beleza de chamar a atenção. Como pode alguém, especialmente o pai, abandonar criança tão linda? Fitava-me com olhos imensos e inexpressivos. Um pouco assustada com o choro que a mãe fazia força para lhe ocultar. Brinquei com ele, fiz-lhe mil festas. Não lhe arranquei sequer um arremedo de sorriso.

Dei à mulher uma importância que poucos lhe dariam. Saiu agradecida. Em nenhum momento o bebê desviou de mim seus olhos lindos e distantes.

Dirão que fui tolo, eu sei. Se fui levado na conversa, não terá sido a primeira vez. À Assistência Social, não a mim, cabe resolver esse problema. Não é meu papel. Mas a criança me desmontou. Disfarçando para não chorar, dei dinheiro para o leite de vários dias. Mamadeira vazia criança nenhuma merece.

Ainda me faz sofrer a lembrança daquele rostinho lindo, dolorido, sem o encanto de um sorriso.

Fonte: Portal do Rigon. 29/03/2014
https://angelorigon.com.br/2014/03/29/lagrimas-de-homem/

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LXV


DEMOCRACIA PRAIANA...

MOTE:
Na praia afinal achei-a:
a total democracia,
tudo é de todos: a areia,
o sol, a onda, a alegria!
A. A. de Assis
(Maringá/PR)

GLOSA:
Na praia afinal achei-a:
tão parelha, tão igual,
de muita alegria cheia
numa paz fenomenal!

A total felicidade!
a total democracia,
eu encontrei, é verdade,
enfeitando cada dia!

Desde o canto da sereia
até o rendado de espuma...
tudo é de todos: a areia
e a beleza até das dunas!

Liberdade para amar,
num azul quase magia,
de mãos dadas faz ficar
o sol, a onda, a alegria!
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DESTROÇOS...

MOTE:
A naufrágios não atraias
meu coração sofredor,
pois vão dar em tuas praias
os meus destroços de amor...
Edmar Japiassú
(Miguel Pereira/RJ)

GLOSA:
A naufrágios não atraias
assim, os meus sentimentos,
eles não serão cobaias,
pois são fortes como os ventos!

Um mar de pranto inundando
meu coração sofredor,
vai a tudo transformando
de modo devastador!

Pressinto eternas tocaias,
que nada valem, enfim,
pois vão dar em tuas praias
restos que sobram de mim!

As ondas do mar, confortam
no seu modo encantador,
pois sabem que, em ti, aportam
os meus destroços de amor…
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MAR SEM EMOÇÃO...

MOTE:
Na praia, a areia se esconde
ante uma onda incontida...
- Parece a ilusão, por onde
se derrama a própria vida!
Eduardo A. O. Toledo
(Pouso Alegre/MG)

GLOSA:
Na praia, a areia se esconde
embaixo da onda mansa
e é esse o lugar aonde,
a areia, afinal, descansa!

Vez por outra, titubeia,
ante uma onda incontida...
e sentindo medo, a areia
se esconde e chora escondida!

Teme, então, que a onda estronde,
estremece de pavor!
– Parece a ilusão, por onde
escapam sonhos de amor!

Sem sonhos, o coração
lembrando a ilusão perdida,
sente que, sem emoção
se derrama a própria vida! 
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ESTRELAS DO MAR…

MOTE:
Eu comparo o meu sonhar
com quem na praia, anda ao léu,
colhendo estrelas do mar
querendo as que estão no céu...
Gerson César Souza
(São Mateus do Sul/PR)

GLOSA:
Eu comparo o meu sonhar
que é tão lindo, tão bonito,
com uma luz a brilhar,
lá no espaço do infinito!

Eu quero andar de mãos dadas
com quem na praia, anda ao léu,
que, crendo em contos de fadas,
jamais será um incréu!

Eu sigo em meu caminhar
pelas areias bem finas,
colhendo estrelas do mar,
vendo as ondas dançarinas!

Abro meus olhos e vejo,
tirando deles , o véu,
meu verdadeiro desejo
querendo as que estão no céu…
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GEMIDO DO MAR...

MOTE:
O mar, num gemer sentido,
à praia abraçar-se vem;
e, eu sinto que o seu gemido,
geme em meu peito também!...
José Tavares de Lima
Juiz de Fora/MG

GLOSA:
O mar, num gemer sentido,
parece chorar ao léu,
feito um pássaro ferido
querendo voar ao céu!

Chorando um pranto tão triste
à praia abraçar-se vem;
parece que nada existe,
na solidão, sem ninguém!

Tenho o coração partido,
ao ouvir o seu lamento,
e, eu sinto que o seu gemido,
chega a mim, na voz do vento!

Eu sofro com sua dor.
Sinto no eterno vai-e-vem
que esse gemido de amor
geme em meu peito também!…

Fonte: Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXII. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Novembro de 2004.

Carolina Ramos (E os meus cavalos?) parte 3

Voltando aos cavalos - já que o capítulo lhes pertence. A fazer jus à simpatia que a autora tem por eles, mais três episódios vêm à tona, tendo-os como principais atores.

Campos do Jordão - Dois desses episódios vieram à luz nessa linda região paulista, alvo principal de férias anuais, em minha juventude.

Um daqueles deliciosos janeiros, guardião das férias, aconteceu quando minha adolescência cursava ainda o ginásio, lá pelos idos de 1938.

A adolescência, todos sabemos, é fase bastante importante para os jovens, a incluir urgência de firmação da personalidade e, também, uma certa audácia, como se a vida fosse a cada passo nova conquista. Um tremendo desafio a ser enfrentado com desassombro e ausência total de medos.

O preâmbulo faz-se necessário. Para um adolescente, ter medo é símbolo de derrota. Algo constrangedor e inadmissível. Caso esse medo não seja dominado, e se agravado pela timidez, atrapalhará seus passos por toda vida.

Precisamente, isto é o que se constata após franca e corajosa autoanálise. E é preciso lembrar que era precisamente esse, o período enfrentado nos episódios que ora serão rememorados.

A Pensão de dona Eulah, em Campos do Jordão, depois da Vila de Capivari, encostava-se ao morro que fecha a estrada, tendo, à direita de quem ia, o desvio que leva à Lagoinha.

Geralmente, essa pensão, bastante familiar, cômoda e simples, recebia os mesmos hóspedes a cada janeiro, na maioria ingleses, como a proprietária, ou, alemães, como seu marido. E, também, alguns brasileiros - minha mãe e eu entre eles.

Vez ou outra, aparecia também por lá gente nova. O que aconteceu, no ano em foco. E quem chegou daquela vez, dentre outros, foi um rapazote de nariz empinado que - com base no que dizia, considerava-se superior aos demais que não tinham a sua nacionalidade. Gabava-se, entre outras coisas, de ser um bom cavaleiro.

Não raro, seus apartes irônicos chegavam a ser constrangedores, a ponto de Dona Eulah, certa vez, ter-lhe dado, veladamente, um chega pra lá, em plena mesa do café matinal - o que, na surdina, deliciou muita gente.

Mas... por que, acontece este comentário desairoso, fora dos moldes de quem narra? - Simplesmente, porque, como diz o povo - "o castigo vem a cavalo!" - E foi exatamente isso que aconteceu:

Numa daquelas manhãs campesinas, frescas, apesar de douradas de sol, a turma jovem dos hóspedes de Dona Eulah resolveu programar um passeio a cavalo. Claro, que eu fazia parte dessa turma... E também, o tal jovem petulante.

E lá fomos nós, jovialmente, passear pelas bandas daquele recanto belo, já citado, que estende a exuberância do seu paisagismo através de amplos gramados adornados, aqui e ali, por tufos de digitalis - campânulas bastante decorativas, cor lilás, dispostas entre espelhos d'água, a justificar o nome- Lagoinha. 

E foi, justamente, dentro da placidez daquele passeio matutino, que tudo aconteceu:

Cavalgávamos em grupo. Éramos seis... (com permissão da nossa romancista Leandro Dupré), dois rapazes e quatro moças. E eu, a mais jovem delas.

Tudo calmo, até que um pássaro qualquer, pousado à margem esquerda do caminho, espantou-se com o vozerio chegado, que quebrava a placidez ambiental. E, num voo súbito e rasteiro, cortou a frente da pequena tropa. Fato mais do que suficiente para que se descubra se um cavalo é "passarinheiro", ou não.

Para quem desconheça o termo "passarinheiro", que se diga ser ele atribuído àquele cavalo assustadiço, que estranha e reage a qualquer movimento brusco que lhe perturbe os passos. Fato que poderá colocar em situação de risco a quem, incauto, ou menos destro, o cavalgue - candidato a beijar o chão, a qualquer momento, ao menor descuido.

Aquele episódio provou que o Balão era um desses cavalos "passarinheiros", por excelência. E, quem o montava? Justamente aquele jovem de narizinho empinado que se dizia um ótimo cavaleiro - logo, nada a temer.

Mas... o que terá acontecido? 

- Um flash da cena:

Subitamente, aquele pássaro saído da beira da estrada, voou, quase a raspar os cascos do Balão. Este, assustado, desviou o corpo e ergueu-se nas patas traseiras, enquanto o nosso vaidoso herói, atirado ao chão, foi, humildemente provar o gosto que tem a abençoada terra brasileira!

Graças a Deus, tudo não passou de valente susto, sem maiores consequências.

Perplexidade geral! Embora a figura do cavaleiro, irado, a sacudir as roupas e a injuriar a montaria, logo acabasse por provocar reação contrária.

Os risos discretos não tardaram, embora disfarçados em nome da boa educação. Logo depois, quase incontidos, quando cavaleiro frustrado resolveu, quixotescamente, rejeitar "aquele cavalo desastrado!", decidindo-se a voltar para casa a pé, puxando a montaria pelas rédeas - muito embora todos lembrassem termos hora marcada para o almoço - à exceção dele.

E foi aí que entrou a atitude solidária, (que hoje considero ingênua), daquela adolescente, (que era eu) e que, solícita, ofereceu ao jovem de orgulho abatido a possibilidade de ambos trocarem de montaria.

Quem leia este relato, poderá pensar que o dono daquele narizinho em pé, poderia ostensivamente recusar a oferta. Ou, até mesmo sentir-se humilhado com a proposta feita por aquela meninota, julgando-a irônica, embora ainda hoje eu possa garantir que jamais me ocorreria tal indignidade, já que, na maior inocência, pretendi, tão somente, ser útil tentando resolver o impasse.

Com certeza, eu jamais humilharia quem quer que fosse. E, muito menos, quem já deveria estar bastante humilhado pelas circunstâncias.

A surpresa, entretanto, foi o oposto. E deveu-se ao fato daquele cavaleiro vaidoso ter aceito, de pronto, e sem qualquer objeção, o que lhe fora proposto por aquela garota solícita. Muito embora, num rasgo de responsabilidade, ele fizesse questão de alertar: - "Mas... este cavalo é perigoso!" - Ao que a ingenuidade daquela garota prontamente retrucou, com base na "larga experiência" dos tempos da fazenda:

- Não é perigoso, não... Ele é apenas "passarinheiro"... É preciso estar sempre muito atento, ou ele derruba, de surpresa, quem o monte.

Afinal, tudo acabou bem. Trocamos de montaria e o grupo chegou de volta para o almoço, sem qualquer problema, nem atraso. 

E o Balão? Balão comportou-se de maneira impecável - um verdadeiro gentleman.

O melhor de tudo, entretanto, foi constatar que, a partir daquele incidente, não mais ouvimos à mesa, ou em lugar algum, as bravatas deselegantes e as depreciações constrangedoras, por parte daquele que, de repente, ao cair do pedestal, virou um simpático amigo. E o saldo foi ainda mais lucrativo - pois acabamos por ganhar um companheiro cordato, nada arrogante, o que tornou os passeios seguintes muito mais agradáveis e proveitosos.

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

Estante de Livros (“Contos índios”, de Ruth Guimarães)


Com sua visão antropológica da cultura, Ruth Guimarães, dedicou seus escritos e estudos para abordar o cotidiano caipira na literatura, o que, particularmente envolve os nossos antepassados indígenas. Citando a autora “O índio, nós trazemos em nós”
 
Como povo, somos uma mistura de raças, e o livro traz essa valorização e engrandecimento para com as nossas origens ameríndias. Fato que vem proporcionar ao leitor um momento de autoconhecimento sobre o seu espaço. 
 
Para quem ainda não conhece a obra de Ruth Guimarães, para elaborar as histórias, ela se auxilia basicamente no povo, essa gente simples, que assim como ela gostam de ouvir e contar causos. Buscando sempre a forma descontraída para ilustrar os acontecimentos e mistérios que envolvem o mundo. 
 
Tanto que ao coloca-las no papel, a autora sempre prezou por essa mesma simplicidade em sua linguagem ao registrá-las. 
 
“Quanto à linguagem, claro, recontei à minha moda. Sou portador. Sou caipira. Tenho direito”. 
 
Em seu conteúdo, as histórias começam com os “Contos dos curumins”, que apresentam os índios Puris, primeiros habitantes da região valeparaibana, e por diante o seu cotidiano se envolve com a dos animais e figuras folclóricas das florestas. 
 
“Que conheciam os índios? O sol, a noite, o rio, o macaco, a preá, a onça. Que queriam eles? Viver. Além do comer, do beber, do reproduzir-se, queriam também saber quem os tinha feito. Que faziam eles neste mundo”.
 
Assim, as divisões dos capítulos seguem com os ciclos do macaco, do jabuti, da onça, curupira e da cobra-grande. Ao final de cada fábula há uma consideração da autora sobre a sua pesquisa de acordo com o assunto, apontando as suas variações nas demais regiões e a modificação na grafia de alguns nomes. 
 
Sobre isso, o escritor Daniel Munduruku, apresenta no prefácio um belo texto sobre as versões de histórias que ocorrem entre os povos, devido as diferentes construções. Também coloca a literatura e a produção de livros como atividades essenciais para que as culturais antigas não sejam esquecidas. 
 
“Este importante livro da saudosa Ruth Guimarães é um documento essencial para não esquecermos nossas próprias origens ancestrais”. 
 
Sobretudo, ler e falar sobre Ruth Guimarães é uma grande aprendizagem sobre nós mesmos. Além disso, quem se dispõe a conhecer sua ampla obra, abre-se para um universo simples do respeito pela diversidade dos povos. Como também é uma ponte de apego pela nossa gente: a que gosta de comer iça e mantém o seu vínculo com a sabedoria dos antepassados. 
 
Diante da avançada modernidade e suas tecnologias a distância de um toque, Contos índios, é uma maneira intima de se ver a vida.

Fonte:
texto de Renisse Ordine para o Potiguar Notícias. 14/01/2021

Machado de Assis (Uma senhora)

Nunca encontro esta senhora que me não lembre a profecia de uma lagartixa ao poeta Heine, subindo os Apeninos: "Dia virá em que as pedras serão plantas, as plantas animais, os animais homens e os homens deuses." E dá-me vontade de dizer-lhe: — A senhora, D. Camila, amou tanto a mocidade e a beleza, que atrasou o seu relógio, a fim de ver se podia fixar esses dois minutos de cristal. Não se desconsole, D. Camila. No dia da lagartixa, a senhora será Hebe, deusa da juventude; a senhora nos dará a beber o néctar da perenidade com as suas mãos eternamente moças.

A primeira vez que a vi, tinha ela trinta e seis anos, posto só parecesse trinta e dois, e não passasse da casa dos vinte e nove. Casa é um modo de dizer. Não há castelo mais vasto do que a vivenda destes bons amigos, nem tratamento mais obsequioso do que o que eles sabem dar às suas hóspedes. Cada vez que D. Camila queria ir-se embora, eles pediam-lhe muito que ficasse, e ela ficava. Vinham então novos folguedos, cavalhadas, música, dança, uma sucessão de coisas belas, inventadas com o único fim de impedir que esta senhora seguisse o seu caminho.

— Mamãe, mamãe, dizia-lhe a filha crescendo, vamos embora, não podemos ficar aqui toda a vida.

D. Camila olhava para ela mortificada, depois sorria, dava-lhe um beijo e mandava-a brincar com as outras crianças. Que outras crianças? Ernestina estava então entre quatorze e quinze anos, era muito espigada, muito quieta, com uns modos naturais de senhora. Provavelmente não se divertiria com as meninas de oito e nove anos; não importa, uma vez que deixasse a mãe tranquila, podia alegrar-se ou enfadar-se. Mas, ai triste! há um limite para tudo, mesmo para os vinte e nove anos.

D. Camila resolveu, enfim, despedir-se desses dignos anfitriões, e fê-lo ralada de saudades. Eles ainda instaram por uns cinco ou seis meses de quebra; a bela dama respondeu-lhes que era impossível e, trepando no alazão do tempo, foi alojar-se na casa dos trinta.

Ela era, porém, daquela casta de mulheres que riem do sol e dos almanaques. Cor de leite, fresca, inalterável, deixava às outras o trabalho de envelhecer. Só queria o de existir. Cabelo negro, olhos castanhos e cálidos. Tinha as espáduas e o colo feitos de encomenda para os vestidos decotados, e assim também os braços, que eu não digo que eram os da Vênus de Milo, para evitar uma vulgaridade, mas provavelmente não eram outros. D. Camila sabia disto; sabia que era bonita, não só porque lho dizia o olhar sorrateiro das outras damas, como por um certo instinto que a beleza possui, como o talento e o gênio. Resta dizer que era casada, que o marido era ruivo, e que os dois amavam-se como noivos; finalmente, que era honesta. Não o era, note-se bem, por temperamento, mas por princípio, por amor ao marido, e creio que um pouco por orgulho.

Nenhum defeito, pois, exceto o de retardar os anos; mas é isso um defeito? Há, não me lembra em que página da Escritura, naturalmente nos Profetas, uma comparação dos dias com as águas de um rio que não voltam mais. D. Camila queria fazer uma represa para seu uso. No tumulto desta marcha contínua entre o nascimento e a morte, ela apegava-se à ilusão da estabilidade. Só se lhe podia exigir que não fosse ridícula, e não o era. Dir-me-á o leitor que a beleza vive de si mesma, e que a preocupação do calendário mostra que esta senhora vivia principalmente com os olhos na opinião. É verdade; mas como quer que vivam as mulheres do nosso tempo?

D. Camila entrou na casa dos trinta e não lhe custou passar adiante. 

Evidentemente o terror era uma superstição. Duas ou três amigas íntimas, nutridas de aritmética, continuavam a dizer que ela perdera a conta dos anos. Não advertiam que a natureza era cúmplice no erro, e que aos quarenta anos (verdadeiros), D. Camila trazia um ar de trinta e poucos. Restava um recurso: espiar-lhe o primeiro cabelo branco, um fiozinho de nada, mas branco. Em vão espiavam; o demônio do cabelo parecia cada vez mais negro.

Nisto enganavam-se. O fio branco estava ali; era a filha de D. Camila que entrava nos dezenove anos, e, por mal de pecados, bonita. D. Camila prolongou, quanto pôde, os vestidos adolescentes da filha, conservou-a no colégio até tarde, fez tudo para proclamá-la criança. A natureza, porém, que não é só imoral, mas também ilógica, enquanto sofreava os anos de uma, afrouxava a rédea aos da outra, e Ernestina, moça feita, entrou radiante no primeiro baile. Foi uma revelação. D. Camila adorava a filha; saboreou-lhe a glória a tragos demorados. No fundo do copo achou a gota amarga e fez uma careta. Chegou a pensar na abdicação; mas um grande pródigo de frases feitas disse-lhe que ela parecia a irmã mais velha da filha, e o projeto desfez-se. Foi dessa noite em diante que D. Camila entrou a dizer a todos que casara muito criança.

Um dia, poucos meses depois, apontou no horizonte o primeiro namorado. D. Camila pensara vagamente nessa calamidade, sem encará-la, sem aparelhar-se para a defesa. Quando menos esperava, achou um pretendente à porta. 

Interrogou a filha; descobriu-lhe um alvoroço indefinível, a inclinação dos vinte anos, e ficou prostrada. Casá-la era o menos; mas, se os seres são como as águas da Escritura, que não voltam mais, é porque atrás deles vêm outros, como atrás das águas outras águas; e, para definir essas ondas sucessivas é que os homens inventaram este nome de netos. D. Camila viu iminente o primeiro neto, e determinou adiá-lo. Está claro que não formulou a resolução, como não formulara a ideia do perigo. A alma entende-se a si mesma; uma sensação vale um raciocínio. As que ela teve foram rápidas, obscuras, no mais íntimo do seu ser, donde não as extraiu para não ser obrigada a encará-las.

— Mas que é que você acha de mau no Ribeiro? perguntou-lhe o marido, uma noite, à janela.

D. Camila levantou os ombros.

— Acho-lhe o nariz torto, disse.

— Mau! Você está nervosa; falemos de outra coisa, respondeu o marido. E, depois de olhar uns dois minutos para a rua, cantarolando na garganta, tornou ao Ribeiro, que achava um genro aceitável, e se lhe pedisse Ernestina, entendia que deviam ceder-lhe. Era inteligente e educado. Era também o herdeiro provável de uma tia de Cantagalo. E depois tinha um coração de ouro. Contavam-se dele coisas muito bonitas. Na academia, por exemplo... D. Camila ouviu o resto, batendo com a ponta do pé no chão e rufando com os dedos a sonata da impaciência; mas, quando o marido lhe disse que o Ribeiro esperava um despacho do ministro de estrangeiros, um lugar para os Estados Unidos, não pôde ter-se e cortou-lhe a palavra:

— O quê? separar-me de minha filha? Não, senhor.

Em que dose entrara neste grito o amor materno e o sentimento pessoal, é um problema difícil de resolver, principalmente agora, longe dos acontecimentos e das pessoas. Suponhamos que em partes iguais. A verdade é que o marido não soube que inventar para defender o ministro de estrangeiros, as necessidades diplomáticas, a fatalidade do matrimônio, e, não achando que inventar, foi dormir.

Dois dias depois veio a nomeação. No terceiro dia, a moça declarou ao namorado que não a pedisse ao pai, porque não queria separar-se da família. Era o mesmo que dizer: prefiro a família ao senhor. É verdade que tinha a voz trêmula e sumida, e um ar de profunda consternação; mas o Ribeiro viu tão-somente a rejeição, e embarcou. Assim acabou a primeira aventura.

D. Camila padeceu com o desgosto da filha; mas consolou-se depressa. Não faltam noivos, refletiu ela. Para consolar a filha, levou-a a passear a toda parte. Eram ambas bonitas, e Ernestina tinha a frescura dos anos; mas a beleza da mãe era mais perfeita, e apesar dos anos, superava a da filha. Não vamos ao ponto de crer que o sentimento da superioridade é que animava D. Camila a prolongar e repetir os passeios. Não: o amor materno, só por si, explica tudo. Mas concedamos que animasse um pouco. Que mal há nisso? Que mal há em que um bravo coronel defenda nobremente a pátria, e as suas dragonas? Nem por isso acaba o amor da pátria e o amor das mães.

Meses depois despontou a orelha de um segundo namorado. Desta vez era um viúvo, advogado, vinte e sete anos. Ernestina não sentiu por ele a mesma emoção que o outro lhe dera; limitou-se a aceitá-lo. D. Camila farejou depressa a nova candidatura. Não podia alegar nada contra ele; tinha o nariz reto como a consciência, e profunda aversão à vida diplomática. Mas haveria outros defeitos, devia haver outros. D. Camila buscou-os com alma; indagou de suas relações, hábitos, passado. Conseguiu achar umas coisinhas miúdas, tão somente a unha da imperfeição humana, alternativas de humor, ausência de graças intelectuais, e finalmente, um grande excesso de amor-próprio. Foi neste ponto que a bela dama o apanhou. Começou a levantar vagarosamente a muralha do silêncio; lançou primeiro a camada das pausas, mais ou menos longas, depois as frases curtas, depois os monossílabos, as distrações, as absorções, os olhares complacentes, os ouvidos resignados, os bocejos fingidos por trás da ventarola. Ele não entendeu logo; mas, quando reparou que os enfados da mãe coincidiam com as ausências da filha, achou que era ali demais e retirou-se. Se fosse homem de luta, tinha saltado a muralha; mas era orgulhoso e fraco. D. Camila deu graças aos deuses.

Houve um trimestre de respiro. Depois apareceram alguns namoricos de uma noite, insetos efêmeros, que não deixaram história. D. Camila compreendeu que eles tinham de multiplicar-se, até vir algum decisivo que a obrigasse a ceder; mas ao menos, dizia ela a si mesma, queria um genro que trouxesse à filha a mesma felicidade que o marido lhe deu. E, uma vez, ou para robustecer este decreto da vontade, ou por outro motivo, repetiu o conceito em voz alta, embora só ela pudesse ouvi-lo. Tu, psicólogo sutil, podes imaginar que ela queria convencer-se a si mesma; eu prefiro contar o que lhe aconteceu em 186...

Era de manhã. D. Camila estava ao espelho, a janela aberta, a chácara verde e sonora de cigarras e passarinhos. Ela sentia em si a harmonia que a ligava às coisas externas. Só a beleza intelectual é independente e superior. A beleza física é irmã da paisagem. D. Camila saboreava essa fraternidade íntima, secreta, um sentimento de identidade, uma recordação da vida anterior no mesmo útero divino. Nenhuma lembrança desagradável, nenhuma ocorrência vinha turvar essa expansão misteriosa. Ao contrário, tudo parecia embebê-la de eternidade, e os quarenta e dois anos em que ia não lhe pesavam mais do que outras tantas folhas de rosa. Olhava para fora, olhava para o espelho. De repente, como se lhe surdisse uma cobra, recuou aterrada. Tinha visto, sobre a fonte esquerda, um cabelinho branco. Ainda cuidou que fosse do marido; mas reconheceu depressa que não, que era dela mesma, um telegrama da velhice, que aí vinha a marchas forçadas. O primeiro sentimento foi de prostração.

D. Camila sentiu faltar-lhe tudo, tudo, viu-se encanecida e acabada no fim de uma semana.

— Mamãe, mamãe, bradou Ernestina entrando na saleta. Está aqui o camarote que papai mandou.

D. Camila teve um sobressalto de pudor, e instintivamente voltou para a filha o lado que não tinha o fio branco. Nunca a achou tão graciosa e lépida. Fitou-a com saudade. Fitou-a também com inveja, e, para abafar este sentimento mau, pegou no bilhete do camarote. Era para aquela mesma noite. Uma idéia expele outra; D. Camila anteviu-se no meio das luzes e das gentes, e depressa levantou o coração. 

Ficando só, tornou a olhar para o espelho, e corajosamente arrancou o cabelinho branco, e deitou-o à chácara. Out, damned spot! Out! (Fora, maldito lugar. Fora!) Mais feliz do que a outra lady Macbeth, viu assim desaparecer a nódoa no ar, porque no ânimo dela, a velhice era um remorso, e a fealdade um crime. Sai, maldita mancha! sai! Mas, se os remorsos voltam, por que não hão de voltar os cabelos brancos? 

Um mês depois, D. Camila descobriu outro, insinuado na bela e farta madeixa negra, e amputou-o sem piedade. Cinco ou seis semanas depois, outro. Este terceiro coincidiu com um terceiro candidato à mão da filha, e ambos acharam D. Camila numa hora de prostração. A beleza, que lhe suprira a mocidade, parecia-lhe prestes a ir também, como uma pomba sai em busca da outra. Os dias precipitavam-se. Crianças que ela vira ao colo, ou de carrinho puxado pelas amas, dançavam agora nos bailes. Os que eram homens fumavam; as mulheres cantavam ao piano. Algumas destas apresentavam-lhe os seus bebês, gorduchos, uma segunda geração que mamava, à espera de ir bailar também, cantar ou fumar, apresentar outros bebês a outras pessoas, e assim por diante.

D. Camila apenas tergiversou um pouco, acabou cedendo. Que remédio, senão aceitar um genro? Mas, como um velho costume não se perde de um dia para outro, D. Camila viu paralelamente, naquela festa do coração, um cenário e grande cenário. Preparou-se galhardamente, e o efeito correspondeu ao esforço.

Na igreja, no meio de outras damas; na sala, sentada no sofá (o estofo que forrava este móvel, assim como o papel da parede foram sempre escuros para fazer sobressair a tez de D. Camila), vestida a capricho, sem o requinte da extrema juventude, mas também sem a rigidez matronal, um meio-termo apenas, destinado a pôr em relevo as suas graças outoniças, risonha, e feliz, enfim, a recente sogra colheu os melhores sufrágios. Era certo que ainda lhe pendia dos ombros um retalho de púrpura.

Púrpura supõe dinastia. Dinastia exige netos. Restava que o Senhor abençoasse a união, e ele abençoou-a, no ano seguinte. D. Camila acostumara-se à ideia; mas era tão penoso abdicar, que ela aguardava o neto com amor e repugnância. Esse importuno embrião, curioso da vida e pretensioso, era necessário na terra?

Evidentemente, não; mas apareceu um dia, com as flores de setembro. Durante a crise, D. Camila só teve de pensar na filha; depois da crise, pensou na filha e no neto. Só dias depois é que pôde pensar em si mesma. Enfim, avó. Não havia duvidar; era avó. Nem as feições que eram ainda concertadas, nem os cabelos, que eram pretos (salvo meia dúzia de fios escondidos), podiam por si sós denunciar a realidade; mas a realidade existia; ela era, enfim, avó.

Quis recolher-se; e para ter o neto mais perto de si, chamou a filha para casa. Mas a casa não era um mosteiro, e as ruas e os jornais com os seus mil rumores acordavam nela os ecos de outro tempo. D. Camila rasgou o ato de abdicação e tornou ao tumulto.

Um dia, encontrei-a ao lado de uma preta, que levava ao colo uma criança de cinco a seis meses. D. Camila segurava na mão o chapelinho de sol aberto para cobrir a criança. Encontrei-a oito dias depois, com a mesma criança, a mesma preta e o mesmo chapéu de sol. Vinte dias depois, e trinta dias mais tarde, tornei a vê-la, entrando para o bonde, com a preta e a criança. 

— Você já deu de mamar? dizia ela à preta. Olhe o sol. Não vá cair. Não aperte muito o menino. Acordou? Não mexa com ele. Cubra a carinha, etc., etc.

Era o neto. Ela, porém ia tão apertadinha, tão cuidadosa da criança, tão a miúdo, tão sem outra senhora, que antes parecia mãe do que avó; e muita gente pensava que era mãe. Que tal fosse a intenção de D. Camila não o juro eu ("Não jurarás", MAT. V, 34). Tão-somente digo que nenhuma outra mãe seria mais desvelada do que D. Camila com o neto; atribuírem-lhe um simples filho era a coisa mais verossímil do mundo.

Fonte: Machado de Assis. Histórias sem data. Publicado originalmente em 1884. Disponível em Domínio Público