sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Varal de Trovas n. 592

 

Mensagem na Garrafa – 61 -

Célia Evaristo
Lisboa / Portugal

METADE DE MIM

Sou meio mulher,
meio menina,
por vezes inocente,
tantas vezes feminina.

Sou um pouco da noite,
um pouco do dia,
tanto sou o Sol,
como a lua, fria.

Sou luz
e escuridão,
sou sentimento,
sou a razão.

Sou uma réstia de calma
e outra de tempestade,
sou o campo, 
sou a cidade.

Sou a certeza 
e a contradição,
extremamente imperfeita
num todo de perfeição.

Sou um pouco de tudo,
um pouco de nada.
Sou uma prisão,
a liberdade da madrugada.

Sou ave que voa
nas ondas da emoção.
Sou ser que rasteja
nas areias da paixão.

Sou metade minha,
sou metade tua.

(https://www.facebook.com/celiamsevaristo.escritora)

Carolina Ramos (E os meus cavalos?) parte 4

Balão encerraria a lista dos cavalos que enfeitaram minha juventude, mas... ainda há um outro cavalo, cujo nome rima com o dele, e que não pode deixar de ser mencionado: - o Avião.

E, ao cita-lo, humilde e antecipadamente confesso: – o Avião foi o único cavalo que, em qualquer tempo, cheguei a temer!... Foi ele que quase roubou a fama de boa amazona que me era atribuída desde pequenina!

Por quê? - Bem... É que o Avião tinha fama de bicho bravo... coisa que seus antecedentes confirmavam de sobejo.

Fora rejeitado pela Força Pública, por indisciplinado.

- Depois disto, algo mais precisará ser dito?!

Mesmo aquele que tivera a ousadia de compra-lo para explora-lo comercialmente, somente o alugava para rapazes que comprovassem saber montar... e muito bem!

Mesmo assim, o seu proprietário fazia questão de, antecipadamente, eximir-se de qualquer responsabilidade, em caso de possível acidente.

E bastou que eu tomasse conhecimento disto, para que o Avião entrasse no rol de minhas juvenis utopias. A irresponsabilidade dos meus catorze anos sentiu-se desafiada. Embora guardasse segredo, eu queria porque queria dar uma voltinha naquele mal afamado "avião"!

Mas... como e quando poderia isso acontecer?!

Para a adolescência, barreiras praticamente não existem. O perigo induz ao desafio. E a irresponsabilidade, em geral, é quem comanda as ações!

As férias daquele ano terminavam dali a alguns dias. Com apenas catorze anos, eu aparentava ser já uma mocinha - embora com miolo de menina. O que, em última análise, poderia significar que juízo e senso de responsabilidade talvez não tivessem acompanhado, palmo a palmo, o desenvolvimento daquela meninota, que, embora tímida, não tirava do rol de suas ambições um passeio, ainda que ligeiro, naquele calamitoso Avião proibido. 

Mas... o que fazer para vencer tantas barreiras?!

Sábado. A turma jovem preparava-se para nova cavalgada no dia seguinte. Cada um escolhia a sua montaria, reservando-a, de véspera, pelo telefone.

- Não tive dúvidas! Seria agora, ou nunca! - Pedi o Avião!

A resposta, como de esperar, veio bastante responsável, do outro lado da linha: - Esse cavalo é perigoso! Só o alugamos para quem saiba montar... E muito bem! E também não nos responsabilizamos pelo que possa acontecer.

Apesar do aviso, confirmei:

- Pode mandar o Avião - "a pessoa" sabe montar...

Creio ter sido essa uma das raríssimas vezes em que desmenti as palavras de minha mãezinha, que sempre afirmava com orgulho: - Minha filha não mente... nem quando sabe que a verdade a prejudicará! - palavras que procuro honrar, até hoje, apesar daquela exceção.

Contudo, em última análise, eu não mentira, sabia montar mesmo, com destemor, com técnica e até mesmo com certa experiência, desde garotinha, o que me levava àquela audácia, dando preferência aos cavalos rejeitados por serem fogosos, ariscos, ou velozes em demasia. Coisas de jovem - quem já o foi me entenderá.

Meu pai havia chegado a Campos do Jordão na véspera, para levar de volta minha mãe e eu. Seria a minha última chance.

Cedo, na manhã seguinte, lá estavam os cavalos no pátio, prontos para o passeio à espera dos respectivos cavaleiros.

Sem perda de tempo, cheguei-me ao Avião. Embora com certa dificuldade, consegui monta-lo sem ajuda. Não houve tempo hábil para que aquele que trouxera os cavalos vencesse o pasmo, ao notar a minha imprudência. Muito menos, para tentar corrigi-la.

- Assim que se sentiu cavalgado, o fogoso Avião provou logo quem era. - Arremeteu "voo", num galope aceso, sem respeitar sequer o que tinha à frente, e, muito menos quem tinha no lombo.

Surpresa geral! Ante o ímpeto do animal, todos se afastaram dando-lhe passagem. E, em galope aceso, aquele Avião, "a jato", ganhou a estrada.

Foi o início do Deus nos acuda! Quem disse que aquela garota atrevida colada ao lombo daquele cavalo doidão, tinha força suficiente para domar o dorso de um ciclone?!

Entreguei-me a Deus e, a única coisa que consegui, com a ajuda d'Ele, foi não permitir que aquele cavalão maluco me atirasse ao chão e me pisoteasse sem dó (castigo até que merecido!).

No mais, o tal Avião fez o que bem quis! Foi por onde bem entendeu e fez o que lhe deu na telha, enquanto aquela moleca irresponsável, nele grudada como um carrapato, prometia a si mesma que só sairia de cima daquele cavalão doido, se lhe levasse o couro junto.

Não sei quando... e não sei como, mas... depois de dar as voltas que bem quis, o Avião resolveu ceder ao meu empenho para que retomasse a mesma estrada que nos levaria de retorno ao ponto de partida, embora mantendo sempre aquele galope infernal que não permitia a menor tentativa de ser freado.

Creio mesmo que Deus teve pena de mim! Apenas por interferência divina, aquele cavalão indomável acataria afinal, minha derradeira tentativa de comando, dignando-se a dar aquela meia volta de retorno, pondo a salvo, assim, os brios de quem, a esse tempo, apenas aspirava por manter-se na sela.

À chegada, pude ver, de longe, uma corrente de mãos formada por várias pessoas, inclusive meu pai. Tentavam fechar a estrada a ver se o corcel desvairado diminuía a marcha. Tudo inútil! A corrente foi rapidamente desfeita, antes que o brutamontes a rompesse e atropelasse todo o mundo com sua audácia.

Ao entrar no pátio da pensão, o Avião como que desligou os "motores". Parou, resfolegante, naquele mesmíssimo lugar de onde atabalhoadamente partira. 

Eu ainda estava como que grudada nele, quando meu pai chegou junto a nós, rosto suado e lívido. Nos seus olhos severos, havia uma expressão indefinida, que me assustou... Mais, talvez, do que o medo causado pelo desvario do Avião!

Não o consegui encarar. Ele já estaria a par de toda a história daquele cavalão. Meu sentimento de culpa era grande! Bem maior do que eu!

Entretanto, para surpresa minha, apesar do seu gênio forte, meu pai não me dirigiu uma palavra sequer de reprimenda.

Com certeza, naquele espaço de tempo, ele já tomara conhecimento da fama daquele cavalo indisciplinado, e, intuíra o perigo que a filha enfrentara, concluindo que as proporções do susto bastariam como lição.

Por minha vez, depois de tantos anos passados, analiso, com olhos de hoje, aquela situação. O que pretenderia aquela garota adolescente, com a audaciosa atitude que lhe poderia ter roubado a vida?!

Questiono-me, invadindo retroativamente meus próprios sentimentos, procurando entender o que teria movido àquela menina tímida que eu realmente era, a expor-se perigosamente de tal forma?!

A conclusão uma só: - Necessidade de afirmação, coisa inerente às ações de qualquer adolescente. Não para mostrar a alguém do que é capaz, mas, tão somente, para provar a si mesmo que é alguém.

Perante os demais, entretanto, tudo não passou, certamente, de mera traquinagem e de um susto merecido, que pedia em resposta alguns petelecos paternos, já que, naquele tempo, palmadas corretivas, quando merecidas, eram válidas.

Contudo, ao relembrar, hoje, a cena e o consequente susto, eu ironicamente reconheça que, no final de tudo e apesar dos pesares, no fundo da alma daquela menina-moça, mais menina do que propriamente moça, deveria persistir aceso, ainda por muito tempo, o rastilho daquela vitória, a suplantar tudo o que de negativo acontecera, E que fora justificado pela realização de tão ousado sonho!

Embora tímida, e apesar do susto, aquela menina provara a si mesma que, mesmo com todo antagonismo à sua volta, lograra por si só dar um passo à frente, rumo à conquista daquele equilíbrio e confiança indispensáveis para chegar ao amanhã à sua espera. E que já lhe batia à porta.

Aprendera a assumir e a defender-se dos próprios erros. Aprendera a enfrentar com coragem os riscos criados por ela mesma. Ciente de que o êxito absoluto depende, principalmente, da confiança em sua própria competência, mesmo que seu valor não seja ainda reconhecido pelos demais. Mas aprendera também que é preciso não subestimar os riscos, para chegar ao sucesso absoluto, com senso de responsabilidade indispensável para dosar impulsos e alcançar a vitória sem traumas.

Afinal, apesar do susto, aquela jovem conseguira o que queria, amparada pela própria determinação, mas, também, com a proteção da Fé, que jamais a abandonou. Como saldo positivo, entendera também, que algumas atitudes podem conter certa aura de vitória, mesmo que o verdadeiro sentido dessa aura tão somente venha a ser reconhecido e usufruído por quem a conquistou.

- Assim sendo, ao tecer estas considerações, embora hoje desaprove aquele ato imprudente, concluo, com um pouco mais de tolerância e até mesmo com benevolente sorriso de vitória, que aquela garota, (tão distante do que sou agora), tinha, sim, certa razão para comemorar tal feito!

Afinal, apesar do susto e com o amparo de Deus, voltara daquela perigosa aventura, não apenas inteira e muito mais amadurecida... E também, o que não pode ser esquecido, literalmente, "sem cair do cavalo!"

Continuando a garimpar no terreno das hipóteses, arrisco ainda uma pergunta para desvendar outro dilema: – Será que aquele olhar significativo de meu pai não incluiria, lá bem no fundo, não apenas susto, mas também, quem sabe, uma pitadinha de surpresa ou, arrisco ir além, até mesmo uma secreta admiração pela façanha da filha?!

Façanha, sim, uma vez que, dentre tantos que a testemunharam, quem se aventuraria a repeti-la?!

Não teria essa pontinha de orgulho sustado os cascudos e também o sermão que aquela inconsequente garota sabia merecer?!

Não indago gratuitamente. Note-se. Meu pai, homem de ação e de poucas palavras, naquela ocasião, não aplaudiu e nem recriminou o acontecido, sem que se pretenda insinuar que o tenha aprovado. Mas... aquele pai bastante severo, agiu como se, de certa forma, minimiza-se a imprudência da filha, que não ouviu dele a reprimenda esperada e, sem dúvida, bastante merecida!

E o peso desta afirmação escuda-se num fato conclusivo:

- Tudo aquilo acontecera num janeiro. Dois meses depois, ou seja, em março, aquela mesma adolescente teria conhecimento de que um dos seus presentes de aniversário de 15 anos, data emblemática, seria, nada mais nada menos, que um lindo cavalo, de nome Expresso, cuja história foi antecipada na crônica - Férias na Fazenda – páginas atrás.

O pretendido presente, embora frustrado pelas circunstâncias já reveladas, não fora cancelado com base no incidente - o que seria o óbvio a acontecer. E mais...As responsabilidades inerentes àquele presente traziam consigo providências a serem tomadas por quem o recebia. Logo, a doação de um cavalo não poderia deixar de ser fruto de um acordo entre os doadores e meu pai. - Sendo que meu pai, por sua vez, já garantira até uma baia para o Expresso, no Clube Hípico de São Vicente. 

Assim, as evidências validam as suspeitas de que havia um complô bastante afetivo, que certamente incluía meu pai, e que, apesar do acontecido, não fora desfeito por ele, como seria lógico esperar.

A própria vida, por si, acabou por decidir o contrário. 

Ou... quem sabe a previdência Divina?!

E aqui fique o registro: - Em minha juventude, foi aquela a última vez, em que banquei a amazona.

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

Auta de Souza (Poemas Escolhidos) – 11 –


MISTÉRIO

Sei que tu’alma carinhosa e mansa
Voou, sorrindo, para o azul celeste;
Sei que teu corpo virginal descansa
Aqui da terra num cantinho agreste.

Tudo isto sei: mas tu não me disseste
Se lá no céu, na pátria da Esperança,
Ou aqui no mundo, à sombra do cipreste,
Deixaste o coração, loura criança!

Desceu acaso com o corpo à terra
Ele tão puro e que só luz encerra?
Não creio nisso e ninguém crê decerto...

Entanto, eu cismo que, num vale ameno,
Talvez o seio de um jasmim pequeno
Sirva de berço ao coração de Alberto.
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MEU PAI

Desce, meu Pai, a noite baixou mansa.
Nem uma nuvem se vê mais no céu:
Aninharam-se aqui no peito meu,
Onde, chorando, a negra dor descansa.

Quando morreste eu era bem criança,
Balbuciava, sim, o nome teu,
Mas deste rosto santo que morreu
Já não conservo a mínima lembrança.

A noite é clara; e eu, aqui sentada,
Tenho medo da lua embalsamada,
Corta-me o frio a alma comovida.

Se lá no céu teu coração padece,
Vem comigo rezar a mesma prece:
Tua bênção, meu pai, me dará vida!
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MATER

Minha mãe! meu amor! Por que voaste, rindo,
Para o país azul e santo da quimera?
Minha mãe! minha mãe! Se o céu é sempre lindo,
Aqui também há sol, também há primavera...

Depois que te partiste e os teus pobres filhinhos,
Pequeninos e sós, deixaste na orfandade,
Ficamos a chorar — implumes passarinhos!
Que os pássaros também soluçam de saudade.

Pobres aves sem ninho, andamos a procura
Do ninho de teu seio imaculado e amigo,
Criancinhas sem berço, em busca de um abrigo
No berço de tu’alma alabastrina e pura.

Não nos deixe sofrer, outrora, quando aflita
Tu nos via chorar — os risos de tu’alma!
Soluçavas também e a tua mão bendita,
Nos enxugando o pranto, o transformava em calma.

Teu seio, ó minha mãe, era a corrente mansa,
Sempre serena e doce em seu gemer eterno,
Onde boiava, a rir, noss’alma de criança
No mimoso batel do coração materno.

Como era bom dormir na curva de teu braço,
Sonhando adormecer ouvindo-te cantar...
Como era bom dormir, ó mãe, em teu regaço,
Dourando-nos o sono a luz de teu olhar!
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MORENA

Ó moça faceira,
Dos olhos escuros,
Tão lindos, tão puros,
Qual noite fagueira!

Criança morena,
Teus olhos rasgados
São céus estrelados
Em noite serena!

Que doces encantos
No brilho fulgente,
No brilho dolente
De teus olhos santos!

E eu vivo adorando,
Meu anjo formoso,
O brilho radioso
Que vão derramando.

Em chamas serenas,
Tão mansas e puras,
Teus olhos escuros,
Ó flor das morenas!
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MANHÃ NO CAMPO

Estendo os olhos pelo prado a fora:
Verdura e flores é o que a vista alcança...
— Bendito oásis onde o olhar descansa
Quando saudades do passado chora.

Escuto ao longe uma canção sonora.
Voz de mulher ou, antes, de criança
Entoa o hino branco da Esperança,
Hino das aves ao nascer da Aurora.

Por toda parte risos e fulgores
E a Natureza desabrochando em flores,
Iluminada pelo Sol risonho,

Recorda um’alma diluída em prece,
Um coração feliz que inda estremece
À luz sagrada do primeiro sonho!
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NO ÁLBUM DE EUGÊNIA

Quanta dor a boiar nos olhos das crianças,
Quanta gota a tremer no cálice das flores...
E aqui neste jardim, plantado de esperanças,
Eu venho inda depor a lágrima das dores.

A lágrima é o meu nome escrito entre as formosas
Páginas de teu livro, um berço de boninas!
Pois não bastava o orvalho a tremular nas rosas,
Nem o pranto a rolar nas faces pequeninas?

Fonte: Auta de Souza. Poemas. Publicado postumamente em 1932. Disponível em Domínio Público.

Newton Sampaio (Caco de gente)

Na fazenda Ubirajara — situada um pouco além de Japira — ia um rebuliço medonho. Todos se movimentavam. Em tudo se mexia. Aqui, um arranjo melhor nos móveis sem luxo. Uma limpada nas louças antigas, acolá.

— Anda, Tiloca, não seja nhenga.

— Arruma a mesa duma vez, Zita.

E dona Cecília, arrastando seu reumatismo e seus precoces cabelos brancos, não dava trégua às crioulas. Queria tudo em ordem.

Pudera! Logo mais chegaria o primogênito do casal, o Ricardo, mais adulado do que ninguém, e que, justamente por viver quase sempre longe, em estudos superiores, recebia ao chegar os melhores carinhos, os mais desvanecedores agrados. 

O velho Pedro Matoso já partira ao encontro do filho. E, nessa hora, ambos deveriam estar trotando na estrada da fazenda, com toda a certeza. D. Cecília, de minuto em minuto, mandava um moleque à porteira espiar alguma nuvem de pó que acaso se agitasse além, ao lado dos cafezais, denunciando a aproximação dos viajantes.

Algum tempo mais, e saltava no terreiro o vulto guapo do Ricardo. Um longo abraço — desses que parecem espremer toda a saudade do coração — iniciou o rapaz na vida da fazenda onde nascera. Ricardo era um tipo sugestivo. Atleta perfeito. Forte. Corado. Vendendo saúde. E, além do mais, inteligente. De espírito arguto, demonstrado no olhar negro, penetrante.

D. Cecília não se cansava de aconchegá-lo ao peito. Feliz, o amor das mães. E crivava-o de perguntas. Queria saber de tudo. A vida inteira do filho na cidade. Coisas de pensão. Exames. Divertimentos. Estudos...

E Ricardo respondia. Calmamente. Sorrindo. Com aquela maneira toda sua de pesar bem as palavras.

Pedro Matoso andava orgulhoso. O filho saíra-lhe um rapagão. Ufano, contava aos compadres que Ricardo estava para se formar em Direito. Seriam aquelas as suas últimas férias de estudante. Depois, voltaria bacharel. E casado, talvez. Para viver independente. Para exercer a profissão.

Dezembro passou com seu calor insuportável. No céu, onde as nuvens, muito finas, corriam como doidas, andava a mesma claridade estonteante. E em todas as coisas punha o sol prodígios de luz. Um guaretá (planta de folha grande) esguio, chamuscado pela queima de agosto, exibia no alto a pobreza desconsoladora das folhas. E tinha o tronco torto, numa caricatura de desalento.

Janeiro começou. A mesma canícula a prometer chuvas. Ricardo sentara-se num degrau da escada. E alongava a vista, numa cisma insopitável.

Ao canto da casa, mirando fixamente o rapaz, jazia uma figura esquecida. Era a Teca. (Ou, melhor, o “Caco de Gente”, como todos a chamavam). Uma ironia da natureza. Um ser que não deveria ter nascido. O fantasma da sífilis corporizado. Hereditariedade cruel que zombava de suas vítimas. Estatura atrofiada. Um verdadeiro “caco de gente”, mesmo. Mas hipertrofia do resto, quase todo. Mãos enormes. Braços musculosos. Pernas muito inchadas, desiguais. Protuberâncias nas costas — um prodígio de teratologia. No entanto, um rosto sem anormalidades. Iluminado até por dois olhinhos ligeiros, por onde se adivinhava a tragédia íntima. Porque Teca era bem mulher, no espírito. E sedenta de emoções, no passar triste de seus 16 anos.

Recebera-a, por piedade, o velho Pedro Matoso. Havia muito tempo, já. Quando a mãe a abandonara horrorizada com o rebento.

— O que é isso, “Caco de Gente”? Parece que nunca viu o Ricardo? 

Apanhada em flagrante, Teca saiu envergonhada. E desapareceu atrás da casa.

— Escuta mamãe. Tenho muita pena dessa menina. Não gosto mesmo que lhe deem um tal apelido. Eu nunca a chamarei dessa forma. Isso deve desagradar-lhe. Teca tem um espírito, como qualquer outra pessoa. E possui, estou certo, uma sensibilidade aguda. Não vê como ela demonstra pelos olhos o quanto lhe pesa na alma a intuição de sua deformidade?

— Ora, Ricardo. Há mais de 15 anos que me acostumei assim.

“Caco de Gente” ela nasceu, “Caco de Gente” há de ser sempre. Também não sei por que o Pedro ficou com esse bicho... E eu tenho uns pressentimentos com essas coisas...

— Tolices, minha mãe.

— Por que será que o “Caco de Gente” vive a olhar tanto para você? Todos se cansam de surpreendê-la nessa postura de idiota, a examinar, a examinar...

Ricardo levantou-se. Pôs a mão no ombro de dona Cecília.

— Quem sabe a Teca gosta de mim. Isto não me tira pedaço... Os cretinos também sabem amar.

E riu com gosto.

Os cretinos também sabem amar... Ricardo pronunciara essa frase, num assomo de bom humor. E nem lhe dera importância. Enquanto isso, Teca continuava escondida atrás da casa. Não. Ela não era cretina. Era, na verdade, o produto horrendo de entranhas amaldiçoadas. Mas só no corpo. O espírito, ela o conservava esclarecido. Embora não pudesse exprimir as ideias. Produzia sua garganta apenas sons inarticulados.

Teca sofria com isso. Tinha ímpetos de rasgar o peito e mostrar a todos os que dela caçoavam como o seu coração também sabia pulsar, como sua alma podia apreciar as maravilhas da vida.

Quando Ricardo estava para chegar, ninguém notara o seu júbilo. Ia de um lado a outro, manquetolando. Sem definir bem o que sentia. Admirava no rapaz o porte esbelto. A elegância do traje. A maneira de tratar a todos. A delicadeza que lhe dispensava, sem nunca a chamar de “Caco de Gente” — as três palavras que mais a irritavam. E naquele dia quase a surpreenderam em frente ao espelho da filha de dona Cecília, a passar no rosto uma camada de pó de arroz.

O estudante estava em véspera de partir. Na fazenda Ubirajara rondava o espectro das primeiras saudades. Tão vazio iria ficar aquilo sem a bondade do Ricardo, sem as suas risadas francas, sem os inesquecíveis passeios a cavalo, que só ele sabia organizar...

À medida que passavam as horas, Teca se angustiava. Tivera uma conclusão imprevista em seus sentimentos. Imaginava como seria tudo insípido depois que Ricardo voltasse para cidade. E vergava a alma acabrunhada ao pensar que, chegando lá, ele iria tratar do casamento e ceder a sua elegância, a sua grandeza de coração, as suas palavras de afeto, a uma outra mulher que não a ela —miserável “Caco de Gente”.

E Teca, mal acomodada no leito pequeno, resolvia-se insone, sem saber dominar-se. E lhe parecia estar sendo tragada pela bocarra de um destino crudelíssimo, torturante, requintado em angústias sem nome.

A tarde toda “Caco de Gente” andou desaparecida. Também pessoa alguma dera maior importância ao caso. Era hábito do monstrengo, essas fugidas da fazenda...

Na manhã seguinte, resolvera-se o Ricardo a viajar. O cavalo zaino estava à porta, pronto a levá-lo até a próxima estação. Abraçou a todos. E foi com singular emoção que se separou de todas as incontáveis amizades que deixava. Quis dizer adeus também à Teca. Não a encontrou, porém, em casa.

Na estrada orvalhada ainda, pai e filho conversavam, ao trotar dos cavalos.

Num certo momento, para despedir-se dos folguedos da fazenda, Ricardo dispôs-se a galopar um pouco. E logo deixou o velho Pedro Matoso bem para trás.

Naquela altura, o caminho passava por um capão denso. E ziguezagueando em meio das árvores luxuriantes, corria um ribeiro insignificante. Havendo no terreno, porém, um descavado profundo, lá se erguia, em meio à mataria ensombrada, o pontilhão de madeira, construído pela rústica engenharia do sertanejo. Após o pontilhão, que era precedido por uma rampa, tomava a estrada imprevistamente uma subida forte, extensa, para depois continuar sempre amena.

Ricardo percebeu de longe o robusto núcleo de vegetação. Lembrou-se da disposição esquisita do caminho, ali, considerando-o um ótimo ponto para a demonstração de suas qualidades de cavaleiro.

Castigou a ilhargas do animal descansado ainda. E investiu num galope desenfreado. No madeirame tosco do pontilhão, as patas ferradas do cavalo ecoaram fortes. E o estudante fustigou melhor o zaino, frenético de vencer a ladeira num segundo.

Não tinham sido vencidos mais que quatro metros, e esbarrou o busto do rapaz com uma corda estendida de um lado a outro do caminho.

Ricardo não pôde equilibrar-se com o golpe e foi cuspido do lombo do animal. Ao mesmo tempo, um pelotaço de barro ia ferir-lhe impetuosamente a maçã do rosto. Cego de dor, a nuca mergulhada na poeira, o estudante se pôs a espernear.

Imediatamente, saiu do mato, manquitolando nervosa, a figura grotesca da Teca. Ágil como nunca se mostrara, deixou o bodoque na orla do caminho, e, alcançando Ricardo, cravou-lhe no flanco direito a lâmina pontiaguda de uma faca de cozinha.

Ricardo contraiu-se todo, em violento espasmo de dor. De sua garganta partiu um rugido agoniado.

E Teca, os olhos cheios de lágrimas, contrita, enlaçou-lhe a cabeça acariciando-lhe o ferimento do rosto.

Depois procurou os lábios de Ricardo para um beijo selvagem, brutal, onde pôs toda a sua ganância.

Quando o velho Pedro Matoso, ao trote de seu matungo, pôde avistar o pontilhão, Teca já galgava a subida, aos trombalhões, cascalhando risadas histéricas.

E, estendido na estrada, no esforço supremo do derradeiro estertor, o estudante murmurava, acenando ainda com a mão:

— “Caco de Gente... Caco... de... Gente...”

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Edy Soares (Fragata de versos) – 40: Conjecturas

 

Mensagem na Garrafa – 60 –

 

Luiz Poeta
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

MEUS  CINCO MIL AMIGOS

Notei, na lista que fiz, 
De tanta gente feliz
Que habita meu coração, 
Que alguém saiu do meu peito, 
Por não estar satisfeito
Com a própria solidão. 

Confesso meu desencanto, 
Mas cada gota de pranto
Irriga meu pensamento
E eu, eterno aprendiz, 
Entendo o que o tempo diz
Quando diz com sentimento.

Tenho cinco mil amigos 
No face... meus inimigos
Nem sempre são virtuais,
Pois quem ama de verdade, 
Deixa sempre em liberdade
Quem o ama muito mais. 

Muita gente se acomoda
E faz da vida uma roda, 
Mas sequer estende a mão, 
Porém, se a vida é ciranda, 
Quem se esquiva e sai de banda, 
Toma outra direção. 

Quando um sai, um outro entra, 
A amizade se concentra
Numa troca de alegrias. 
Mas se a dor é iminente, 
Um sente o que o outro sente, 
E essa dor se distancia. 

Quem sai de mim e retorna,
E como uma água morna
Que molha o meu jardim,
Queima meu sonho e me afeta, 
Mas desperta, no Poeta, 
Um recomeço, do fim.  

Quem me trata com carinho, 
recebe parte do ninho 
onde mora a afeição 
E eu, como sou passarinho, 
Nunca sei voar sozinho, 
Carrego sempre um irmão. 

Às vezes, a intensidade
Faz da possessividade
Um excesso de exigência
E a falta de afinidade
Se desfaz na ansiedade
Que brota da incoerência. 

Mas aquele que se aceita
E aceita quem não rejeita
O outro como ele é, 
Abençoa-se e abençoa,
Compreendendo o que ele doa, 
Porque se doa com fé. 

Portanto, sinta-se bem, 
O meu coração contém
Batimentos  tão sutis, 
Que, quando ele se encanta, 
A minha alegria canta 
Com quem, me torna  feliz. 
(Fonte:Facebook do poeta)

A. A. de Assis (Dançar Abraçado)

Se você tem mais de 70 anos, decerto se lembra do tempo em que os casais dançavam abraçados – os mais íntimos com os rostos colados. O baile começava às 10 da noite e ia até por volta das 3 da madrugada. As moças com vestidos rodados, os rapazes de terno e gravata. Valsa, bolero, tango, samba-canção, rumba, swing, blues. 

De chegada, um cuba-libre ou gim-tônica. Para os que tinham “par constante” não havia problema. Já os avulsos tinham que criar coragem e ir à mesa de uma das meninas a fim de “tirá-la” para dançar. Se ela “dava tábua”, era aquele vexame, e se, de imediato, aceitava dançar com outro, podia dar briga feia.

Lá pelas tantas os casais já estavam bem aquecidos e alguns chegavam a ousar beijos na boca, desafiando as geralmente rígidas normas do clube. Nesse momento entrava em cena o “fiscal de salão”, que se aproximava dos pombinhos e lhes recomendava tomar “bons modos” ou interromper a dança. Em alguns casos os atrevidos eram convidados a se retirar da festa.

Nas duas primeiras décadas de Maringá, os casamentos celebrados na cidade eram, em grande número, resultantes de algum namoro iniciado em um baile ou matinê no Aeroclube, no Grêmio dos Comerciários ou no salão amarelo do Grande Hotel.

A animação ficava por conta de uma de nossas orquestras pioneiras – a do Marchini, a do Penha, a do Britinho. Em ocasiões especiais vinham orquestras de fora, como a do Nélson de Tupã, a do Ruy Rey, a Marajoara de Severino Araújo. 

Havia também alguns “bailes de gala”, que exigiam das mulheres vestidos longos e dos homens terno branco ou azul-marinho com gravata-borboleta – o Baile das Debutantes, o Baile da Primavera, o Baile do Rubi. Em junho o traje mudava para a gaiatice, com as alvoroçadas festanças ditas à moda caipira.

Mas sempre com aquele jeito romântico de dançar – os pares abraçados, rostos colados, confissões de amor cochichadas ao pé do ouvido.

Até se dar que de repente, meados dos anos 1950, houve aquela cambalhota completa nos usos e costumes, com forte repercussão especialmente no processo de ascensão da mulher, a começar pela intensificação da busca de igualização profissional, cultural e política dos gêneros. Dentro desse clima de turbulência geral entrou na moda o “rock and roll”, pilotado pelo fenômeno Elvis Presley.

Mas o que foi que teve a ver uma coisa com outra? Teve que ao rock se credita um dos indicativos mais marcantes da emancipação feminina. No baile antigo o homem enlaçava o corpo da mulher e guiava os movimentos dela. Com o novo ritmo, os casais se desgrudaram: ele e ela passaram a dançar soltos, um diante do outro, ninguém conduzindo ninguém.

De qualquer forma, ficou uma pontinha de saudade do “old time dancing”. Converse com seus pais e avós para saber o que eles pensam disso.

Os mais jovens talvez digam que a tendência hoje é o meio termo: um pouco cada-um-pra-si, um pouco agarradinhos. Aí é legal.

(Crônica publicada na edição do Jornal do Povo de 29.6.23)

Leandro Bertoldo Silva (É aqui, é aqui!)

Essa semana, no dia 12 de dezembro, Belo Horizonte completou 126 anos. É a cidade que me viu nascer. Foi onde eu cresci, estudei, fiz meus melhores amigos, os quais até hoje fazem parte da minha vida; como o moço – Pierre André – representando Aarão Reis, o construtor da então Cidade de Minas.

Pierre é um irmão, parceiro das artes e colecionamos juntos muitas vivências para contar. Reis – sim, conquistei essa intimidade de chama-lo assim, foi outro grande amigo que fiz, e juntamente com Xavier de Novais, o segurança de uma livraria, me permitiu escrever em uma deliciosa ficção histórica a história dessa cidade permeada de lendas e fantasmas.

A propósito, é sobre um deles que passo a contar agora, revelando, inclusive, sua origem. Isso pouca gente sabe!

Antes preciso dizer que o caso não é meu… Ele me foi contado por Xavier de Novais que o ouviu de Aarão Reis. Por isso, aos historiadores que se sentirem incomodados, dou-lhes uma sugestão: tão logo tenham suas existências mudadas de patamar, solicitem uma audiência com meu amigo Reis e cobre dele o que aqui vai narrado…
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Voltamos em 1897. Prestes a ser inaugurada, ainda faltava em Belo Horizonte aquele mal necessário… Aliás, não exatamente um mal, mas uma necessidade triste… A cidade precisava de um cemitério. É verdade que Belo Horizonte foi construída a partir de algumas desapropriações e que deixaram muitos moradores, após a passagem para o outro mundo, vagando a esmo pelas ruas da cidade e, por que não dizer, assustando os transeuntes. Sobre isso falarei ao cabo deste relato. Por ora, digo que a Loira do Bonfim não é uma dessas assombrações, até porque, ela não fazia parte do rol dos fantasmas pioneiros da cidade, embora sua fama tenha ultrapassado muitos deles. Onde estaria, então, a ligação entre tudo isso? Nele: a razão de ser da loira e de tantos outros que ali fizeram morada, dos mais simples e humildes aos mais abastados e importantes, como Raul Soares, Olegário Maciel e até mesmo o beato holandês Padre Eustáquio. Estou me referindo ao próprio campo-santo, cujo nome traz em seu trocadilho a alcunha perfeita, se não para a sua existência, ao menos para o que vai adiante.

O Bonfim fora planejado para ser o primeiro cemitério da história da então nova capital. E como tudo na época não economizava despesas, artistas italianos recém-chegados a Belo Horizonte no fim do século XIX e início do XX foram convidados a assinarem verdadeiras esculturas artísticas sob os túmulos e mausoléus. Muitas dessas esculturas até hoje estão no local, fazendo com que o cemitério do Bonfim se tornasse um museu a céu aberto e um dos mais impressionantes do país. Difícil é encontrar quem tenha coragem de admirar tais obras, ainda mais a noite…

Bem, como eu disse, o Bonfim fora planejado para ser o primeiro cemitério da cidade. Acontece que não foi. Outra necrópole já existia na nova capital antes dessa. E a razão era lógica: muitos operários, assim como seus parentes, morreram ao longo da construção de Belo Horizonte. Onde os corpos foram enterrados? Oh, meus amigos… Há quem se lembre, já em tempos um pouco mais modernos, daquela noite de chuva torrencial. Foi tanta água, mas tanta, que crânios rolaram pelas ruas do centro da capital, passando pela avenida Afonso Pena e chegaram ao Parque Municipal, causando espanto e pânico nos moradores, na manhã do dia seguinte. A razão de macabro acontecimento? É que o local onde foram enterrados cerca de duzentos corpos ocupou o quarteirão que hoje é circundado pela avenida Amazonas e ruas São Paulo, Tupis e Rio de Janeiro. O lugar, obviamente, não existe mais. Foi ocupado por edifícios e não entrou para a história com a mesma importância do “irmão famoso”, ficando relegado ao esquecimento, pelo menos até agora. Essa história é fundamental para entender o que, na verdade, é a razão deste relato: a origem da loira misteriosa. E tudo começou naquele fim de tarde de 1895, dois anos antes da inauguração da cidade…

“Senhores, temos um problema” — sentenciou um dos homens da Comissão Construtora da Nova Capital. A reunião havia sido marcada com urgência após o trágico acidente que vitimou  um dos operários que trabalhavam sem nenhuma proteção e cuidados especiais, o que era comum naquela época. O infeliz moço caiu em uma vala, bateu com a cabeça e entrou para a história anônima como o primeiro dos duzentos mortos daquela ação em prol da modernidade. Cabe dizer que o “problema” não foi a morte do homem e muito menos da família que choraria sua ausência. Antes fora algo muito mais sério… O cemitério ainda não estava pronto e, mesmo que estivesse, haveria de ser inaugurado com figura ilustre, que fizesse jus ao alto investimento dos artistas italianos. Não seria um operário a ser plantado em hora errada. Não ficaria bem aos olhos do alto escalão e de suas famílias.

— Onde foi a queda?

— Na transversal sul, a duzentos metros da principal.

— Mais essa! Arre!

— Sugiro, senhores, calma e equilíbrio. O planejamento do Bonfim não pode ser alterado e o fato requer medidas diplomáticas.

— Diplomáticas? É um operário!

— Acalme-se. Ele tem razão. Não queremos grandes alterações, creio. Nem tampouco levantar chateações desnecessárias para com os operários e seus familiares… Já está em uma vala, certo? Que fique por lá com honras de condolências, para imprimir aos demais e aos seus nosso devido respeito. 

— Exatamente! Um gesto apenas, para uma eternidade de bons motivos de gratidão.

— Mais claro impossível! — disseram, e após acertarem os detalhes do funeral, a reunião foi encerrada.

No dia seguinte, às cinco horas da tarde, o local improvisado foi cercado, sem grandes pompas para que ficasse assim mesmo, sem importância. Afinal, as coisas sem importância são logo esquecidas. Determinou-se que ali seria onde os operários mortos e seus familiares seriam sepultados, mas que os ricos estavam proibidos de morrer, se é que me entendem… Estes esperarão por campos mais santos — o primeiro. Até lá, flores e palavras bonitas eram suficientes para aquela gente que inaugurava o primeiro desenlace da auspiciosa construção. 

Passemos adiante, mas não sem mencionar que a viúva do infeliz estava grávida, e veio dar à luz a uma menina branca como o leite que, ao crescer, tornara-se uma mulher linda, com olhos e cabelos claros, mas doente e triste. Morreu jovem, vindo a ser sepultada não na mesma cova rasa de seus pais, que já não existia, mas no emblemático Bonfim. Isso mesmo que deve ter pensado, queridos amigos… A mulher linda e triste era ela, ou melhor, é ela: a Loira do Bonfim, ou, ainda, Aurora.

Esse era seu nome, que se contrapunha à insistência de seu destino. Como dito, Aurora era linda, mas triste. Por ironia não inexplicável, nascera para a morte. Embora sua beleza a colocasse em patamares superiores a sua gente, sua ascensão social nunca era permitida, não pelas pessoas, mas antes por acontecimentos quase inacreditáveis. O amor sempre fora impossível na sua vida, apesar de todo poder sedutor que sempre manteve, mesmo depois de seu nome cair no esquecimento ao se tornar a tão assustadora aparição dos motorneiros. 

A propósito, para que saibam os amigos, não é por acaso que a loira sempre fora ligada aos veículos. Eles vitimaram seus namorados, todos eles filhos de autoridades da época, explicando, assim, seus insucessos em ascender, ainda viva, às classes privilegiadas. Cada namorado, um desastre. E não demorou muito para que Aurora sofresse uma sequência terrível de rejeições por moços que seguiam o conselho da mãe; “que se cuidem certos homens”, elas diziam.

Um dos acidentes, talvez o pior deles, aconteceu no segundo semestre de 1915. A Capital ainda era pequena, com pouco mais de quarenta e cinco mil habitantes. Em um domingo de outubro, um jovem de vinte anos, então namorado de Aurora, foi vítima de um grande desastre. Na volta de uma romaria cívica em Caeté, o infeliz rapaz se curvou para fora do vagão em que estava sentado, possivelmente para ver alguém conhecido, no exato momento em que o trem passou pela caixa d’água da ferrovia. Ele literalmente perdeu a cabeça, mas dessa vez, não por Aurora, se é que me entende.

Outros infortúnios se sucederam, mas para o relato não descambar para o grifo do sensacionalismo, tão querido por alguns programas jornalísticos da modernidade, fiquemos por aqui, no entanto, sem deixar de dizer que a essa altura o Bonfim já recebia os seus moradores eternos, sendo um deles, ou melhor, uma delas, a própria Aurora. Ainda que não fosse da estirpe senhorial, ela ganhou por condolência o direito de ser ali sepultada, tornando-se, já naquele tempo, a Loira do Bonfim.

Mal sabiam as autoridades que esse apelido faria história e que essa história ultrapassaria os tempos. E mais do que isso: o fato de darem a ela a comiseração de ser enterrada no segundo cemitério da cidade tido como o primeiro, fez com que Aurora assumisse, já na condição de fantasma, uma espécie de cargo advocatício daquelas duzentas almas de outrora.

Posso novamente até ver as caras de espanto ao lerem este relato… Mas na verdade, meus amigos, Aurora se apropriou de sua nova alcunha para vingar o descaso e o preconceito sofridos pelos seus ao serem sepultados em um cemitério esquecido. E para mostrar sua indignação, escolheu somente os homens como forma de protesto, passando a fazer o que todos já sabem, ou seja, pedir antes aos motorneiros, depois aos taxistas, para a levarem até os portões do Bonfim e os deixarem apavorados ao adentrar o cemitério desaparecendo, mas não antes sem dizer por duas vezes a sentença que por anos pensaram ser indicação do lugar para onde queria ir. Mas o que nunca se soube — pelo menos não até agora — é que na verdade a loira Aurora estava, e está, indicando outra coisa. Sua intenção sempre foi mostrar o local onde corpos de duzentas almas construtoras da cidade deveriam estar enterrados.

Por isso, se você é mulher ou homem sensível e romântico, nada tem a temer. Mas se você é daqueles machistas, patriarcais, é bom se cuidar. Isso se não quiser, como aconteceu com uma das vítimas da loira, enlouquecer, ser internado e passar todo o resto da vida repetindo sem parar: “é aqui, é aqui!”.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) LXII


A ganância que te ilude
que te arrasta à solidão,
é a mesma falsa virtude
que esconde a luz da razão!
= = = = = = = = = 

Aquele retrato antigo
que o tempo tem castigado,
conversa sempre comigo
segredos do meu passado!
= = = = = = = = =

Ah, se essa distância fosse
ponte, entre a nascente e a foz;
como seria mais doce
essa distância entre nós!
= = = = = = = = = 

Ao vê-lo, em meio aos escombros,
a ajudá-lo, eu me propus,
sentindo o peso nos ombros
do peso daquela cruz!
= = = = = = = = = 

A sensação dos afetos
que recebi de meus pais...
Oferto aos filhos e netos,
por serem todos iguais!
= = = = = = = = = 

Busquei na fonte de um templo,
a paz de um novo horizonte;
e achei essa paz no exemplo
que há no silêncio da fonte!...
= = = = = = = = = 

Cada verso que desliza
entre esses meus cegos dedos,
numa trova sintetiza
seus infinitos segredos!
= = = = = = = = = 

Deus mostra ao mundo insensato,
injusto, cego e sem luz...
Que o infinito amor, de fato,
coube entre os braços da cruz!
= = = = = = = = =

É no silêncio das noites,
na cadência dos meus ais...
Que a saudade em seus açoites
quebra o silêncio da paz!
= = = = = = = = = 

Entre esperas e demoras,
vi passar tanta quimera!...
Que, a primavera das horas,
já nem é mais primavera!
= = = = = = = = = 

Essa constante ansiedade
que ao fim da tarde, caminha...
É a velha dor da saudade
que eu sinto toda tardinha!
= = = = = = = = = 

Exemplo bom é o exemplo,
que as almas bondosas dão,
rezando no altar do templo
pelas outras que se vão!
= = = = = = = = = 

Lembrando canções antigas,
de volta ao meu velho chão...
Vi muitas sombras amigas
na orquestra da solidão!
= = = = = = = = = 

Meus dias!... Feliz por tê-los
na vida que se refaz,
no branco dos meus cabelos
aos ventos pedindo paz!
= = = = = = = = = 

Na estrada em que a luz palmilha,
é que a verdade se inspira;
e ante a luz que, tanto brilha,
jamais, se esconde a mentira!
= = = = = = = = = 

Não vi mais meus pirilampos,
poetas de luz do meu chão,
que iluminavam meus campos
nas noites de solidão!!!
= = = = = = = = = 

Na treva é que se carrega,
a dimensão do empecilho
da dor, que sente a mãe cega,
por não poder ver o filho!
= = = = = = = = = 

Num mundo de desiguais,
onde há tantos desenganos...
Perde-se cada vez mais
os sentimentos humanos!
= = = = = = = = = 

Ousado e um tanto atrevido?
Mas confesso, e se não fosse...
Jamais teria sentido
o mel de um beijo tão doce!
= = = = = = = = = 

Pelos teus gestos fanados,
para voltar não me peças;
sinto em teus sins, camuflados,
o olhar de falsas promessas!
= = = = = = = = = 

Quanta lágrima sentida
no olhar da mãe peregrina,
regando as rugas da vida
nas rugas da própria sina!
= = = = = = = = = 

Quanta lágrima sofrida,
e na alma, essa inquietude...
Por não ter feito na vida
tudo aquilo quanto pude!
= = = = = = = = =

Se a esperança é paz no outono,
sê paciente na espera;
que a flor desperta do sono
na eclosão da primavera!
= = = = = = = = = 

Se a flor da infância se afasta,
crê noutras flores bondosas;
que uma flor que o vento arrasta
não rouba a vida das rosas!
= = = = = = = = = 

Sem saber se tu me esperas,
cada verso que componho,
tem sabor das vãs quimeras
do tempero do meu sonho!
= = = = = = = = = 

Velho mar, meu confidente,
entre nós, tudo se arruma,
quando a queixa que se sente
vaga entre os cachos de espuma!
= = = = = = = = = 
Fonte> Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020. Enviado pelo autor.